Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

From Literature to Graphic Novel and to Film Language: Transmediality in American Gods, by Neil Gaiman

Da literatura à graphic novel e à linguagem cinematográfica: a transmidialidade em Deuses Americanos, de Neil Gaiman

Márcio Ribeiro

Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil

Abstract

The transmedia narrative, central theme of this article, is part of a doctoral study currently being developed by the author, in the Postgraduate Program in Language and Literature from Mackenzie Presbyterian University, in São Paulo, Brazil. That research has as its object the literary work American Gods, by Neil Gaiman, published in 2001, later adapted to a graphic novel and also presented in the form of a TV series, composed of three seasons, shown in Brazil from 2017 to 2021 by Amazon Prime streaming channel. Based on its transmediality (literature, comic book, and film language) the research aims to investigate the relationships between the textual/literary and graphic/textual languages of the comics, and the moving image (kinetic) of TV and cinema, which in this context and in American Gods characterize a transmedia content. For the development of the proposed research, a bibliographic research is being conducted in order to investigate concepts and authors that allow systematizing the main theories about transmediality.

Keywords: Transmedia, Convergence, Literature, Comics, Cinema.

Introdução

A narrativa transmidiática, ou transmedia storytelling, refere-se a uma nova estética que surge em decorrência da convergência das mídias, tema amplamente discutido por Jenkins (2009). Tal cenário torna-se ainda mais evidente a partir da evolução das T.I.C. (Tecnologias de Informação e Comunicação), em que mídias tradicionais passam a interagir com novos meios e formatos de maneiras cada vez mais complexas. Nesse contexto, a partir das relações entre as linguagens textual/literária, imagética/textuais dos quadrinhos, e da imagem cinética (em movimento) da TV e do cinema, este artigo traz parte de pesquisa que investiga, no caso de Deuses Americanos, como os diferentes formatos midiáticos contribuem para sua caracterização como sendo transmidiática.

Para tanto, está sendo realizada uma pesquisa bibliográfica a fim não só de investigar conceitos e autores que permitam sistematizar as principais teorias sobre a transmidialidade, como também verificar de que modo as teorias investigadas poderão confirmar o caráter transmidiático de Deuses Americanos.

Como ponto de partida, leva-se em conta a evolução das tecnologias de informação e comunicação, baseando-se em Jenkins (2009), que faz uma análise do cenário midiático atual a partir de tal evolução e do comportamento contemporâneo multiplataforma das audiências. Jenkins é fundador e diretor do Programa de Estudos de Mídia Comparada do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e vem estudando há anos tanto as tecnologias de comunicação e sua evolução, quanto o caráter social inerente à tal evolução. Nesse sentido, o estudioso argumenta que as antigas formas de produção e consumo midiático estão evoluindo, e que ao mesmo tempo, novas práticas narrativas estão sendo criadas para entreter e engajar as audiências, fazendo com que novos níveis de participação do público sejam atingidos, formando laços mais fortes das audiências com os conteúdos oferecidos (Jenkins, 2009).

Essa circulação de conteúdos depende em grande parte da participação frequente dos consumidores, os quais estão em busca de novas experiências de entretenimento. Nesse contexto, o conceito de convergência, segundo Jenkins (2009), é definido pelo:

Fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação. (27)

Jenkins (2009) argumenta que tal comportamento demonstra que a convergência midiática é mais do que um processo tecnológico que proporciona múltiplas funções, como num smartphone ou numa smart TV, por exemplo. “A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento” (Jenkins, 2009, 41). Esse processo representa uma transformação cultural, dado que os consumidores são levados a procurar novas informações e conteúdos de mídias dispersos em diferentes formatos.

Dessa forma, formula-se a hipótese de que a transmidialidade em Deuses Americanos se dá na medida em que, além dos conteúdos em diferentes formatos midiáticos utilizados, o ambiente narrativo transmídia surge com a participação ativa do público no consumo e produção de conteúdo por iniciativa dos fãs, quando estes buscam por mais informações sobre a obra. É possível observar isso, por exemplo, nas redes sociais, nas quais criam-se espaços de diálogo entre os usuários que participam e interagem, num ambiente culturalmente participativo, em contraste com noções mais antigas de passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Conforme Jenkins, produtores e consumidores de mídia são participantes “interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo” (Jenkins, 2009, 28).

