Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

TRUE CRIME: Once Upon a Crime

TRUE CRIME: Era uma vez um crime

Francisco Malta

Universidade Estácio de Sá

Thiago Barboza

Universidade Estácio de Sá

Abstract

In recent years, we have seen many streaming series that have addressed real crimes that have shocked humanity. The rescue of dense stories has a direct appeal to the consuming public. This article aims to debate the ethical limits of the screenwriter’s choice in order to avoid falling into the appeal of sensationalism, offering as a framework the series “Elisa Matsunaga: Once Upon a Crime” (2021), by Eliza Capai, and “Pacto Brutal: The Murder of Daniela Perez” (2022), by Guto Barra and Tatiana Issa. In terms of theoretical foundation, we will work with “The Rise of True Crime” by Jean Murley (2008), “Modus Operandi” by Carol Moreira and Mabê Bonafé (2022), and “Toward a Theory of True Crime Narratives” by Ian Case Punnett (2018). Starting from the reconstruction of reality for writing, how far can the screenwriter guide the viewer within a trial that is already born in the media with the appeal of conviction?

Keywords: True Crime, Narratives, Streaming, Script, Literature.

Introdução

Com frequência, o audiovisual apresenta uma abordagem sobre determinados acontecimentos verídicos dentro da sociedade, os quais ampliam as discussões. Os crimes reais têm sido uma fonte de inspiração para filmes que atraem plateias ao redor do mundo. O apelo ao fenômeno popular e a curiosidade que desperta fazem com que essas narrativas sejam constantemente revisitadas.

O objetivo é analisar o mercado de streaming voltado para as experiências true crime, que têm sido cada vez mais consumidas. No Brasil, essas narrativas abordam casos reais de crimes que chocaram o mundo, trazendo detalhes sobre os assassinatos, investigações, julgamentos e envolvidos. A maior ênfase pelo audiovisual vem pelo streaming, através de séries, que geralmente oferecem uma perspectiva mais aprofundada sobre os eventos que ocorreram, permitindo aos telespectadores entender as circunstâncias, suas causas e suas consequências.

Dentro das plataformas de streaming, tais como Netflix, Globoplay, HBO Max e Amazon Prime Vídeo, as opções são variadas, com muitos lançamentos mensais e crimes que não receberam a mesma atenção da mídia tradicional. Nos últimos anos, o apelo popular cresceu de tal forma que atingiu os podcasts, e diversos programas específicos surgiram em novas plataformas para atender essa necessidade do público. Para exemplificar, temos “A mulher da casa abandonada”, apresentado pelo jornalista Chico Felitti da Folha de São Paulo; “O projeto humanos: O caso Evandro”, produzido pelo jornalista Ivan Mizanzuk; ainda temos “Café com crime”, “Praia dos ossos”, “1001 crimes”, “Ficha Criminal”, “Cena do crime”, “Fábrica de crimes” e “Que crime foi esse?”. Como é possível identificar, são muitas as opções disponíveis.

O artigo trabalha duas narrativas true crime, que descrevem o processo de pesquisa, produção e escrita dessas séries. O recorte escolhido inclui a série “Pacto Brutal, o assassinato de Daniela Perez” (2022), produzida pela HBO Max e dirigida por Guto Barra e Tatiana Issa, que conta a história do assassinato da atriz Daniella Perez em dezembro de 1992; e a série “Elize Matsunaga - Era uma vez um crime” (2021), produzida pela Netflix, que relata o assassinato do empresário Marcos Matsunaga, esquartejado por sua esposa, Elize Matsunaga. Além de retratar o perfil da jovem do interior que busca seus sonhos na cidade grande, a série conta com depoimentos de diferentes especialistas. No primeiro caso, a vítima é uma mulher, enquanto no segundo, a assassina é uma mulher.

Para uma melhor apuração dos fatos, a metodologia foi baseada em revisão literária de uma bibliografia sobre o fenômeno True crime, além do uso de fichas de observação para coleta de dados em multiplataformas (web e móvel). Os resultados preliminares da pesquisa apontam para novas estruturas narrativas e maior imersão em plataformas de streaming. Para complementar, foram utilizados artigos e livros específicos, entrevistas com profissionais da área e análises de filmes e documentários que abordam o objeto pesquisado. A pergunta norteadora é: até onde o roteirista pode conduzir o telespectador em um julgamento que já nasce na mídia com o apelo pela condenação?

