Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

The sound language as a narrative quality in the audiovisual product

A linguagem sonora como qualidade narrativa no produto audiovisual

Ivaldo Moreira

Universidade de Aveiro | DECA
ID+ Instituto de Investigação em Design Media e Cultura, Portugal

Paulo Bernardino Bastos

Universidade de Aveiro | DECA
ID+ Instituto de Investigação em Design Media e Cultura, Portugal

Abstract

When we analyze the narrative quality of an audiovisual product, we are directly dealing with the quality of the sound language being used in that product in harmony with the quality of the visual language represented. That is, we are subjecting two great senses to the same technical and dramatic competence. We call the process of sound language quality ‘Sound Design’, which is the art of modifying sound through the process of manipulating and creating audio elements. The term has its origin in cinema, and more precisely in the 1970s from the “New Hollywood”. The expression refers to an american cinematographic movement that significantly renewed the technical and aesthetic production of the United States film industry. Its practice has expanded virtuously and its contributions have been adopted in multiple areas of entertainment and knowledgement, such as digital platforms for games and multimedia projects, in the production of audiovisual material, in industry, advertising and marketing in general. Analog and digital acoustic resources are used to build sound narratives with the aim of translating sensations, emotions and emphasizing activities in addition to reflecting mood, in a fluid and immersive process, which involves the adequacy of sonic components, composed of noise, narration, dialogues, silence, among others.

Keywords: Sound language, audiovisual product, sound design, narrative quality, sonic components.

Introdução

A construção sonora de um filme, inclui todos os componentes que estão dentro da banda ou trilha sonora, que são utilizados como narrativa para o produto audiovisual, e que nela compreendem, a trilha musical (música), os sons ambiente (BG), os efeitos sonoros (FX), as camadas de sons sobrepostos (Foley), e os diálogos (Voz).

A essa relação existente entre música, efeitos, códigos ou signos sonoros e tudo que, de certa forma, qualifica o som e seus possíveis efeitos como linguagem sonora, chamamos de sound design: expressão que descreve um resultado sonoro fixado em uma trilha ou banda sonora de gravação e de resultados de processamento do som, conforme define o editor de filmes e designer de som Walter Murch (2004), por considerá-los passíveis de serem isolados como uma peça analisável.

Da mesma forma as decisões que passam tanto pelo composto visual ou sonoro, são precedidos da escolha. Exemplificando, Murch, (2004, 24), diz que você pode sentar numa sala com uma pilha de copiões e outro editor sentar em outra com exatamente o mesmo material e inevitavelmente os dois filmes que serão editados serão diferentes, isto porque cada um dos editores farão escolhas diferentes sobre a sequência, quando e em que ordem deverão juntá-las.

Contudo, não se pretende aqui nesse artigo, esmiuçar as particularidades existentes e que são demandas no processo de construção do sound design para uma produção cinematográfica. Interessa-nos aqui sim, afirmar a real necessidade e a importância de construir uma narrativa de qualidade no produto audiovisual e como a sua utilização conciente nos processos que envolvem o projeto de um filme, pode fazer diferença.

Sabemos que o cinema começa mudo e com ele o seu protagonismo visual. A singularidade da imagem em movimento gerada, de imediato, impactou o público provocando nele reações adversas e contundentes, ora de expectativa e apreensão, de felicidade e surpresa e outras de desconforto e rejeição. Podemos refletir aquele momento como revolucionário e transgressor, pois, a referência da realidade que se tinha ante a realidade apresentada, produziu nas pessoas que viveram tal experiência um certo congelamento da percepção que até então se tinha, por, talvez, haver naquele momento, pouca nitidez e compreensão mental para digerí-la. Durante um certo período e ao longo da história do audiovisual, o elemento sonoro, no cinema, funcionou como suporte para a imagem, ou seja, ele estava resumido a um papel secundário. O “incômodo” e a apreensão gerados pela falta do componente sonoro e encorajado pelo silêncio, exigiu que algo fosse feito e nesse sentido, que ele fosse rompido. Por analogia, o sentido figurado que damos para o componente sonoro nesse contexto, especificamente para a música naquele momento, que ela, funcionasse como uma espécie de analgésico para se tratar de uma cefaléia qualquer, ou seja, algo paliativo para aliviar a tensão da dor momentânea, e não como uma medida eficaz e definitiva de cura, ou seja, ela está ali presente, na função de romper o silêncio, porém não reside ali um aproveitamento e uma intensão mais profunda que justifique a sua efetiva utilização.

