Abstract
We present the motivations, processes and unfolding of a summer course oriented towards producing autobiographical narratives in the context of a collective creation process in audiovisual. The project addressed health and social work professionals at the Joaquim Venâncio Polytechnic School of Health / EPSJV of the Oswaldo Cruz Foundation / Fiocruz, Brazil. It was conducted in two parts: first, a theoretical-practical series of meetings online in which we discussed the history, current practices, and the epistemological, ethical, aesthetic and political foundations of participatory audiovisual ethnographies and autobiographical expressions in the arts and film; the other part was focused on carrying out a creative workshop in the hybrid format, bringing together participants from many cities and regions of Brazil. The proposal dialogues with several references in the arts and cinema, particularly with the film We Can’t Go Home Again by Nicholas Ray. By offering a view on this project in its origins and practices concerning autobiographical practices, focusing on nurturing the creative process of those social agents and older adults, we conclude that the autobiographical expression built collectively for audiovisual language opens possibilities for interaction and artistic experimentation that call for other ways and reasons for making cinema, since by telling and listening to themselves and others, the participants deeply engage with the experiences of living, expanding the senses, and creating new meanings for their life stories to the point of turning them into art so they can be seen, heard and connected through creating their images and narratives.
Keywords: Autobiographical Film; Autobiography, Nicholas Ray, Collective Experimentation, Audiovisual.
Introdução
No final do ano de 2022 e início de 2023 a AO NORTE1, o ID+ / IPCA2 e o NuPAA/UFG3 construíram um plano de curso centrado nos processos de criação autobiográficos em audiovisual para uma unidade curricular / disciplina (curso de verão) do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / EPSJV, da Fundação Oswaldo Cruz / Fiocruz. O curso se chamou Entre imagens: construir o olhar / educar o olhar e teve como principais objetivos: Aprimorar as relações entre instituições nacionais e internacionais a partir de iniciativas centradas na formação cultural e nas expressões audiovisuais junto das populações de idade maior (pessoas idosas); Criar e desenvolver o intercâmbio geracional e as oportunidades de divulgação da cultura e da história do cinema aos mais velhos; Estimular - por meio das artes, do cinema e do audiovisual - a interação de pessoas dessa faixa etária com artistas das artes visuais e audiovisuais, promovendo encontros para o envelhecimento ativo no âmbito de uma comunidade engajada com reflexões, ações e abordagens sobre temas como gênero, meio ambiente, mundo digital e sustentabilidade; Desenvolver processos de produção, criação e apropriação de narrativas mediadas pelo cinema e medias digitais, envolvendo diversas instituições, dentre associações sociais e comunitárias, instituições educacionais de todos os níveis e idades, inclusive universidades e demais instituições de pesquisa; Criar uma rede colaborativa com parceiros numa triangulação linguística de falantes de português e espanhol para permitir a troca de experiências através da documentação visual e audiovisual de narrativas autobiográficas e a criação de conteúdos de autoexpressão em diferentes contextos e experiências focados na temática do envelhecimento.
Esse projeto é um desdobramento das colaborações da AO NORTE com o ID+ / IPCA e a URJC de Madrid, bem como de outras práticas desenvolvidas online com um grupo piloto de seniores voluntários que iniciaram a experiência de se contarem. Sua realização é fruto da colaboração da AO NORTE com a EPSJV da Fiocruz, desenvolvida durante os anos anteriores à pandemia da Covid-19. Nesse contexto, foi importante também para o desenvolvimento das atividades de formação e pesquisa aqui apresentadas o ingresso do Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas - NuPAA/UFG/CNPq como parceiro, por se tratar de um grupo de pesquisa fundado em 2017 que, desde então, reúne artistas para investigar poéticas artísticas e processos de criação em diversas linguagens das artes na confluência com os estudos auto/biográficos.
