Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

“Is it you?”: creation for oneself and for others

“É você?”: a criação para si e para os outros

Gregorio Galvão de Albuquerque

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Brasil

Abstract

The present work aims to problematize the “show of the self” in contemporary society, carried out mainly through the imagery representation of oneself in social networks. How do we carry out our representations through images? What do we want with her? Questions that will be discussed with the author Paula Sibilia, the author Benjamin, the British series “Blackmirror”, the film “Pacific” by director Marcelo Pedroso and the film “Blade Runner” by director Ridley Scott. The selection of films is due to the approach to the problem from different angles and contexts. In contemporary society, individual experience becomes primarily “showing life (to others)”, transforming the relationship with the experience of the world. Capturing an image on a summer afternoon is now aimed at exposing that moment and no longer its “aura”.

Keywords: Me show, 1, Social Media, Films, image.

Introdução

“Valorizamos a própria vida em função da capacidade de se tornar, de fato, um verdadeiro filme – ou melhor, um atraente produto transmídia. (SIBILIA, 2016, p.80)”

Na sociedade contemporânea a simples pergunta “é você?” realizada pela personagem Martha no episódio da série Black Mirror “Be right back” pode levar a diversas respostas e problematizações. Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica de ficção científica criada por Charlie Brooker e centrada em temas obscuros e satíricos que examinam a sociedade moderna, particularmente a respeito das consequências imprevistas das novas tecnologias. A tradução do nome é “Espelho Negro” e tem referência as telas dos celulares, reflexo da sociedade contemporânea. A serie não fala somente sobre tecnologia e sim sobre a própria sociedade.

No episódio, Ash namora Martha e é um personagem que usa constantemente as redes sociais. No começo, ele posta em uma rede social sua foto de criança e explica para a esposa que as pessoas irão achar aquela foto engraçada, contudo ele revela posteriormente que aquela foto era bastante triste pois remontava a uma memória que não era engraçada. Assim ele recria uma nova narrativa simbólica para aquela foto diante dos outros, ou seja, aquela foto, sem a memória é somente uma imagem com outra narrativa em um outro contexto.

No quadro do pintor René Magritte “Isto não é um cachimbo” (1928/1929 - Ceci n’est pas une pipe) a imagem evidencia que não é uma realidade, é somente a imagem de um cachimbo. O autor Foucault (1988) discute que mesmo que a imagem seja fidedigna a realidade, o cachimbo da imagem não pode ser o cachimbo da realidade. “Mas talvez a frase se refira precisamente a esse cachimbo desmedido, flutuante, ideal – simples sonho ou ideia de um cachimbo” (p. 13).

No episódio isso é evidenciado através do programa que recria Ash, a partir do conteúdo compartilhado no perfil dele das redes sociais, podendo assim conviver com ele novamente. Contudo, a primeira pergunta de Martha é: “É você? ” E a resposta é “É o falecido Abraham Lincoln. Claro que sou eu. ”

“Claro que sou eu”?

O eu que fala e se mostra incansavelmente nas telas da rede costuma ser tríplice: é ao mesmo tempo autor, narrador e personagem. (SIBILIA, 2016, p.57)

Segundo a autora Paula Sibilia (2016) vivemos um fenômeno contemporâneo de exibição da intimidade. “São novas formas de expressão e comunicação que hoje proliferam – blogs, perfis pessoais nas redes de relacionamento, selfies e vídeos caseiros – devem ser consideradas vidas ou obras? ” (p.55) Postamos tudo ou quase tudo da nossa intimidade pois a seleção que fazemos do que é postado são “enganosas auto ficções, meras mentiras que se fazem passar por pretensas realidades, ou então relatos não-fictícios que preferem explorar a ambiguidade entre um e outro campo.” (p.56)

A indagação, segundo a autora, é se

todas essas palavras e essa enxurrada de imagens não fazem nada mais – e nada menos – do que exibir fielmente a realidade de uma vida nua e crua. Ou se, ao contrário esses relatos criam e expõem diante do público um personagem fictício. (p.56)

Quando se há uma escolha que segue ou não padrões, a ficção se torna realidade até um determinado ponto. No episódio da série Black Mirror, Ash, após ser criado a partir de suas postagens em rede social, responde: “claro que sou eu”. Como não poderia ser já que tudo o que foi postado, foi por ele mesmo, autor, narrador e personagem, pois, “a experiência de si como um eu se deve, em primeiro lugar, à condição de narrador do sujeito: alguém capaz de organizar a sua experiência na primeira pessoa do singular” (SIBILIA, 2016, p.58)

