Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

From conception to implementation: How the ‘Cinema Without Conflict Showcase’ inspired change in Azorean schools

Da conceção à implementação: Como a ‘Mostra Cinema Sem Conflitos’ inspirou a mudança nas escolas Açorianas

Ricardo Braga Silva

Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, ESPP, Portugal

José Alberto Rodrigues

ATE - Associação dos Trabalhadores da Educação

Ivan Roberto Gouveia

Universidade de Évora, ECS Portugal

Abstract

This paper reports on the emergence of the ‘Cinema Without Conflict Showcase’ (MCSC), which has already had two editions in 2021 and 2022. MCSC is a film showcase focused on conflict prevention and mediation in school environments. It is aimed at students between the ages of 12 and 18. The event, with free admission, has as its main objective to promote reflection on essential issues of coexistence in society. MCSC has a scientific research component, through the study of the issues that most affect young people today in schools. As a result, the themes are constantly changing and have so far covered: Environment, Love and Sexuality, Bullying, Social Dilemmas, Mental Illness, Drugs, Family, Gender, Racism, Interpersonal Relationships, Religion and Culture, and Violence. MCSC encourages the participation of all school communities in the best cultural facilities in the Azorean islands, promoting cultural inclusion and the democratic access to art. It also emphasizes the importance of discussion sessions moderated by experts in psychology and pedagogy, as they contribute significantly to working on the main areas of the National Strategy for Citizenship Education. The curation process and film selection will also be analyzed, taking into consideration criteria such as accessibility, duration, message, artistic quality, and universality. The future objectives of MCSC will be addressed, which include inviting film directors to participate, promoting a artistic exchange, but, above all, opening the possibility for dialogue with young people, explaining their motivations, a relevant aspect in the formation of future conscious and critical citizens.

Keywords: Cinema showcase, Schools, Students, Conflict Mediation, Citizenship.

Introdução

A Mostra Cinema Sem Conflitos (MCSC) destaca-se como um exemplo notável, promovendo uma intersecção perfeita entre cinema e educação no arquipélago dos Açores, em Portugal. Com duas edições já realizadas em 2021 e 2022, e integralmente apoiado pelo Governo dos Açores, o presente artigo propõe-se a analisar retrospetivamente o percurso da MCSC, desde a sua conceção até à sua implementação, enfatizando a forma como esta iniciativa inspirou mudanças significativas nas escolas açorianas. A MCSC estabelece-se como um evento cinematográfico cuja principal finalidade é a prevenção e mediação de conflitos em ambientes escolares, utilizando o cinema como ferramenta pedagógica multifacetada. Neste artigo, o conceito de cinema é entendido como uma experiência específica que requer certas condições para ser designada como tal. Assim, a própria designação de cinema só se justifica quando certos requisitos são cumpridos (Bellour, Radner, and Fox 2018). Entre estes, incluem-se a projeção numa sala escura, a visualização dentro de um período de tempo estabelecido, e a experiência coletiva do público. Estes requisitos, que formam a base da experiência tradicional do cinema (Beugnet and Oever 2018, 249), foram integralmente cumpridos na conceção da MCSC, não se restringindo apenas à teoria mais simples da prática de criar imagens com movimento (Carroll 2008, 75–79).

Conceção e implementação da Mostra Cinema Sem Conflitos no arquipélago dos Açores

A MCSC representa uma iniciativa educativa inovadora, que surgiu no contexto de uma sociedade em reconstrução após a pandemia da COVID-19. Este projeto foi concebido com o intuito de promover a interação face-a-face, em ambientes presenciais, de comunidades educativas que se viram distanciadas durante o extenso período de confinamento, apelando ao conceito de “cinemoterapia” (Geller 2020). Dado que o público-alvo da MCSC são estudantes entre os 12 e os 18 anos de idade, faixas etárias que correspondem ao 3º ciclo do ensino básico e ao ensino secundário, segundo a organização do sistema educativo português, o evento foi visto como uma oportunidade ímpar para restabelecer as ligações das comunidades educativas em contextos presenciais. A MCSC pressupõe total acessibilidade ao garantir o livre acesso e promovendo uma organização dinâmica das suas sessões, assegurando assim que todos os interessados possam participar nas mesmas. Neste contexto, os professores assumem um papel indispensável, não apenas ao inscreverem as suas turmas no evento, mas também ao acolherem o desafio pessoal de se aprimorarem enquanto professores-mediadores.

