Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

Cinema, Theory of Representations and the Production of Space

Cinema, Teoria das Representações e a Produção do Espaço

Éverton de Moraes Kozenieski

Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Erechim, Brasil

Abstract

This article seeks to establish relationships between cinema and the theories of the philosopher Henri Lefebvre regarding the representations and production of space. The reflection elaborated from the bibliographic review has as its starting point the questions: Can geographical representations conveyed by cinema contribute to the understanding of cultural and social phenomena? Considering them associated with the ways in which people and groups conceive and live geographical relationships, how can representations contribute to the interpretation of space production? The theoretical approach to the production of space is related to the ways in which “geo-graphies” are created on the Earth’s surface and the ways in which specific social forms give them meaning. Spatial representations, such as cinema, are understood as capable of producing space.It is assumed as a premise that cinema is capable of portraying social practices, creating “images” of space that guide action and mobilize meanings associated with the experience of subjects. In this way, the text seeks to answer: Based on Lefebvre’s work, can cinema be considered as capable of producing worlds, portraying the experiences of different groups and subjects and provoking the emergence of the utopia of new worlds?

Keywords: Representation, Social Space, Cinema, Henri Lefebvre.

Introdução

O presente artigo busca estabelecer relações entre o cinema e as teorias do filósofo Henri Lefebvre a respeito das representações e da produção do espaço. A reflexão elaborada a partir da revisão bibliográfica tem como ponto de partida os questionamentos: As representações geográficas veiculadas pelo cinema podem contribuir para compreensão de fenômenos culturais e sociais? Considerando elas associadas aos modos como pessoas e grupo concebem e vivem relações geográficas, como as representações podem contribuir para a interpretação da produção do espaço?

A abordagem teórica da produção do espaço está relacionada as maneiras nos quais são criadas “geo-grafias” na superfície da Terra e os modos nos quais formas sociais específicas lhes dão sentidos. As representações espaciais, tais como do cinema, são compreendidas como capaz de produzir espaço.

Assume-se como premissa que o cinema é capaz de retratar práticas sociais, elaborar “imagens” do espaço que orientam a ação e mobilizar significados associados à experiência dos sujeitos.

A proposta aqui apresentada se constitui como etapa do Pós-Doutoramento em Geografia, em andamento, que possui o título: “Produção do espaço, teoria das representações e migrações: Revisão da literatura, análise fílmica e aprofundamentos teórico-práticos”. Esse tem como pretensões integrar as subáreas de conhecimento da Geografia Cultural e Geografia das Populações com as teorias relacionadas ao cinema, entendendo esse encontro como potencialmente rico ao desenvolvimento de práticas de ensino e investigações.

O Pós-Doutoramento está vinculado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal), sob supervisão da Profª. Drª. Maria de Fátima Grilo Velez de Castro e cosupervisão do Prof. Dr. Sérgio Emanuel Dias Branco.

Contribuições de Henri Lefebvre

Henri Lefebvre, nascido em 1901, produziu um amplo conjunto de livros e textos, abrangendo um vasto espectro de temas e discussões de cunho filosófico e aplicadas. Entre suas vastas contribuições, ofereceu aos leitores conceitos e princípios que possuem significativa influência na Geografia, constituindo-se ainda hoje como referências para estudos geográficos.

Carlos Machado (2008) identifica quatro momentos no conjunto de publicações do filósofo, destacando grupos de temáticas de interesse, sem um caráter cronológico. Trata-se de uma tentativa de categorizar sob diferentes momentos ou interesses de debate acadêmico, nas quais determinadas características de seus trabalhos são mais evidentes.

O primeiro conjunto de publicações está relacionado as produções “Sobre/de Marx”, que foram publicadas de 1930 e se estenderam até o final de sua vida (falecido em 1991). Trata-se de obras que apresentam “traduções” das publicações clássicas de Karl Marx, acrescentando interpretações as discussões da época e contribuindo com a divulgação de novos fragmentos e texto. Lefebvre caracterizou-se como um importante divulgadores do marxismo, não apenas na França.