Sobre a obra Deuses Americanos

Depois de Belas Maldições, Lugar Nenhum e Stardust: o mistério da estrela, Deuses Americanos é o quarto romance escrito por Neil Gaiman. Gaiman, nascido em 1960, é um autor britânico de contos, romances, quadrinhos, novelas gráficas; é também roteirista para teatro e cinema. Lançado em 2001 concomitantemente no Reino Unido e nos Estados Unidos e posteriormente traduzido no Brasil, Deuses Americanos foi o livro que lançou a carreira de Neil Gaiman como escritor para além dos quadrinhos (Matias, 2016). Por ocasião do 10º aniversário de seu lançamento, a obra ganhou uma edição comemorativa, chamada de “texto preferido do autor”, resgatando a versão integral visto que, por ocasião de seu envio ao primeiro editor, havia sido reduzida em dezenas de páginas. No romance, segundo Matias (2016):

Gaiman explora a possibilidade de mitologias acompanharem seus povos em migração. A história se passa na virada do milênio, mas também volta no tempo para mostrar os Estados Unidos em formação, explicando como cada povo e cada tribo deixou a Europa rumo à América levando consigo suas crenças — e como estas foram se transformando no novo continente, que, ao mesmo tempo, via o nascimento de novos deuses. (s.p.)

A história se passa nos Estados Unidos, inspirada em parte pela chegada dos imigrantes ao novo mundo e sua experiência de colonização e pioneirismo naquele país, explorando também a questão das crenças dessas pessoas e seus deuses, já que, mesmo com a mudança para a América, levavam consigo sua religiosidade.

Com o passar do tempo, no entanto, seus descendentes passam a assimilar a cultura americana e os deuses antigos são quase todos esquecidos, dando lugar aos novos deuses da tecnologia, da mídia e do capitalismo. A partir daí, como relatam Vivian e Buzatto (2017), o que está em questão é uma guerra entre divindades antigas e novas: os deuses antigos, que chegaram às terras americanas trazidos pelas crenças daqueles que deixaram seus países de origem, contra os deuses nascidos e criados em solo americano, frutos da cultura estadunidense. Debatem-se, portanto, seres tão diferentes quanto Odin e a Mídia, num conflito de influência que poderá levar a parte derrotada ao esquecimento e à obsolescência.

Na mitologia proposta por Gaiman, os deuses são seres de carne e osso, vivendo em meio às pessoas na sociedade americana e seguindo seus empregos, administrando funerárias, locadoras de vídeo ou dirigindo táxis. Conforme Shapiro (2017)

Como pessoas normais, eles precisam comer e pagar o aluguel. Mas eles também precisam ser reverenciados. Quando as pessoas param de adorá-los completamente, eles desaparecem. (s.p.)

O que irá acontecer ao longo da história é uma tentativa de recrutamento dessas antigas divindades, atualmente vivendo no anonimato por todo os Estados Unidos, para que possam participar no combate aos novos deuses, evidenciados como manifestações da vida e tecnologia modernas tão presentes na sociedade americana: “do cartão de crédito e da estrada, as divindades da internet, telefone, rádio, televisão, plástico e neon, onde os deuses emergem e evoluem com a cultura de seus fiéis” (Wagner, 2011, 474). Gaiman refere-se à “geração dos smartphones”, à “geração Twitter”, à fragmentação das mídias e das audiências, numa tentativa de dar sentido aos Estados Unidos na era pós-11 de setembro.

A inspiração para o romance, segundo Wagner (2017, 469) veio num incidente ocorrido quando Neil Gaiman, voando para a Noruega no verão, fez uma escala na Islândia e por sugestão de seu agente, decidiu fazer uma parada para conhecer Reykjavík. Gaiman já estava há 24 horas sem dormir e, como Wagner (2017) relata:

