Abstract
The subjects’ relationship with audiovisual technologies has been intensifying over time, the audiovisual experience gradually became part of all fields of our understanding of the social, artistic and academic world. With the development of digital technologies and the expansion of cyberperformance, especially in the recent two years of confinement, the existing relationships between audience and cinema consumption have changed.
Live cinema has been consolidated in the territory of experimentalism, through performers whose object is the manipulation of image and sound in real time. In this sense, this article aims to explore live cinema, as an online performance, as a didactic resource, derived from the pedagogical model developed for teaching cyberperformance in higher education, within the scope of the CyPeT project.
A brief history of live cinema, cyberperformance and the new pedagogical model developed is presented throughout the text. We seek to relate live cinema and education, in order to understand digital literacy, its collaborative, aesthetic and creative potential as a pedagogical resource or for teaching.
Keywords: Live cinema; Real time; Cyberperformance; Didactic resource; Education.
I-Introdução
Na contemporaneidade temos testemunhado uma intensificação das relações entre os indivíduos e as tecnologias audiovisuais. A experiência com o audiovisual passou a desempenhar um papel fundamental em diversos aspectos do nosso entendimento do mundo, abrangendo os domínios social, artístico e académico. Com o avanço das tecnologias digitais e a expansão da ciberperformance, especialmente durante os últimos dois anos de confinamento, as relações entre o público e o consumo de audiovisual, especificamente de cinema, sofreram alterações significativas. As possibilidades de interação proporcionadas pelo universo digital, alteraram a relação do público com o modo tradicional de ver filmes, processo que tem se acentuado a cada novidade tecnológica de imersão/interação com o audiovisual.1
Nesse contexto, o live cinema emergiu como uma forma de experimentalismo, capaz de tornar o cinema mais atrativo através de performances realizadas por artistas que manipulam imagens e sons em tempo real. Este artigo tem como objetivo explorar o live cinema como uma forma de performance online e recurso didático, derivado do modelo pedagógico desenvolvido para o ensino de ciberperformance no ensino superior, no âmbito do projeto CyPeT, acolhido pelo Centro de Investigação em Arte e Comunicação-CIAC, Universidade do Algarve em parceria com a Universidade Aberta e a Universidade da Maia, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia-FCT.
Ao longo do texto, ligamos cinema, ciberperformance e educação, ao apresentar um breve histórico do live cinema, da ciberperformance; estudos de caso sobre performance audiovisuais ao vivo e o novo modelo pedagógico desenvolvido. O objetivo é estabelecer uma relação entre o live cinema e a educação, a fim de compreender a literacia digital e o potencial colaborativo, estético e criativo dessa forma de expressão como recurso pedagógico no ensino.
II- Live cinema e a ciberperformance
Partindo do conceito do “ser contemporâneo”, podemos utilizar o entendimento de Migliorin (2020, p. 35), que afirma que “Ser é entender-se como imagem. Imagem que se apresenta ao outro, que se vende, que pode ser manipulada, alterada, virtualizada. Um eu-photoshop constitui a subjetivação contemporânea.” O autor de modo muito pontual indica que na atualidade o “eu” se faz com sobreposições de filtros, alterações de cor e novas montagens de si. Os sujeitos não têm uma história, criam-na, reinventam as histórias que querem para si. O eu-avatar, com novas customizações e um pouco mais de dinheiro. A construção de uma imagem de si não depende das grandes marcas, celebridades ou políticos, todos estão numa era da performatividade narcísica que reforça a centralidade de um eu, que apesar de todo hedonismo na organização dos subjetivos, soa incerto, dependente de estímulos e inputs quotidianos que reafirmem sua existência. A partir dessa ideia de imagem questionadora, ligamos a seguir cinema, ciberperformance e educação, por meio de conceitos e intersecções.
O live cinema, cinema ao vivo ou ainda audiovisual em tempo real é tão instigante quanto imprevisível. A exploração de tempos, espaços, movimentos e tecnologias apontam para o surgimento de novas perceções e sensações por meio de imagens e sons. (Molina Jr, 2017). A história do live cinema remonta aos fins do século XIX e início do século XX, quando os primeiros experimentos com projeções de luz e som foram realizados em salas de cinema e teatros. Nesse cenário de experimentações “o cinema não é questão de criação, de transmissão de um saber audiovisual e artístico” (Migliorin, 2015, p. 37), mas está na experimentação dos interstícios entre o mundo que existe, que é considerado real e a liberdade de criarmos outros mundos possíveis.
