Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

The Moving Image in a Design School

A imagem em movimento numa escola de design

Noni Geiger

Escola Superior de Desenho Industrial, Brasil

Marcos Martins

Escola Superior de Desenho Industrial, Brasil

Abstract

Historically, the ‘dynamic image’ was linked to the teaching of design, although not in a prominent way, in the production and the curriculum of schools like the Bauhaus and the HfG-Ulm. In the curriculum of the School of Industrial Design (ESDI) - heir to the pedagogical conceptions of these German schools - the moving image appears in an incipient way, without a discipline exclusively dedicated to it. Despite this lack, a significant number of student projects show the relevance of this field in the School. This article explores the pedagogical implications of this production through two case studies: a graduation project carried out in 2020, and another, developed in an interaction design project discipline, in 2015. Through the examination of these two examples, we suggest, it is possible to recognize the pertinence of the effective inclusion of the moving image within a contemporary design pedagogy.

Keywords: Design and Art, Design Education, Gender Issues, Moving Image, Narrative and non-narrative.

Introdução

Esse artigo visa investigar algumas das estratégias de ensino da imagem em movimento e questões de narrativa na Escola Superior de Desenho Industrial, que inevitavelmente incorporou este recurso num mundo permeado por interfaces. Partindo-se da análise da estrutura de seu currículo programático, o texto a seguir explora resultados práticos e teóricos através de estudos de caso nos quais ficam evidentes os ganhos pedagógicos abertos por projetos que incluem a imagem em movimento em sua realização.

A ESDI - Escola Superior de Desenho Industrial, UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é considerada a primeira escola de design, em nível universitário, na América Latina, fundada em 1963, na cidade do Rio de Janeiro, como uma instituição autônoma, pública e gratuita. Seu curso foi concebido na virada dos anos 1950 para 1960, baseado no modelo da HfG-Ulm (Hochschule für Gestaltung Ulm), escola na Alemanha, fundada nos anos 1950, inspirada pelos ideais da Bauhaus dentro da perspectiva de uma sociedade industrial no pós Guerra.

Num momento de otimismo no Brasil, a criação de uma escola de design parecia significativa e justificadora para posicionar o Rio de Janeiro na vanguarda do processo industrial brasileiro. Atualmente, atingindo sessenta anos de atividades, além da graduação, a Escola oferece cursos de mestrado e doutorado, e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da qual a escola faz parte, foi pioneira no País na adoção de políticas afirmativas em favor de minorias sociais.

Contudo, apresenta-se uma questão relevante: como um projeto acadêmico em design evita anacronismos, mantendo um espírito pedagógico contemporâneo, revisitando alguns ideais fundadores de sua ‘matriz’ bauhausiana? Mais especificamente, cabe perguntar como seria possível atualizar a abordagem experimental da ‘imagem dinâmica’ apresentada em trabalhos como os de László Moholy-Nagy, Man Ray e Oskar Schlemmer, considerando o atual estado das tecnologias de imagem em movimento?

Seria ‘natural’ que numa escola ou curso superior de design como a ESDI, dada sua herança histórica, experiências com imagem em movimento se originassem da disciplina de fotografia, sobretudo por conta das derivações tecnológicas do cinema em relação à fotografia. Contudo, na ESDI, embora a disciplina de fotografia permaneça em seu currículo desde a sua fundação, nunca houve uma formalização curricular que incorporasse tais experiências, atribuindo-lhes uma ocupação regular nas práticas de aprendizado do design.

Estas experiências, por sua vez, têm sido cada vez mais frequentes no curso, em especial, realizadas em seu último ano, como resultado de trabalhos de conclusão. Isto se deve, sobretudo, à demanda dos alunos, muito provavelmente a partir de suas percepções da evidente ampliação das áreas de atuação do design de comunicação na direção das inúmeras possibilidades de aplicação que a imagem em movimento permite.

Numa retrospectiva histórica, a disciplina de fotografia esteve presente na ESDI desde a sua incepção, portanto há 60 anos, em função da ideia da adaptação programática da Hochschule für Gestaltung Ulm - HfG Ulm, onde dois dos fundadores da ESDI1, Alexandre Wollner (1928-2018) e Karl Heinz Bergmiller (1928) realizaram seus estudos, de 1954 a 1958.

Desde então, cronologicamente, sucederam-se como professores: Humberto Franceschi; Affonso Beato; Roberto Maia; Gabriel de Carvalho; Gabriel do Patrocínio; Barbara Szaniecki – atualmente responsável pela disciplina –; e alguns professores em caráter temporário.

Durante a maior parte de sua história na ESDI, a disciplina de fotografia foi ministrada nos dois primeiros anos do curso2 (1963-1990), tendo sua nomenclatura, ementa e periodicidade alterados nos recentes processos de revisão curricular da Escola.

Em 2016, uma grande reforma curricular foi aprovada e diversas disciplinas do currículo vigente até então tiveram seus conteúdos revisados e redistribuídos em disciplinas com nomenclaturas e ementas novas. A tradicional disciplina de Fotografia, foi, então, renomeada como “Teoria e técnicas da imagem (1 e 2)”. Desde o nome, percebe-se a intenção de se realocar o protagonismo da fotografia dentro do âmbito mais amplo das questões da imagem. Na versão mais avançada da disciplina (Teoria… 2), a ementa anuncia os principais tópicos norteadores:

Retórica, estética e pragmática da imagem; fotografia e arte; mídia; imagem – verdade, ficção e narrativa; Imagem capturada e imagem gerada; imagem estática e imagem em movimento; representação analógica e representação digital da imagem; transposição de imagens para sistemas de reprodução e difusão; luz, teoria, sistemas e espaços de cor; produção e edição de projetos audiovisuais; dispositivo – equipamentos, armazenamento, formatos/compressão; enquadramento – planos, ângulos, movimentação; recursos e elementos de pré e pós produção; iluminação e práticas de estúdio.3

Nota-se a inclusão da imagem em movimento e projetos audiovisuais. Entretanto, cabe a observação de que, no currículo inteiro da Escola, esta é a única referência a este campo e, mesmo assim, tímida, se comparada com os outros aspectos itemizados. Pode-se afirmar, sem muita chance de erro, que a grade curricular não reflete a relevância da imagem em movimento para um currículo de ensino em design, relevância esta que pode ser justificada por diferentes ângulos pelos quais se examine a questão.