As séries true crime são frequentemente criticadas por explorarem a dor e o sofrimento das vítimas e suas famílias. Muitas vezes, são acusadas de romantizar o crime ou de glorificar os criminosos. Outros argumentam que estes produtos devem ser utilizados como ferramenta educacional para ajudar a evitar futuros crimes, em vez de apenas entreter o público.

Contexto literário

Antes de surgir o cinema, os grandes crimes que marcaram a história serviram de inspiração e fonte para a literatura. A tentativa de recriar cenários, situações e entendimento da humanidade faz parte da busca do ser humano. Aos escritores coube a incumbência de destravar esses enredos e esclarecer o entendimento para a sociedade. Seria essa uma forma de se olhar no espelho?

O true crime é um gênero literário que se concentra em crimes reais e histórias de mortes violentas. É um tema controverso, pois muitos acreditam que ele pode ser sensacionalista e exploratório, enquanto outros argumentam que pode ser educativo e informativo.

A literatura true crime é um gênero que explora crimes reais, geralmente focando na investigação e nas motivações dos perpetradores. Essa forma de escrita se popularizou na década de 1960 e 1970, com obras como “A Sangue Frio” de Truman Capote, que se tornou um marco na literatura do gênero. Capote utilizou técnicas de narrativa de ficção para contar a história do assassinato da família Clutter. Sua abordagem deu ao livro uma qualidade literária que o diferenciou de outras obras do gênero. Em 2005, veio o filme “Capote”, dirigido por Bennett Miller e estrelado por Philip Seymour Hoffman. O filme conta a história real de Truman Capote, um famoso escritor americano que viaja para uma pequena cidade no Kansas para investigar e escrever sobre um brutal assassinato que chocou o país em 1959. Enquanto trabalha no livro, Capote estabelece uma relação complexa com um dos assassinos, Perry Smith, e fica obcecado em contar a história completa. O filme é baseado no livro “A Sangue Frio”, escrito pelo próprio Capote. Como narrativa, “Capote” é um retrato fascinante de um dos escritores mais influentes do século XX e uma análise profunda de sua complexa personalidade, levando em consideração as questões éticas e até onde é permitido o envolvimento do escritor/criador com a fidelidade dos fatos e sua visão dessa narrativa. Todos os apontamentos levaram a um possível romance do escritor com o assassino.

Outro nome de relevância na literatura true crime é o de Ted Bundy, um serial killer que confessou ter assassinado mais de 30 mulheres nas décadas de 1970 e 1980. Bundy é uma figura emblemática desse gênero literário, e diversas obras foram escritas sobre seus crimes. Destaca-se “The Stranger Beside Me”, de Ann Rule, uma ex-colega de trabalho de Bundy que ficou chocada ao descobrir que ele era um assassino em série. A obra é considerada uma das mais notáveis do tema e se tornou um clássico do gênero. O legado de Ted Bundy é sombrio e perturbador, e ele é lembrado como um dos assassinos em série mais horríveis e perversos da humanidade. Sua história tem sido retratada em vários filmes, documentários e livros, e continua a fascinar e aterrorizar o público até os dias atuais.

No Brasil, não existe uma literatura que reproduza crimes reais de forma narrativa. Muitos dos escritores de romance policial, tais como Rubem Fonseca, Ilana Casoy ou Patrícia Melo, frequentemente abordam recortes históricos como ficção, como é o caso da obra “Agosto” de Rubem Fonseca (1990).

A narrativa

Para alguns especialistas, a literatura true crime reflete a sociedade em que vivemos, onde a violência e o crime são uma realidade constante. Essas obras ajudam a entender melhor os motivos que levam as pessoas a cometerem crimes hediondos e como as autoridades trabalham para solucionar esses casos. Além disso, estes relatos tem uma dimensão educativa, alertando sobre os perigos que podemos enfrentar em nosso cotidiano. Em termos formais, essa literatura utiliza uma narrativa factual, com detalhes precisos e descrições minuciosas dos crimes e dos envolvidos. No entanto, muitos autores também exploram técnicas de narrativa de ficção para tornar a leitura mais envolvente e emocionante. A escolha do tom e da abordagem varia de autor para autor, mas a maioria busca equilibrar o aspecto factual com o emocional, para que o leitor possa se conectar com as vítimas e compreender as consequências dos crimes.