A atividade formativa e de autoaprendizagem (aprendência) que fundamentou o curso destinou-se à formação de profissionais de saúde que se propunham desenvolver os objetivos desta proposta posteriormente com populações de idade maior (seniores). O curso teve, num primeiro momento, uma componente de formação online com três sessões em ensino remoto: 1) 17 de janeiro de 2023: Realizou-se uma introdução ao conteúdo do curso, às atividades a serem desenvolvidas e às noções básicas sobre autobiografia e autosociobiografia. Recomendou-se também, nesse momento, o visionamento repetido e a análise dos seguintes filmes, referidos como expressões significativas do cinema de ensaio e do cinema autobiográfico: We Can’t Go Home Again (1973-1979/2010), de Nicholas Ray (Figura 1); No intenso agora (2017), de João Moreira Sales; Les Années Super 8 (2022), de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot; e a consulta ao projeto Coletivos Incomuns4; 2) 24 de janeiro de 2023: Tratou-se das etnografias audiovisuais participativas, em que foi apresentado o seu histórico, práticas atuais e fundamentação epistemológica, ética, estética e política; 3) 31 de janeiro de 2023: Apresentou-se a noção de Pesquisa Autobiográfica em Arte (Rodrigues 2021; Afonso, 2016), com ênfase em projetos de pesquisa artística conduzidos por integrantes do NuPAA/UFG/CNPq que se valem de materialidades, imaterialidades e expressões autobiográficas.
Nos dias 6, 7 e 8 de fevereiro de 2023, foi realizada a oficina prática no modo híbrido, de forma a acolher alunas e alunos localizados não apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas também em outras localidades e regiões do Brasil. Dos filmes propostos para visionamento e análise mencionados anteriormente, deu-se nesse momento particular importância a We Can’t Go Home Again (1973-1979/2010) de Nicholas Ray, que serviu de inspiração para a condução das atividades práticas junto ao grupo de estudantes durante a oficina.
Experimentação coletiva em Nicholas Ray
Várias razões nos levaram a escolher We Can’t Go Home Again como referência e estímulo para a nossa proposta de atividade formativa e criativa em audiovisual. Em primeiro lugar, porque esse é um filme rodado durante o trabalho de Nicholas Ray como professor de cinema na Harpur College of Arts and Sciences, na Binghamton University, New York. Além do processo criativo que descreveremos abaixo com algum detalhe, o filme é profundamente humanista e inovador. Um filme fora da caixa ou “para sair da caixa” (Ray 2009).
No final do filme, Nicholas Ray diz “cuidem uns dos outros. É sua única chance de sobrevivência. Tudo o mais é vaidade. E deixem-nos dançar”. Para ele, o desafio era, pois, recompor uma comunidade a partir de unidades díspares, uma família substituta para superar o postulado do título, atravessando aliás, como uma ferida aberta indefinidamente, toda a filmografia de Ray: “Não podemos voltar para casa de novo” inscrito nas imagens finais do filme ao som da canção Bless the family 5, interpretada por Suzy Williams:
Abençoe a família/ Que ama unida/ E trazem a si mesma alegria/ Embora as crianças ganhem/ Fama, nenhuma fortuna/ Elas sobreviverão ao ano/ E estas seis paredes nos manterão secos/ Quando todo inferno desabar do céu/ Abençoe a família/ Que ri e chora/ Unida, unida/ Deus abençoe a família/ Que canta junto/ Uma canção irrompe de suas gargantas [...] 6
Observa-se que a forma do filme favorece uma reunião de imagens, unidas entre si por sobreposição e combinação, mais do que atreavés de uma sucessão temporal de imagens singulares. Ray menciona que a “fita de celuloide não tem limites de tempo ou de espaço. Só os da imaginação humana”, e:
[...] nosso pensamento não avança só em linha reta. Existem outras associações que se fazem ao mesmo tempo e foi por isso que me servi dos écrans múltiplos. Utilizei muitas vezes uma dada cor para uma dada zona do écran, sem qualquer incidência na história, apenas para enriquecer o sentimento que tenho da cena. (Ray apud Costa 2011, 254).
Esta foi também a ideia para a prática colaborativa que desenvolveu com seus estudantes, como podemos ver no filme e também como nos testemunha Susan Ray, participante no processo e, mais tarde, companheira de Nicholas Ray e responsável pela versão atual do filme7 (1979), com estreia em 1980 no Festival de Roterdão (Figura 2).
No processo de colaboração, observa-se que todos trabalhavam, comiam, jogavam cartas e iam juntos para a cidade, dormiam juntos e passavam várias noites administrando tarefas juntos. As fronteiras entre vida individual e em grupo, dentro e fora do set, foram dissolvidas – provavelmente devido às características específicas de trabalho e criação de Nicholas Ray. À medida que as relações entre os membros da classe e Nick se aproximavam, sua dinâmica passou a ser o próprio conteúdo do filme, e o título se tornou We Can’t Go Home Again.