Querendo dar uma de esperto, ele tentou ficar acordado até escurecer; mas não percebeu que o sol não iria se pôr na Islândia naquela época do ano. Assim, acordado por 36 horas direto, ele começou a explorar Reykjavík. Indo ao escritório de turismo, começou a olhar os pequenos mapas de incursões vikings na nova terra encontrada, e foi assaltado pelo pensamento: “Me pergunto se eles deixaram seus deuses para trás.”. . . Explorando o assunto de pessoas carregando seus deuses consigo para o Novo Mundo, Gaiman também percebeu que ele queria escrever sobre a América e, mais especificamente, sobre a experiência dos imigrantes na América. Escrevendo várias seções rotuladas de “Vindo para a América”, que descreviam lutas de vários estrangeiros tentando se ajustar à vida em solo americano, ele também explorou a forma como a América tende a consumir e digerir outras culturas, transformando-as em algo diferente. (470)

Ocorre que Neil Gaiman é também um imigrante, tendo se estabelecido nos Estados Unidos, tornando-se parte da América, “mas permanecendo afastado, ‘nela, mas não dela’”. Deuses Americanos é um romance que apenas Gaiman poderia ter escrito, “dado seu status de outsider e seu refinado poder de observação” (Wagner, 2017, 470). O romance reflete a fascinação profunda de Gaiman por esse país adotado, mas também reflete sutilmente sua crueldade, estranheza e defeitos. Como Wagner relata (2017), outro detalhe importante sobre Deuses Americanos é:

O fenômeno unicamente americano da atração pela beira da estrada, esses lugares que pontuam o cenário americano, feitos para um só propósito: dar a ilusão de que você viu algo fora do comum. . . É um romance de estrada único (“a América é um romance de estrada enorme”, diz Gaiman, “você tem de entrar num carro e tem de ir para os lugares”) ... É uma América que é ao mesmo tempo familiar e excessivamente estranha. Gaiman descreve a geografia de forma bastante fiel, mas alerta aos leitores de que ele tomou algumas liberdades (“isso é um trabalho de ficção, não um guia de viagem”). (470)

Conforme Gaiman descreve, Deuses Americanos era a sua forma de dizer que precisava demarcar um território maior para poder percorrer (Campbell, 2014). A obra é descrita pelo próprio autor como sendo de fato, o seu primeiro romance, visto que, conforme Wagner (2017):

O amado Belas Maldições foi sua parceria com o antigo amigo Terry Pratchett. Stardust foi escrito como uma história ilustrada, quase no estilo das revistas pulp1, e lançado em série em quatro números, como se fosse uma revista em quadrinhos. Neverwhere. . . foi uma romantização, uma adaptação de um roteiro de televisão. Assim, não tem “realmente a forma de um romance”. (469)

Deuses Americanos explora mais amplamente temas que Gaiman só havia tocado previamente em Sandman, especificamente pensamentos verbalizados pelo personagem Ishter no arco de história Vidas Breves, e o traiçoeiro Loki em Entes Queridos (Wagner, 2017, 469).

Deuses Americanos, além de seu mérito como obra literária, tendo sido bem-visto pela crítica e recebido inúmeros prêmios como Bram Stoker (2001), Hugo (2002), Locus (2002), e Nebula (2003), é um título de grande significado para Gaiman, já que firmou seu status como um escritor importante no campo da fantasia, dando a ele a liberdade de seguir qualquer assunto que achar apropriado (Wagner, 2017).

Deuses Americanos e as narrativas transmidiáticas

Deuses Americanos foi lançado originalmente em 2001, com relançamento em edição comemorativa ampliada em 2011. Em abril de 2011, foi anunciado que a obra se tornaria uma série de televisão, produzida pela empresa de Tom Hanks, a Playtone, sendo que Gaiman escreveria o episódio piloto. A ideia inicial era que a primeira temporada fosse essencialmente o livro, e que novas tramas surgiriam em temporadas posteriores (Campbell, 2014). O desenvolvimento levou anos até sair do papel. Foram produzidas três temporadas exibidas entre 2017 e 2020 pelo serviço de streaming Amazon Prime.

Essa adaptação para a TV foi criada por Brian Fuller e Michael Green, responsáveis também pela realização do episódio piloto. Sua primeira temporada, composta de 8 episódios, foi lançada mundialmente no dia primeiro de maio de 2017.