O segundo momento pode ser definido como “A vida cotidiana”, que compreende obras produzidas entre as décadas de 1940 e 1980, no qual foi possível ao autor transpor a barreira de proposições majoritariamente filosóficas e teoria. Segundo Machado (2008, 87), nesse momento foi possível a passagem da “[…] ‘filosofia pura’ para os estudos das práticas sociais, ou relações entre a filosofia (abstração) e o pensamento com o concreto cotidiano”.

O terceiro momento representa as obras associadas aos estudos do urbano, do direito à cidade e das lógicas de reprodução das relações sociais. Trata-se de um conjunto de publicações iniciadas nos anos de 1960, que seguiram até 1975. O terceiro momento é identificado como sendo “A cidade e a produção do espaço”.

O quarto e último conjunto temático, que se desenvolve após 1975, é considerado como uma categoria provisória por Machado, merecendo assim melhor definição. Trata-se do conjunto que compreende estudos de retorno as preocupações filosóficas e contribuições associados à reprodução das relações de produção, às representações sociais, aos ritmos sociais, etc.

O breve arrazoado aqui apresentado, que compreende mais de 70 livros, destaca a diversidade de temas e preocupações que a obra do autor possui. Algumas temáticas (sociologia rual, relações cidade-campo, debate a respeito do modernismo e linguagem, etc) não são citadas, contudo, não podemos de deixas de valorizar o esforço de síntese, que nos proporciona um panorama das contribuições de Lefebvre.

Em especial no caso brasileiro, o conjunto de obras do autor tiveram importante impacto no desenvolvimento de abordagens geográficas do espaço. Contudo, cabe destacar que suas contribuições chegam ao Brasil com certo atraso, sendo seus textos traduzidos ao português e apresentada aos leitores por meio de mediações realizadas por acadêmicos brasileiros, entre os quais podemos destacar José de Souza Martins.

Inicialmente, algumas temáticas propostas pelo autor ganham maior repercussão, notadamente os debates a respeito da cidade e da produção do espaço. Assim, há valorização de certas obras e pensamentos de Lefebvre em detrimentos de outras. É importante reconhecer que nas últimas décadas é possível identificar o resgate de certos livros do autor menos visibilizado, contudo, aparentemente, temáticas como a teoria das representações nos parecem pouco conhecida pelos acadêmicos brasileiros.

Especialmente ao tratar das representações, podemos identificar que estas estão presentes em, pelo menos, dois momentos da obra de Lefebvre, destacadamente em Lefebvre (2013) (obra de 1974 de título original: “La production de l’espace”) e Lefebvre (1983) (obra de 1980 de título original: “La présence et l’absence: contribution à la théorie des représentations”). O primeiro livro relaciona-se ao tema da cidade e da produção do espaço, trata-se de uma obra com ampla repercussão e importância no Brasil. Por sua vez, o livro “A presença e a ausência” compõe o quarto momento da obra do autor, sendo um texto mais recente e com, segundo levantamentos preliminar, menor visibilidade na produção acadêmica brasileira.

O contexto descrito nos faz questionar: Em que medida a obra mais recente a respeito da teoria das representações do autor produz reconsiderações e revisões das compreensões presente na obra “A produção do espaço”? Em que medida a teoria das representações pode contribuir para o desenvolvimento de um plano de trabalho prático de investigação em Geografia? A pouca repercussão de algumas obras está associada a limites teóricos e práticos das proposições do autor?

Tais questionamentos orientam o Pós-Doutoramento e, ao final do ciclo, vislumbramos solidificar a compreensão das teorias e criar condições para responder com maior segurança aos questionamentos.

Produção do espaço

O cinema mostra-se como uma possibilidade para articular produção do espaço e representações. Mas do que trata a “produção do espaço”?

