Abstract
In the official video clip of the Qatar World Cup 2022, the concept used for animation was the construction of worlds mimetizing the digital terrain models (DTM) molded from maps or aerial photographs of the various countries’ signatories of the megaevent. In The video clip, the countries are represented through the various flags’ inns on each terrain, which fly, like magic carpets, on a group of barefoot children playing football whose terrain is below the rest. The point of view of children becomes that of a constellation to aim/dream. Among the flags it moves to the terrain with the monument stadium-nest. Among them, as a sun planet, a zoetrope/wheel of life refers to the movements and interstices and possibly refers to the Arab physicist Al Hazen who in the 11th century discusses the time of visual impressions in the retina. From the point of view of the upper terrains the feeling of being surrounded by a sea that mirrors desert, historic buildings, and modern cities of Qatar. The animation uses, through an internal assembly, terrains that function as three-dimensional multi screens, to create a complex composition of an archipelago / constellation.
Keywords: Cartography, Audiovisual, Video clip, Space-time, Multiscreen.
Introdução
O Campeonato Mundial de Futebol da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) acontece a cada 4 anos, desde 1930, exceto em 1942 e 1946, por conta da II Guerra Mundial. Em 2022, o Catar, país peninsular desértico, situado entre o Golfo Pérsico e a Arábia Saudita, que conquistou sua independência em 1971, sedia o evento. Ao longo de cinquenta mil anos, o Catar apresentou sua economia pautada na venda de cavalos e camelos e, então, de pérolas e, no século XX e XXI, de petróleo e gás natural. Num futuro possível de políticas efetivas de descarbonização, a Copa do Mundo funciona como um projetor do seu soft power, da sua influência geopolítica, da sua capacidade de diversificar a economia, seja através do turismo, seja através dos esportes, e de se solidificar “como uma nação reconhecida para além de seu status de petroestado” (Almeida, Pereira, 2022, p.2). O soft power, como detalhado por Nye (2006), será considerado aqui somente em relação aos seus recursos culturais, de comunicação e estratégias diplomáticas, junto com a FIFA, para a realização da divulgação do megaevento esportivo, através de sua mascote, do emblema, do poster, do seu slogan “Now is all” e do troféu (FIFA, 2022, p. 4-5).
O mascote, denominado La’eeb (em árabe laeib significa jogador) e o poster oficial, são representados pelo keffiyeh, lenço usado na cabeça e pescoço, por palestinos, árabes, egípcios, jordanianos, sauditas, sírios, libaneses, para proteção do sol e dos ventos de areia. Como Patrimônio Cultural Intangível, também é símbolo religioso e político, usado por sacerdotes/ governantes sumérios e babilônios na Mesopotâmia desde 3100 a. C (Majid, 2018). Também, símbolo de resistência e protesto contra as invasões militares ao mundo árabe, em especial, a Revolta Árabe, em 1936, a Primeira Intifada (movimento de resistência dos palestinos contra a política de Israel), em 1987, e a Segunda Intifada, em 2000. A figura de Yasser Arafat, presidente da Organização para a Libertação da Palestina, líder da Fatah e Nobel da Paz, sempre vestido com o seu keffiyeh branco e preto (símbolo da liberdade), ainda hoje, parece ser o seu representante mais emblemático politicamente. O lenço quadrado recobrindo o couro cabeludo, caracteriza o poder político e bélico e está relacionado à masculinidade e ao macropoder. Já o logotipo, apresenta como referência a pashmina, feita de lã de cabra do deserto de Ladakh, antigo local de comércio entre Índia, Ásia Central e Tibete, exportado para todo o oriente e, que metaforicamente, estaria envolvendo, acolhendo os torcedores e as trinta e duas seleções do mundo inteiro, carrega também um simbolismo feminino e de micropolítica. Essa pashmina branca com detalhes florais em vermelho, lembra a Primavera Árabe, de 2010, movimento civil popular de resistência aos desmandos e repressões ditatoriais. Esse lenço vai circular pelo mini-mundo construído no videoclipe promocional da Copa que é objeto da análise cartográfica deste trabalho.