O termo “live cinema” pode ser associado à era dos “filmes mudos” (silent films) - de 1890 a finais de 1920 - que marcou o início do cinema. Nesta altura, ainda não existiam tecnologias para sincronizar som e imagens. A visualização dos filmes acontecia em auditórios e era acompanhada por música ao vivo- pianistas, organistas e orquestras para as produções com orçamentos maiores. Ir ao cinema, nessa época significava também ir a um concerto.
(Perfeito e Silva, 2019).
Durante os anos 1960 e 1970, artistas como Nam June Paik (considerado o pai da vídeoarte) e Robert Whitman começaram a incorporar elementos ao vivo em suas projeções de vídeo, criando performances audiovisuais que exploravam a interação entre o homem e a tecnologia. Nessa fase, desenvolveu-se uma estética minimal, que fora herdada da poesia concreta, dos manifestos Dadá e da música experimental, que veio a se estender ao filme, tornando-se um importante elemento na media art. Os Fluxusfilms como foram chamados, eram em torno de quarenta, em sua maioria criados por artistas que pouco tinham relação com o cinema. (Gomes, 2012).2
De acordo com Moran (2012), em performances ao vivo criadas por VJs ou artistas em geral, o “ao vivo” refere-se à combinação e manipulação de bancos de imagem. O Abe Synthesizer, um dos primeiros sintetizadores de imagem, foi utilizado por Nam June Paik, em 1969. Dispositivos do tipo fazem da performance ao vivo, cujo autor Makela (2006), foi dos primeiros a nomear como live cinema, apesar da proximidade com a visual music, que trabalha com imagens que se movimentam em padrões visuais segundo repetições e variações harmônicas da música. O real nesse sentido, desaparece enquanto referência indicial ou iconográfica. Real é o realizador em ato, sua presença física no palco, a utilizar a programação de scripts, em uma única plataforma ou mais de uma. A experiência do live cinema retorna-se ao cálculo e à programação, “mas não do enredo, e sim de paisagens visuais. O ao vivo é o caldeirão de adrenalina do embate do homem com a técnica, e não um caldeirão de imprevistos sociais.” (p.124).
Nos anos 1990 e 2000, o live cinema começou a ganhar mais popularidade, com o surgimento de festivais e eventos dedicados exclusivamente a essa forma de arte. Nesse período, artistas como Brian Eno, Coldcut e The Light Surgeons começaram a utilizar tecnologias digitais para criar experiências imersivas e interativas para o público. Atualmente, o live cinema continua a evoluir e se expandir, com a utilização de tecnologias de ponta, como a realidade virtual e aumentada, para criar experiências ainda mais imersivas e interativas. O uso de filmagens de câmaras em direto e videoclips de archive footage, misturados por uma interface em tempo real (também conhecidos como softwares de VJ, tais como Modelo8 ou Resolume Arena) continua a ser o método usado por artistas de live video, no entanto, hoje em dia as interfaces são maioritariamente digitais (Perfeito e Silva, 2019).
Da experimentação ao vivo do live cinema passamos à experimentação simultaneamente ao vivo e online da ciberperformance. A ciberperformance, que é definida como um tipo de performance ao vivo com performers remotos agrupados em tempo real utilizando a internet (Jamieson, 2008, Gomes, 2013; Papagianoulli, 2006, Najima, 2020), proporciona o aparecimento de um campo de estudo interdisciplinar que aborda as interações entre performance ao vivo e tecnologias digitais.
A história da ciberperformance remonta ao final da década de 1980 e início da década de 1990, quando a Internet começou a se popularizar e tornou-se uma ampla plataforma para a criação da arte digital. Na altura, artistas e teóricos começaram a explorar o potencial da Internet para a criação de performances, que poderiam ser acessadas remotamente, por um público global. Uma das primeiras formas de ciberperformance foi a “telemática”, que se referia à comunicação em tempo real entre artistas e público em diferentes locais geográficos, usando tecnologias digitais. Os artistas realizavam performances ao vivo em locais diferentes, enquanto a audiência assistia a transmissão em tempo real online O aumento dos eventos artísticos realizados à distância por meio de interfaces digitais evidenciou a possibilidade de uma prática cibernética que impunha uma redefinição dos diversos elementos da performance como o espaço, corpo, tempo e público. (Bardiot, 2012).