Nick reverenciava a iniciativa colaborativa, a união de talentos e habilidades individuais dentro de uma equipe que era maior do que a soma de suas partes. E valorizava cada participante, por menor que fosse sua contribuição. Mesmo dos mais tímidos conseguia extrair uma habilidade. Para ele, o trabalho de fazer um filme era menos o de impor sua própria ideia de como deveria ser ou representar, e mais o de criar para os atores e a câmara (também a câmara era um ator), um vaso ou útero fértil, junto com a pressão de um desejo ou desejos conflitantes e, em seguida, permitir que o celuloide captasse as revelações, fossem elas quais fossem. Ele sabia como obter o máximo com o mínimo (Ray 2011).
Nicholas Ray referia que os estudantes não seriam capazes de aprender sem a ajuda dos outros:
[...] não sereis capazes de aprender nesta aula sem a ajuda dos outros. Mesmo no abençoado santuário da solidão, só podereis aprender a dirigir com a ajuda e o exemplo dos outros. Nada se faz só, nem sequer a loucura. (Ray apud Ray 2011, 45)
No entanto, havia uma direção. Nick tinha que ser o diretor, o chefe, aquele que fazia o show. Ele colaborou, mas nos seus próprios termos.
O filme revela, no início, o contexto sócio histórico dos Estados Unidos da América do final da década de 1960: o Festival da Vida, da Convenção Nacional dos Democratas em Chicago, Ilinois; as consequentes manifestações; confrontos violentos com a polícia onde Ray foi agredido e sua câmara quebrada; os oito “conspiradores” de Chicago, nomeados no filme, durante o processo de julgamento; o assassinato do ativista e revolucionário Fed Hampton, membro do Black Panther Party. É nesse contexto que assiste à desmobilização das ruas – o confronto era difícil, as pessoas começaram a desaparecer, acabaram as manifestações. Nick interrogava-se onde estão as pessoas e lhe foi, então, oferecido um emprego numa universidade. Ele descreve o que leva para lá – o sorriso e a bengala tortos e “impressiono-os com a minha retórica, rebelião e poderio” (Ray, 00:02:01). Refere ainda a noite da Baía dos Porcos, John Kennedy, o recurso aos abrigos anti-bomba para os amigos.
A canção Bless the family aparece no filme desde o início [00:02:41 a 00:04:37], bem como a escola e o questionamento dos estudantes em relação ao professor: “É o novo professor?” “Acho que sim.” “Acha?” “Sou, sim.” “Não é velho demais para ser um professor novo?” (As vozes misturam-se, outras intervêm.) Depois, um lembrou-se: “Você foi quem dirigiu aquele filme sobre os esquimós com Anthony Quinn?” “E Juventude transviada, você não dirigiu isso, também?” “Fui. Você gostou?” “Ele é o que fez Amarga esperança, não?” “Também.” “E não fez” “Fiz.” “E não fez aquele filme com Bogart?” “Fiz.” “Então o que você faz aqui?” “O que você faz aqui?”. Esta é a pergunta a que We Can’t Go Home Again busca dar respostas possíveis.
Mas os estudantes nada querem com Hollywood, “queremos fazer as nossas próprias coisas”, “queremos fazer da nossa própria forma”. Nicholas Ray quase não fala, sobretudo escuta mesmo quando lhe fazem perguntas mais agressivas “Pensa que sabe tudo porque fez filmes e é velho.” “Quem lhe deu o direito de ensinar?” “Só quer falar, não quer ouvir.”
Para Nicholas Ray os estudantes aprenderiam a fazer um filme fazendo um filme, a única maneira de aprender. Antes ele dizia no filme “a educação é um negócio” - mas era também aí, na universidade, que estava tudo o que ele queria. O trabalho no Harpur College proporcionou-lhe a situação certa para explorar suas paixões mais profundas: o ensino, a experiência coletiva, a juventude contemporânea, o potencial da fita de celuloide e, é claro, a busca abrangente do cinema. O fato de não haver muito dinheiro para nada disso apresentava problemas específicos, é claro. Mas também lhe forneceu um tipo de liberdade impensável num set de filmagem de grande orçamento. Nada do que se perde pode ser uma liberdade para quem sabe aproveitá-la (Ray 2011).