Logo no início do episódio piloto, o primeiro Deus é apresentado, dentre muitos que aparecerão ao longo da história. Trata-se de um homem preto bem vestido, de terno escuro, usando óculos de haste fina e arredondada num ambiente que lembra o escritório de um notário. Na parede do seu lado esquerdo há um mapa da América do Norte, onde o lado oeste dos Estados Unidos aparece inexplorado. O homem ocupa uma grande mesa, está cercado de muitos livros e tem à sua frente o que parece ser um enorme caderno de histórias. Após mergulhar em tinta a ponta de uma caneta tinteiro, no detalhe de uma página em branco, vê-se surgir a frase “Coming to America” (Vindo para a América), ano 813 d.C., sugerindo a localização e o ano em que história será narrada. Estamos diante de Ibis, também conhecido como Thoth. Na mitologia do Egito antigo, segundo Shapiro (2017), ele era o escriba dos deuses.

Embora os eventos na série de TV Deuses Americanos sejam narrados de maneira cronológica a partir das experiências de seu protagonista, Shadow Moon, o episódio piloto começa de maneira visceral ao apresentar um evento que só será narrado na página 61 do livro homônimo. Essa cena compõe o prólogo da história em que, de acordo com Ibis, a aventura americana de Odin começou, quando seus seguidores vikings partiram da Escandinávia para chegar a uma praia dentro das fronteiras do continente americano, onde um dia será parte da América.

Conforme narrado no início do episódio, as comemorações pela chegada são abruptamente encerradas pois, ao invés de uma terra cheia de riquezas e povos a serem conquistados, ao desembarcarem, deparam-se com uma terra inóspita, hostil, completamente diferente daquela com que haviam sonhado. Quando decidem voltar para a Escandinávia, a total falta de vento os impossibilita de embarcar.

Tal trecho do episódio impressiona, valendo-se dos melhores recursos visuais de que dispõe a linguagem cinematográfica de primeira linha presente na produção da série adaptada da obra de Neil Gaiman. Tais recursos são amplamente utilizados pela série como um todo, contribuindo para a riqueza visual da obra Deuses Americanos.

Quanto às versões em romance gráfico, a primeira publicação em quadrinhos foi lançada em 2017 e faz parte de uma trilogia, cuja última parte saiu em 2020. Cada livro gráfico representa um pedaço do romance. No Brasil, os livros traduzidos começaram a sair em 2018 pela editora Intrínseca 2. O primeiro volume de Deuses Americanos no formato de graphic novel (chamado “Sombras”) foi feito em parceria com Scott Hampton e P. Craig Russell, dois dos quadrinistas mais conceituados da atualidade. Além disso, o volume traz conteúdos extras, como esboços dos quadrinhos e estudos de personagens, layouts originais e também capas de artistas renomados, como Fábio Moon, David Mack, Becky Cloonan e Glenn Fabry. O segundo volume da trilogia (chamado “Ainsel”) foi lançado no Brasil no início de dezembro de 2021, também pela editora Intrínseca 3 com ilustrações de P. Graig Russell e Scott Hampton. A primeira edição conta também com as capas originais da dupla Glenn Fabry e Adam Brown, artes de David Mack e Christian Ward, além de esboços e layouts originais de Scott Hampton.

A trilogia em quadrinhos é uma versão visualmente fascinante do romance original. Ela mescla a escrita rica e complexa de Gaiman com a arte fantástica dos ilustradores, capturando em sua essência a narrativa do autor, contribuindo para a atmosfera e o tom da história ao explorar temas como religião, mitologia, identidade e conflitos de ordem cultural da sociedade americana, proporcionando uma experiência única para os leitores e fãs de Neil Gaiman.

Embora com estilos distintos, os ilustradores P. Craig Russell e Scott Hampton conseguem retratar de maneira hábil os personagens e cenários da trama, conferindo maior expressividade à história a partir de ambientes visualmente mais realistas e outros mais estilizados, dependendo da cena e da ênfase emocional num dado momento de Deuses Americanos.

Tais características da história ficam evidentes a partir do uso, pelos ilustradores, de uma paleta cromática vibrante na qual as cores contribuem para melhor refletir a ambientação dos diferentes cenários da história, a atmosfera dos eventos e o estado de espírito dos personagens, proporcionando uma experiência visual imersiva e envolvente.