Havia naquele momento muita inquietação em relação ao ambiente e à própria construção narrativa do filme onde a imagem imperava absoluta e que somente mais tarde, foi compartilhada e aliada ao som. Segundo Débora Regina Opolski (2009),

Hoje o cinema é chamado arte audiovisual pois o som é tido como um dos elementos constituintes do filme. Alguns pesquisadores como Manzano, afirmam que mesmo antes de 1927 o cinema não era mudo, pois as imagens sugeriam sons que não estavam sendo ouvidos mas eram pressentidos pelo público. (Opolski 2009, 12)

Para falarmos da linguagem sonora como qualidade narrativa no produto audiovisual adotamos como procedimento para contextualizar esse estudo a utilização de fontes que vinculam afirmações e ou hipóteses, que determinados autores defendem, por meio de seus tratados, perspectivas, conceitos e teorias, alusivos ao universo sonoro/musical, quanto à criação, design, performance, instalação, em suas relações com o tempo e o espaço, mas, principalmente com o ambiente e atmosfera, que são abarcados de sensações, experimentações, análises e impressões.

Consideramos também incluir nesse artigo, o conceito das três escutas, presente na obra “Audio-vision: sound on screen” (1990), defendida pelo teórico do cinema francês e compositor de música experimental Michel Chion, como uma ferramenta para nos auxiliar na compreensão de como se dá a construção prática e teórica, do Sound Design.

Elas são decifradas a partir do pensamento projetual, organizado e dimensionado, que é uma característica do Design, porém, considera-se, sobretudo, a liberdade e autonomia poética inerente na vertente da Sound Art, assim como no processamento sonoro criativo que é também alusivo ao propósito do Sound Design.

Chion (1990) fala nos da escuta de natureza da identificação causal como sendo a primeira atitude, aquela considerada entre elas, a mais comum podendo ser a sua fonte visível ou invisível, pois, consiste na ideia de servirmo-nos do som para nos informarmos, tanto quanto possível, sobre a sua causa e que a partir dessa premissa, possamos recolher sobre ela uma informação adicional; seguimos pelo seu exemplo. No caso de um recipiente fechado: “o som que produz quando lhe batemos diz-nos se está vazio ou cheio”. Por outro lado, quando observada como fonte invisível, a escuta causal, que é a mais comum, é também a mais influenciável, sendo ela a mais enganadora, pois, a análise sonora confiável de uma fonte, dependerá sobre a sua capacidade de nos fornecer informações precisas e seguras.

Outra escuta por ele observada, aponta para a atitude da escuta semântica, que se refere a um código ou a uma linguagem para interpretar uma mensagem. Esta é considerada pelo autor como uma escuta complexa: “Um fonema não é ouvido pelo seu valor acústico absoluto, mas sim através de todo um sistema de oposições e de diferenças”. A nossa compreensão sobre essa afirmação, é facilitada pelo exemplo dado por Michel Chion, “A escuta linguística em francês, por exemplo, é insensível a certas variações importantes na pronunciação do fonema «a»”. Sendo assim da mesma forma, podemos compreender que essa condição fonética também presente em outros idiomas, se encaixa perfeitamente à outras formas linguísticas.

Nesse sentido como afima Chion, a compreensão da escuta que trata de um fonema está associada à sua semântica, ou seja, a partir do contexto no qual está inserido, naquilo que é possíve e passível de interpretação, e não como ela se apresenta em sua forma originária, enquanto seu valor acústico absoluto.

E por fim ele nos ressalta para a atitude da escuta reduzida, sendo essa terceira ampliada pela contribuição do também compositor francês e teórico da música, Pierre Shaeffer (1966). Em “Traité des objets musicaux: essai interdisciplines1, o teórico postula quatro funções de escuta: escutar, ouvir, entender e compreender.