De acordo com Mieke Bal (2019), o true crime tem sido objeto de estudo por criminologistas e psicólogos, que o veem como uma forma de entender melhor a natureza humana e os motivos por trás de atos violentos. Para o autor, este tipo de narrativa pode ser usado como uma ferramenta para ensinar aos jovens sobre os perigos da criminalidade e da violência, assim como para analisar o sistema de justiça criminal e a forma como ele lida com casos de alta repercussão.

No entanto, Punnett (2021) argumenta que o true crime pode ser problemático em relação à privacidade das vítimas e suas famílias, bem como à forma como os criminosos são retratados na mídia, o que pode levar à glamorização da violência e à desumanização das vítimas. Além disso, é importante considerar a popularidade crescente do true crime nos últimos anos. Segundo dados da plataforma de streaming Netflix, em 2020, os documentários de crime foram o segundo tipo de programa mais assistido na plataforma nos Estados Unidos e no Brasil. Esse aumento de interesse pelo gênero também tem levado a uma maior produção de conteúdo sobre o tema, incluindo podcasts, livros e séries televisivas.

Nesse sentido, é preciso analisar como a cultura popular tem influenciado a maneira como o true crime é retratado na mídia e a atenção que isso pode decorrer com a voz das massas sobre crimes e justiça criminal. Segundo Moreira (2018), a forma como a mídia retrata os criminosos e as vítimas pode influenciar a percepção pública sobre o crime e levar a uma maior demanda por punições mais severas. Um exemplo disso é a volta do programa Linha Direta da TV Globo, ressuscitado 15 anos depois, que traz casos reais e a busca pelos criminosos.

Por outro lado, Murley (2018) argumenta que o true crime pode ser utilizado como uma ferramenta para promover uma maior conscientização sobre questões sociais relevantes, tais como a desigualdade racial e a violência doméstica. Ademais, a narrativa envolvente do true crime pode auxiliar a chamar a atenção do público para casos de crimes que frequentemente são negligenciados pela mídia.

Crimes da vida real

O estudo das séries true crime no contexto do cinema é uma área de pesquisa importante, pois essas produções têm se destacado como um dos gêneros mais populares e influentes da indústria cinematográfica. Ao investigar essas séries, é possível explorar como elas são produzidas, recebidas e consumidas pelo público, além de entender como elas refletem e moldam a cultura popular contemporânea. Além disso, as séries true crime muitas vezes apresentam histórias e personagens complexos, que podem oferecer um rico material de análise para a investigação acadêmica.

O roteiro é um documento que apresenta a estrutura narrativa de uma história, seja para o cinema, teatro, televisão, literatura ou qualquer outra forma de mídia. Ele descreve o enredo, personagens, diálogos, ações e eventos da história em uma ordem cronológica, com o objetivo de guiar a produção e a realização da obra.

Robert McKee é um dos mais conhecidos professores de roteiro do mundo, autor do livro “Story: Substance, Structure, Style, and the Principles of Screenwriting” (2006), (“História: Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Roteirização”, em tradução livre), que é considerado uma referência no assunto. Ele enfatiza a importância de uma boa história, com uma estrutura sólida, personagens bem desenvolvidos e diálogos convincentes, como essencial para o sucesso de um roteiro. Seus ensinamentos têm sido amplamente utilizados por roteiristas de cinema e televisão em todo o mundo.

Toda narrativa parte de um início, algum ponto desestabilizador que provoca ação, este fato é o que se denomina conflito. É o conflito, o motor central da história. É dessa tensão criada por ele que o leitor/telespectador vai decidir se acompanha ou não essa trama? Mckee, pondera que “um evento da história cria mudanças significativas na situação de vida de uma personagem que é expressa e experimentada em termos de valor e alcançada através de conflito.” (MCKEE, 2006, p.46). Esses valores da história segundo Mckee são as qualidades universais da experiência humana que podem mudar do positivo para o negativo, ou do negativo para o positivo, a cada momento.