As experimentações com as imagens dinâmicas no pensamento do design remonta aos tempos da Bauhaus, com os experimentos de vanguarda de Moholy-Nagy, Man Ray e Schlemmer. Na ESDI, além desse aspecto histórico, propostas advindas dos alunos através dos anos – seja em trabalhos finais de graduação, seja em trabalhos realizados em outras disciplinas durante o curso – não deixam dúvidas de que há uma sensibilidade jovem que intuitivamente considera natural a ligação entre a imagem em movimento e o campo do design. Os desenvolvimentos do design na era digital parecem corroborar essa intuição, dadas as evidentes oportunidades abertas por plataformas como Instagram, Facebook, Youtube, Pinterest, entre outras. Percebe-se, hoje, que vídeos e animações se naturalizaram como formas comunicativas tão comuns como fora a fotografia na época em que mídias impressas dominavam a difusão da informação e as trocas de mensagens.

Mas encontramos a maior justificativa para uma discussão da inclusão da imagem em movimento de modo mais assertivo nos currículos de design na própria produção dos alunos. A imagem em movimento, malgrado a insuficiência curricular aqui apontada, insiste em encontrar oportunidade para, profusamente, se manifestar ano após ano, nas mais variadas disciplinas. A seguir, apresentamos dois estudos de caso que exemplificam contundentemente, dentro dessa produção, tanto o anseio por parte dos alunos como a relevância propriamente instrumental e teórica deste campo para uma pedagogia de projeto em design.

O primeiro estudo, “Gabi”, acompanha em detalhe o processo de criação de um trabalho de conclusão de curso que, tocando na contemporânea questão da transição de gênero, o faz de modo também notavelmente atual, através do uso da animação, de modo atípico, combinada com o gênero do filme documentário. O segundo estudo, “Psiquicokinectico”, mostra o uso do vídeo num projeto de design de interação e seu tangenciamento com discussões teóricas e históricas no âmbito das artes. Esses estudos, cada um a seu modo, mostram possíveis caminhos para que a imagem em movimento consiga encontrar legitimidade para sua inserção num currículo de ensino em design.

“Gabi”

Para além das questões que este artigo aborda, há inúmeras outras que dizem respeito a mudanças de natureza social. A média de idade dos alunos da Escola, entre os anos de ingresso e de saída, está compreendida entre 17 e 25 anos. Este é um período de profundas transformações individuais por conta das características inerentes à faixa etária, sobretudo por se tratar de uma fase de buscas identitárias e profissionais.

Para muitos, o ambiente democrático e livre da universidade, do curso de ensino superior, será estimulante para vivências e trocas pessoais, abrangendo aspectos étnicos, culturais, afetivos etc.

O último ano acadêmico da ESDI – ou 2 semestres consecutivos – é considerado como aquele em que o aluno tem oportunidade de fazer uma escolha de caráter pessoal sobre o trabalho de final de curso4que deseja desenvolver. Aqui serão avaliadas suas competências e autonomia intelectuais e técnicas, cabendo também ao aluno indicar o professor orientador que ele identifique como aquele que irá dar-lhe suporte para este processo individual.

Trata-se de um momento em que é estimulada a conciliação de suas aspirações, tanto de capacitação técnica quanto de realização de algo significativo para si e para a sociedade. Por conta disto, tem sido comum o desejo de, nesta oportunidade, sobrepor-se estes aspectos, o que tem originado trabalhos singulares.

“Gabi” é um dos vários resultados exitosos nesta direção. No início do seu TCC5, o autor, Felipe Ferreira, tinha a convicção de que seu trabalho devia trazer uma contribuição para a comunidade LGBTQIA+, e sua ideia inicial era a de realizar um documentário.

Nas palavras do próprio Felipe, em seu relatório final de TCC (Ferreira, 2020, 4):

Se por um lado a cultura popular brasileira evidencia cada vez mais artistas LGBTQIA+ para os holofotes, o país ainda registra uma morte por homofobia a cada 23 horas. Além de dados aterrorizantes sobre a população desta categoria, esforços de natureza pública e privada minam qualquer tipo de correção a esta situação. Seja nas falas descabidas do Presidente da República, seja no recolhimento de livros pelo Prefeito do Rio, seja na censura de diversas produções culturais pelo Brasil6.

Em meio a um cenário de abandono do Estado na tentativa de proteger sua população ou de ao menos tangibilizar uma vivência pacífica para os corpos alheios ao padrão hétero-normativo; sinto em minha condição de homem gay, a necessidade de me afirmar como tal, seja no meio acadêmico, profissional e em qualquer momento de minha vida. A necessidade de fazer um trabalho voltado a escutar aqueles que me cercam e seus mais variados modos de serem lésbicas, gays, bissexuais, trans, não binários, queer; e em minha condição de designer, ouvi-los.

Os primeiros cogitos apontavam na direção de elencar perfis diversos desta comunidade para entrevistas, considerando-se que as várias letras da sigla LGBTQIA+, acrescidas do sinal “+”, são justamente indicativas de que não se trata de um grupo homogêneo.

Também havia a intenção de utilizar-se o cinema de animação como meio, com atenção ao fato de que essa opção exigiria muita cautela para evitar-se o pastiche ou o clichê. Ao mesmo tempo, já havia um relativo repertório de filmes de animação para adultos como “Waking Life”, de Richard Linklater (2001); “Sin City”, de Frank Miller e Robert Rodriguez (2005); e “Waltz with Bashir”, de Ari Folman (2008).

O direcionamento das pesquisas realizadas no primeiro semestre do TCC, que devem se consolidar na formulação de uma proposta de trabalho consistente e exeqüível, se deram em duas frentes distintas. Uma delas se voltou para um aprofundamento do entendimento do que é a comunidade LGBTQIA+, que sob esta legenda guarda-chuva abriga uma multidão de singularidades. João Silvério Trevisan iluminou muitas das indagações que não se esgotam em seu “Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade”. Escrito em 1986, portanto há 36 anos, foi revisado e ampliado em 2000, em sua 3ª edição, e ficou esgotado por mais de uma década. Houve várias reimpressões e na quarta e atual, foi novamente revista e ampliada:

Entre esses lapsos de tempo, muita coisa aconteceu e mudou. Apesar de continuar obedecendo à mesma estrutura, esta nova edição apresenta muitas aquisições. Considerando a grande quantidade de pesquisas recentes, adicionei numerosas informações inéditas e, dentro da estrutura antiga, inseri alguns novos capítulos. Atualizei dados, corrigi pequenas impropriedades e fiz modificações importantes no texto, que não interferiram na essência da obra. (Trevisan, 2018).