Da arte telemática, passando pela arte de satélite e performance digital desenvolvida em mundos virtuais como Second Life e UpStage, por meio de avatar, ou mesmo a arte que se popularizou nas plataformas de videoconferência e redes sociais nos últimos anos, encontramos uma ligação entre o live cinema e a ciberperformance pelo facto de:
- Ser performativo
- Ser sempre ao vivo
A ciberperformance não necessariamente utiliza imagens, mas se é uma ciberperformance cinematográfica já passa fazer uso e nesse sentido corrobora com a “imagem-movimento” de Deleuze, retratada por Migliorin (2020), que destaca a imagem-movimento não como representante do movimento, mas como o movimento em si. Imagem que exprime e é parte de uma mudança do todo, que ao ser levada ao limite faz surgir imagens óticas e sonoras puras, que não se prolongam em ação, nem são induzidas por uma ação. Elas devem permitir, desse modo, apreender algo insuportável (no que tange ao suporte) e que excede nossas capacidades sensório-motoras. Então, podemos afirma que, uma performance de live cinema que acontece online é em si uma ciberperformance.
III- Estudos de caso: Host e Utropica
• Host
Host é uma produção do cineasta britânico Rob Savage, lançada em julho de 2020. Com o bloqueio provocado pelo Covid19, em março de 2020, os filmes e grande projetos de estúdio de gravação permaneceram em hiato e os lançamentos de grandes filmes de verão foram adiados. Nesse cenário, Savage, em 12 semanas, juntamente com seus atores e equipe (principalmente composta por amigos), trabalhou em isolamento sob ordens de permanência em casa, usando chamadas de vídeo no Zoom e a engenhosidade DIY para fazer um filme de terror moderno, ganhando certa notoriedade por ser um filme novo, quando praticamente não havia filmes sendo lançados.
De acordo com Turner e Murray (2022), Host é uma encenação online de interações sociais, em uma plataforma de videoconferências, algo que se tornou recorrente entre 2020 e 2021, em função do confinamento. Em sua narrativa, a produção apresenta seis amigos que tentam evitar o tédio da quarentena participando de uma sessão pelo Zoom. Entretanto, um espírito malévolo se junta à chamada, viajando entre os vários locais através da internet, matando sucessivamente cada um dos amigos, enquanto os que ficam na ligação estão reféns em casa e em seus ecrãs- sendo forçados a testemunhar a morte em uma ligação que também é a única conexão entre si. O apelo de tal filme pode não ser óbvio, especialmente durante uma crise global pandémica, quando os anseios em torno do isolamento social, a dependência quase compulsória das tecnologias, proibições de estar fisicamente presente na morte de entes queridos e as incertezas sobre quem ou o que acreditar (de mensagens políticas a medidas de saúde pública e teorias da conspiração) passaram a fazer parte do nosso quotidiano. Host enfrenta, com a sua narrativa, todos esses medos – direta ou metaforicamente. Apesar da inovação narrativa, com o recurso ao zoom, a relação entre uma crise global e o interesse acrescido pelos filmes de terror não é novidade. Na História do cinema encontram-se numerosos paralelos históricos entre o interesse dos observadores de filmes de terror e condições vividas de convulsão social. Antes do lançamento de Host, a demanda do consumidor em 2020 por um filme de terror que se referisse à pandemia de COVID-19 também ficou evidente no inesperado renascimento do filme, de quase uma década, Contágio (2011), um thriller americano inspirado no surto de SARS de 2002–04, dirigido por Steven Soderbergh e estrelado por Marion Cotillard, Matt Damon e Jude Law. De janeiro a abril de 2020, Contágio tornou-se um dos filmes com mais downloads, transmissão e compartilhamento do ano. Ao mesmo tempo em que media sociais, como a Zeitgeist, registaram o aumento do consumo de documentário de choque, produzidos pela Netfix, como Tiger King (2020), e seus derivados convertidos em memes no TikTok. Após o seu lançamento, Host passa a explorar esta tendência, mas com o fascínio adicional de apresentar uma “pandemia” original e em tempo real.