Figura 1 - Vista interior de um auditório onde decorreu a Mostra Cinema Sem Conflitos em 2022. Autor: Ricardo Braga Silva

A estrutura concetual da MCSC está ancorada numa tríade que engloba o cinema, a mediação de conflitos e a ampla participação dos estudantes. No centro desta tríade, os professores atuam como mediadores, desempenhando um papel fundamental na ligação entre os estudantes e os temas apresentados através dos filmes exibidos. Este papel mediador é complementado pela intervenção dos psicólogos escolares, cuja contribuição permite um acompanhamento mais personalizado e profundo dos estudantes que assim o necessitem, sobretudo no período de reflexão sobre os temas abordados (Costa 2017). O conceito inovador da MCSC é incentivar que todos os professores assumam este papel de mediador, permitindo que a energia e o impacto da experiência cinematográfica se estendam ao longo de todo o ano letivo. O objetivo é promover reflexão e sensibilização sobre as questões fundamentais da convivência em sociedade. Neste campo, é imperativo ter em conta a distinção entre a realidade social e a realidade cinematográfica (Wejbert-wąsiewicz 2020), no entanto, a potencialidade imagética induzida é vantajosa e pode ser profundamente explorada em contextos educativos. Note-se que a maioria dos filmes e respetivos guiões se baseiam na existência de um conflito ou problema inicial que tem de ser resolvido. Com uma componente de investigação científica, a MCSC procura assim tratar diretamente os problemas que mais afetam os jovens no seu ambiente escolar atual, através da análise de documentos e relatórios anuais dos contextos escolares onde o evento é realizado anualmente. Isso é conseguido, segundo o pensamento de Hernández (no prelo) através da seleção e exibição de filmes que levem os alunos a pensar sobre “aquilo que vemos de nós mesmos nestas imagens” (citado em Valle 2011, 48). Em síntese, o objetivo é utilizar situações fictícias como estímulo para que os alunos reflitam sobre a sua realidade e os obstáculos do quotidiano, fornecendo-lhes as ferramentas necessárias para gerirem eficazmente os seus problemas. Este método pode também incutir padrões de pensamento ou de ação, preparando-os para enfrentar desafios semelhantes que possam surgir no futuro, atuando assim no campo da prevenção. Em última análise, a capacidade de atingir este nível profundo de reflexão (Tryon 2013, 180), muitas vezes difícil de alcançar apenas no ambiente escolar, é o que define o sucesso da MCSC. Assim, as temáticas abordadas na MCSC são dinâmicas e incluíram até ao momento questões como: ambiente; amor e sexualidade; bullying; dilemas sociais; doenças mentais; drogas; família; género; racismo; relações interpessoais; religião e cultura; violência. O evento é realizado em parceria com as melhores instalações culturais dos Açores, teatros e auditórios, incentivando a participação de todas as comunidades escolares e fomentando a inclusão e o livre acesso à cultura. Após cada sessão, é estimulada uma discussão, orientada por especialistas em psicologia e pedagogia. Este, é um momento decisivo, dado que por um lado permite trabalhar de forma significativa as áreas fulcrais da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, em Portugal, e, adicionalmente, proporcionar a oportunidade de abordar diretamente as inquietações e idiossincrasias (Fantin 2006) trazidas a debate pelos alunos presentes em cada sessão.