No episódio, o primeiro contato entre o programa Ash e Martha é realizado através de texto, isto é, uma conversa de envio e resposta de textos. Esse é o momento que Martha conta que está gravida e a resposta é “eu queria estar com você agora. ” A presença através de conversa passa a não preencher todas as lacunas para a personagem e por isso seria necessário aumentar a sua presença, ou seja, a experiência de estar com o Ash. Isso seria possível recorrendo a diversas técnicas de criação de si,

tanto as palavras como as imagens que tricotam o minucioso relato autobiográfico cotidiano parecem exalar um poder mágico: não só testemunham, mas também organizam inclusive concedem realidade à própria experiência. (SIBILIA, 2016, p.61)

No caso da história do episódio, seria a necessidade de “conversar de verdade”, via áudio. Nesse momento Martha compartilha com o programa, vídeos íntimos e públicos do casal, como forma de capturar sua voz. Assim que finaliza o processo o programa liga para a personagem:

- É uma puta loucura! Porque posso até falar com você. Eu nem tenho uma boca.
- Isso...
- Isso é....
- Isso é o quê?
- É o tipo de coisa que ele diria.
- Bem, é por isso que eu disse.
(BLACK MIRROR, 2013)

O que acabou tornando a presença mais real foi o acesso a mais vídeos íntimos do casal possibilitando uma maior captura da intimidade e assim projetando no programa uma maior realidade através do som. Em outro momento, Martha grava o som do batimento do coração do bebê para repassar para Ash escutar

Compassando o declínio da cultura letrada como um horizonte de realização tipicamente moderno, sob os impulsos da cultura audiovisual e da sociedade do espetáculo, as velhas exalações de palavras plasmadas em papel parecem ter perdido seu antigo vigo. (SIBILIA, 2016, p.62)

O texto, o som e a imagem levaram a experiência da presença de Ash em maior grau. O próximo “nível” é a produção de um “clone” do corpo, porém a “consciência” continua sendo o mesmo programa que tem como base as postagens em redes sociais. Nesse momento sua presença física é completa, mas a sua forma de pensar e expressar é ainda a partir das redes sociais. Ao ver o “clone” e ter sua percepção e sua experiência visual e sonora, “- você se parece com ele num dia bom. ” (Pois ninguém posta uma foto em um dia ruim ou desarrumado) Martha chora e fala como se Ash estivesse ali, “senti sua falta”, “senti sua falta demais! ”, “eu te amo”. Contudo sua presença é real?

“VOCÊ É NADA MAIS QUE TRAÇOS. NÃO HÁ HISTÓRIA EM VOCÊ. ”

Mais do que um conjunto de imagens, o espetáculo se transformou em nosso modo de vida e nossa visão do mundo, na forma como nos relacionamos um com s outros e na maneira com que o mundo se organiza. (SIBILIA, 2016, p.74)

Depois de ter a experiência da presença de Ash, através do programa, no seu pós morte, Martha começa a estranhá-lo pois ele não era o mesmo de antes, “- é que é um pouco estranho.”. O estranhamento deve-se pela ausência de ações e de respostas de Ash sobre o cotidiano e relações que não se expõe na internet. Como a “consciência” do programa era a partir da sua vida na internet como rede sociais, e-mails, vídeos e imagens, então o que não é experiência de si na vida online, seria na vida real, e por isso o programa não saberia responder? Postamos tudo? As respostas perpassam por conceitos como sociedade do espetáculo, transformações e popularização tecnológicas, e a forma de produção de si diante dos outros.

Capturamos quase tudo e selecionamos ainda mais para mostrar para o outro pois vivemos em uma sociedade que tudo virou espetáculo. Guy Debord (1997) desenvolveu a expressão “sociedade do espetáculo” para caracterizar o tipo de cultura da mídia que estava se desenvolvendo em meados do século XX e que já se mostrava na forma hegemônica.

E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser ... Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade descreve e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado. (FEUERBACH, Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo, apud DEBORD, 1997, p. 13, grifo do autor.)

Para o autor, a raiz do espetáculo “está no terreno da economia que se tornou abundante, e daí vêm os frutos que tendem afinal a dominar o mercado espetacular.” (DEBORD, 1997, p.11), ou seja, o “ser” pré-moderno passou ao “ter” capitalista, típico da modernidade, para chegar ao “parecer” do espetáculo.