Uma Cartografia Espacial Poética
O presente estudo procura refletir sobre o videoclipe (Official Video of the FIFA World Cup Qatar 2022™ theme, 2022) no seu aspecto experimental de desconstrução de uma linguagem audiovisual temporal já estabelecida. Conhecido como imagem-ritmo, o vídeo-animação vai se harmonizar com a música eletrônica instrumental de Zachary Aaron Golden para conectar mundos na realidade de espaços-tempos descontínuos que se sobrepõem e cujos movimentos criam a ilusão de continuidade. O videoclipe se expressa de forma complexa, não-linear, não-narrativa, com conceitos de estratos de espaço e de tempo em fluxo com um enorme poder de síntese. Essa é uma das respostas possíveis para a pergunta realizada por Arlindo Machado, “uma poética, o videoclipe?” (Machado, 1995, p.169), sim, uma cosmopoética, uma
experiência poética: a apreensão do mundo como totalidade viva, a intuição de que todos os elementos que nos cercam nos atravessam e nos compõem (...), se correspondem, se entrelaçam e formam um único cosmos. A cosmopoética (...), uma ecologia dos sentidos e da imagine-ação, (...), tecido de metáforas, com o conjunto de tudo que vibra (Bona, 2020, p. 10-11)
Assim é, no videoclipe, a criança, ao libertar-se do lenço, com um olhar curioso passa a admirar todas as correlações temporais que vão se tecendo entre espaços-mundos que apresentam em comum o fato de terem participado de competições esportivas. Dentro da poética do espaço, Bachelard (1998) apresenta duas possibilidades de projeção da imagem, uma externa, aberta, em sua imensidão e, outra interna, fechada, uma miniatura de mundo. O vídeo hibridiza essas duas projeções. As miniaturas conformam as multitelas tridimensionais que simulam os modelos em perspectiva
conhecidos como Modelos Digitais do Terreno (“Digital Terrain Model” ou DTM), ou Modelos Digitais da Superfície (“Digital Ground Model”, DGM). (...) referência à aquisição, processamento e utilização de dados digitais para a elaboração de modelos que representem, graficamente, o relevo da superfície terrestre. (Aspiazú, Alves e Valente, 1990. p.28)
Essas telas-miniaturas-mundo, simulando terrenos dão um efeito de realidade à animação, com a ilusão referencial de valores e forças condensadas que se encontram dispersas nos espaços, como uma constelação ou um arquipélago, dependendo do ponto de vista, envoltas na imaginação e devaneio que liga e dá sentido a essas moléculas-mundo, ora estrelas, ora ilhas. As constelações, formadas por desenhos advindos de ligações imaginárias entre estrelas são usadas, ainda nos dias de hoje, como orientação, divagação poética e associação entre constelações e ideias (Benjamin, 1984, p.56). Já a imagem-arquipélago representa a diversidade e pluralidade de cada povo na sua capacidade de maritimidade (interação com o meio), insularidade (suas práticas econômicas, sociais e culturais) e ilheidade, (sua representação simbólica) sendo associado também a “processos de descolonização” (Corrêa, 2007, p. 75), visto que, inicialmente, para os colonizadores, toda terra conquistada era uma ilha. As telas-bandeiras-planícies simplificam os Estados-Nação, tapetes voadores mágicos, morada sagrada da fé, dos desejos e aspirações. A montagem espacial realizada com multitelas (split-screen) permite que o espectador realize a sua própria cartografia, cuja direção do olhar implicará em novas configurações expressivas, em “fluir por diferentes estados de atenção e entre vários processos mentais” (LOPES, MONTAÑO, KILPP, 2014, p. 5). O lenço-circuito, entre brechas, na sua dança performática, se apropria da paisagem e intervém no ambiente construído. Essa disposição espacial dos diversos elementos, produz simultaneidades, com efeitos de reflexão e de espelho, passíveis de tradução historiográfica.
Uma Arquitetura temporal cartográfica
A Copa do Mundo realizada a cada quatro anos instrumentaliza um tempo arcaico, cíclico, mensurável, por isso mesmo quantitativo, coletivo e compartilhado de uma manifestação esportiva que se mistura com o tempo qualitativo, percebido, principalmente, no tempo orientado para o futuro, das crianças que jogam futebol de pés descalços, cujos passos, naquele território, levantam ouro em pó, numa trave improvisada e que olham para o céu na expectativa, esperança de um mundo mais festivo e compartilhável. Assim como, se relaciona com o passado, através da memória dos espectadores, quando figura momentos significativos de outras Copas, como os jogadores brasileiros Pelé e Jairzinho, comemorando com um abraço, em 1970, o tricampeonato, com o jogador argentino Maradona, em 1986, no bicampeonato do seu país, com o jogador italiano Fabio Canavao e o alemão Philipp Lahm, em 2006 e 2014, respectivamente, levantando a taça-troféu tetracampeã, em um zootropo, suspenso como um astro-rei, em movimento. Presta tributo assim aos cinco títulos do Brasil, aos quatro títulos da Itália e da Alemanha e aos três títulos da Argentina. O zootropo também nos faz lembrar do físico e matemático árabe Alhazen (965-1040 d.C.), que foi considerado o pai da óptica moderna, com alguns estudos sobre uma “câmara escura” e sobre o tempo da impressão visual na retina