A dupla função dos equipamentos culturais

Os equipamentos culturais parceiros desempenham um papel essencial na MCSC. Estes espaços, que incluem auditórios e teatros, são adequados para a projeção cinematográfica, proporcionando um ambiente propício à imersão no conteúdo dos filmes exibidos. As suas características técnicas, nomeadamente a qualidade da imagem e do som, são vitais para garantir uma experiência cinematográfica autêntica (Baranowski and Hecht 2014). A importância da acústica numa sala de projeção é indiscutível. Na ausência de um sistema sonoro de alta qualidade, as nuances da banda sonora de um filme podem ficar impercetíveis (Carroll 2008, 31; Kuhn and Schmidt 2014), comprometendo assim o envolvimento integral dos estudantes com o material fílmico em exibição (Persson 2003). Da mesma forma, a qualidade da imagem é fundamental para que os estudantes possam apreciar plenamente os elementos visuais dos filmes, o que se traduz num envolvimento sensorial (Filimowicz and Tzankova 2020, 70) potenciado pelos meios existentes. Além disso, a experiência coletiva de assistir a um filme num ambiente de teatro ou auditório é significativamente diferente da de assistir a um vídeo numa sala de aula comum. O ambiente de uma sala de cinema, escuro e focado, incentiva um nível de atenção e foco que pode ser difícil de replicar num contexto escolar. Esta experiência compartilhada pode gerar uma sensação de coesão e compreensão mútua entre os estudantes, à medida que reagem em conjunto ao filme. Por fim, os espaços culturais também oferecem a oportunidade para os estudantes se familiarizarem com ambientes culturais públicos, que, em muitos casos não fazem parte da sua experiência quotidiana familiar. Ao assistir a filmes em auditórios ou teatros, os estudantes podem começar a ver esses espaços como locais de aprendizagem e descoberta, o que pode incentivar a sua participação futura em atividades culturais. Os espaços culturais desempenham assim um papel vital no sucesso da MCSC, pois oferecem uma capacidade substancialmente maior do que a generalidade dos auditórios escolares. Isso permite uma maior participação simultânea e, consequentemente, um impacto educacional mais amplo. O exemplo do Teatro Micaelense, situado em Ponta Delgada, é elucidativo, com uma capacidade para acolher até 745 espectadores.

Figura 2 - Vista interior do Teatro Micaelense, no início de uma sessão, dia 6 de outubro de 2022. Autor: Fernando Resende

Esta infraestrutura, para além da sua capacidade, proporciona também uma experiência única de imersão e qualidade técnica, fundamentais para o cumprimento dos objetivos da MCSC.

Figura 3 - Vista exterior do Teatro Micaelense no final de uma sessão, dia 6 de outubro de 2022. Autor: Fernando Resende

Em resumo, os equipamentos culturais parceiros da MCSC não são apenas locais de exibição de filmes, mas também espaços de aprendizagem e reflexão, onde a experiência cinematográfica é potencializada pelas distintas condições técnicas (Chion 1994) e pelo ambiente ímpar que proporcionam.

O processo de seleção anual dos filmes

O processo de curadoria e seleção anual de filmes da MCSC é feito com meticulosidade, alinhado com a missão de fomentar a reflexão crítica dos jovens através de filmes interpretáveis em diversos níveis. A filosofia de curadoria da MCSC não é um processo antidemocrático ou reservado a uma elite. Antes pelo contrário, é um gesto de generosidade, um veículo para partilhar o que inspira e entusiasma (Scorsese 2021, 3) a sua equipa de profissionais. Uma condição essencial para a escolha dos filmes é a sua acessibilidade em plataformas gratuitas online, sendo posteriormente divulgados na página oficial da MCSC, cinemasemconflitos.pt. Este procedimento permite que psicólogos, docentes ou outros técnicos escolares prossigam com o debate em sala de aula, promovendo a interdisciplinaridade, a discussão entre alunos e a exploração profunda dos temas. Além disso, possibilita a visualização para estudantes que não puderam assistir ao evento presencialmente. Assim, os principais critérios estabelecidos para a seleção anual dos filmes são: Acessibilidade, que implica a possibilidade de visualização numa plataforma livre e contacto direto com o realizador para obter a sua permissão de exibição pública; Duração, com preferência para curtas-metragens (Núñez-Gómez, Álvarez-Flores, and Cutillas-Navarro 2020) com menos de 10 minutos de duração; Mensagem, que deve ser direta e de fácil compreensão, considerando o público-alvo; Qualidade Artística, que leva em conta a conceção fílmica e as técnicas de animação utilizadas; Universalidade, optando-se preferencialmente por obras com escassos diálogos e que representem uma diversidade de contextos socioculturais, abrangendo um público com diferentes níveis de conhecimento (Mak and Hutton 2014, 387). Esta opção permite evitar barreiras linguísticas e proporciona uma maior inclusão de diferentes realidades, promovendo a interpretação e reflexão sob múltiplas perspetivas. Para que um filme seja selecionado, é necessário que ele cumpra todos os cinco critérios simultaneamente, sem uma hierarquia específica entre eles. Adicionalmente, a seleção de um filme requer sempre a autorização escrita do autor original ou do produtor, comprovando a posse dos direitos da obra e devida aceitação da exibição pública da mesma.