O ponto central da sua teoria é a caracterização da alienação como consequência do modo capitalista de organização que assume novas formas e conteúdos e não mais um aspecto somente psicológico individual. “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.” (DEBORD, 1997, p.25). O espetáculo corresponde a uma fabricação concreta da alienação, na perda da unidade do mundo e em uma forma de dominação da burguesia sobre o proletariado. Uma sociedade onde “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens.” (DEBORD, 1997, p. 14)

Para a autora Sibilia (2016), “mais do que um conjunto de imagens, o espetáculo se tornou em se transformou em nosso modo de vida e nossa visão do mundo, na forma como nos relacionamos uns com os outros e na maneira com que o mundo se organiza”. (p.74), ou seja, a sociedade do espetáculo transformou a nossa maneira de experiência de si e do outro na relação com o mundo. O que antes era para ser íntimo e privado, hoje passa a ser produzido para ser exposto. Pois, com

a facilidade técnica que esses dispositivos proporcionam na captação mimética do instante, ainda mais após a popularização dos telefones portáteis munidos dessa função, a câmera serve para documentar o que somos de um modo extremamente realista. Esses aparelhos permitem registrar a própria vida sendo vivida em nesse gesto, oferecem a possibilidade tanto de se ver vivendo (para si) como de se mostrar vivendo (para os outros). (SIBILIA, 2016, p.60)

Contudo quando o objetivo passa a ser prioritariamente o “mostrar vivendo (para os outros) ” a relação com a experiência do mundo se transforma, pois, capturar uma tarde de verão passa a ter como objetivo a exposição desse momento e não mais a sua “aura”. Para o autor Walter Benjamin (1994)

observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho. (BENJAMIN, 1994, p. 101)

Quando essa aura do momento não tem a experiência de si na relação com a sua exposição, quem publica passa a ser um sujeito que “vive a própria vida como um verdadeiro personagem” (SIBILIA, 2016, p.82) porque no momento de uma tarde de verão a imagem produzida passa a ser mais importante que a “aura” do momento. Como consequência disso, a nossa produção de imagens e assim a narrativa sobre nós mesmo se transforma.

O filme Pacific (2009) é um documentário realizado por imagens produzidas por turistas durante sete dias em um cruzeiro para o arquipélago de Fernando de Noronha. No final do percurso, o diretor solicitou as imagens de alguns turistas e resolveu editá-las sem qualquer produção de novas filmagens. O seu objetivo era mostrar qual imagem se os turistas produziram de si mesmo para mostrar para os amigos.

O diretor Marcelo Pedroso solicitou as imagens apenas após o termino do passeio, ou seja, aquelas imagens inicialmente possuíam um registro de recordação pessoal que em alguns casos, após uma seleção, seriam exibidos. Entretanto o que se observa que são imagens que em alguns casos reproduzem determinados padrões, como a cena do Titanic e o famoso baile com o comandante.

Nesse filme é interessante identificar um casal que em um determinado momento gravam cenas como se estivem em algum filme (cabe lembrar que eles não sabiam que iriam participar do documentário). A cena é composta pelo marido que anda pelas mesas do restaurante, encenando que não sabia que estava sendo filmado, pensando e contemplando a janela, para, e senta em um piano e começa a encenar que estava tocando e cantando. Sua mulher coloca a câmera em cima do piano e o abraça. Essa cena demonstra uma narrativa ficcional privada pois os dois estavam encenando para a câmera pessoal, mas as imagens refletem um espetáculo de si, ou seja, eles estavam produzindo uma narrativa ficcional deles, em um primeiro momento, para eles mesmo.

Outro momento do filme é quando o guia fala: “- aqui é só para foto”, ou seja, a aura daquele lugar não existiu, ou seja, uma pobreza da experiência, mas a fotografia sim, pois será exposta ou não. O conceito de pobreza da experiência vem a partir do autor Walter Benjamin que demonstra na contradição da linearidade do progresso racional da história que corresponde a guerras, à destruição e à pobreza da experiência humana. Uma sociedade que atende às necessidades dos estímulos instantâneos do presente, dominado pela mercadoria e submetido à repetição, disfarçada em novidade.

Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela forme, a experiência moral pelos governos. (Benjamin, 1994, p.115).