Um outro tipo de pesquisa se dedicou à literatura especializada na área de cinema, das teorias do filme documentário, com destaque para Bill Nichols7. Contudo, essa pesquisa não se restringiu a referências bibliográficas, se expandindo na ampliação do conhecimento de produções cinematográficas, com especial atenção à obra de Eduardo Coutinho8.

A indicação de Coutinho se deve ao fato de que uma das características fundamentais de sua obra consiste em acompanhar a vida e circunstâncias de pessoas comuns, e este era um aspecto que parecia indicativo das intenções de Felipe.

Ainda na pesquisa bibliográfica, vale citar referências de natureza mais técnica, voltadas para técnicas de animação. Também se incluem aí os filmes de animação já citados, sobretudo por sua linguagem e estrutura narrativa.

Para este trabalho, a partir do conceito da não homogeneização, Felipe percebeu a necessidade de individualizar alguns sujeitos e discursos e elegeu 4 pessoas de gêneros, gerações, etnias, atividades (profissionais e acadêmicas) e classes sociais diversos que se ‘enquadravam’, independente de se identificarem com, ou se engajarem como membros na legenda (aqui manteremos o anonimato de 2 deles): uma senhora idosa burguesa; um rapaz evangélico; a Xoxa Menegay (ou Xuxa do sinal), uma travesti performática das ruas de Copacabana; e Gabi, uma estudante de moda.

Durante este primeiro semestre do TCC, foram feitos contatos e entrevistas presenciais, algumas documentadas em fotografia, áudio e vídeo, destacando-se as realizadas com Ivy Lima (Xoxa) e Gabi.

Ao retomarmos as atividades do segundo semestre, em março de 2020, fomos abatidos pela pandemia planetária da Covid-19, a seguir de apenas 2 encontros de orientação (que se davam com regularidade semanal).

A Covid-19

O impacto causado pela impossibilidade de quaisquer atividades presenciais, por prazo indeterminado, exigiu do trabalho de Felipe e de suas 6 colegas de orientação9 uma profunda revisão de direcionamentos, sobretudo aqueles que presumiam entrevistas, encontros, dinâmicas tanto individuais quanto coletivas.

Felipe havia realizado uma longa e significativa entrevista com Gabi no final de 2019, documentada em vídeo, e agora, passados mais de 6 meses, decidia por centrar seu trabalho nela. Isto porque, dos 4 sujeitos originalmente escolhidos, abordados e acordados (como dito antes, dois teriam suas identidades preservadas), Gabi era a única que dispunha de condições de continuidade pela possibilidade de acesso a uma comunicação mediada pela tecnologia da internet.

Gabi é contemporânea de Felipe, que a conheceu na escola, no fim do curso fundamental. Gabi era Gabriel, e sempre se ‘montou’ – palavras dela – como mulher. Gabi decidiu fazer a transição de gênero, e no hiato entre a primeira e a segunda entrevista, portanto, de mais de 6 meses como já mencionado, havia iniciado este processo de caráter hormonal – e psíquico –, orientada e amparada por médicos e apoio psicoterapêutico.

Gabi consentiu que sua imagem e voz fossem publicamente divulgadas, desde que sem fins lucrativos. Para isto, a partir de minha recomendação e contato pessoal, a fim de proteger ao autor e à própria, foi consultada uma advogada especializada em direitos autorais, com a qual tivemos (Felipe e eu) uma entrevista em que foi explicitado o tipo de ‘produto’ e uso que seria feito com o material coletado. A partir daí foi elaborado um contrato assinado por ambas as partes10.

O roteiro do filme de Felipe deriva, essencialmente, de duas longas entrevistas – uma presencial e outra remota –, e, apesar das captações de áudio não terem resultado com nitidez suficiente para compreender todo o discurso oral11, é possível perceber a mudança do timbre de voz de Gabi em virtude do seu processo de transição. A leitura de Mario Cardano (2017) subsidiou um roteiro informal para a condução destas interlocuções.

O processo de roteirização do filme, propriamente dito, partiu da transcrição integral das entrevistas e a identificação das falas mais relevantes, com o propósito de evidenciar uma série de questões entrelaçadas: a história de vida de Gabi até o momento; sua inclinação e interesse, desde bem pequena, pelas coisas que pertenceriam ao ‘universo feminino’; suas relações familiares envolvendo a aceitação e o apoio a seu ‘estilo’ de vida e decisão de transição; seus relacionamentos sociais e afetivos; seus planos futuros, em termos acadêmicos e profissionais.

Gabi está consciente da coincidência entre seu processo de metamorfose e o evento da pandemia, que a obrigou a ‘permanecer no casulo’, transformando-se em isolamento. Isto lhe traz ainda mais introspecções sobre algo de profunda natureza existencial. Esta mesma consciência é aquilo que justamente motiva Gabi à adesão ao projeto de Felipe – a identificação da falta de compartilhamentos e de visibilidade da radicalidade implicada neste processo vivenciado por alguns, para servir de material para atrair a empatia de uns e encorajar a outros.

A escolha por realizar um filme em animação foi um recurso para deixar Gabi mais confortável, mas também para acessar períodos de sua infância e representar, de forma abstrata e metafórica, seu discurso a respeito de processos transformativos tanto emocionais quanto físicos. A linguagem da animação também tem a propriedade de evitar a monotonia dos talking-heads12. Além disso, Gabi faz citações à importância que o contato com as performances de Lady Gaga exerceram sobre si13, o que indicou a opção pela exploração de misturas de estilos gráficos através de intercessões entre vídeo e fotografia.

Foram pesquisados estilos de animação diferentes em que, essencialmente, temos o uso de rotoscopia (Figuras 3 e 4) sobre cenas de ação viva; cenas animadas com características de cartoon (Figuras 1, 2, 6 e 7); e cenas animadas abstratas (Figura 5). Os softwares utilizados foram Procreate, para ilustração, e After Effects para as animações.