Diante desse pano de fundo, Host deve muito de sua originalidade ao uso do familiar formato Zoom, utilizando a presunção do público, que testemunha as cenas aconteceram, por meio da ação do “espírito” em tempo real, mas de modo passivo. Essencialmente, a câmara reestabelece uma quarta parede entre a ação e a audiência. O público visualiza os atores em quatro janelas do desktop e as edições são realizadas em tempo real por meio dos recursos do próprio zoom e efeitos especiais, advindos de programação criativa. Ao final, aparentemente o “algo demoníaco” (33:52) usurpa o papel de “anfitrião”, permanecendo presente depois que cada personagem é morto e o limite de tempo de quarenta minutos do Zoom expira. (Turner; Murray, 2022).
• Utropica
Utropica é uma performance audiovisual, realizada em 2020, por Marina Araújo, no curso de cinema e audiovisual, em Fortaleza, Brasil. A performance foi apresentada online ao vivo e reúne de forma híbrida diversas expressões artísticas como cinema, fotografia, vídeo e música. Para a autora Araújo (2021) a fusão de tais práticas auxilia a promoção da construção de novos horizontes holográficos e aproxima os estudos de diferentes áreas e recursos, tai como como: live cinema, VJ/DJ, expanded cinema, visual music, remix, entre outras. Nessa perspetiva, Utropica - performance audiovisual ao vivo -, reúne de modo experimental tais recursos interdisciplinares como forma de composição audiovisual.
Utropica busca ultrapassar as circunstâncias delimitadas pelo encontro físico apropriando-se de um banco de dados visuais e sonoros compartilhados online. A autora, em meio às limitações do confinamento, propõe questionar através da performance: “Como o meu corpo, se coloca no mundo em meio ao caos urbano e por meio do resgate de memórias se torna possível o respiro?” Assim, a performance Utropica torna-se um registo de pesquisa com o olhar voltado para a utilização de técnicas de remixagem de banco de dados; trabalha com a ideia do momento como expressão e também como condição para ação criativa e performática da artista. Tendo as premissas do tempo, espaço, contexto e tecnologias, a autora estabelece a construção do resultado amplificador (sonoro) e projetado (visual). A linguagem fílmica experimental da performance nos elementos compartilhados (sons, imagens, textos, gifs e vídeos) traduz-se em formas e possibilidades de se pensar e fazer audiovisual online (Araújo, 2021).
A performance online, teve forte ênfase no elemento do som e foi transmitida ao vivo via o link (https://www.twitch.tv/marinakumara8) da plataforma Twitch (da Amazon), sendo transmitida para outras plataformas via OBS Studio, mesa-mixer virtual de vídeo (programa de edição, streaming e gravação), através do qual foi possível a transmissão da apresentação diretamente da casa da artista - telas conectadas - em tempo real.
IV-Cinema e as possibilidades performativas online
Os dois estudos de caso, nos apresentam diferentes obras que podem ser consideradas como ciberperformances e que aconteceram durante a pandemia. Podemos considerar ambas como obras contingenciais - os autores não tinham a intenção de as realizar online, foram levados a isso pelo confinamento. Além de obras, como as referidas, o confinamento propiciou o surgimento de oficinas de criação online.
Nesse sentido, temos o caso da oficina “Cinema na Quarentena” ‘que surgiu como uma inquietação transformada em ação. Idealizada como um desdobramento do projeto Cinemirim - oficinas presenciais de cinema para crianças (Bento, 2020, p.10). A autora Maria de Paula Bento no percurso do mestrado, na Universidade de Lisboa, em plena pandemia, realiza a transposição do projeto presencial para o online. No decorrer da investigação do projeto CyPeT, nos deparamos com muitos bons projetos e iniciativas que se desenvolveram nesses termos.