Benjamin (1994) afirma que os indivíduos que sofreram o impacto da Primeira Guerra Mundial perderam a capacidade de narrar suas experiências. Seus relatos de guerra eram de uma realidade demasiadamente pesada e pobre de se narrar em relação a grandes narrativas transmitidas ao logo da história de geração a geração.

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (Benjamin, 1994, p. 225)

A pobreza desta experiência deve-se ao desenvolvimento da técnica sobre o homem. Para o autor, “uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” (BENJAMIN, 1994, p. 115). Porém a pobreza da experiência impulsiona o indivíduo a criar o novo, a tirar proveito deste ambiente de quase inexperiência.

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. (BENJAMIN, 1994, p.118)

Os indivíduos, aparentemente, não possuem mais tempo ou até mesmo paciência de andar nas ruas das cidades sem destino, observando o seu redor. Benjamin (1989) mostra as transformações ocorridas na cidade de Londres, no século XIX, quando se tornou capital comercial do mundo, concentrando assim milhões de pessoas em um único espaço.

E, no entanto, passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem absolutamente nada em comum, nada a ver uns com os outros, e, no entanto, o único acordo tácito entre eles é o de que cada um conserve o lado da calçada à sua direita, para que ambas as correntes da multidão, de sentidos opostos, não se detenham mutuamente; e, no entanto, não ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se comprimem num espaço reduzido; e mesmo que saibamos que esse isolamento do indivíduo, esse egoísmo tacanho é em toda parte o princípio básico de nossa sociedade hodierna, ele não se revela nenhures tão desavergonhadamente, tão autoconsciente como justamente no tumulto da cidade grande. (Fredrich Engels , 1848, pp. 36-37 apud BENJAMIN, 1989, p.200)

Benjamim (1989) refere-se ao estreitamento da experiência na modernidade, retratado na individualidade das pessoas e não mais na coletividade. Uma transformação que acontece devido a aceleramento do tempo na sociedade urbana, ocasionada também pelos meios públicos de transporte no início do século XIX.

Este isolamento de cada indivíduo em seus interesses privados é consequência da nova formatação dos espaços urbanos, moldados e funcionais adaptados às necessidades da modernidade e da circulação da mercadoria. A transformação da experiência do indivíduo na modernidade é baseada principalmente na sociedade estruturada em função da técnica e não ao contrário.

Qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie (BENJAMIN, 1989, p. 115).

Retornando ao episódio da série do Black Mirror, Martha percebe que o Ash formado pela consciência das postagens da internet não é o mesmo do cotidiano real e percebe seu isolamento quando, principalmente, sua irmã faz uma visita e fala:

- Acho ótimo você seguir em frente.
- O quê?
- Desculpe. Tinha...
- Tinha roupas de homem, sabe?
(BLACK MIRROR, 2013)

Ela percebe que não seguiu em frente porque estava com a presença do Ash, virtual. As falas da personagem são quase sempre no futuro do pretérito (“Ash ficaria assustado. Ele não teria pulado. Ele teria chorado, teria...”), um sentido de futuro, porém com foco no passado. Ou seja, ela sabe que não é ele mas tem a sua presença dele na sua frente.

A fala de Martha para o Ash “-Você é nada mais que traços. Não há história em você” demostra que a cultura digital é repleta de “trash”, ou seja, “pequenos espetáculos descartáveis; de vez em quando, alguma pérola valiosa ou algum entretenimento engenhoso sem maiores ambições, junto a um mar de puras bobagens” (SIBILIA, 2016, p.350). Imagens que são publicadas e possuem 24 horas de existência, depois são descartadas criam uma cultura onde a história e a fotografia ganham outra dimensão e entendimento de memória. Para a autora Sibilia (2016)

não surpreende que os sujeitos contemporâneos adaptem os principais eventos de suas vidas às exigências da câmera, seja de vídeo ou de fotografia, mesmo que o aparelho concreto não seja presente, nunca se sabe se você esta sendo filmado. Assim a espetacularização da intimidade cotidiana tornou-se habitual, com todo um arsenal de técnicas de estilização das experiências de vida e da própria personalidade para ficar bem na foto ou na fita. (p.81)

Diante dessa ausência de história e de pobreza de experiência de Ash, Martha desabafa “- Você não é ele o suficiente! Você não é nada! Nada! ”, “Você é só uma apresentação do que ele fez sem pensar”. Nesse momento ela percebe que ele é o Ash virtual, sem história e construído a partir da espetacularização da sua intimidade. E nesse momento que ela percebe que precisa seguir, porém como fazer isso?