As condições de realização do filme, suas limitações e o interesse, desejo e atitude de Nick pareciam acomodarem-se pelo seu engenho e criatividade. O orçamento do departamento de cinema do Harpur College era muito limitado à altura. Seus equipamentos eram escassos e ultrapassados – havia apenas uma câmara de 35mm do Pós-Segunda Guerra Mundial8 e outros equipamentos de diversos formatos: 16mm, super-16mm, 8mm, super-8mm, e vídeo de 1 e 2 polegadas. Além disso, a maioria dos alunos que se inscreveu para as aulas não tinha conhecimentos técnicos. Estas condições não eram alheias a Nicholas Ray, que se tinha formado durante a Grande Depressão, tinha sentido grandes sucessos e alguns fracassos, havia tentado voltar ao cinema comercial sem êxito, enfrentado imposições dos produtores, estado na Checoslováquia, para realizar experiências no âmbito do multimédia. No entanto, as dificuldades para ele e para os estudantes foram tomadas como desafios, atraiam-nos e partilhavam-nos para estimular a imaginação e procurarem soluções.
O filme foi rodado em 35mm, 16mm, super-8mm e 8mm e também em vídeo de 1 e 2 polegadas. Ao final, foi criado um dispositivo para dar unidade de suporte 35mm ao filme.
Uma parte do material foi filmado em vídeo, ou em 16 transposto para vídeo, retrabalhado por um sintetizador ótico. Todas as sequências em vídeo foram depois transferidas para 16mm até a transposição final para um ecrã formado por vários écrans, écran em si mesmo um prodígio de trabalho técnico. As sequências que deviam ser montadas juntas eram projetadas em transparência, por cinco projetores funcionando simultaneamente que, depois, eram filmadas por uma câmara de 35mm. A fotografia que serve de quadro e de pano de fundo às múltiplas imagens assim produzidas, foram uma ideia de último minuto de Nick, tanto no âmbito das filmagens como no do laboratório. O número de écrans varia durante o filme, mas o formato básico utiliza, em geral, quatro: um grande para os 16mm, em baixo e à esquerda, dois mais pequenos, ao alto à esquerda e em baixo à direita, e outro (8mm) ao alto à direita. Por vezes, uma quarta imagem, em 35mm, sobrepõe-se a todas as outras. E apesar da inicial complexidade da concepção, o filme linear e narrativo, com o écran grande em baixo à esquerda a contar a história e os mais pequenos a terem, como Nick disse, um papel suplementar. (Daney 1980 apud Costa 2011, 253-254)
O filme é, em diversos planos, marcadamente autobiográfico. Há no filme indícios do percurso de Ray pelo cinema, pelas suas paixões, pela militância, pelo sonho. A autorreferenciação é, no filme, uma permanente situação. Nas imagens laterais aparecem fragmentos dos filmes antigos de Ray - Johnny Guitar (1954), Juventude transviada, Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952), Delírio de loucura (Bigger Than Life, 1956), e o plano final é idêntico ao plano inicial de Amarga esperança (They Live by Night, 1948). Assim, We Can´t Go Home Again é a recapitulação fundamental do sentido da obra de uma vida.
Também os estudantes se contam no filme. David vai a uma clínica de emagrecimento e perde 80 quilos, apenas para descobrir, apesar de seu novo ídolo público, que ainda tem uma cabeça gorda. Leslie grita que quer ser bonita, mas “Sou sempre feia! Eu sou sempre feia! Eu sou sempre feia!” Observamos as ambições das alunas e alunos por fama e glória que a presença de Nick entre eles inflama. Seguimos o desvio de Nick e dos estudantes para o abuso e dependência de drogas, testemunhamos suas traições mútuas. Em cada personagem e quadro, o filme revela um interesse pessoal ingénuo e flagrante em sua própria ignorância de si mesmo e suas consequências. Tom Farrel, filho de um detetive nova-iorquino, com quem está em conflito, e ex-seminarista, é cego do mesmo olho que Nick e confessa sua paixão por Leslie, questiona-se sobre as escolhas de garotas judias ou católicas, falam sobre o uso do tapa-olhos e origem da cegueira de Ray.
Os estudantes falam dos seus romances, aventuras (reais ou imaginadas da Leslie com o polícia), loucuras, angústias, solidões, sofrimento, dores, doenças sexualmente transmissíveis, do desejo e da impossibilidade de regresso à casa.