Bento (2020) destaca que o objetivo da oficina era sensibilizar os alunos à linguagem do cinema, experimentar novas temporalidades na relação consigo e com o outro e alimentar as crianças com imagens de infâncias diversas, relembrando o prazer de estar no mundo, de brincar, de saber que existem outras infâncias; tendo como meta trabalhar suas subjetividades e pensar o cinema como uma janela para o mundo de fora e o de dentro. Foram realizadas 10 sessões online, através de plataformas de videoconferência que reuniram alunos entre 10 e 12 anos. Com o uso do telemóvel, os alunos assistiam e analisavam curtas e realizavam exercícios de performance, criação e edição. Em relação às questões pedagógicas, a oficina dialogou com a pedagogia da criação e o tratado de transmissão do cinema nas escolas, defendido pelo crítico francês Alain Bergala (2008). Uma pedagogia que está centrada na criação e é evidenciada tanto quando se realiza como quando se assiste um filme, por considerar o cinema não como um objeto, mas como marca final de um gesto criativo, estimulando a leitura criativa do filme, levando o aluno a imaginar as escolhas e possíveis incertezas do diretor, vivenciando, desse modo, as emoções do processo criativo.
Outro artista, cineasta e pesquisador que também desenvolveu projetos durante a pandemia, foi o canadense Philippe Pasquier, autor do projeto “Live Cinema Lab”, uma plataforma para a criação e apresentação de performances de live cinema, performances audiovisuais ao vivo, bem como para o desenvolvimento de novas tecnologias e abordagens pedagógicas para essa forma de arte que envolvem a linguagem audiovisual. Suas obras podem ser vistas no site https://philippepasquier.com/artistic_works.
Diante dos exemplos apresentados percebemos que são muitas as possibilidades que o professor pode ter ao utilizar como recurso, a ciberperformance, seja para ensinar cinema, ou linguagens performativas diversas, à geração nativa digital. Mas sem dúvida, a mais importante é trazer-lhes reflexões sobre “entender-se como imagem” (Migliorin, 2020) no ciberespaço e ajudá-los a se entenderem nessa sociedade virtualizada, potenciando a sua criatividade e originalidade, porque efetivamente eles dominam os dispositivos, só precisam de uma orientação em como utilizá-los da melhor forma.
V- Proposta de modelo pedagógico para o ensino da ciberperformance
O cinema em sala de aula pode e deve ocupar espaços, tempos, ritmos, recortes, conexões, cenas e rupturas em vários planos e profundidades. De acordo com Migliorin e Pipano (2018) ensinar cinema é muito mais que ensinar técnicas ou metodologias de leitura. O próprio cinema tem muito para nos ensinar sobre o mundo, pois é diretamente um relacionar-se com o mundo de modo interrogativo, que vê e ouve mais do que explica:
A arte não se ensina, se experimenta. A experiência deve ser nova para o professor e para o aluno, enfatiza, ainda, Bergala. É pela experiência que o professor pode sair do lugar daquele que ensina para experimentar com os alunos. Experimentar no lugar de interpretar, como tanto insistiu Deleuze (Migliorin e Pipano, 2018, p.39).
Assim, sob a égide da experimentação, o projeto exploratório CyPeT, busca desenvolver um modelo pedagógico para o ensino da ciberperformance no ensino superior. A partir da exploração da teoria e da prática da ciberperformance através dos ângulos criativo, performativo e comunicacional, o modelo pedagógico para o ensino da ciberperformance busca utilizar um processo de ensino-aprendizagem centrado no aluno, interligando três conceitos-chave – o contexto, a tecnologia e a pedagogia – através de uma abordagem estruturada que visa tornar o ensino em rede operacional para as Artes performativas Digitais (Bidarra et al. 2023). Esses três conceitos podem perfeitamente aqui serem transformados em cinema, ciberperformance e educação, abordando o cinema enquanto contexto, a ciberperformance enquanto tecnologia em si mesma e a educação realizando a ligação pedagógica.
Em relação aos indicadores, foram propostos dez indicadores para o design de conteúdos educacionais que podem coexistir em atividades híbridas diversas, identificando cada um, os extremos de uma escala (Bidarra & Rusman, 2017, apud Bidarra et al.2023). A partir desses indicadores, podem ser originadas estratégias de ensino que contemplem múltiplas atividades de aprendizagem, todavia, nessa abordagem iremos nos focar no live-cinema.
• Indicadores para o design de conteúdos educacionais
Contexto: Aprendizagem formal; aprendizagem individual e colaborativa; plataformas e recursos de e-learning (abertos ou restritos).
Tecnologia: Aprendizagem síncrona e assíncrona; interação virtual; plataformas para aprendizagem offline e online.