Figura 4 - Cartaz oficial da Mostra Cinema Sem Conflitos em 2022

Os temas da Mostra Cinema Sem Conflitos

A seleção dos temas abordados na MCSC é uma tarefa determinante, realizada graças à colaboração de diversos intervenientes educativos, entre eles professores, psicólogos escolares e consultores pedagógicos. Estes temas são identificados a partir de necessidades reportadas em diversos meios, bem como validados através de projetos educativos de escolas e outros documentos oficias publicados anualmente pelas instituições educativas da região. Consequentemente, as temáticas exploradas representam tanto os desafios e questões urgentes na vida dos jovens estudantes, quanto a necessidade de prover os docentes com conteúdos pertinentes aos currículos escolares e áreas da cidadania (Guerreiro 2021):

Ambiente

As questões ambientais são essenciais na atualidade, destacando-se o impacto nocivo das atividades humanas no meio ambiente. A MCSC visa promover a consciência e responsabilidade ambiental dos estudantes, incentivando-os a adotar comportamentos sustentáveis para o meio ambiente e os animais.

Amor e Sexualidade

O amor, uma emoção profunda e multifacetada, juntamente com a sexualidade, é decisiva para a identidade de cada indivíduo. Explorar estes temas proporciona aos jovens uma compreensão mais abrangente das relações interpessoais e do respeito pela diversidade sexual.

Bullying

O bullying, um comportamento intencional e prejudicial, tem um impacto significativamente negativo nos estudantes. A MCSC aborda este tema recorrentemente, procurando prevenir e combater estes comportamentos, promovendo ambientes escolares e online (cyberbullying) mais seguros e inclusivos.

Dilemas Sociais

Estes dilemas representam o conflito entre interesses individuais e coletivos. A meta passa por ajudar os jovens a entender e a navegar por estes desafios, desenvolvendo o pensamento crítico e a responsabilidade social.

Doenças Mentais

As doenças mentais têm-se tornado cada vez mais evidentes, particularmente após a pandemia. A MCSC procura desmistificar a narrativa estigmatizante, promovendo a compreensão, a empatia e a importância do diagnóstico e tratamento precoce. A compreensão e aceitação são a essência da harmonia humana.

Drogas

O consumo de drogas e bebidas alcoólicas entre adolescentes é uma questão crítica, associada a problemas de saúde e conflitos sociais. A abordagem a este tema visa a prevenção e o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre as consequências do abuso dessas substâncias.

Emoções

Durante a adolescência, os jovens experimentam uma variedade de emoções. A seleção de filmes da MCSC ajuda-os a reconhecer, aceitar e gerir estas emoções, promovendo o desenvolvimento emocional saudável, aspeto que está cada vez mais em foco no meio escolar.

Família

A conceção de família tem-se diversificado ao longo do tempo. A MCSC explora este tema, ajudando os jovens a compreender e valorizar a diversidade das estruturas familiares.

Género

A conceção de género, antes restrita ao masculino e feminino, tem evoluído graças aos avanços das questões LGBTQIA+, abrindo caminho para uma multiplicidade de identidades de género. O foco é promover o respeito pela diversidade de género e a defesa dos valores da igualdade.

Racismo

O racismo é uma forma de preconceito e discriminação baseada em diferenças biológicas. A MCSC procura combater o racismo, a xenofobia e todas as manifestações de discriminação étnico-racial. O valor base passa por promover a equidade racial e a inclusão.

Relações Interpessoais

As relações interpessoais, que ocorrem em diversos contextos do quotidiano, são essenciais para o desenvolvimento dos jovens. A seleção de filmes, ajuda os estudantes a desenvolver habilidades de relacionamento saudáveis e eficazes, colocando muitas situações em análise e reflexão.

Religião e Cultura

A religião e a cultura estão intimamente entrelaçadas, cada uma refletindo e influenciando a outra. A MCSC explora este tema com o intento de ajudar os jovens a entender a diversidade cultural e religiosa, a desenvolver o respeito mútuo e a valorizar a identidade cultural de cada um.

Violência

A violência manifesta-se em várias formas, sendo a física e a verbal as mais prevalentes em ambientes escolares. A violência física, evidente nos comportamentos agressivos e a violência verbal, que se manifesta através de insultos, humilhações ou qualquer forma de degradação verbal, são problemas graves que afetam muitos jovens. Um objetivo é promover a consciência sobre as diferentes facetas da violência, encorajar o diálogo e ajudar os jovens a identificar e responder adequadamente quando se encontram perante tais situações.