O cuidado com os enquadramentos determina o ritmo da história a partir da utilização de painéis de formatos diversos, guiando o olhar do leitor e proporcionando, além de uma leitura mais fluida, uma melhor compreensão da sequência dos eventos e dos focos narrativos que a história apresenta.

Em se tratando da estrutura narrativa, a graphic novel preserva a trama original e os eventos principais do romance de Gaiman. Entretanto, considerando adaptações como essa, há tramas que podem ser simplificadas ou mesmo omitidas em benefício do formato dos quadrinhos, sem que haja prejuízo para a essência da história.

Para os fãs de Neil Gaiman e desse tipo de linguagem, a adaptação para os quadrinhos, além do contato com a literatura do autor, complementa a leitura do texto original, e proporciona também aos leitores uma nova maneira de vivenciar a história criada por Gaiman numa experiência visual mais rica e imersiva.

O importante a se considerar é o fato de que o caráter transmidiático de uma obra como Deuses Americanos se dá não apenas pela iniciativa criativa de seus autores em apresentar diferentes formatos midiáticos, mas também, no outro extremo, pelo comportamento multiplataforma dos fãs que estão não só ávidos pelo consumo desses conteúdos, mas também se manifestam, participam ativamente na busca por mais informações sobre a obra. Nas redes sociais, por exemplo, vê-se com frequência a criação de espaços de diálogo entre os fãs, que interagem num ambiente culturalmente participativo, amplificando o potencial transmidiático da obra.

Em se tratando dos fãs de Deuses Americanos, a autonomia destes pode ser verificada pela criação dos perfis dedicados à série de televisão publicados nas redes sociais, como Facebook e Instagram. Nesse sentido, a expressão “conteúdos transmídias” é empregada, segundo Feitosa (2015):

Para tratar genericamente das mais variadas formas de manifestação resultantes da transmidiação. Podemos falar em conteúdos transmídias televisivos,radiofônicos,cinematográficos etc. Propor uma qualificação dos conteúdos transmídias, incluindo agora na designação a vinculação a uma mídia específica exige uma hierarquização que, ao mesmo tempo que esclarece melhor o sentido da expressão utilizada, permite avançar na conceituação do fenômeno. Essa hierarquização conferida a um determinado meio implica o reconhecimento de que há, na articulação entre mídias e plataformas, uma a partir da qual a ação se articula. Pode-se considerar então que, apesar da integração entre mídias/plataformas estar na base dos fenômenos transmídias, há uma delas que rege as estratégias, ou seja, existe uma mídia a partir da qual se organiza o sentido. É nessa mídia que se desenvolve um texto-base (programas, filmes etc.) que serve igualmente de referência, a partir do qual ocorrem os desdobramentos e articulações. (48)

No âmbito do entretenimento, além de títulos como Deuses Americanos, seriados de TV como Heroes 4, ou franquias como Star Wars 5, Matrix 6 e Harry Potter 7, apenas para citar alguns exemplos, são produtos que, com o passar dos anos, consolidaram-se como projetos transmidiáticos bem-sucedidos, amplamente investigados e apresentados no meio acadêmico. No caso da franquia Matrix, dos irmãos Wachowski, Jenkins define-a como uma narrativa transmidiática na medida em que “se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (Jenkins, 2009, 133). O autor prossegue:

Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo. A compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de experiência que motiva mais consumo. (135)

Em se tratando do caráter transmidiático das obras citadas anteriormente, Scolari (2009) argumenta que a narrativa transmidiática não se refere apenas à adaptação de uma mídia para outra. Segundo o autor:

As diferentes mídias e linguagens participam e contribuem para a construção do mundo narrativo transmídia. Esta dispersão textual é uma das mais importantes fontes de complexidade na cultura popular contemporânea. (2)

A narrativa transmidiática de Deuses Americanos considera a exploração e a expansão do universo do romance em diferentes mídias para além do livro, tais como a série de TV, os quadrinhos, a produção de conteúdo pelos fãs nas redes sociais, entre outros. Tal abordagem transmidiática permite que elementos da história possam ser desenvolvidos e explorados de maneiras diferentes, oferecendo aos fãs uma experiência mais completa e imersiva do universo da obra. É relevante frisar que, independentemente da mídia em que a história é contada, os elementos principais da trama central permanecem consistentes e reconhecíveis pelos fãs da obra, contribuindo para a coesão e continuidade da história em todas as suas manifestações transmidiáticas.