Pedagogia: Atividades teóricas e práticas; atividades curriculares programadas ou flexíveis, avaliação e acompanhamento
As experiências e a interação em contexto híbrido baseiam-se essencialmente em tecnologias digitais que estão hoje a transformar os processos de aprendizagem, contudo, muitas das teorias mais reconhecidas e dos modelos de aprendizagem já estabelecidos continuam válidos. Por exemplo, a estrutura pedagógica subjacente à implementação de novas ferramentas de software, jogos e simulações no contexto da aprendizagem pode ser sustentada em conceitos teóricos provenientes do construtivismo (Bruner, 1966; Piaget, 1973), do construtivismo social (Vygotsky e Cole, 1978), da cognição situada (Brown, Collins & Duguid, 1989; Barab & Kirschner, 2001), das comunidades de prática (Wenger et al., 2002) e da sala de aula invertida (Bergmann e Sams, 2012; Lucena, Santos e Oliveira, 2020).
No que tange a noção de espaço-tempo, a ciberperformance ultrapassa as fronteiras e nos apresenta um espaço tempo multirreferencial. Quando ligada ao live cinema passa a utilizar maioritariamente o espaço e tempo híbrido, como refere a matriz aumentada adaptada em nossa investigação (Bidarra et al., 2023):
Espaço igual - Tempo híbrido: Atividades num mesmo espaço, mas recorrendo simultaneamente a elementos síncronos e assíncronos
Espaço híbrido - Tempo híbrido: Atividades síncronas, mas que decorrem em espaços físicos comuns, e simultaneamente em espaços distintos
Tendo como base os eixos abordados até o momento, um modelo pedagógico para a ciberperformance deve considerar, além de todas as metodologias para o ensino online, os mapeamentos realizados e os espaços multirreferenciais de aprendizagens, inspirando-se, portanto, na aprendizagem invertida, também conhecida como “Flipped Classroom” (Bergmann e Sams, 2012), que utiliza uma metodologia ativa de aprendizagem, com componentes online e presenciais. Segundo Lucena, Santos e Oliveira (2020), nessa imersão nas culturas digitais, os espaços físicos e virtuais, relacionam-se com um movimento flexível e instituinte de redes colaborativas, as quais potenciam as maneiras de aprender e de ensinar, apropriando-se das interfaces em redes colaborativas, que se revelam à medida que são incorporados na sala de aula online:
Nesse processo de ensino-aprendizagem em ciberperformance, é preciso que se tenha em atenção (Bidarra et al.,2023):
- A colaboração em rede: visando um processo de criação fílmico nativo no ciberespaço, estando, pois, conscientes de que a mudança de ambiência (físico/virtual) exige profundas alterações no próprio processo criativo. Dessa forma, é importante para a concretização da ciberperformance a existência de redes de colaboração entre setores artísticos, educacionais e tecnológicos.
- Espaço-tempo multirreferencial: de modo a utilizar diferentes plataformas, espaços e artefactos digitais adequados a cada nova obra. Para isto, é necessária a formação dos performers/professores nas mais variadas plataformas de acesso, de forma a desenvolver habilidades tecnológicas para uma boa utilização das ferramentas digitais. Além do investimento em equipamentos adequados e manuseio dos mesmos.
- Interação triangular: na performance ao vivo e online, o ciberperformer/professor interage com o aluno e audiência, que por vezes se fundem, pois, o aluno e a audiência podem ser ambos ciberperformers e interagir entre si.
- Cibercriatividade: também associada à inovação tecnológica, salienta a habilidade inventiva de criação em arte digital online e flexibilidade em torno dos constrangimentos técnicos, que deixam de ser um fator de impedimento e passam a ser aliados no processo de criação e exibição da performance online.
- Autonomia: os atores envolvidos no processo criativo em ciberperformance são autónomos e tecem entre si redes de criação, formação e troca de saberes. Especificamente no cinema, essa autonomia envolve a análise fílmica e o entendimento do processo criativo.
- Diálogo: plural e ampliado, visa a automanutenção dos espaços-tempos colaborativos, transformando-os em entidades autossustentáveis e procurando um contínuo status de performatividade.