Essa terceira atitude, refina o processo de identificação sonora, pois, qualifica a sua fonte permitindo no objeto e no objetivo da análise, uma ideia menos generalizada, mais contundente e mais distinta dos componentes existentes na construção do som, tanto na sua forma técnica e estrutural, bem como na subjetividade possível ali expressa. Chion (1990) ainda reforça que com efeito, o valor afetivo, emocional, físico e estético de um som está associado não só à explicação causal, considerado aqui como sendo a forma mais simplificada da escuta, mas também que a elas se associam às suas qualidades específicas de timbre e de textura, ao seu frémito 2, ou seja, à sua forma sonora mais áspera, mais barulhenta, mais ruidosa.

Recomendamos ainda, que esses conceitos articulados dentro de uma arquitetura metodológica, organizados e orientados pela vertente da Musicologia Sistemática 3, possibilita-nos aproximar e categorizar elementos existentes da Sound Art / Design, presentes na obra sonora composta por um determinado artista. Permite-nos ainda perceber, traduzir e trazer à tona elementos subliminares, ocultos, que irão nos auxiliar a compor um cenário de possibilidades e submeter hipóteses para uma possível trajetória percorrida pelo autor/compositor. Identificando elementos e componentes que nortearão os aspectos técnicos de sua estrutura criacional na obra, e na subjetividade presente na execução e recepção do som.

Pierre Schaeffer designou por escuta reduzida a escuta que trata das qualidades e das formas específicas do som, independentemente da sua causa e do seu sentido; e que considera o som - verbal, instrumental, anedótico ou qualquer outro - como objeto de observação, em vez de o atravessar, visando através dele outra coisa (o adjetivo «reduzida» foi tomado de empréstimo à noção fenomenológica de redução em Husserl 4). (Chion 1990, 29-30).

O primeiro corte

Embora, não seja claro o suficiente afirmar o início da sua história, o cinema tem o seu registro oficial na data de 28 de dezembro de 1895 no salão “Grand Café” em Paris pela iniciativa dos Irmãos Lumière. A obra apresentada, “L’Arrivée d’un Train en gare de La Ciotat 5 foi uma grande ilusão cinematográfica de menos de um minuto e é considerada a grande representante da similaridade de mundos, ou seja, onde o registro visual reflete uma espécie de realidade paralela, pois, ainda resiste naquele momento um sentimento fronteiriço que limitava a realidade vivida e a realidade representada. Aquela espécie de fotografia em movimento causou pânico no público ali presente, pois, não estavam preparados para o impacto que a ilusão cinematográfica provocaria. Mais tarde essa mesma realidade representada se desenvolveu em tantos outros gêneros dramáticos, que lhes deram qualidade de interpretação como o romântico, fictício, jornalístico, filmes de horror, documentário, suspense, comédia, etc., e ao estilo da conduta que atribui a esses diversos gêneros a estética da narrativa, ou seja, a dimensão e o uso da linguagem criativa que se imprime ao roteiro do filme e que adota e incorpora integralmente os componentes de representação dos sentidos. Esse é o papel fundamental da qualidade narrativa no audiovisual, imprimir e expressar de forma criativa e convincente o uso do recurso da técnica e da dramatização para traduzir o texto na mais fiel representação, contextualizando-o aos elementos principais e específicos de um roteiro, exaltando suas impressões, sentimentos e sensações. Esse é o trabalho perseguido pelo sound design.

Os componentes de linguagem da trilha sonora: música, efeitos sonoros e os diálogos.

Quais são os aspectos sonoros relevantes na produção do filme e porque considerá-los? No início, a cinematografia originava os seus primeiros movimentos, se fundamentando fortemente na ilusão visual, ou seja, utilizando-se exclusivamente do recurso da imagem, até que em num dado momento a música, ainda que timidamente, começa a ganhar propriedade narrativa e passa a ocupar um novo espaço dentro da criação fílmica, ela adquire importância, amplia a capacidade dos seus recursos sonoros e se torna uma grande aliada da imagem.