Foi elaborada uma paleta cromática relativamente restrita com as cores: preto, branco, roxo, azul, rosa e laranja – esta última é a cor dos longos cabelos de Gabi, uma marca muito pregnante de sua aparência.

Em “Gabi” há diversas cenas em que se utiliza o texto escrito, desde trechos de colocações verbais (orais) dela que se pretendeu enfatizar, à complementação por infográficos, além de titulagens e créditos. Optou-se por uma versão de contornos irregulares da fonte tipográfica Futura, em caixa alta, aproximando-se da textura gráfica ‘borrada’, presente em todo o filme.

As mudanças de cena utilizam uma linguagem de fade out desenvolvida em animação, que consiste na progressiva ocupação do quadro por um borrão monocromático. Este borrão foi obtido através de um pincel do Procreate, e é um elemento recorrente da linguagem de todo o filme.

Figura 1 14– Processo de fade out do quadro de cena inicial de “Gabi”, em que ela está representada em seu quarto, em diálogo através de um aparelho celular, já em distanciamento social decorrente da Covid-19. Gabi comenta sobre o contraste entre a lentidão imposta ao mundo por conta da pandemia, e a aceleração dos processos de transição em seu corpo.
Figuras 2 e 3 – Quadros de cena de “Gabi”, em que ela declara o uso da máscara imposto pela pandemia como um recurso para ‘tapar’ aquilo que ela identifica como o seu sinal masculino mais evidente – o queixo –, e como isso altera certas abordagens de terceiros.
Figura 4 – Quadro em preto e branco, onde Gabi descreve a persona que ela assumia quando aluna na universidade que frequentava.
Figura 5 – Quadro de “Gabi”, em que ela descreve o que percebe das transformações de seu corpo quando nua, diante do espelho, antes do banho.15
Figuras 6 e 7 – Quadros finais de “Gabi”, quando ela descreve o seu sonho pós-pandemia, de ir para a pista de dança. O áudio desse trecho é “Rain on me”, de Lady Gaga, onde Gabi desenvolve uma coreografia ‘metafísica’.

Inicialmente, ao final do primeiro semestre, e antes do surto pandêmico que alterou os planos deste trabalho, seu título era “Narraqueer: vivências animadas”. Estávamos muito satisfeitos com este neologismo, cuja síntese entre as palavras narrativa e queer16resultava numa expressão com forte apelo significante, por conta de sua sonoridade, e de seu significado.

Contudo, como previamente descrito, Gabi se tornou a protagonista do projeto, e a contundência de sua história levou Felipe, justificadamente, a alterar o título. “Gabi”17 foi realizado no final do ano de 2020, quando Gabi completou 24 anos de idade.

Para assistir a “Gabi”, acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=SLUbaqkFsLs&ab_channel=FelipeFerreira

“Flee”

A atualidade do trabalho de Felipe se evidencia, sobretudo, pela extrema semelhança com “Flee” 18 (2021), finalista na disputa ao Oscar 19 deste ano de 2022 nas categorias de melhor filme estrangeiro, pela Dinamarca; melhor filme de animação e melhor documentário de longa-metragem.

“Flee” é um documentário de uma história verdadeira em cinema de animação, dirigido por Jonas Poher Rasmussen, cujo protagonista é Amin20, 36 anos – um homem bem sucedido no ambiente acadêmico –, que está às vésperas de se casar com seu namorado de longa data. Jonas nos conta que o ‘formato‘ do filme em animação deixou Amin confortável para usar sua própria voz21. Amin é um imigrante refugiado afegão que chegou sozinho à Dinamarca ainda menor de idade, e guarda um segredo que o atormenta, que pode comprometer seus planos de futuro.

Assim como a história da aproximação entre Felipe e Gabi, Jonas, o diretor de “Flee”, conheceu Amin recém-chegado à pequena cidade dinamarquesa onde ele residia, quando eram estudantes do ensino médio. Estavam num trem local e havendo poucos imigrantes, Amin chamou sua atenção por estar bem vestido (para o padrão de imigrantes). Contudo, apesar de muitos aspectos semelhantes entre estes dois filmes, há uma diferença radical: enquanto Amin permanece no anonimato, inclusive seu nome é ficcional, Gabi não impõe quaisquer restrições à sua identidade, à exibição de si e de seu rosto.

Figura 8 – Quadro de “Gabi”, em cena onde ela aparece em seu quarto.

“Psiquicokinectico”

A utilização da imagem em movimento no desenvolvimento de projetos em uma escola de design pode assumir formas variadas. No design de interação, por exemplo, a filmagem por câmeras de celulares, aliada a ferramentas de edição rápida, são eficientes ferramentas para a prototipagem das experiências. Prática já consolidada no campo da User Experience (UX), e adotada em estúdios e escolas de design22, a prototipagem da experiência permite aos designers vivenciarem teatralmente as interações e ideias de um projeto em andamento com um viés investigativo experiencial (Martins, 2014). Filmar, animar e editar ações interativas como forma de comunicação intra e extra equipes são atividades que facilitam não apenas a análise de protótipos físicos como também a revisão das experiências prototipadas. É ao examinar o registro visual fílmico que alunos têm a possibilidade de perceber questões ergonômicas, cognitivas e temporais de que não necessariamente se lembrariam após terminada a experiência com o protótipo.

Ainda no campo do design da experiência, a imagem em movimento pode funcionar como o único output para a demonstração de um projeto. É verdade que, na ESDI, já foram realizados projetos ‘completos’, desde as fases iniciais de ideação até o pleno funcionamento de um protótipo interativo. Entretanto, em um período letivo, que compreende cerca de 15 semanas, só se consegue tal nível de acabamento, caso os alunos tenham a seu dispor auxílio de programadores ou orientadores23 dedicados a pensar os problemas de hardware e programação em paralelo com os processos de desenvolvimento conceitual e concepção geral das propostas. Disso decorre que, muitas vezes, os projetos interativos não chegam à fase de programação, fundamental para sua validação. Nesses casos, a imagem em movimento vem então possibilitar a simulação de experiências de uso dos produtos. Na ESDI, numerosos exemplos desta modalidade vêm sendo produzidos nas disciplinas de projeto em design de interação.