A reflexividade em We Can’t Go Home Again aparece-nos de diversas formas, em níveis individuais e coletivos. A narrativa sobre o fazer cinema, ou de fazer cinema neste contexto específico, ou mesmo a reflexão sobre o que é o cinema está dentro da principal narrativa (fragmentada) do filme. O aparatum (meios técnicos específicos e procedimentos) do cinema constantemente visíveis – câmaras, claquete, projetores, som dos projetores, visionamento de filmes, filmagens. Em certo momento, o filme mostra Ray observando imagens na tela de um visualizador fora da câmara, na sala de edição. A conexão do olhar é feita no canto superior esquerdo do retângulo central, atrás da imagem do visualizador. Outra cena mostra um casal mascarado se abraçando em frente a uma tela de projeção. Ainda noutra, Leslie nua, ondulando ao ritmo da música psicodélica, seu corpo coberto por imagens projetadas. Finalmente, Tom, vestido de policial, na moldura de uma janela, depois Tom encarando seu reflexo no espelho. As imagens projetadas em conjunto esvaziam, portanto, outras imagens, intradiegéticas, até à vertigem.
O filme mostra ao tempo real de realização do filme - Ray vestido de pai Natal e desconstrução deste mito, os rituais académicos de fim de curso, de outorga de diplomas.
Experimentações autobiográficas para criação de um audiovisual coletivo
Nos dias 6, 7 e 8 de fevereiro de 2023 foram propostas atividades experimentais de cunho autobiográfico ao grupo de alunas e alunos matriculados no curso - Entre imagens: construir o olhar / educar o olhar, do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde, da EPSJV / Fiocruz. O objetivo principal foi estimular os processos de criação coletiva de um produto audiovisual que seria composto a partir da sobreposição de imagens e narrativas autobiográficas produzidas pelos participantes individualmente, mas em constante diálogo com a coletividade. O filme de Nicholas Ray e sua análise mais detalhada afigurou-se-nos como um guião para as atividades que nos propusemos realizar. Estávamos interessados nos seguintes aspectos: centralidade dos estudantes e das suas histórias de vida, mais do que nas histórias que permeiam seus currículos; trabalho conjunto com diluição de fronteiras entre idades, responsabilidades e saberes; estímulo ao processo criativo num contexto de circunstâncias adversas, considerando a carência de meios e de tempo, bem como sua superação; foco na reflexividade; estímulo ao trabalho bem coordenado com objetivos concretos para obtenção de resultados em curto período de tempo; produção audiovisual com equipamentos disponíveis; estímulo ao registro do processo de criação em diário de campo e portfólio autobiográfico; aprendência (vivência e aprendizagem) de um processo a ser multiplicado posteriormente nas práticas profissionais dos próprios participantes.
Antes da oficina, que aconteceu no mês de fevereiro, oferecemos encontros online, nos dias 17, 24 e 31 de janeiro, como preparação para a prática que viria a seguir. Em nossas aulas, enfatizamos algumas abordagens, dentre elas: 1) Autobiografias: consideramos que um dos sentidos implícitos ao género autobiográfico é a arqueologia, pois estimula o ato de “escavar” um território particular que pertence à memória do autor e da autora que organiza, por sua vez, narrativas à sua maneira a partir de jogos entre realidade e ficção, uma dicotomia sempre presente num suposto pacto de verdade que permeia a autobiografia (Lejeune 2008); 2) Autosociobiografias: nos processos de criação autobiográfica, reconhece-se a subjetividade inerente ao realizador que não se desfaz da sua observação e das suas memórias para contar uma história que lhe diz respeito mas que, ao mesmo tempo, abrange um contexto social mais amplo. A perspetiva do coletivo através do indivíduo, como ilustrado por Pierre Bourdieu, está no cerne do género auto-sociobiográfico. Autores tão diversos como Annie Ernaux, Pierre Bergounioux e Christian Baron tentam examinar as suas próprias vidas e as de suas famílias em termos de estruturas sociais de onde provêm. No caso de Annie Ernaux, o próprio termo “auto-socio-biográfico” visa implementar esta premissa na sua obra literária. Assim, partimos da literatura para orientar nossas atividades, e perguntamos aos estudantes: Como seria produzir, no cinema, autosociobiografias?; 3) Autobiogeografias: trata-se da criação de contranarrativas oriundas do exercício autobiográfico profundamente conectado à percepção crítica do lugar e às poéticas de (auto)localização no contexto das artes, que convoca materialidades e imaterialidades autobiográficas a se posicionarem no espaço (da obra, da exposição, da cena, ta tela, dentre outros), estimulando outros modos de abordar as histórias de vida para além das relações com o tempo e com a cronologia tão comuns às formas mais tradicionais de narrar a vida (Rodrigues 2017; Rodrigues 2022).