O que estamos a considerar nesse estudo, movimenta-se em grande parte pelo controle dos elementos sonoros em ambiente apropriado, como os estúdios de gravação, set de filmagens, etc. e que advém da sua forma original, de bibliotecas sonoras, ou de outra natureza como a do som processado (BG, FX, Foley), além dos sons que se originam do próprio meio do próprio ambiente, a paisagem sonora ou soundscape. Para Schafer R. Murray (2001, 366) a paisagem sonora é tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagem de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente.

A todo esse conjunto que envolve o processamento técnico, do controle de mixagem, da qualidade do material dos diálogos gravado no set de filmagem, e dos outros componentes acrescidos com os sons de cena e efeitos sonoros, irá resultar, naquilo que consideramos como linguagem sonora como qualidade narrativa no produto audiovisual.

Nesse sentido, a valorização da imagem é ampliada pela combinação desses elementos sonoros que sugerem uma narrativa muito mais imersiva e mais profunda, conectando os sentidos visual e auditivo, aproximando os mundos, da realidade e da ficção.

Chion (1990), considera que essa relação intrínseca entre som e imagem, oculta informações que postulam ser reveladas.

Designamos o valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se tem, ou na recordação que dela se guarda, que essa informação ou essa expressão decorre “naturalmente” daquilo que vemos e que já está contido na imagem. (Chion 1990, 12).

Em parte, a sua afirmativa, nos indica o quanto de subjetividade, imprimimos ao processarmos as informações no momento em que assistimos há um determinado filme e o quanto elas precisam ser reveladas. Formamos junto com o roteiro, uma espécie de acordo colaborativo ao conectarmos o tema, toda a trama e a ambientação do filme ajustando-o ao nosso repertório e ao repertório sugerido pela própria narrativa do filme, ou seja, a nossa emoção perpassa pela nossa vida, pela nossa cultura e pelas nossas expectativas, nossos valores etc,. Ao mesmo tempo ela é sobreposta pela perspectiva do diretor do filme, toda a trama narrativa da obra, que inclue toda a equipe envolvida, que são responsáveis diretos por dar qualidade expressiva ao filme, desde o próprio roteiro, à direção de som ,direção de fotografia, iluminação, locação, edição e todos os elementos envolvidos na produção e realização cinematográfica.

Dessa forma os elementos sonoros que constituem a trilha, ou banda sonora: música, efeitos sonoros, diálogos e seus componentes são incorporados ao filme e ampliam o espectro ficcional, dando mais sentido e possibilitando maior interação com o espectador, tornando a experiência muito mais rica, mais atrativa e imersiva. Essa situação está muitas vezes associada à conduta técnica e ao recurso necessário para fazê-lo. Muitas vezes, no entanto, ele não está diretamente submisso ao orçamento, passando muitas vezes pelo processo profissional e criativo. Walter Murch (2004), quando fala do uso da técnica, ele chama a atenção especificamente para o processo de mixagem do som, pois, considera que,

Nunca se pode julgar a qualidade de uma mixagem de som pela simples quantidade de canais usados para produzí-la. Já foram produzidas mixagens deploráveis a partir de 100 canais. Da mesma forma, mixagens maravilhosas foram realizadas com apenas três canais. Tudo depende das escolhas iniciais que foram feitas, da qualidade do som, e da capacidade de mistura desses sons de despertar emoções ocultas no coração do público. (Murch 2004, 26).

O Sound Designer

O profissional responsável pela produção sonora de um filme, é o Sound Designer ou Designer de Som. É ele que assume todas as decisões sobre as manifestações sonoras de uma produção, julga o que é apropriado ou inadequado para cada take 6, tipo de imagem ou ação, analisando todo som que integra o produto audiovisual.

O Sound Designer pensa o som dentro do filme. Muito além de se conectar ao pensamento sonoro do diretor do filme, ele viabiliza soluções técnicas ao explorar o potencial sonoro do filme, não só quanto à sua construção gramatical, mas face também dos sistemas sonoros de reprodução que vão surgindo. Manzano (2013, 17).