Retomando o “agir-imagem”, “o sujeito que produz e pensa com imagens, vive a experiência de um “eu” que cria mundos e, ao mesmo tempo, tem esse eu rachado, incompleto, dependente do mundo tocado, desenhado pelas relações abertas pelo agir-imagem” (Migliorin, 2020, p.42). E esse agir-imagético em ciberperformance expande esse universo de criação, recriação e distribuição da obra. Ao nos referirmos muito especificamente ao live cinema, ele pode ser incorporado em processos pedagógicos como uma forma de ensinar conceitos de produção audiovisual e tecnologia, com os alunos em trabalhos coletivos que os permita criar performances ao vivo que combinem vídeo, som e interatividade, tanto do ponto de vista técnico como conceitual.
VI- Conclusão
Em conclusão, fica evidente que a relação entre os sujeitos e as tecnologias audiovisuais tem evoluído ao longo do tempo, incorporando-se de forma cada vez mais profunda em nossa sociedade. O live cinema surge como uma expressão artística que utiliza as possibilidades das tecnologias digitais e da ciberperformance para criar experiências audiovisuais únicas e imersivas.
Durante o período de confinamento, o live cinema ganhou ainda mais relevância, proporcionando uma forma de entretenimento e expressão artística acessível através de plataformas online. Além disso, o seu potencial como recurso didático no ensino superior se destaca, uma vez que combina elementos de literacia digital, colaboração, estética e criatividade.
Os estudos de caso abordados: Host, Utropica e os exemplos de oficinas (Cinema na Quarentena e Live Cinema Lab) que englobam o ensino de cinema ao vivo e online nos ajudaram a perceber o potencial narrativo, lúdico e criativo dos meios digitais na sua intersecção com o espaço real. A escolha e análise de cada exemplo partiu do impacto que tiveram e pelo facto de terem surgido durante a pandemia, num cenário específico e que nos despertou para as novas possibilidades do ensino artístico e performativo virtual.
O modelo pedagógico desenvolvido para o ensino de ciberperformance, no âmbito do projeto CyPeT, reflete como o live cinema pode ser utilizado como uma ferramenta de ensino inovadora e envolvente. Ao explorar os elementos de manipulação de imagem e som em tempo real, os alunos são incentivados a desenvolver habilidades técnicas e criativas, ao mesmo tempo em que ampliam sua compreensão das possibilidades artísticas e comunicativas da linguagem audiovisual. Importa referir que, pensamos o live cinema como umas das possibilidades de ciberperformance, pois utiliza a tecnologia digital, interação com o público e performances ao vivo para criar uma experiência audiovisual imersiva e efémera. Na ciberperfomance de live cinema, os artistas/professores podem receber feedback em tempo real do público, que pode ser convidado a participar ativamente, seja através de interações digitais, como votações ou chat ao vivo, ou até mesmo sendo incorporados à performance por meio de projeções ou intervenções.
O pensar a ciberperformance live cinema como recurso pedagógico requer uma reflexão contínua sobre as melhores práticas e estratégias de ensino. É necessário considerar a acessibilidade das tecnologias e das plataformas utilizadas, bem como garantir uma abordagem inclusiva que promova a participação e a diversidade de perspectivas.
Em suma, o live cinema oferece um caminho promissor para a integração das tecnologias audiovisuais no ensino, estimulando o engajamento dos alunos e expandindo suas habilidades criativas. Compreender e explorar o potencial do live cinema como recurso didático nos desafia a repensar as formas tradicionais de ensino e abraçar a inovação para promover uma educação mais dinâmica, envolvente e atualizada com as demandas da sociedade contemporânea.
Notas finais
1https://bts.senac.br/bts/article/view/567
2Sobre o Grupo Fluxus: https://books.google.pt/books?hl=pt-PT&lr=&id=rKIlDQAAQBAJ&oi=fnd&pg=PR9&dq=fluxus+movement&ots=GKaLwa4iIO&sig=R1pgvc06Fbk3xcQUx6xy6Jb1hPc&redir_esc=y#v=onepage&q=fluxus%20movement&f=false
Agradecimentos
O presente artigo é fruto do Projeto EXPL/ART-PER/0788/2021 – CyPeT – “Desenvolvimento de um modelo pedagógico novo para o ensino de ciberperformance no ensino superior ” para que conte como publicação no âmbito do mesmo, e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Uma iniciativa do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC) – Universidade do Algarve em parceria com a Universidade Aberta de Portugal e a Universidade da Maia.