O objetivo dessas conversas preparatórias realizadas no mês de janeiro foi oferecer um reportório inicial, estimular o processo de escavação de materialidades e imaterialidades autobiográfricas que dariam substância, posteriormente, à produção audiovisual coletiva. O diário de campo e o portfólio autobiográfico foram as ferramentas sugeridas para realizar registros dos vestígios dessa escavação, pois apostamos que esses rastros já começariam a delinear os caminhos até a concretização do filme coletivo. No terceiro encontro online, o grupo compartilhou anotações feitas em seus diários de campo e pudemos rastrear alguns assuntos: o processo de busca nos arquivos pessoais por material autobiográfico, tais como screenshots, textos, imagens, entrevistas, trilhas sonoras; as dúvidas quanto a questões éticas ao lidar com imagens e histórias de vida de outras pessoas; as percepções críticas, políticas e estéticas sobre a pesquisa narrativa, com ênfase na impossibilidade de “dar voz” a qualquer pessoa que seja, uma vez que toda pessoa já a possui e o desafio é criar espaços para que essas vozes adquiram visibilidade através do audiovisual; reflexões sobre as leituras e filmes indicados no início do curso, com destaque para a relevância poética e política da pesquisa autobiográfica na atualidade.
Identificamos, nos diários, interesses específicos que começavam a emergir no grupo. Para aprofundarmos os diálogos, estimulamos reflexões a partir dos seguintes aspectos: 1) Experiências pessoais que estavam a delinear as ações dos participantes na esfera coletiva, naquele momento, em suas vidas: foram mencionadas experiências com a formação em cinema, com os processos de escuta ativa na relação professor-estudante no exercício da docência, experiências pessoais que envolvem a área da saúde mental e o envelhecimento, experiências com a leitura e escrita no campo da literatura - especialmente a poesia, a busca por autoconhecimento com o objetivo de desenvolver o exercício profissional, experiências de investigação das histórias de família, das autobiografias de imigrantes e a importância da primeira pessoa como forma legítima de produção de conhecimento; 2) Mapeamento de temas de interesse individual para a criação de um produto audiovisual coletivo: este exercício gerou uma nuvem de palavras conforme mostra a Figura 3. As palavras que mais se repetiram foram, depois, utilizadas como elementos estruturantes das atividades realizadas na oficina prática, no mês de fevereiro (Figura 4); 3) Descrição dos grupos com quem os participantes do curso gostariam de trabalhar em pesquisas futuras, a partir da experiência da produção de um filme coletivo permeado de narrativas autobiográficas: a partir da pergunta sobre quem seriam as pessoas com quem cada estudante gostaria de trabalhar após o curso, encontramos respostas que apontam para um público potencial composto por pessoas mais velhas, mulheres, adolescentes em contextos escolares, imigrantes, membros da família dos participantes, alunos, artistas (atores e atrizes), membros de comunidades locais, e pessoas com deficiências visuais. Assim, pudemos rastrear algumas características dos grupos que possivelmente serão beneficiados pelo efeito multiplicador da formação que nos propusemos oferecer nesta oficina.
Finalmente, lançamos as seguintes questões ao grupo, para que se preparassem para as atividades práticas realizadas em fevereiro: Como as imagens se movem no seu imaginário autobiográfico? Qual é a potência transformadora dessas imagens e o que elas movem na sua vida e na sua pesquisa? A partir disso, nos três dias de oficina (Figuras 5, 6 e 7), estimulamos a produção de material autobiográfico bruto – imagens, textos e áudios – que pudessem compor o filme final. As atividades foram orientadas pelas três palavras que mais se destacaram na nuvem (Figura 3): MEMÓRIA, EDUCAÇÃO e HISTÓRIA. Em conjunto, elas deram contornos ao esquema ativador criado para estimular a emergência de narrativas de vida ao longo da oficina (Figura 4). Tal esquema transformou-se em dispositivo artístico-pedagógico criado a partir das interações estabelecidas de forma criativa e experimental com os participantes do curso. Através dele, foi possível estimular histórias de vida que, ao buscarem conexões com contextos específicos ligados à memória, à educação e à história, criaram pontes entre vida íntima e vida pública, num exercício que demonstrou a relevância da dimensão autobiográfica do fazer para o aprimoramento do senso crítico e político sobre a nossa atuação e participação na vida em sociedade.