Sombras, teatro, cinema

Além de meio ou fim, a imagem em movimento, na ESDI, também se abriu a um campo experimental, em projetos nos quais convenções são pressionadas, pondo-se em questão os limites da especificidade dos meios técnicos e artísticos. Um trabalho desenvolvido em 2015, numa disciplina de projeto em design da interação, revela esta dimensão. Com o nome trava-língua, “Psiquicokinectico”, este projeto proporciona uma experiência que desafia a forma clássica da sala de cinema e seus limites rígidos entre a plateia e a tela. “Psiquicokinectico”24 foi pensado inicialmente como uma espécie de “teatro de sombras” especular: em uma superfície plana seriam projetadas silhuetas dançantes de pessoas em movimentos capturados pelo dispositivo Kinect25, da Microsoft. Em torno das sombras, elementos gráficos, como contornos ou elementos geométricos reagiriam aos movimentos.

Figura 9 – Primeiras ideias para o “Psiquicokinectico”.

Os primeiros esboços de ideias para o trabalho (Figura 9) mostram o investimento de seus autores em criar alternativas de preenchimento das áreas fora e dentro da sombra do usuário. Está expressa, também, uma proposta de experiência em que os usuários são imaginados de frente para a superfície de projeção, divertindo-se com as alterações de sua própria imagem, uma definição reforçada posteriormente pelos testes de usabilidade e protótipos de experiência (Figura 10).

Figura 10 – Protótipo de experiência do “Psiquicokinectico”.

Na imagem acima, vê-se que a área de projeção, ergue-se verticalmente, acima do chão, até a cintura dos usuários. Com este deslocamento, pretendia-se evitar a interferência das sombras dos corpos sobre as imagens, já que elas interrompiam seu fluxo. Pode-se especular, a partir daí, se as sombras não trariam o inconveniente de deixar os participantes por demais conscientes da realidade de seus corpos, portanto prejudicando a fruição das psicodélicas imagens projetadas e da suspensão de descrença26 típica da linguagem cinematográfica. Nesse sentido, se formos tentar classificar o projeto segundo linguagens tradicionais, a experiência proposta pode ser pensada como uma mistura entre teatro e cinema. A simultaneidade dos movimentos corporais, acompanhados pela sombra dos ‘atores’ estaria próxima ao teatro, enquanto a conversão de seus contornos em imagem em movimento evocaria o cinema.

Comparando cinema e teatro segundo a ilusão de realidade de cada uma dessas linguagens artísticas, Christian Metz observou que, no teatro, os espectadores estão imersos temporal e espacialmente na mesma realidade que atores, cenários e outros componentes cênicos. Este compartilhamento não permite que esta realidade seja esquecida ou negada, ao passo que, no cinema, a transposição de uma ação para a imagem, faz com que este meio retenha da realidade apenas o movimento, mas não os outros componentes tridimensionais. A narrativa (diegesis)27 consegue, assim, alcançar uma ilusão de realidade mais forte:

É de fato porque a arte do teatro se baseia em meios demasiado reais que a crença na realidade da diegese se encontra comprometida. E é a total irrealidade dos meios cinematográficos [...] o que permite a diegese de assumir a realidade. (Metz, 1991, 13)

Queremos sugerir que, no “Psiquicokinectico”, foi, em parte, por conta da ‘demasiadamente real’ presença das sombras que elas foram sendo gradualmente descartadas. A solução espacial para resolver este problema, que já se insinuava nos testes mostrados aqui na Figura 10, foi afastar radicalmente os dispositivos de captura e projeção das imagens dos corpos cujas silhuetas dançantes alimentavam o sistema. Desde o desenho inicial, percebe-se um interessante processo de içamento. Se no primeiro desenho, a base da imagem coincide com os pés, e se nos protótipos da experiência eleva-se à cintura, na versão final do projeto, a tela acaba por posicionar-se acima das cabeças. O sistema foi instalado para integrar as atrações de uma festa promovida pelos alunos na ESDI. Próximos à pista de dança, estavam posicionados o Kinect, a câmera de captura de vídeo e um computador no qual as imagens eram processadas. Longe desse conjunto, um lençol branco foi suspenso e esticado, ocupando toda a largura do boulevard, via principal da Escola (Figura 11).

Figura 11 – Montagem da tela de projeção (E) e projeções durante a festa (D).

O input (corpos dançantes) estava, portanto, apartado do output (tela de projeção), alterando de modo radical a experiência do usuário inicialmente pensada no projeto. Ali, nos primeiros esboços, essa experiência pressupunha um caráter especular, no qual quem se move vê imediatamente o resultado visual da captura de seus movimentos pelos sensores. Agora, na versão final, as imagens projetadas não estão mais ao alcance visual de quem as produz. Esta separação entre a imagem e seus produtores e os espectadores permite que entendamos este trabalho como uma reorganização de dispositivos historicamente consolidados da imagem em movimento.

Cabe apontar que a captura, sendo feita por sensores (do Kinect), não está a serviço do realismo fotográfico. Esta técnica serve tão somente ao fornecimento de um contorno básico dentro do qual o programa em Processing opera variados efeitos gráficos. O código de programação transforma a imagem capturada em contornos preenchidos pelas mais variadas imagens, desde composições abstratas até, de modo dadaísta e pop, figuras de quadrinhos, filmes e outras imagens apropriadas (Figura 12). Os espectadores, no contexto da festa, ao observar as silhuetas dançantes, pressentem que as figuras projetadas correspondem a outros frequentadores que estão dançando em algum local próximo. Isto se dá pelo caráter não encenado e não narrativo deste ‘filme em exibição’, no qual personagens, ora se movimentam, ora dançam, ora estão simplesmente parados, conversando.

Figura 12 – Exemplos de imagens de preenchimento dos contornos capturados pelos sensores do Kinect e pela câmera.

Imagens não narcísicas

Observe-se que, ao abandono da ideia inicial, na qual a projeção funcionaria como um tipo de espelho modificado, corresponde também uma alteração da relação narcísica com a imagem, que era uma questão presente no projeto desde o início. Com a tela longe, quem dança não tem mais a recompensa de ver sua imagem modificada em tempo real. Não há mais o ‘espelho’. Nesse sentido, as propriedades de um outro meio técnico, além do teatro e do cinema, são, também, reconfiguradas: as do vídeo.

A crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss identifica o meio do vídeo como sendo essencialmente narcísico. Em 1974, ela observou que as expressões da, então jovem, videoarte davam profusos exemplos do uso do próprio corpo e fala dos artistas como instrumento ou tema central dos trabalhos de Richard Serra, Nancy Hold, Vitto Acconci e Bruce Nauman, entre outros. Analisando esta tendência, Krauss propõe que as artes do vídeo, diferentemente das outras artes como pintura, escultura ou filme, não tinha a definição de sua especificidade atrelada a qualidades físicas, mas sim psicológicas. O vídeo, propõe Krauss, engendra um movimento que permite com que um sujeito e seu duplo se fundam. Portanto, a condição básica do aparato tecnológico do vídeo em permitir o feedback em tempo real articula-se com o fenômeno da auto observação.

Diferentemente de outras artes visuais, o vídeo é capaz de gravar e transmitir ao mesmo tempo, produzindo feedback instantâneo. O corpo está, portanto, como que centrado entre duas máquinas que são a abertura e o fechamento de um parêntese. A primeira delas é a câmera; a segunda é o monitor, que re-projeta a imagem do artista com o imediatismo de um espelho. (Krauss, 1974, 52, tradução nossa)

O “Psiquicokinectico”, num passo além, introduz o processamento de imagem também em tempo real, complicando os termos desse ‘parêntese’. Interferências na imagem, que na década de 1970 só poderiam ser feitas em pós produção, também passam a integrar o tempo real. Dessa forma, o narcisismo do vídeo sofre um primeiro abalo, já que o realismo fotográfico (presente desde o cinema) é substituído, dentro dos contornos da figura humana, por imagens outras que interferem na autocontemplação. Mas é quando a superfície projetada é afastada de quem produz as imagens (que passam a não mais vê-las), que há um abandono definitivo da função narcísica presente na metáfora do parêntese usada por Krauss. No “Psiquicokinectico”, o rearranjo espacial dos locais de emissão e recepção das imagens, atua de modo a resistir à relação entre imagem e autoimagem, dando à primeira uma determinada independência, quase um anonimato. O espectador não sabe quem está dançando e o ‘ator’ (quem dança) não sabe quem está assistindo. Há, então, uma interessante mistura de teatro, cinema e vídeo. Do teatro, herda-se a copresença entre atores e espectadores; do cinema, conserva-se a imaterialidade projetada; do vídeo, aproveita-se a mediação tecnológica a serviço do tempo real (‘live’).

A imagem enquanto experiência

Mas podemos olhar ainda mais uma vez, e com maior detalhe, para a relação entre a ação corporal e a imagem, por um outro viés, ou seja, de um ponto de vista interativo. Percebemos, inicialmente, que o projeto destitui a imagem de seu hipnótico poder narrativo. Os participantes da festa não se situam na condição de meros observadores ou consumidores de uma história roteirizada, como num filme ou numa peça teatral. As imagens se imiscuem no próprio tempo-espaço da festa e passam, despojadas de sua centralidade cinematográfica, a conviver com as pessoas como mais um participante de um evento coletivo. Nesse sentido, o trabalho faz lembrar a experiência das Cosmococas, série de trabalhos que Hélio Oiticica realizou na década de 1970 em parceria com o cineasta Neville de Almeida.

Nestas instalações, os espectadores têm variadas possibilidades de interação corporal, tais como deitar em redes ou colchões, submergir nas águas de uma piscina, brincar com bolas coloridas ou objetos feitos de espuma. Os visitantes podem interagir com esses elementos físicos enquanto uma sequência de slides é projetada sobre as paredes, cantos e tetos de uma sala ao som de artistas como Jimmy Hendrix, John Cage e Yoko Ono. A imagem não é propriamente cinematográfica, mas não deixa de haver uma sucessão de fotogramas projetados. Por isso, as Cosmococas foram classificadas por H.O. como quasi-cinema: um cinema sempre em formação, sem a passividade dos espectadores que são envolvidos por imagens que não se limitam a uma tela única perpendicular ao olho, mas se espalham por todos os cantos do ambiente. Em 1973, Hélio Oiticica escreve que as Cosmococas

são realmente uma espécie de quasi-cinema [...] diante da minha insatisfação com a linguagem cinematográfica: não me contentar com a relação (principalmente a visual) de espectador-espetáculo [...] e a indiferença generalizada de tais noções: a aceitação cega predominante da imutabilidade dessa relação, a hipnose e a submissão do espectador à superdefinição visual e absoluta da tela sempre me pareceram prolongadas demais [...] (Oiticica, 2001, 97)

O desmembramento da sala de cinema, posto em prática pela separação entre tela e público no “Psiquicokinectico”, não está distante dessas palavras de Oiticica. A estrutura espaço-temporal do projeto indica a abertura para uma experiência interativa com possibilidades múltiplas de fruição da imagem, para longe da imersão diegética cinematográfica. Tendo, então, a imagem sido destronada de seu posto privilegiado enquanto objeto de contemplação, abre-se a possibilidade de afirmação da presença corporal no local de exibição (e não sua negação em nome de uma ilusão de realidade, tal como Metz observou sobre o cinema).

O “Psiquicokinectico” propõe uma experiência desespetacularizante e aberta à experimentação. Na festa, os participantes estão presentes não apenas com seu intelecto e o sentido privilegiado da visão, mas com o corpo inteiro, atravessando e sendo atravessado pelas imagens. Há portanto uma ampliação da compreensão, um aprendizado por parte dos alunos que fizeram o projeto, quanto ao entendimento do que seja projetar uma experiência aberta.