Um dos grandes desafios do sound designer é criar códigos ou signos sonoros para corresponder ao soundscape, à paisagem sonora do filme. Por analogia, podemos pensar no papel do músico ou do intérprete diante do desafio de recriar, compor ou improvisar a partir de um determinado tema. Nesse sentido, José Fornari (2022)7, sugere uma alternativa bastante concisa. Como a notação musical não é a música em si, mas apenas o seu “mapa”, que é a sequência de passos ordenados a tempo da interpretação musical na forma de uma nova performance, ela permite, além do compositor, que o intérprete também tenha uma participação criativa significativa. Ele dá a sua contribuição artística no processo musical, muito embora na maioria das vezes ele trabalhe seguindo as diretrizes e solicitações do diretor do filme. Ele cria e transforma o som.

Quando fala sobre a origem sonora das coisas, Ben Burtt (2008)8 lança questões em relação ao filme: “se os objetos, lugares, robôs ou máquinas realmente existissem, qual seria o som deles? Qual seria sua fonte de energia? Em que campo da física estaria seu funcionamento?”. Uma de suas afirmações mais interessantes, é a seguinte:

Quando percebo que um determinado som não funciona numa cena, eu abandono a ciência e escolho o que funciona emocionalmente [...] em outra moderação diz que quando você grava sons do mundo real e os usa num filme de ficção científica você usa a credibilidade desses sons para que a plateia fique convencida da realidade de um mundo muito fantástico. Quanto mais inventivos são os sons mais eles ficam subjetivos e se tornam sons aos ouvidos do espectador. O resultado é um produto que envolve centenas de pessoas e milhares, senão dezenas de milhares, de decisões e milhares de sons, (Burtt 2008, tradução nossa).

O processo criativo do artista sonoro e do sound designer tanto num filme (no ecrã), quanto num espaço arquitetônico (físico), tendem à semelhança, porém, o ambiente em muito influenciará no dimensionamento e nas escolhas técnicas. A atmosfera e as expectativas interferem de forma relevante, pois a estrutura técnica para lidar com meios tão diferentes, exigirá medidas personalizadas, embora o conteúdo sonoro possa ser o mesmo.

Quando pedem para criar uma espécie de mundo por meio do som, isso se torna mais interessante quando o filme pede um novo mundo de som original. Toda ênfase está em cada detalhe sonoro, rangidos, beeps, guinchos etc., todos eles têm que significar alguma coisa. A escolha do som correto na hora certa do filme é uma das atividades mais importantes para um engenheiro de som (Burtt, 2008, tradução nossa).

Formas musicais para descrever o contexto

Na dimensão do componente sonoro, Michel Chion (1990,14), fala do valor acrescentado pela música citando duas formas que ele considera específicas da música se expressar no cinema. A primeira forma é a da música ‘empática’, aquela que tem caráter incidental, ou seja, funciona como o laitmotiv 9, ela exprime diretamente a sua emoção na cena do filme imprimindo rítmo e o tom. Ela tem a faculdade de partilhar os sentimento dos outros, por isso está associada ao termo empatia. Ela dita o ritmo e conduz a emoção.

A outra forma que ele chama de música ‘anempática’, é a oposição da primeira forma, ou seja, ela manifesta uma indiferença ostensiva, impávida e inexorável, como um texto escrito. Trata desse fundo de indiferença que desenrola a cena e o que tem por efeito não a suspensão da emoção, mas, pelo contrário, o seu reforço, inscrevendo-a no que ele chama de fundo cósmico.

são as numerosas músicas de piano mecânico, de celesta, de caixa de música e de orquestra de baile cuja frivolidade e ingenuidade estudadas reforçam, nos filmes, a emoção individual das personagens e do espectador, na medida em que afetam ignorá-Ias. (Chion 1990, 14-15).

Quando ainda fala da música anempática, Chion(1990), dita que é a música que faz aparecer a trama mecânica desta tapeçaria emocional e sensorial. Corrobora ainda que existem músicas que não apresentam nenhuma dessas formas, que tem um sentido abstrato ou uma mera função de presença, que ele qualifica de um valor de placa informativa, em todo caso, sem ressonância emocional.