Para Mckee, a chave da verdadeira personagem é o desejo. Em suas palavras “a verdadeira personagem só pode ser expressa através de uma escolha em um dilema. Como a pessoa escolhe agir sob pressão é quem ela é – quanto maior a pressão, mais verdadeira e profunda a escolha da personagem.” (MCKEE, 2006.p.351). O conflito vivenciado pelo personagem pode ser de cunho social, religioso, econômico e psicológico. Eis o ponto de partida.

O interesse do público é assistir a uma história bem contada. Uma grande obra é aquela que possui contradições e o telespectador procura, talvez, a percepção dessas contradições na proximidade de seu universo. Hutcheon, avalia que uma adaptação “envolve, para seu público conhecedor, uma duplicação interpretativa, um movimento conceitual para frente para trás entre a obra que conhecemos e aquela que estamos experienciando.” (HUTCHEON,2011, p.189). E o audiovisual faz isso, juntando o referencial ao sonho, à magia.

A forma como a narrativa é apresentada ao leitor ou telespectador segue o princípio clássico das regras estabelecidas por Aristóteles (2002), que determina que toda história deve ter um começo, meio e fim. No audiovisual, isso é denominado Ato I, Ato II e Ato III, herança da divisão estabelecida no teatro. Essa nomenclatura é conhecida como o paradigma do roteiro, segundo o americano Syd Field. Na TV, a sinopse geralmente conta toda a trama e pode ter mais de cem páginas. A sinopse é a descrição da história que será narrada no roteiro. Outro elemento importante para o roteirista é a escaleta, que consiste em dividir os eventos da trama de forma a facilitar o entendimento do público. Traçar o perfil das personagens é igualmente essencial e deve ser feito antes da escaleta. Para Field (2002), os três elementos fundamentais do roteiro são: cabeçalho da cena, descrição visual e diálogos. Os diálogos são escritos no centro da folha, com o nome do personagem todo em maiúsculo. A maioria dos roteiros para cinema segue o formato americano “Master Scenes”, onde uma página de roteiro corresponde a um minuto de filme. O tempo “página/minuto” requer um pouco de prática, mas não interfere na qualidade da trama.

O documentário “Pacto Brutal - O assassinato de Daniella Perez” é uma série produzida pela HBO Max, dirigida por Guto Barra e Tatiana Issa, dividida em 5 partes, que aborda o crime ocorrido na cidade do Rio de Janeiro no início da década de 1990, encaixando no gênero “True crime”. A série mescla ferramentas, com os depoimentos emocionados, imagens de arquivo, reportagens de telejornal, cenas de novela e dramatização dos principais momentos do crime para criar a linguagem desejada para o documentário.

“Pacto Brutal”, busca trazer vários ângulos e discussões em seus cinco episódios, mantendo o fio condutor no assassinato de Daniella Perez. Ao longo da obra, é apresentado um panorama sobre como as coisas funcionavam no início dos anos 1990, retratando questões sociais e como o crime mudou a sociedade da época e nos influencia até hoje. A narrativa respeita a vítima e todos os afetados pelo incidente, ao mesmo tempo em que atende plenamente sua proposta e entrega ao telespectador um lembrete da vida de Daniella Perez, a dor de seus entes queridos, os desdobramentos do crime, além de celebrar a curta, mas intensa carreira da atriz.

Com o objetivo de buscar reparação pela morte de Daniella Perez (1970-1992), Gloria Perez ( mãe da vítima) obteve em três meses cerca de 1,3 milhão de assinaturas em uma petição que alterou a Lei de Crimes Hediondos no Brasil. Perez visava incluir o assassinato qualificado na lista de crimes que exigem prisão imediata e proíbem a liberdade mediante pagamento de fiança. Apesar da aprovação da lei, nada mudou na sentença de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz. Hoje o crime certamente seria enquadrado como Feminicídio.

A Lei do Feminicídio (Lei.13,104/15) alterou o código penal brasileiro, tornando assim o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio. As pesquisadoras Carol Moreira e Mabê Bonafé, assim o define “o homicídio contra uma mulher, cometido por sua condição do sexo feminino, envolvendo violência doméstica ou menosprezo à condição de mulher, é considerado um feminicídio. (MOREIRA e BONAFÉ, 2022, p,59).