Pedagogicamente, este exercício esclarece, também, a posição do projetista de um produto de design da experiência. Uma pergunta frequente que alunos de projeto em design da interação fazem é, até que ponto um produto projetado pode ter seu uso previsto e controlado, e em que medida ele pode acolher usos diversos ou até mesmo desviantes da proposta original. Essa questão pode ser respondida com palavras de Lygia Clark, cujo trabalho e biografia mantêm estreita proximidade com Hélio Oiticica. Em um pequeno texto de 1968, a artista afirmava:

Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro, no interior desse molde: o sentido de nossa existência.
Somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos; estamos a vosso dispor.
Somos os propositores: enterramos “a obra de arte” como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação.
Somos os propositores: não lhes propomos nem o passado nem o futuro, mas o “agora”.
(Clark et al., 1980, 31)

Mais de três décadas depois que Oiticica e Clark ‘enterraram a obra de arte’, abrindo-a para um campo experimental, alguns alunos numa escola brasileira de design decidiram se aventurar, de modo também experimental, a mexer com as convenções de artes tradicionais (no caso, com relação ao teatro, cinema e vídeo). Essa conexão entre considerações de Hélio Oiticica e Lygia Clark e um trabalho de alunos é, evidentemente, exercício exclusivo do presente texto e não se origina de procedimentos ou preocupações conscientes dos autores do trabalho. Não pode, portanto, ser tomada a posteriori, com nada que se pareça com uma ‘influência’ ou ‘herança histórica’. Tampouco isso se aplicaria às relações tecidas entre o trabalho apresentado e as considerações de Rosalind Krauss e de Christian Metz.

Entretanto, sustentamos que o exercício de olhar trabalhos experimentais de design por um quadro teórico da história da arte (e não da literatura corrente voltada para as técnicas de UX, predominantemente dedicadas ao azeitamento do fluxo aluno-empresa) pode trazer subsídios para práticas que deveriam, pensamos, permear toda e qualquer aula de projeto em design: trazer à tona, compreender e eventualmente romper com pressupostos, em geral invisíveis. Neste relato demos como exemplo alguns deles, presentes no teatro, no cinema e no vídeo. Mas se cada disciplina de projeto em design performar o mesmo exercício, muitos outros pressupostos, até, com certeza, distantes do mundo das artes e mais próximos do campo do design, poderão ser desenterrados e reconfigurados.

Conclusão

Neste artigo, nos debruçamos sobre dois projetos desenvolvidos por alunos na Escola Superior de Desenho Industrial. São apenas dois, entre muitos projetos que elegem a imagem em movimento como tema ou campo principal de investigação.

Houve algumas intenções deliberadas a priori que acreditamos terem sido satisfatoriamente atingidas. Uma delas se deu pela escolha de trabalhos que, embora inseridos num contexto amplo do que se pode categorizar como imagem em movimento, apresentavam proposta, desenvolvimento e resultado bastante distintos. Portanto, interessa-nos evidenciar as grandes diferenças em suas abordagens, demonstrando um amplo espectro de possibilidades. Outra intenção visava a possibilidade de análises não superficiais destes trabalhos, o que nos levou a uma seleção relativamente limitada, porém significativa.

No primeiro projeto analisado, “Gabi”, descrevemos um processo de trabalho árduo, que, mesmo enfrentando diversos imprevistos, foi plenamente bem sucedido. A pandemia da Covid-19 certamente impactou o projeto e demandou ajustes e extrema capacidade de adaptação. Por outro lado, o envolvimento com um sujeito outro, que não o do designer, mostra de que modo este envolvimento pode influenciar positivamente a construção de uma linguagem original que misturou o gênero documentário com as técnicas de animação. Instado a responder a esses estímulos e demandas exteriores ao âmbito acadêmico, o autor não se furtou a grande comprometimento com seu tema e foi capaz de expressar, pela via das imagens em movimento, um engajamento em que a técnica não se dissocia do que costumamos nomear como ‘conteúdo’.

“Psiquicokinectico”, o segundo projeto, revela múltiplas possibilidades para uma reconfiguração de tradições arraigadas às técnicas do espetáculo, a saber, o teatro, o vídeo e o cinema. Seguindo um caminho projetual não predeterminado, abraçando os acasos advindos do encontro com a técnica, os autores do projeto terminaram por tocar questões caras à discussão sobre a especificidade dos meios nas artes. Aproveitando este tangenciamento, exploramos aqui uma ponte teórica não convencional entre o design da interação e aportes artísticos, com exemplos brasileiros e internacionais. Nesse sentido, propomos também um reposicionamento da imagem em movimento, abrindo possibilidades para um intercâmbio entre as artes e o design.

Os dois casos, gostaríamos de sugerir, mostram, com vigor e pertinência, afinidades e complementaridades entre o pensamento fílmico e o pensamento em design, num âmbito educacional. Em “Gabi”, o design de comunicação associado à imagem em movimento possibilitou o encontro entre o design e a arte de narrar, com o intuito de dar visibilidade a histórias contemporâneas. Este exercício em storytelling fez com que um aluno de design adquirisse as habilidades de um raciocínio projetivo complexo, unindo a criação visual a uma dimensão temporal através de um projeto audiovisual. Além disso, o projeto permitiu a materialização de conteúdos em formato apropriado à circulação nos meios digitais. Em “Psiquicokinectico”, a imagem em movimento deu condições para a geração de um projeto multimídia que foi capaz de expandir, para seus autores, a compreensão do design como aplicável ao planejamento, teste e proposição concreta de experiências multissensoriais.

Em ambos os projetos, foi através da imagem em movimento que originalidades foram conquistadas: “Gabi” por misturar os gêneros da animação e do documentário e “Psiquicokinectico” por criar uma experiência que redistribui e reorganiza os padrões tradicionais do teatro, vídeo e cinema. Ao apresentar a dimensão pedagógica desses projetos, advogamos por uma aproximação maior entre os campos do design e da imagem em movimento, tanto por razões instrumentais evidentes, como por uma abertura à experimentação. Este artigo teve, portanto, a intenção de iniciar (ou retomar) a questão da curricularização da imagem em movimento em programas de ensino de design, apresentando casos que, além do interesse específico que despertam, reforçam a dimensão pedagógica dessa proposição.

Notas

1Os outros dois são Aloísio Magalhães (1927-1982) e Gustavo Goebel Weyne (1933-2012).

2Inicialmente, o curso seriado de design da Escola era integralizado em 4 anos. A partir de 1990, passou a 5 anos, e mais recentemente, praticamente 30 anos depois, retornou aos 4 anos. Durante todo o tempo, o desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso se dá nos 2 últimos semestres da grade curricular.

3O ementário completo da ESDI está disponível, quando da escrita deste texto em: UERJ, ESDI. “Currículo Vigente.” Esdi. Acessado em 18 de abril de 2022. https://www.esdi.uerj.br/graduacao/design/curriculo-vigente.

4Atualmente, a ESDI tem adotado a nomenclatura TCC - Trabalho de Conclusão de Curso, comum a grande parte dos cursos superiores na área de design. Até há bem pouco, este trabalho era chamado de tese.