A concepção de espaço (social) é balizadora da proposta, sendo essa fundamentalmente baseada no entendimento de que o espaço é entrelaçado pelas práticas sociais, não existindo a priori como receptáculo/palco das ações humanas. Nesse sentido, a perspectiva teórica pressupõe que o espaço social não consista

[...] numa coleção de coisas, numa soma de fatos (sensíveis), nem tão-somente num vazio preenchido, como uma embalagem, de matérias diversas, que ele não se reduz a uma ‘forma’ imposta aos fenômenos, às coisas, à materialidade física. (Lefebvre 2006, 31–32).

Como destaca Lorea (2013, 14, livre tradução da autor),

Ele mesmo é o resultado da ação social, das práticas, das relações, das experiências sociais, no entanto, por sua vez é parte delas. É suporte, mas também é campo de ação. Não há relações sociais sem espaço, de igual modo, não há espaço sem relações sociais.

A produção do espaço mostra-se como uma “ferramenta” teórica que possibilita interpretar não apenas a elaboração e localização de objetos e formas espaciais agrupadas em uma determinada localidade, valoriza o reconhecimento dos processos sociais e culturais que se relacionam aos objetos geográficos. Portanto, a teoria suscita ir além da descrição do espaço apropriado e transformado pela ação dos seres humanos (prédio, cidades, lavouras, etc) em diferentes escalas.

A “produção”, nesse contexto, como destaca Marcelo L. Souza, não se restringe a produção da materialidade ou mesmo uma abordagem em que o econômico é a única perspectiva a ser analisada,

[...] já por aí se descortina a possibilidade de ver a ‘produção’ como sendo não apenas a produção de bens materiais (móveis e imóveis), mas também a produção simbólica e de relações de poder. O termo ‘produção é suficientemente amplo e plástico para comportar essa multiplicidade de dimensões. (Souza 2013, 41)

Assim, impõe considerar que

O espaço é para ser entendido em um sentido ativo como uma intrincada rede de relações que é produzida e reproduzida continuamente. O objeto da análise é, consequentemente, o processo ativo de produção que acontece no tempo (Schmid 2012, 18).

A abordagem teórica privilegia as relações sociais, portanto, envolve interações entre a sociedade e a natureza, contempla a multidimensionalidade das relações sociais, seja na constituição de símbolos ou pelo processo de acumulação capitalista. A tese defendia por Lefebvre, de que o espaço é um produto social, é base para a construção de sua busca por uma teoria unitária do espaço, envolvendo o material (físico), o social e o mental.

Frente a tais considerações, cabe ponderar a respeito dos possíveis caminhos investigativos possibilitados pela teoria da produção espaço. A chave para a teoria de Lefebvre é a compreensão de que a produção do espaço pode ser dividida em três dimensões ou processos dialeticamente interconectados.

[...] Eles são duplamente determinados e da mesma forma duplamente designados. Por um lado, eles se referem à tríade da ‘prática espacial’, ‘representações do espaço’ e ‘espaços de representação’. Por outro lado, eles se referem ao espaço ‘percebido’, ‘concebido’ e ‘vivido’. (Schmid 2012, 91)

A primeira dimensão da produção do espaço está relacionada às práticas espaciais. Elas estão intimamente relaciona à dimensão material das atividades e das interações sociais, a produção e reprodução de objetos geográficos. Como destaca Lefebvre (2006, 36):

[...] A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares especificados e conjuntos espaciais próprios a cada formação social, que assegura a continuidade numa relativa coesão. Essa coesão implica, no que concerne ao espaço social e à relação de cada membro de determinada sociedade ao seu espaço, ao mesmo tempo uma competência certa e uma certa performance.

As práticas espaciais fazem menção as interações que constituem as relações sociais, o mundo da interação tátil e sensorial com a matéria. Estão associadas à materialidade, aos objetos e às formas, sejam eles naturais ou elaborados pela própria sociedade. A compreensão da materialidade é indissociável das relações sociais que lhe dão forma, dos arranjos visando a satisfação das necessidades humanas, do reconhecimento da divisão social do trabalho e das relações de ordem política e econômica.