No filme Blade Runner - O Caçador de Androides (1982), o androide Batty encontra com o seu criador e o pede para reparar a sua criação com mais vida, depois de não conseguir, mata seu criador.

- Não é fácil encontrar seu criador
- Não é fácil encontrar o nosso criador.
- O criador pode reparar a sua criação?
- Qual é o problema?
- A morte.
- Quero mais vida...
(BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDROIDES, 1982)

Perto de sua morte, Batty salva o seu próprio caçador, Deckard, como um ato de humanidade. “- Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da costa de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro na Comporta Tannhauser. Todos estes momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer. ” (BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDROIDES, 1982).

No filme o próprio androide se torna humano na sua ação, porém não é o que acontece com Ash. Ele é colocado no sótão de casa e é visitado por sua filha que não sabe que aquele é seu pai e nem ele sabe que aquela é a filha do personagem verdadeiro. “- Oi, Ash.- Oi. A garota do aniversário. ”Como descartar o que nasceu de uma cultura do descartável e do espetáculo, mas se tornou real? Para a autora Sibilia (2016) “a reposta a todas essas questões encerra uma complexidade que excede um simples sim ou não, porque as relações entre verdade e mentira, ficção e realidade, essência e aparência, verdadeiro e falso – que nunca foram simples – também se complicaram.” Ou seja, as relações sociais como conjunto de imagens e o espetáculo ganham novas formas de entendimento e problematização.

Conclusão

Postamos somente o que queremos que seja visto e principalmente mostramos a representação padrão de felicidade. Por que ninguém pública seus defeitos na internet? Como nos olhamos diante dessa exposição das nossas representações? Olhar diante uma camera do celular não é a mesma coisa que se olhar no espelho e ver o que está aparecendo na sua frente. O espelho não mente mas a camêra do celular sim, seja através de filtros ou até do proprio enquadramento que o celular permite.O espelho revela diretamente para quem está vendo, ou seja, você mesmo. Ser visto por você mesmo é mais verdadeiro e dificil do que ser visto por diversas pessoas nas redes sociais. Revela algo que você não vê constantemente, não é visto, ver você mesmo. Nas redes sociais você é uma representação, uma imagem que é vista e consumida por outras pessoas. Você não é algo puramente verdadeiro e sim uma imagem de um outro você que não, necessariamente, é você mas sim o que as outras pessoas querem que você seja. A felicidade é uma imagem que “vende” mais para o outro que para si próprio. Fotografia de pessoas em rede social antes de cometerem suicido mostram uma felicidade que não era real, mas foi compartilhada.

Pensar que somos o que postamos levou a personagem Martha a permitir a presença reinventada de Ash na sua vida. É claro que a falta dele no momento que descobre que está gravida potencializou essa permissão/necessidade, contudo no decorrer do cotidiano ela percebeu que não os Ash não eram a mesma coisa. Possivelmente postamos para nos comunicar e criar uma narrativa de nos mesmo diante do outro, e até mesmo criar nossa imortalidade.

O “querer mais vida” pode significar no futuro um androide em casa com todas as características física, porém na atual sociedade, mais vida seria ser sempre visto e nunca esquecido. No filme “Câmera de madeira” (2004) a personagem Estelle fala “que todos vivemos uma só vida, mas morremos duas vezes. Da primeira vez, é a morte física. A segunda é quando nos esquecem. ” Então não ser esquecido é ser lembrado e imortalizado, não de uma maneira que você seria, mas sim que você é.

Referências Bibliográficas

Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7º ed. São Paulo: Brasiliense, 1994

Benjamin O Flâner. In. ___. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hermerson Alves Baptista. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras escolhidas III. p. 31-65

Debord, Guy. A sociedade de espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

SIBILIA, Paula. O show do eu. 2.ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.

Referências Filmograficas

A CÂMERA DE MADEIRA. Ntshaveni Wa Luruli. França, 2004 (92 minutos)

BLACK MIRROR - Be right back. Direção: Owen Harris. Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. 2013. Série online. (43 minutos)

BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDROIDES. Direção Ridley Scott. Estados Unidos da América. 1982. (117 minutos)

PACIFIC. Direção Marcelo Pedroso. Brasil. Vitrine Filmes. 2009. (73 minutos)