Conclusão
Neste texto buscamos apresentar as origens, processos e desdobramentos do curso de verão intitulado Entre imagens: construir o olhar / educar o olhar, oferecido à Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde, da EPSJV / Fiocruz, Brasil, numa parceria interinstitucional internacional que reuniu uma série de profissionais dos campos das artes, antropologia, sociologia, saúde e cinema, com o objetivo de experimentar narrativas autobiográficas no contexto da produção coletiva de um produto audiovisual, guiados principalmente pelas experimentações que deram origem ao filme We Can’t Go Home Again, de Nicholas Ray.
Ao longo do processo, apoiados numa articulação de abordagens, práticas e campos disciplinares que dialogam, valorizam e se interessam pelos estudos auto/biográficos e narrativos, percebemos algo intrínseco ao fazer autobiográfico quando situado em contextos coletivos: falar de si de forma orientada em meio à coletividade é uma forma de criar e fortalecer redes de colaboração e escuta ativa que, não só fortalecem laços em meio a uma sociedade de hiperconsumo que banaliza os afetos, mas que também empodera a pessoa que narra uma vez que ela pode ressignificar sua história de vida num contexto de produção de saberes e conhecimento a partir do exercício de saber e saber-se em coletivo. Assim, novos sentidos são dados ao ato de narrar a própria história, pois que ela se conecta às histórias de outras pessoas num contexto sócio-cultural, histórico e político, desmantelando o isolamento produzido pelos modos de vida contemporâneos. O filme em si, como produto, é relevante porque o processo de experimentação torna-se conteúdo capaz de explicitar tais relações criadas ao longo do processo de sua realização. Acreditamos que, numa sociedade permeada pelas distrações e alienações provocadas pelo excesso de imagens e narrativas, o audiovisual pode ser experimentado em suas dimensões radicalmente poéticas e políticas quando nos propomos a deslocá-lo para o campo da experimentação coletiva de si.
Notas finais
1AO NORTE- Associação de Produção e Animação Audiovisual. https://www.ao-norte.com/
1ID+ Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura. https://idmais.org/
3NuPAA – Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas. https://nupaa.org/
4“Coletivos incomuns são aqueles que acolhem a participação de qualquer pessoa e criam a partir de suas diferenças e singularidades. Os participantes da oficina audiovisual se organizaram em equipes e realizaram visitas a cada um dos coletivos, produzindo vídeos. Abaixo, conheça um pouco mais sobre cada um deles e assista aos vídeos e entrevistas”. Fonte: https://www.incomuns.art.br/coletivos.
5https://www.youtube.com/watch?v=S2Vx_d74Sjc
6Bless the family/ That loves together/ And brings themselves some cheer/ Though the kids earn/ Fame, no fortune/ They will make it through the year/ And these six walls will keep us dry/ When all hell breaks loose from the sky/ Bless the family/ That laughs and cries/ Together, Together/ God bless the family/ That sings together/ A song bursts from their throats. […]
7Susan Ray, que detém o resto do negativo, tenta obter os fundos necessários para a reconstituição da versão de nove horas, embora no tivesse indicações precisas de Nick sobre o modo pelo qual todo o material se devia articular.
8Uma Mitchell, lendária câmara de 35 mm, que, a partir de 1937, e por mais de 30 anos, seria usada em todos os estúdios de cinema.
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Rodrigues, Manoela dos Anjos Afonso. 2017. “Autobiogeografia como metodologia decolonial” in 26º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 25 a 29 de setembro: 3148-3163. https://anpap.org.br/anais/2017/PDF/PA/26encontro______RODRIGUES_Manoela_dos_Anjos_Afonso.pdf. Acedido em 1 de maio de 2023.
Filmografia
We Can’t Go Home Again. 1973-1979, 2010. De Nicholas Ray. Streaming Mubi. Maio de 2023
Lightning Over Water.1980. De Nicholas Ray e Win Wenders, EUA, Atalanta Filmes. DVD.
No intenso agora. 2017. De João Moreira Sales, Brasil. Streaming;
Les Années Super 8. 2022. De Annie Ernaux e David Ernaux-Brio, França. Streaming.
ENTRE IMAGENS: Construir o Olhar / Educar o Olhar. 2023. Gregório Albuquerque, coletivo Imagens da Cultura, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. https://www.youtube.com/watch?v=HMlCLAiOpvE.