A representação do espaço emergem ao nível do discurso e da fala, encerram formas como as descrições, as definições e as teorias, relacionadas ao conhecimento científico e as disciplinas especializadas. Trata-se de uma “imagem” do espaço que também o defini, permeada de conhecimentos e ideologias. “Imagem” elaborada por meio do conhecimento científico dos

[...] planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas “retalhadores” e “agenciadores”, de certos artistas próximos da cientificidade, identificando o vivido e o percebido ao concebido (o que perpetua as sábias especulações sobre os Números: o número de ouro, os módulos e “canhões”). É o espaço dominante numa sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço tenderiam (com algumas reservas sobre as quais será preciso retornar) para um sistema de signos verbais, portanto, elaborados intelectualmente.” (Lefebvre 2006, 40)

Harvey (2013, 19) caracteriza esse segundo elemento da tríade como sendo:

A maneira pela qual representamos este mundo é outra coisa, mas ainda aqui nós não concebemos ou representamos o espaço de maneira arbitrária; nós procuramos as descrições apropriadas, se não exatas, das realidades materiais que nos circundam por meio de representações abstratas (palavras, gráficos, cartas, diagramas, imagens, etc.).

O espaço de representação, por sua vez, constitui-se como o aspecto simbólico do espaço, ou seja, trata-se de processos de significação que estão atrelados à materialidade e às relações sociais. Trata-se da “ordem” material que aflora na superfície e pode torna-se um veículo de transmissão de significados. Como salienta o Lefebvre (2006, 36),

[...] Os espaços de representação, apresentam (com ou sem código) simbolismos complexos, ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social, mas também à arte, que eventualmente poder-se-ia definir não como código do espaço, mas como código dos espaços de representação.

O espaço de representação provoca uma dimensão na qual a materialidade do espaço constitui-se como veículo que comunica símbolos, que remontam e invocam normas, valores e experiências sociais. Como destaca Harvey (2013, 19),

Estes espaços de representação são uma parte integrante de nosso modo de viver no mundo. Podemos igualmente procurar representar a maneira com que este espaço é emocionalmente, afetivamente, mas também materialmente vivido através de imagens poéticas, composições fotográficas, reconstruções artísticas. A estranha espaço-temporalidade de um sonho, de um desenho, de uma aspiração oculta, de uma lembrança perdida ou mesmo de uma sensação ou tremer de medo quando andamos em uma rua, pode ser representada através de obras de arte que, em última instância, têm sempre uma presença mundana no espaço e tempo absolutos.

As tríades proposta por Lefebvre indicam caminhos para compreensão da produção do espaço. Nossa ambição aqui não é esgotar todas possíveis implicações da teoria nas pesquisas que serão desenvolvidas, mas, destacar a importância das relações entre o material, o social e o mental; a ação, o pensamento e a experiência. Interações que podem ser alcançadas por meio das tríadas lefebvrianas (percebido, concebido e vivido; práticas espaciais, representações do espaço e espaços de representação).

Teoria das representações

Os fragmentos da teoria da produção de espaço de Henri Lefebvre, citados no item anterior, demonstram alguns entendimentos iniciais associados à teoria das representações. Antes de explorar aspectos balizadores da teoria, cabe reconhecer a importância do processo ativo de produção do espaço como elemento central de qualquer análise, as maneiras nos quais são criadas “geo-grafias” na superfície da Terra e os modos nos quais formas sociais específicas lhes dão sentidos. O processo ativo está alicerçado em um tripé dialético, em que o material, o social e o mental, de modo indissociável, compõem a produção do espaço. As representações são, nesse contexto, elementos ativos da produção do espaço.

De um lado, elas são abstrações da materialidade que nos circundam, ou seja, as representações são “imagens” mentais do espaço, descrições, definições. Cabe destacar que as universidades e as pesquisas científicas são lugares privilegiados para a elaboração desses tipos de representações, pois quando caracterizamos um determinado espaço, descrevemos a materialidade existente e os processos que lhe dão forma, produzimos “imagens” a respeito do espaço, aplicamos modelos, conferimos sentido abstrato, e, portanto, produzimos uma inscrição mental.