Luiz Adelmo Fernandes Manzano (2013, 15) considera que, a partir do momento em que se compreende a poderosa ferramenta que o áudio pode representar na articulação com as imagens, novas formas de construção narrativa, abre-se como percurso para novas percepções, e novas atrações. Já para Ana Luisa Pereira Barbosa (2009, 2), o sound design está em “o quanto o uso do som pode ter uma influência fundamental sobre o desenvolvimento narrativo dos filmes”.

Esse é, portanto, o caminho a percorrer do sound design. Ao explorar a sua potencialidade enquanto recurso imersivo, o som possibilita ao público, novas formas de escuta e de experimentação.

O momento final: transferência do material sonoro e finalização do vídeo a partir do roteiro

A mixagem e a sincronização são consideradas pelos editores a parte final do processo de decupagem do roteiro, ou seja, é o momento onde as partes de fato se juntam e se somam. Onde o termo audiovisual se notabiliza.

O trabalho do editor é balizado pela sensibilidade e criatividade. Não se trata aqui de somar peças, ou de unir pontas, o trabalho vai muito além desse propósito. O tempo certo, o uso adequado do balance, que envolve os níveis de volume, timbre, altura e intensidade é que irão impactar o telespectador de forma profunda ou superficial. David Sonnenschein (2001), considera que as palavras que estão no roteiro de um filme serão aquelas que irão assegurar a escuta da trilha sonora. Elas, de fato, são a essência pela qual a sua utilização fará maior ou menor sentido. Argumenta que mesmo para aquele filme que já foi gravado ou editado, torna-se imperativo não deixar que a ansiedade siga prontamente em direção à visualização, por considerar essa uma oportunidade única e que poderá ser danificada pela nossa impressão subvertida e acrescenta ainda que, preservando as nossas impressões sobre o que será transmitido na história pelo som, elas estarão resguardadas no seu estado primário, e em convicção irão influenciar nossas audições mentais se as fontes partirem de um texto, de uma fala, ou de uma expressão ao invés de uma imagem.

Conclusão

A importância da utilização da linguagem sonora como narrativa de qualidade no produto audiovisual suscita o pensamento, o ouvido crítico e o fazer analítico, pois, correlaciona os níveis sensíveis existentes na produção de um conteúdo audiovisual que estão diretamente tangenciados ao ambiente, ao tempo e ao espaço. Para além do campo teórico, o empenho na utilização da qualidade sonora, confronta os nossos sentidos na atividade prática, pois promove a reflexão sobre alguns conceitos básicos de edição do áudio, muitas vezes arraigados em uma prática conservadora e engessada e ao mesmo tempo, perceber novas possibildades à partir de recursos disponíveis em softwares de última geração.

Por fim, espera-se que na montagem de um filme, a utilização da linguagem sonora como qualidade narrativa no produto audiovisual esteja lícita de forma criativa e contextualizada, no âmbito de combinar conceitos, teorias e proposições à práxis.

Nesse sentido, espera-se que o leitor/ouvinte e mesmo o profissional da área, possa estabeleçer conexões com às dimensões interativas e imersivas no trato do material sonoro produzido como meio ou fim de um projeto original ou revisitado, ao experienciar as etapas do processo de construção da linguagem narrativa sonora.

Esse procedimento tem como finalidade, submeter a nossa capacidade crítica, analítica e empírica como sendo essas, etapas necessárias do processo qualitativo, que busca facilitar a nossa compreensão sobre os aspectos sintáticos e semânticos inerentes ao campo do sound design, e da Sound Art, que se estrutura de forma organizada e criativa como abordagens do pensamento projetual.

“Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04057/2020”

Notas Finais

1Traité des objets musicaux: essai interdisciplines: Pierre Shaeffer,1966, discute nesse tratado, as várias questões demandadas da música, enquanto, expressão, linguagem e objeto. Pierre Schaeffer considera que a música é a arquitetura que fala. e com ela, está a se correlacionar dois tipos de conhecimento: o da Natureza e o do Homem.