Um ponto que chama atenção na justiça brasileira para os crimes de investigação é a ausência de uma polícia especializada. Segundo Moreira e Bonafé:

No Brasil não há uma abordagem dominante. Em geral, não há psicólogo investigativo nas policiais civis. Os únicos estados que quebram esse padrão são Goiás-em que existe a profissão do psicólogo criminal, que tem outras funções, mas pode criar um perfil criminal- e Paraná, que hoje possui um perito criminal em psicologia, cuja função está mais atrelada à produção de perfis criminais. (MOREIRA e BONAFÉ, 2022,p,183)

A série documental dirigida por Eliza Capai, intitulada “Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime”(2021), é capaz de explorar de forma eficaz uma entrevista concedida por Elize, a assassina. As palavras de Elize constituem o fio condutor desta narrativa que não apenas apresenta o seu lado da história, mas também sua própria trajetória. É por meio de suas palavras que tomamos conhecimento da infância pobre de Elize, marcada por abusos, e de sua ânsia por sair de Chopinzinho (PR). Eliza foi acusada de matar e esquartejar o marido. Em seguida, ocultou o cadáver tentando se livrar do corpo. “A supressão e um corpo humano é a derradeira violência que se faz com a matéria, num ato de desprezo e vilipêndio.”(RODRIGUES, apud MOREIRA e BONAFÉ, 2022,p.68). Não há questionamentos quanto à autoria do assassinato de Marcos Matsunaga. Ademais de ter admitido a culpa, Elize foi capturada pelas câmeras de segurança do edifício em que residiam transportando o corpo do cônjuge. Ela nunca renegou a sua confissão e sempre sustentou que agiu sem ajuda de terceiros.

Toda a narrativa do documentário gira em torno do julgamento injusto que a criminosa diz ter sofrido. Embora a vida do casal seja frequentemente rotulada como “vida de princesa” na série, ela não se encaixa completamente nessa descrição. Elize relata as infidelidades de Marcos, as brigas intensas e as peculiaridades da convivência do casal, que não podem ser dissociadas da tragédia. Por exemplo, ambos compartilhavam um interesse por armas e caça, e Elize descreve em detalhes como eles desossavam os animais que matavam, em um dos momentos mais desconfortáveis da série. Para essa reconstrução vale observar o que propõe Robert Mckee, um pesquisador americano e referência da escrita dos roteiros.

Quando uma história começa, o protagonista vive uma vida mais ou menos equilibrada. Ele tem sucessos e fracassos, altos e baixos. Quem não tem? Mas a vida está relativamente sob controle. Então talvez súbita, mas em todo caso decisivamente, um evento ocorre e desarranja radicalmente seu equilíbrio, mudando a carga de valores da realidade do protagonista para o positivo ou para o negativo. (MCKEE, 2006, p. 183)

Neste direcionamento da assertiva de Mckee(2006), o documentário busca não só reconstituir a história do crime, mas também o julgamento e a cobertura midiática. Para tanto, apresenta depoimentos do delegado, promotor e advogados envolvidos, bem como de jornalistas que acompanharam o caso e amigos e familiares de Elize e Marcos. Um dos argumentos de Elize é que ela agiu em legítima defesa.

Em sua obra Story, o pesquisador Robert Mckee diz que “a verdadeira personagem é revelada nas escolhas que um ser humano faz sob pressão-quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial da personagem.” (MCKEE, 2006, p.106). Este é um alerta importante para os roteiristas em seu processo de escolhas e criação de personagens. Moreira e Bonafé pontuam sobre as situações em que a leitura do código penal pode dar uma dupla interpretação, em casos por exemplo de estupro, onde a vítima pode acabar matando o estuprador. “em um julgamento, a acusação pode alegar que matar o ofensor teria sido um excesso, que o ato não era necessário para se defender. Mas muitas doutrinas defendem que matar um estuprador em situação de violência sexual ou iminente se enquadra em legítima defesa.” .(MOREIRA e BONAFÉ, 2022,p,69). No entanto, o grande trunfo da série é uma entrevista exclusiva com Elize, gravada durante duas saídas temporárias da detenta que cumpria pena em regime semiaberto.