Em outras palavras, tratamos, debatemos e teorizamos o espaço em sua ausência, ou seja, elaboramos teorias e compreensões mediante abstrações de “objetos” geográficos e das relações natureza-sociedade. Ausência e presença dos objetos representados são unidade e, ao mesmo tempo, contradição, marco importante da definição do autor.

Não há dúvidas que a edificação de um saber científico, alicerçado em debates teórico-metodológicos, assume importante papel social. A academia e, em especial, a Geografia, com relativa legitimidade e com formas próprias de validação, constroem representações do mundo. Como nos lembra Claval (2014, 20)

A reflexão científica faz descobrir, por trás da paisagem e da distribuição dos homens e das atividades, a gênese dos meios naturais, o seu equilíbrio frequentemente frágil e a ocupação dos lugares por grupos que os modelam, que os exploram e os fazem viver, organizam-nos ou os arruínam, sentem-se exilados ou ali se desenvolve.

Mas é também importante destacar que o “lugar legítimo” de produção desses tipos de representações encontra, atualmente, contestações por parte de teorias pseudocientífica ou anticientíficas (o terraplanismo e as fake news ajudam a exemplificar alguns atuais tensionamentos ao saber acadêmico e a posição de legitimidade da academia). Ou seja, a academia passa ser contestada como “lugar legítimo” de produção de representações, teorias e formas explicativas da realidade.

Cabe destacar ainda que as representações possuem conteúdos associados ao conhecimento e a subjetividade, mas também ao político e ao econômico. Ou seja, as ações de diferentes grupos na sociedade, as formas de intervenção/regulação do espaço e dos fenômenos a ele associado, que podem ser exemplificado por um plano urbanístico de uma cidade ou processos migratórios de uma região, são mediadas por representações do espaço, da paisagem, do território. Assim, não há políticas ou mesmo ação do Estado, assim como relações sociais e econômicas com o território, sem representações, sem um conceito de espaço.

Cabe destacar que as representações são “imagens” não exatas da realidade material que nos circundam e que, em certas circunstâncias, as representações do espaço podem ser elaboradas num sentido de legitimação de certas classes sociais, conferindo intencionalidade e um fim político. Na última acepção as representações podem ser expressas como ideologia.

Cada agente da produção do espaço tem suas representações: o promotor, o banqueiro, o comerciante, o proprietário de um terreno etc. Inclusive o “usuário”. Cada membro de um grupo capaz de intervir ou de formular existências [...] também possui suas representações do espaço, do habitat, da circulação etc. [...] Se o arquiteto se deixa enganar por estas ou aquelas “imagens” ou representações, coações invisíveis, perde também sua “vocação”. (Lefebvre 1983, 272 citado por Serpa 2014)

Em outra perspectiva que podemos associar à “produção do espaço” de Lefebvre, reconhecemos as representações em sua associação ao simbólico e ao vivido. Como lembra Serpa (2014, 488),

[…] é impossível a vida sem representação, que as representações são formas de comunicar e reelaborar o mundo, aproximações da realidade que, no entanto, não podem substituir o mundo vivido.

Nessa perspectiva, o ato de viver impõem aproximações com realidade, sendo essa interação mediada pelos conceitos que sujeitos e grupos possuem do espaço e de suas relações. A vida cotidiano impõem relações dos sujeitos com a experiência sensível, o mundo material, e o mundo das ideias, das representações.

De mesmo modo, nessa relação com a realidade, o espaço é emocionalmente, afetivamente e materialmente vivido, sendo simbolizado pelos sujeitos, significado. O espaço passa a ser meio de comunicação, ser portador de códigos, de manifestações do vivido, que são referências para o imaginário, para identidades e para a ação. Essa conotação das representações também tem um papel importante na produção do espaço.