2Frémito: movimento ligeiro de oscilação que produz um ruído surdo, sussurro, murmúrio, vibração sonora

3A Musicologia Sistemática, é uma das vertentes da Musicologia que aborda desde os fundamentos físicos, biológicos, psicológicos culturais e sociais da música, bem como, suas manifestações e seus efeitos da natureza do fenômeno musical, ou seja, ela está interessada nos seus aspectos estruturais, mas também busca compreender aspectos de outra ordem, perceptuais, quando explora de forma sistematizada as modalidades e condições de criação, execução e recepção da música, como a sensação e a emoção, por exemplo.

4Edmund Husserl, foi um filósofo e matemático alemão fundador da escola da fenomenologia. O pensamento de Husserl influenciou profundamente todo o cenário intelectual do século XX e XXI.

5L’Arrivée d’un Train en gare de La Ciotat Gênero documentário, dirigido por Auguste e Louis Lumière, foi um dos primeiros filmes a serem apresentados publicamente. O filme tem apenas 42 segundos de duração e consta apenas de um plano em perspectiva a partir da estação de trem de LA Ciotat, com alguns passageiros à espera na estação. Pode ser considerado o primeiro plano-sequência da história do cinema.

6Take, tomada, o termo no cinema, é o registro de uma cena por meio de uma câmara de filmar (Portugal).

7José Fornari. A representação da música em notação. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 16 de janeiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/01/16/3

8Ben Burtt,. 2021.Creates the Sounds for Wall-E Animation Sound Design: Building worlds from the sound up. https://www.youtube.com/watch?v=EUgb_h2u78I Acedido em 29 de outubro de 2021.

9Laitmotiv: A palavra tem a sua origem no idioma alemão, formada pelas palavras « leiten » («liderar», «dirigir») e « motiv » («motivo»). O termo, como ficou conhecido pela primeira, data de 1860 e foi a partir das obras musicais de Richard Wagner e Franz Liszt

Bibliografia

Barbosa, Ana Luisa Pereira. 2009. A relação som-imagem nos filmes de animação norte-americanos no final da década de 1920: do silencioso ao sonoro. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da USP-ECA. Universidade de São Paulo: Escola de Comunicações e Arte. <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-17032010-175658/publico/ana_dissert.pdf>.Acedido em 14 jul. 2017.
Nota de Texo: (Barbosa 2009, 2)

Burtt, Ben. 2021.Creates the Sounds for Wall-E Animation Sound Design: Building worlds from the sound up. <https://www.youtube.com/watch?v=EUgb_h2u78I>. Acedido em 29 de outubro de 2021.
Nota Texto: (Burt 2021, part 1 of 2)

Chion, Michel e Pedro Elói Duarte. 1990. A audiovisão, som e imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia. <https://www.academia.edu/35371621/CHION_Michel_A_Audiovisao?auto=download&email_work_card=download-paper-Chion_Michel_A_Audiovisao.pdf>. Acedido em 14 de abril de 2023.
Nota Texto: (Chion e Duarte 1990, 12).
Nota Texto: (Chion e Duarte 1990,29-30)

Fornari, José. 2022. A representação da música em notação.Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. <https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/01/16/3>. Acedido em 15 de maio de2023.
Nota Texto: (Fornari 2022)

Manzano, Luiz Adelmo F. 2003. Som-imagem no cinema. São Paulo: Perspectiva.
Nota Texto: (Manzano 2003, 15)

Murch, Walter. 2001. In the Blink of an Eye: A Perspective on Film Editing. Brand New Format: Paperback - Publisher: Silman-James Press.
Nota Texto: (Murch 2001, 26)

Opolski, Débora. 2009. Análise do design sonoro no longa-metragem Ensaio Sobre a Cegueira. Curitiba, 2009. <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/19870/Dissert_Debora%20Opolski%20completa%20pdf.?sequence=1>. Acedido em 14 de abril de 2023.
Nota Texto: (Opolski 2009, 12)

Schafer, R. Murray e Marisa Trench Fonterrada. 2001. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora Unesp.
Nota Texto: (Murray e Fonterrada 2001, 366 )

Sonnenschein, David. 2001. Sound design, Malibu: Michael Wiese Productions.
Nota Texto: (Sonnenschein 2001)