5As aulas se iniciaram em agosto de 2019, num semestre deslocado em virtude de uma sucessão de eventos como greve, por exemplo, que comprometeram o calendário acadêmico anual, que habitualmente se inicia em março.

6Aqui o aluno faz referência a Jair Bolsonaro e Marcelo Crivella, respectivamente presidente da república do Brasil e prefeito da cidade do Rio de Janeiro, na época do desenvolvimento do trabalho em questão.

7Crítico e teórico de cinema americano, autor de “Introduction to Documentary”, Bloomington, Ind: Indiana Press, 2017, 3ª Ed., traduzido para o português (“Introdução ao documentário”) e publicado pela Editora Papirus, São Paulo, Nichols é reconhecido como o fundador de uma nova abordagem contemporânea do filme documentário.

8Eduardo Coutinho (1933-2014) é considerado por muitos como o maior documentarista da história do cinema do Brasil. Autor de “Cabra marcado para morrer” (1984), “Santo forte” (1999), “Edifício Master” (2002), entre vários. Em 2007, Coutinho havia finalizado “Jogo de Cena”, e a professora Noni Geiger o convidou para uma sessão prévia aberta e gratuita na ESDI, com a presença do diretor e oportunidade para debate a seguir. Essa experiência teve outras edições como a exibição de “Mutum” (2007), de Sandra Kogut, com a presença da co-roteirista Ana Luisa Martins.

9Neste grupo, além de Felipe, outras 3 alunas, Luiza Russo, Mariana Gaspar e Ludmila Lucena realizaram trabalhos em imagem em movimento.

10A experiência de longos anos trabalhando na televisão brasileira me levaram ao aprendizado de alguns protocolos legais como este.

11Para a equalização do som, foi contratado um profissional técnico da área, mas pouco se conseguiu implementar. Para uma compreensão fluente do discurso de Gabi, optou-se pelo uso de legendas de transcrição sincronizadas.

12A tradução literal do inglês seria “cabeças-falantes”, e no jornalismo televisivo, a expressão se refere a repórteres, comentaristas e entrevistados que miram a câmera e são enquadrados em planos fechados.

13“Gabi” traz o insert de um trecho do vídeo-clipe “Poker Face”, quando ela nos conta que assistia o canal VH1, antes da chegada da MTV, quando viu Lady Gaga pela primeira vez. A partir daí, passou a se auto-nomear Gaabs Gaga, e depois, Gabi.

14Todas as figuras de “Gabi” foram fornecidas por seu autor, Felipe Ferreira; as figuras de “Psiquicokinectico” foram fornecidas pelos seus autores, Nickolas Borba, Rebecca Bortolami, Thiago Alves Dias, Carolina Menezes, e Daniel Rocha.

15A obra de Hans Arp (1886-1966), artista plástico franco-alemão, foi uma referência estética para a representação de algo ‘amorfo’.

16Queer é uma palavra em inglês que significa estranho, esquisito entre outros adjetivos da mesma ‘categoria’. Queer tem designado um espectro amplo de identidades e políticas sexuais e/ou de gênero não-normativas.

17“Gabi” é um filme/vídeo colorido e sonoro, com duração 17’14”, e já participou dos seguintes festivais de cinema: seleção oficial Translations Seattle Transgender Film Festival 2021, on-line; seleção oficial 4º Lanterna Mágica Festival Internacional de Animação, on-line; mostra diversidade Cinefestival - Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe, on-line; seleção oficial Amor Es Amor, Festival Internacional de Cinema LGBTQIA+ de Córdoba, on-line; seleção oficial Festival Desenho Vivo, presencial com exibição do filme no CCBB de Brasília.

18Flee em inglês, traduzido do dinamarquês Flugt, significa “escapar”.

19Também ganhou o Grande Prêmio do Júri na categoria World Cinema Documentary, no Festival de Sundance; prêmio de Melhor Longa-metragem, no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy.

20Sob o pseudônimo Amin Nawabi, protagonista desta história verdadeira, é co-autor do roteiro junto a Rasmussen.

21Em: https://europeanfilmawards.eu/en_EN/film/flee.19554; visitado em 15.04.2022 (tradução nossa).

22Alguns exemplos são: o conhecido trabalho de Bill Buxton Sketching User Experiences: Getting the Design Right and the Right Design (Buxton, 2007); “The Definition of User Experience” (Nielsen, 2014); “User Experience and Experience Design” (Hassenzahl, 2014); “Experience Prototyping” (Buchenau, 2000).

23Na ESDI, os professores Denise Filippo e Fernando Reiszel ministraram workshops em linguagens de programação e uso do microcontrolador Arduino, além de acompanharem o desenvolvimento de projetos de interação. Sua valiosa contribuição foi fundamental para a consolidação da área de design de interação na Escola.

24O trabalho foi desenvolvido por Nickolas Borba, Rebecca Bortolami, Thiago Alves Dias, Carolina Menezes, e Daniel Rocha, sob orientação de Marcos Martins e Ricardo Artur Pereira Carvalho. Um video-demo do projeto pode ser visto em: https://vimeo.com/133287859.

25O Kinect é um dispositivo que compreende sensores de movimento e reconhecimento de gestos e voz, lançado pela Microsoft, em 2010, e descontinuado em 2017.

26Na situação espectatorial do cinema, o termo “suspensão de descrença” designa a capacidade do espectador de temporariamente suspender seu conhecimento da ilusão cinematográfica (sabe-se que se assiste a luzes projetadas em um plano) e se engajar na fruição da narrativa como se estivesse assistindo a eventos reais. O termo, entretanto, antecede o cinema, tendo sido cunhado pelo poeta e filósofo Samuel Taylor Coleridge, no início do século XIX. Para um apanhado histórico do termo por diferentes abordagens teóricas, ver “Willing Suspension of Disbelief”, de Anthony J. Ferri (2007).

27Diegesis é um termo que remonta à filosofia grega de Platão e Aristóteles, mas que foi apropriada pelos estudos de cinema para designar de modo amplo tudo aquilo que, no filme, pode auxiliar, de modo denotativo (realista), a narrativa ficcional. Ver “The Imaginary Signifier”, de Christian Metz (Metz, 1981, p. 119, 145).

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