O espaço, assim, é expressão daqueles que nele vivem, que o desejam. Apropriado pelos simbolismos complexos da espontaneidade “bruta” da vida e das expressões da arte. Aspectos que possibilitam, por exemplo, reconhecer que uma paisagem pode ser expressão dos sujeitos que com ela interagem, para os quais seus códigos são expressos materialmente. Paisagem com elaborações que compartilham significados e que a aproximam de uma obra de arte. Podemos dizer que nesse contexto emergem espaços de representação.

A experiência com o espaço coloca sujeitos e grupos diante de uma constante tensão entre realidade e abstração (representação), entre a prática e os conceitos do espaço, entre as formas de mediação com a realidade da ciência, do cotidiano e da arte. Em ambas aproximações com a teoria da produção do espaço, as representações estão associadas à linguagem, aquilo que é compartilhado e significado, aos conhecimentos e saberes, que são comunicados e aprendidos.

Pensar o espaço é compreender o enlace entre as práticas espaciais, as representações do espaço e os espaços de representação; o material, o social e o mental; a ação, o pensamento e a experiência. Ambos movimentos nos quais as representações têm importante papel.

Dialogando com as problematizações da reflexão, podemos destacar que investigar processos sociais (espaciais) sob tal perspectiva impõem reconhecer o enlace entre as três dimensões citadas. Ou seja, tomando como referências as migrações, por exemplo, significa reconhecer que essas podem ser compreendidas por meio das formas sociais, políticas e econômicas que as impulsionam. De mesmo modo, elas podem estar em conexões com concepções e idealizações por parte daqueles que migram, ou seja, a elaboração de representações a respeito de onde saíram e para onde pretendem chegar. Assim como remonta às experiências da mudança e da adaptação ao novo, que simboliza a experiência, que representa expressões do desejo e da imaginação, reafirmando identidades e tensionando o concebido.

Se as representações estão associadas à linguagem, temos que considerar a capacidade da arte, do cinema em espacial, como capaz de produzir mundos, de retratar as experiências e de provocar a emergência da utopia de novos mundos. Assim, consideramos o cinema como linguagem potente, que é capaz de produzir espaço, ou seja, retratar práticas, elaborar “imagens” do espaço que orientam a ação e mobilizar significados associados à experiência dos sujeitos. Assim como na vida cotidiana e na ciência geográfica, com seus saberes particulares, o cinema como linguagem é capaz de veicular e compartilhar significados, expressar a produção do espaço e revelar o mundo em que vivemos.

Conclusão

O arrazoado apresentado enfatiza a importância da produção do espaço como teoria capaz de produzir interpretações geográficas dos objetos sociais e naturais e das relações que lhe dão sentido. Tal teoria valoriza as relações dialéticas entre o material (mundo físico), social e o mental, sendo o processo ativo de produção do espaço o horizonte de investigação.

Nessa abordagem proposta por Henri Lefebvre, as representações têm destacada importância. Elas são abstrações, “imagens mentais” dos objetos e relações espaciais, que são, ao mesmo tempo, ausência e presença. Elas são bases nas quais as práticas sociais edificam-se, os processos econômicos em várias escalas ganham sentido, a política e a ideologia se manifestam, e bases nas quias as práticas, experiências e o vivido são simbolizados.

Diante desse contexto, no qual as representações, o compartilhamento de significados e a linguagem tem sua contribuição à produção do espaço, compreendemos o artefato cultural cinema como capaz de produzir o espaço, retratar as experiências de diferente grupo e sujeitos e de provocar a emergência da utopia de novos mundos.

O cinema, por um lado, apresenta-se como um documento, que retrata paisagem, permite o reconhecimento de atributos geográfico e das relações que dão sentido. Sem dúvidas, o cinema contribui para compreender os modos como pessoas e grupo concebem e vivem relações geográficas.

De outro lado, sob o olhar do cineasta, o sentir do espectador é mobilizado. Assim, o cinema é provocador de experiências e de emoções, mobiliza pertencimento, produz desconforto e contrapontos. Tal artefato cultural apresenta e desconstrói mundos (representações), povoa a imaginação, permite a simbolização e situa espectadores, convidando-os a reelaborar as suas experiências espacias, as representações e o próprio espaço.

Bibliografia

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