Um outro aspecto a ser considerado refere-se à comunicação de marcas, produtos e serviços que, graças à tecnologia digital, deixa de ser realizada apenas unidirecionalmente por meio das mídias tradicionais e passa a dialogar diretamente com seus públicos em diferentes pontos de contato, fazendo com que a soma total das interações com os clientes possibilite a realização de campanhas com caráter transmidiático, passíveis de maior engajamento e envolvimento. Dessa forma, é possível demonstrar que a transmidialidade se faz presente em diferentes esferas da comunicação, dialogando com a internet, as redes sociais, a literatura, os quadrinhos, os vídeo-games, o cinema; todos os quais se tornam veículos de transmissão de discursos em que, através das trocas de informações, possibilitam a atribuição de significados e a constituição cultural de uma sociedade, por um processo de alteridade.

É importante também observar que, devido ao uso dos meios digitais, a estratégia de transmidialidade tem se tornado uma tendência crescente nos sistemas de comunicação. Destarte, como a comunicação permeia todos os processos de transmissão, recepção e emissão de informação, torna-se fundamental aprofundar os estudos transmidiáticos, pois eles ocuparão cada vez mais um lugar de destaque como um fenômeno que influenciará a constituição da identidade dos sujeitos da sociedade contemporânea.

Ao concluir seu artigo, Scolari (2009) sugere que existem várias linhas possíveis para mais trabalhos teóricos nesse campo. Consoante o autor:

Pesquisas futuras neste âmbito devem refinar a definição de narrativa transmidiática e analisar mais experiências para estabelecer as propriedades, limites e possibilidades desse tipo específico de estrutura narrativa. (16)

Afinal, a comunicação está presente em todas as áreas do conhecimento humano, seja relacionada ao uso das linguagens, à formação do sujeito através da educação, no registro como memória sonora, visual ou textual; enfim, o processo de comunicação é o que possibilita a constituição de grupos humanos comuns, comunidades e a sociedade como um todo.

O fato é que se está diante de um cenário em que há uma mudança de paradigma pela qual passam os mercados midiáticos em que, a partir da revolução digital em curso, o pensamento em torno da substituição de mídias antigas por novas dá lugar à interação dessas mesmas mídias, de formas cada vez mais complexas. Nesse caso, a convergência a que Jenkins (2009) se refere altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. Conforme Jenkins (2009) argumenta, cada vez mais líderes da indústria midiática estão retornando à convergência como uma forma de encontrar sentido, num momento de grandes transformações e, assim, assumindo novos significados. É a partir desses novos significados que a narrativa transmidiática se potencializa como uma nova estética que surge em resposta à convergência das mídias e pode se materializar tanto no mercado publicitário quanto no mercado editorial, considerando seu caráter inovador de geração de atenção e engajamento, seja na criação de campanhas publicitárias ou em novos produtos editoriais.

No tocante aos universos narrativos transmidiáticos, Ryan (2013) afirma que:

a noção de universo narrativo é central para o fenômeno da narrativa transmídia, já que é ele quem amarra os vários textos do sistema. A habilidade de criar um universo, ou mais precisamente, a habilidade de inspirar a representação mental de um universo é a condição primária para um texto ser considerado uma narrativa. Isso nos leva à questão: o que é um universo? O universo narrativo é um conceito que se faz sobretudo por senso intuitivo, mas é muito difícil defini-lo com rigor teórico. Universo [world] sugere um espaço, mas narrativa [story] é uma sequência de acontecimentos que se desenvolve no tempo. Se concebermos os universos narrativos como representações mentais construídas ao longo de uma leitura (visão, jogo etc.) de um texto narrativo, eles não são recipientes estáticos para os objetos mencionados numa narrativa, mas sobretudo modelos dinâmicos de situações em desenvolvimento (98)