A relevância dos temas para o público escolar

Após cada sessão, é proposto o preenchimento de um breve inquérito online, acessível através de um código QR projetado na tela, com o intuito de gerar dados empíricos, mantendo totalmente o anonimato dos participantes. Esta recolha de dados visa, simultaneamente, proporcionar às comunidades educativas que participam nos eventos uma perspetiva local e objetiva sobre os desafios que os jovens enfrentam no seu quotidiano (Juan Carlos Torrego Seijo (Coordenador) 2003, 121). Através desta metodologia, tem sido possível avaliar as temáticas de maior impacto a par de muitos outros aspetos dos domínios respeitantes às ciências da educação, ciências da comunicação e psicologia. Estes resultados baseiam-se na análise de 696 respostas válidas (N=696) e são referentes ao ano de 2022.

Tabela 1 - Temas considerados mais importantes para os inquiridos.

A Tabela 1 evidencia as preocupações centrais dos alunos das ilhas dos Açores, com ênfase em questões de “Amor e Sexualidade”, “Bullying” e “Drogas”, que perfazem 13,88%, 12,46% e 11,84% das respostas, respetivamente. Esta distribuição sinaliza a relevância de temas ligados a relações interpessoais, conflitos sociais e problemas de dependências no contexto estudantil açoriano.

A Importância das sessões de debate na MCSC

As sessões de debate na MCSC desempenham um papel muito importante no aprofundamento da compreensão e reflexão dos estudantes acerca dos temas apresentados nos filmes. Estes momentos, moderados por profissionais especializados em psicologia e pedagogia, proporcionam uma oportunidade para os jovens discutirem e questionarem as ações retratadas nos filmes, permitindo a construção de um entendimento mais complexo e crítico. Além disso, estes debates estão alinhados com os principais domínios da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania em Portugal, designadamente: No primeiro grupo, temas como Educação Ambiental, Educação Intercultural, Educação para a Igualdade de Género, Desenvolvimento Sustentável, Direitos Humanos, Educação para a Saúde e Prevenção de Violência são abordados; O segundo grupo foca-se em questões de Sexualidade, Risco e Media; O terceiro grupo incide na Educação para Segurança, Defesa e Paz. Desta forma, as sessões de debate da MCSC contribuem significativamente para a formação de jovens conscientes e críticos, capazes de enfrentar os desafios da sociedade atual com maior entendimento, sensibilidade e capacidades mediadoras.

Figura 5 - Momento de debate no final de uma sessão da Mostra Cinema Sem Conflitos em 2022. Autor: Ricardo Braga Silva

Testemunhos dos profissionais envolvidos

Testemunho de Paulo Miguel Martins, moderador principal da Mostra Cinema Sem Conflitos:

Os filmes selecionados pelo “Cinema Sem Conflitos” interpelam mesmo a audiência pois falam por si. Permitem vários níveis de leitura e interpretação aos jovens de diversas idades que assim “apreendem” aspetos multifacetados da mensagem. Isso torna-se evidente nas perguntas que os estudantes colocam depois no debate ao final de cada sessão. São perguntas genuínas, de quem quer aprofundar uma questão que os sensibiliza e que aproveita a sessão de cinema para “lançar a ponte” ao moderador, mas também ao professor que acompanha a sua turma... Por isso, estes filmes conseguem ir ao encontro do outro numa atitude inclusiva, de escuta e diálogo, onde eles amadurecem a sua personalidade, de modo a tornarem-se pessoas conscientes do seu papel para consigo próprios e para os outros, como bons cidadãos numa sociedade em mudança… Há um outro aspeto importante: estes filmes proporcionam aos professores um novo “ganhar ânimo”, abrindo horizontes e perspetivas para enfrentarem as dificuldades desta profissão tão desgastada e desvalorizada.

Testemunho de Cristina Vilaça, psicóloga escolar e moderadora da Mostra Cinema Sem Conflitos:

As experiências destes dois anos de projeto mostram-nos a forma como a população escolar sente e verbaliza as suas opiniões. Apresentam questões e dúvidas relativas aos temas tratados que varia não apenas em função da idade e ciclo de ensino, mas também de ilha para ilha e mesmo dos concelhos rurais para os urbanos. A Mostra Cinema sem Conflitos pretende não apenas proporcionar um momento de reflexão alicerçado em curtas metragens de animação sobre temas atuais, centrados na pessoa e no viver em sociedade, mas também constituir-se como uma ferramenta útil aos docentes e psicólogos escolares. Além disso, os filmes ficam disponíveis para reprodução posterior em sala de aula, para trabalhar sobre os temas em causa. Somos um arquipélago, logo, nove realidades diferentes, pelo que estender a Mostra Cinema sem Conflitos a todas as ilhas dos Açores permitiria uma maior e melhor abordagem aos temas que preocupam os nossos jovens, objetivando a saúde mental e as relações intra e interpessoais.