o fenômeno real exigia um agente externo que deveria impressionar o olho do observador, além do que, se o agente fosse muito forte, ele afetaria o órgão do sentido de tal modo, que aquela impressão ainda permaneceria por algum tempo, mesmo após o observador ter fechado os olhos. (Almeida, 2013, p. 18)
O videoclipe realiza uma verdadeira arquitetura temporal, construída “em vários planos, em vários estratos” modificada e contaminada pelos anteriores (Pomian, 1993, p.23) no processo de montagem. O plano inicial das dunas de areia nos diz que o tempo não pode ser aprisionado em ampulhetas, que ele não deve escorrer e sim, fluir no espaço, grãos que se tensionam pela percepção sensível, pela aspiração de mudança, crescimento, amadurecimento e pela memória. Nessa construção, a sobreposição e seleção do tempo quantitativo da Copa roça, se interliga ao tempo histórico do Oriente, em particular, do Catar, nas suas diacronias e sincronias. Koselleck (2006) aponta que o horizonte de expectativa é visto a partir do espaço da experiência, onde acontecimentos passados foram incorporados na lembrança, seja de forma racional, seja de forma inconsciente, seja de forma pessoal ou interpessoal. Esse horizonte, de início vermelho, é solar, mas na maior parte do tempo, dourado. A pashmina, “ouro macio” em persa, jogada no espaço pela criança, se desloca em movimentos sinuosos laterais e, por vezes, ondulatórios, como os de uma serpente, atravessa monumentos e arquiteturas do Catar, assim como, os oito estádios da Copa. Cada um com um significado reforçando a força da memória, da mutabilidade e da transitoriedade das construções. O Estádio 974, feito de contêineres marítimos é desmontável, o Estádio Al Thumama se inspira na gahfiya, touca utilizada pelo menino que joga bola, o Estádio Khalifa International, tem estrutura em dois arcos, o Estádio Ahmad bin Ali, fica ao lado do deserto, o Estádio Al Bayt se inspira nas tendas utilizadas pelos povos nômades da região do Golfo Pérsico, o Estádio Lusail, inspirado nas projeções de luz e sombra das lanternas fanar, o Estádio Al Janoub lembra os veleiros dhow utilizados para a pesca de pérolas, e o Estádio Education City, com padrões geométricos de diamante próprios de certa artesania local. Essas “coisas-do-mundo” conferem “uma dimensão de presença”, de tempo presente (Gumbrecht, 2015, p. 9). Essa serpente-lenço que flutua/voa Entre espaços e entre-tempos se transforma em uma espécie de uróboro, “símbolo da manifestação e da reabsorção cíclica (...) cria o tempo, como a vida em si mesma” (Chevalier, 1990, p. 816). Esse uróboro, ao se retorcer forma o oito, número dos estádios construídos e reformados para a Copa e do equilíbrio entre a tensão do espaço da experiência do Estado-Nação do Catar com uma geografia feita de história de colonizado oriental e o horizonte de expectativa global ocidental simbolizada pelo megaevento esportivo.
A Música, o Tempo, o Espaço e o Fluxo
A música eletrônica, além de uma experiência estética, é também uma presença, uma abertura da linguagem ao mundo montado do videoclipe. A música utiliza instrumentos e ritmos árabes, que com o seu andamento e o seu ostinato, repetição de uma célula rítmica, formam uma paisagem sonora que espacializa o tempo, e propicia sensações estésicas, para além da audição. O som-volume, ao invocar a tradução de estratos culturais ancestrais, através da repetição, gera um tempo que dura e que se faz história. Essa música-instrumento, tem funções encantatórias sobre o espaço por onde flui o lenço-serpente, tornando tangível o que já se encontra ausente e presente o que ainda não é. A música dá sentido e direção ao mapa tridimensional figurado no videoclipe do tempo do “agora para o então” (Appadurai, 2013, p. 292), onde, como diz o slogan, Now is all.
Considerações finais
Através da utilização do método cartográfico foi possível analisar criticamente o videoclipe experimental oficial com o motivo da FIFA World Cup Qatar 2022 nos aspectos concernentes à diversidade, à complexidade, à mobilidade e à subjetivação da imagem e do som, em relação ao tempo-espaço. Foram problematizadas a escala, das miniaturas de mundo à imensidão do espaço; a situação em relação aos espaços-estádios de transitoriedade e os espaços de permanência, representados pela vista aérea do Catar, da sua vida cultural, esportiva e religiosa, da posição de sua população; os deslocamentos compossíveis e longe de toda probabilidade, do país-nômade, que permanecendo no mesmo lugar ainda assim o modifica; os seus limites, sejam os geofísicos representados pelo deserto e o mar, sejam os culturais, construídos pelo o que é vivido e experimentado nas suas dimensões objetivas e subjetivas nos estratos do espaço-tempo e seus fluxos-discursos multidimensionais, suas intermitências e descontinuidades.
Notas Finais
1Doutoranda PPGCINE/UFF, Brasil
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