Bibliografia
Barab, S. A., & Kirschner, D. 2001. Methodologies for capturing learner practices occurring as part of dynamic learning environments. Journal of the Learning Sciences, 10(1-2), 5-16.
Bento, Maria Paula. 2020. Cinema na quarentena: Processos participativos de criação com crianças em contextos de pandeia. Dissertação de mestrado em Educação e Formação. Universidade de Lisboa.
Bergmann, Jonathan, & Sams, Aaron. 2012. Flip your classroom: Reach every student in every class every day. USA, ISTE.
Bidarra, José.; Veiga, Pedro Alves da.; Sapucaia, Rosimária; Wexel, Juliana; Tavares, Mirian; Costa, Susana. 2023. Desenvolvimento de um modelo pedagógico virtual paras as artes performativas digitais. RE@D - Revista de Educação a Distância e Elearning, Volume 6, Número 1 jan-jun 2023.
Brown, John; Collins, Allan, & Duguid, Paul. 1989. Situated cognition and the culture of learning. Educational Researcher, 18, 32-42.
Bruner, Jerome. 1966. Toward a theory of instruction. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University.
Gomes, Clara. 2012. A performance e o filme: Da Fluxux à performance digital. Artciencia.com, Year VII. Number 15. May 2012 – November 2012, ISSN: 1646-3463.
Gomes, Clara. 2013. Ciberformance: a performance em ambientes e mundos virtuais. Tese de Doutoramento em Ciências da Comunicação. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
Jamieson, Helen. 2008. Adventures in Cyberformance - Experiments at the interface of theatre and the internet. Tese de mestrado, Drama, Creative Industries Faculty, Queensland Universty of Technology.
Lucena, Simone, Santos, Sandra Virgínia., & Oliveira, Arlene. 2020. Espaços multirreferenciais de aprendizagem em redes colaborativas. In: Espaços de aprendizagem em redes colaborativas na era da mobilidade. Organizadores: Simone Lucena; Marilene Batista da Cruz Nascimento: Paulo Boa Sorte. Aracaju: EDUNIT.
Makela, Mia. 2006. Live cinema. Language and elements. Media Lab, Helsinki University of Artand Design April 2006.
Migliorin, Cezar. 2015. Inevitavelmente Cinema: educação, política e mafuá. Rio de Janeiro: Beco do Azougue.
Migliorin, Cezar. 2020. Cinema e clínica: notas com uma prática. Revista Metamorfose, vol. 4, nº 4, jun de 2020.P. 31-46.
Migliorin, Cezar.; Pipano, Isaac. 2018. Cinema de brincar. Belo Horizonte: Relicário.
Molina Jr, Jair. 2017. Cinema ao vivo e experiências audiovisuais em tempo real. Dissertação de Mestrado em Meios e processos audiovisuais-Universidade de São Paulo.
Moran, Patrícia. 2012. Ao vivo: entre técnicas, scripts e banco de dados. Teccogs, n. 6, 307 p, jan.-jun, p-109-117.
Najima, Fabiana. 2020. Ciberperformances e a Cibernética. Revista outras Fronteiras. Cuiabá-MT, Vol. 7, N.1, Jan./Jul., 2020, p.1-19, ISSN: 2318-5503.
Papagiannouli, Christina. 2016. Political Cyberformance - The Etheatre Project. Basingstone: Palgrave Macmillan. DOI:10.1057/9781137577047.0008.
Perfeito, Ana.; Silva, Bruno Mendes. 2019. Moda Vestra - um espetáculo de cinema ao vivo sobre o Algarve. In: Avanca Cinema 2019, p.537-544. In AVANCA | CINEMA 2019. Organizado por António Costa Valente e Rita Capucho, 1216-21. Avanca: Edições Cine – Clube de Avanca.
Piaget, Jean. 1973. To understand is to invent: The future of education. New York: Grossman Publishers.
Turner, Simon; Murray, Stuart J. 2022. Becoming Host: Zooming in on the pandemic horror flm. In: Creative Resilience and COVID-19. Edited By Irene Gammel and Jason Wang London: Routledge.
Vygotsky, L. S., & Cole, Michael. 1978. Mind in society: The development of higher psychological processes. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Filmografia
Contágio. 2011. De Steven Soderbergh. Burbank: Warner Bros.
Host. 2020. De Rob Savage. Londres: Shudder.
Tiger King. 2020. Netflix.