Testemunho de Ana Madeira, professora da Escola Básica Integrada de Ginetes, na ilha de São Miguel:

A turma do 8ºD da EBI de Ginetes adorou as curtas-metragens subjugadas às temáticas que temos trabalhado em Cidadania e Desenvolvimento, desde o quinto ano, pois retrataram de forma muito gráfica aquilo que muitas vezes não conseguimos expressar por palavras. O poder da imagem e da música conferiu um impacto muito forte nos alunos, os quais destacaram as temáticas da Violência no Namoro, a Migração e o Racismo. Estiveram sempre muito atentos a tudo e gostariam de repetir a experiência. Achámos, no entanto, que o espaço de debate deveria ser alargado, pois gostariam de ter mais voz em temas que lhes são gratos, e porque houve dúvidas que ganham outro relevo se expostas oralmente, perante uma audiência (casa cheia) como a que esteve no Teatro Micaelense.

Perspetivas Futuras da MCSC

Para o futuro, a MCSC demarca uma estratégia de expansão e aprofundamento da sua atuação. Pretende promover a participação dos realizadores das curtas-metragens selecionadas anualmente nas sessões de debate e intercâmbio, ampliando a dinâmica de aprendizagem e reflexão. Planeia também intensificar a formação de docentes e psicólogos escolares, preparando-os para orientar mais eficazmente os jovens após as visualizações dos filmes. Este investimento na capacitação dos profissionais visa potencializar a sua ação na formação de jovens conscientes e críticos. Simultaneamente, o crescimento da equipa técnica da MCSC é uma meta estabelecida, possibilitando um acompanhamento individualizado a todas as solicitações recebidas, em especial nas semanas posteriores ao evento.

Conclusão

A MCSC no arquipélago dos Açores, consolidou-se como uma estratégia pedagógica inovadora e eficiente na prevenção e mediação de conflitos em ambientes escolares, direcionada para grandes audiências, com os seus respetivos benefícios (Brown 2011, 244–45).

Figura 6 – Sessão com lotação máxima durante a Mostra Cinema Sem Conflitos em 2022. Autor: Ricardo Braga Silva

Este evento, sustentado na exibição cinematográfica e intrínseca imersão provocada (McErlean 2018) pelas narrativas marcantes (Bezdek and Gerrig 2017; Tan 2013) dos filmes selecionados, tem convertido docentes em agentes de diálogo e reflexão, fomentando também a consciência crítica, transformação individual (Bilandzic et al. 2019, 827) e procura de solução criativas (Nykon 2011, 20) dos discentes face a temas de forte relevância social na região. A linguagem cinematográfica, no seu habitat natural, a sala de cinema (McLuhan 1964; McQuail 2010), demonstrou possuir uma capacidade comunicacional inigualável . A transmissão de ideias complexas, de uma forma profundamente marcante e num curto espaço de tempo é um ponto a favor destacado por muitos profissionais envolvidos no evento. Nos últimos dois anos, a MCSC tem vindo a ganhar terreno, com um impacto notável em três ilhas do arquipélago, através da realização de 20 sessões em 6 espaços culturais diferentes, envolvendo aproximadamente 3700 espectadores.

Figura 7 – Sessão com lotação máxima durante a Mostra Cinema Sem Conflitos em 2022. Autor: Ricardo Braga Silva

A parceria com a Universidade dos Açores, que integrou a MCSC como ferramenta pedagógica para futuros profissionais da psicologia e educação, é um sinal de evolução e um aspeto promotor da investigação nesta área. A repercussão na imprensa e comunicação social portuguesa tem sido bastante positiva, com pedidos para expandir a MCSC a mais ilhas do arquipélago e ao continente. A notoriedade da MCSC transcende as barreiras nacionais, recebendo aclamação por parte de realizadores, muitos deles de nacionalidade estrangeira, que acompanharam o evento onde foram exibidas as suas obras, através das divulgações nas redes sociais oficiais da MCSC. A MCSC ao inspirar esta transformação educacional nos Açores, sublinha a preponderância do cinema como ferramenta indispensável no desenvolvimento de cidadãos críticos, conscientes e aptos para lidar com as complexidades do mundo atual.

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