Outro autor que está sendo base para a pesquisa mais ampla é Castells, a partir de obras como A Sociedade em Rede (Castells, 2020) – na qual o autor argumenta que a tecnologia da comunicação tem o poder de moldar um determinado ambiente comunicativo com consequências importantes para o processo de transformação social. Em O Poder da Comunicação (Castells, 2019), por sua vez, o autor aborda temas como a segmentação, customização e diversificação de mercados de mídia com ênfase na identificação cultural do público. Para elaborar tais questões, Castells refere-se também à transformação tecnológica, baseada na digitalização da comunicação, nas redes de computadores e sua maior capacidade de transmissão de conteúdos. O autor também considera que quanto maior for a autonomia dada aos usuários pelas tecnologias de comunicação, maiores serão as chances de que novos valores e novos interesses surjam nessa nova esfera comunicacional, aumentando as oportunidades de diálogo dos produtores midiáticos e seus públicos de interesse.

Considerando o caráter transmidiático de Deuses Americanos, Manovich também está sendo estudado a partir de sua obra El Lenguage de los Nuevos Medios de Comunicación (2005), na qual traça paralelos entre a história do cinema e a das novas mídias, o cinema digital, a tela e a edição, os elos históricos entre o cinema de vanguarda e as novas mídias.

Conclusão

Cada vez mais as narrativas estão se tornando aptas a construir diferentes universos, à medida que seus autores criam ambientes que não se esgotam numa única obra, ou mesmo em uma única mídia. Os diferentes universos criados são maiores do que as mídias em si, em que a participação dos fãs, por exemplo, contribui para a expansão desses universos em diferentes direções, com múltiplos cenários, múltiplos personagens, múltiplas histórias e múltiplas mídias em múltiplos formatos.

Esse impulso transmidiático encontra-se no centro do que Jenkins (2009) denominou como cultura da convergência, na qual múltiplos conteúdos de uma mesma obra, em diferentes formatos, tornam a experiência de consumo desses conteúdos ainda mais satisfatória e muito mais envolvente. As audiências, de maneira espontânea, engajam-se e vão em busca de informações, compartilhando-as nas redes sociais, fazendo conexões entre os diferentes textos em uma mesma franquia, produzindo elas mesmas novos conteúdos.

Tal cenário é o que se está pesquisando na investigação sobre a obra Deuses Americanos, conforme aqui apresentado.

É importante considerar que cada mídia utilizada na construção de uma narrativa transmidiática em Deuses Americanos tem características próprias e possibilidades únicas. No romance original, Neil Gaiman tem espaço para explorar detalhes complexos da história e mergulhar profundamente nos pensamentos e emoções dos personagens. Já a série de TV, entretanto, usa elementos visuais e narrativos para criar uma atmosfera visualmente envolvente e dramática. Os quadrinhos, por sua vez, apresentam a história de forma graficamente impactante, considerando a linguagem e os recursos visuais únicos dessa mídia. Os fãs da obra, por outro lado, têm a oportunidade de se envolver e interagir de maneira mais completa com o universo da história em diferentes mídias e formatos e participar de maneira ativa na criação de conteúdos compartilhados nas redes sociais, eventos ao vivo e outras atividades relacionadas à obra em questão, proporcionando novas oportunidades de envolvimento com a história.

Notas finais

1As revistas pulp eram revistas de ficção baratas publicadas de 1896 até o final dos anos 1950. O termo «polpa» deriva do papel barato de polpa de madeira em que as revistas eram impressas. As polpas deram origem ao termo ficção polpa (pulp fiction) em referência à literatura comum e de baixa qualidade. https://en.wikipedia.org/wiki/Pulp_magazine. Acedido em 04/11/2022.

2https://www.intrinseca.com.br/blog/2018/03/deuses-americ anos-ganha-versao-em-quadrinhos/ Acedido em 22/11/2023.

3https://www.intrinseca.com.br/livro/1119/ Acedido em 03/03/23.

4https://en.wikipedia.org/wiki/Heroes_(American_TV_series) Acedido em 28/10/2022.

5https://en.wikipedia.org/wiki/Star_Wars/ Acedido em 28/10/2022.

6https://en.wikipedia.org/wiki/The_Matrix/ Acedido em 29/10/2022.

7https://en.wikipedia.org/wiki/Harry_Potter/ Acedido em 30/10/2022.

Bibliografia

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