O documentário é construído em uma linha tênue, uma vez que Elize é a única capaz de compartilhar sua história diretamente, enquanto amigos, colegas e advogados falam sobre Marcos e suas perspectivas em relação ao relacionamento do casal. No entanto, a produção não busca inocentar ninguém, mas sim entender as motivações por trás de um crime brutal que já foi julgado pela justiça. Embora Elize nem sempre tenha respostas claras sobre o que fez, “Elize Matsunaga: Era uma vez um crime”(2021), se revela um exercício interessante que mostra o sensacionalismo com que parte da imprensa abordou o caso ao longo dos anos, oferecendo uma visão humanizada da ré confessa.

Do ponto de vista da escrita de roteiros, ambos os documentários utilizam os chamados “beats”.

Beats, mudanças de padrão do comportamento humano, constroem cenas. Idealmente, toda cena transforma-se em um Ponto de Virada no qual os valores em questão vão do negativo ao positivo ou do positivo ao negativo, criando uma mudança significante, porém menor, em suas vidas. Uma série de cenas constrói uma sequência que culmina em uma cena com um impacto moderado nos personagens, virando ou mudando valores para melhor ou para pior, em um grau maior do que em qualquer cena. Uma série de sequências constrói um ato cujo clímax é uma cena que cria uma reversão maior na vida dos personagens, maior do que qualquer sequência conseguiu. (MCKEE, 2006, p. 208)

A construção narrativa em cada um dos episódios é realizada para prender a atenção dos telespectadores, assim como nos antigos folhetins, onde eram denominados como “gancho” em cada final de capítulo. Dentro dessa dramaturgia moderna, os beats assumiram essa função de despertar a curiosidade nos telespectadores e impulsionar a história para frente. Na proposta de escrita e direção dos dois documentários apresentados, ambos os criadores recorrem às mais variadas técnicas para prender a audiência.

No entanto, apesar das diferentes técnicas utilizadas, o argumento principal de ambos é o mesmo: apresentar novos elementos para os telespectadores, semelhante aos desdobramentos de um romance policial.

Conclusão

O true crime é um fenômeno cultural que tem ganhado cada vez mais notoriedade nas últimas décadas, principalmente no que tange a sua representação nas mídias literárias e audiovisuais. Esse tipo de produção artística tem como principal objetivo explorar os aspectos mais sombrios da condição humana, abordando crimes reais com uma profundidade e detalhamento que muitas vezes não são encontrados nos meios jornalísticos tradicionais.

Embora possa parecer que o interesse pelo true crime seja meramente voyeurístico, a sua crescente popularidade também pode ser atribuída a um desejo legítimo de se compreender as causas subjacentes à criminalidade e suas implicações para a sociedade como um todo. De fato, a exploração do tema pode oferecer uma oportunidade para se examinar de forma mais crítica a relação entre a lei, a justiça e a cultura, além de fornecer insights sobre as formas pelas quais a violência pode ser evitada ou prevenida.

No entanto, é importante lembrar que a produção de conteúdo sobre o true crime deve ser conduzida com sensibilidade e ética, de modo a minimizar o impacto negativo na vida das vítimas e seus familiares. Ainda, é crucial evitar sensacionalismo e simplificações, promovendo uma abordagem reflexiva e cuidadosa, capaz de lidar com a complexidade da realidade criminal.

Portanto, é essencial que o true crime seja estudado de forma aprofundada e crítica, de modo a contribuir para uma compreensão mais ampla e sofisticada do fenômeno criminal em nossas sociedades contemporâneas.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).

BAL, Mieke. Narratology: introduction to the theory of narrative. Toronto, Toronto University Press 2nd edition, 1999.

CAMPOS, Flávio de. Roteiro de cinema e televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

FIELD, Syd. Como resolver problemas de roteiro. São Paulo: Objetiva, 2002.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Santa Catarina: Editora UFSC, 2010.

MCKEE, Robert. Story: Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2006.

MOREIRA, Carol; BONAFÉ, Mabê. Modus operandi: guia do true crime. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

MURLEY, Jean. The rise of true crime: Twentieth century murder and American popular culture. Westport: Prager, 2008.

PUNNETT, Ian Case. Toward a Theory of True Crime Narratives: A Textual Analysis. Abingdon, Inglaterra: Routledge, 2018. E-book Kindle.

Filmografia

Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez.2022. De Guto Barra e Tatiana Issa. Brasil. HBO. 50 min. Episódio. Série.

Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime. 2021.De Eliza Capai. Brasil. Netflix. 60min.Episódio. Série.