Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Voices and Narratives of Migration in the Documentary Casa en Tierra Ajena

Vozes e Narrativas no Documentário Casa en Tierra Ajena

José Francisco Serafim

Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil & CEMRI, Portugal

Regina Gloria Andrade

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil

Maria Natália Ramos

Universidade Aberta & CEMRI, Portugal

Maria Conceição Ramos

Universidade do Porto & CEMRI, Portugal

Abstract

Migratory issues are among the most pressing nowadays, and cinema, as one of the forms of representation, has appropriated this theme quite pertinently, with migration, mainly international mobility, being the subject of many films, both documentary and fictional, most of all since the 2000s. Our proposal is to approach this issue through a perspective of the displacement of populations in Central American countries towards the “Eldorado”, which, in the imaginary of many people, represents the United States. The documentary by Costa Rican movie maker Ivannia Villalobos Vindas, Casa en Tierra Ajena, made in 2017, presents the narrative of people who are in the process of migration, leaving their countries of origin seeking to reach Mexico and from this country to reach their goal, to cross the US border. They come from El Salvador, Guatemala, and Honduras, all of them fleeing the sorrowful reality of their countries, either in terms of political and/or socioeconomic violence, hoping to find in the future settlement better living conditions for themselves and their families. The documentary gives voice to multiple social actors who tell their stories, dreams and suffering in front of the director’s camera. Transiting between the proposed notion by Bill Nichols of “the documentary voice” as well as the category suggested by Leger Grindon about the poetics of the interview in the documentary movie, we seek to analyze the documentary Casa en Tierra Ajena, under the prism of these different voices that populate the documentary as well as the sonorous “mise en scène” present in the interviews conducted with the social actors.

Keywords: Documentary, Migration, Interview, Latin America, Narrative.

Introdução

O documentário Casa en Tierra Ajena é baseado no livro No màs muros. Exclusión y migración forzada en Centroamérica de Carlos Sandoval Garcia e realizado em 2017, pela diretora costa-riquenha Ivannia Villalobos Vindas. O filme apresenta, sobretudo, pessoas oriundas de países da América Central (Honduras, El Salvador e Guatemala) e traz-nos os seus depoimentos sobre suas historias de vida de acertos e desacertos, encontros e desencontros. Todos os acontecimentos giram em torno dos procedimentos e processos de migrar. Alguns depoimentos são de pessoas que ainda nem começaram o processo migratório e grande parte dos testemunhos é de pessoas que estão com problemas neste processo. Seu destino principal é os Estados Unidos em busca do sonho do Eldorado norte-americano. Todos esses migrantes que deixaram seus países realizam uma “via crucis” para chegar até à fronteira dos Estados Unidos, e se encontram no México tendo vivido, tanto ao longo do caminho quanto no próprio México, situações de grande violência e total desrespeito dos direitos humanos. Os migrantes presentes no documentário vão abordar essas questões sobre a necessidade de deixar os seus países de origem por razões diversas, bem como a dificuldade e o perigo destes longos deslocamentos nos quais atravessam países pouco acolhedores para os migrantes e vivenciam experiências de grande violência como agressões físicas, violações, roubos, sequestros, chegando inclusive até a situações extremas, como a perda da própria vida. O objetivo primeiro é conseguir chegar até à ultima fronteira, o México, antes de seguir caminho até o objetivo final, os Estados Unidos. O documentário, de formato clássico, ou expositivo, utilizando-se uma das categorias para se classificar os filmes documentários, proposta por Bill Nichos (2005), é, sobretudo, composto de entrevistas que trazem diversos pontos de vista sobre a migração. Estes são unívocos e não há vozes discordantes, ou pontos de vista conflitantes sobre a questão migratória, ao longo do filme sendo apresentados depoimentos de migrantes e pessoas que trabalham em prol dos direitos humanos dos migrantes, ou seja, membros de ONGs ou religiosos da igreja católica. Esses depoimentos serão analisados sob o prisma da poética da entrevista proposto pelo teórico norte-americano Leger Grindon (2007).

Com base no relatório Tendências Globais (Global Trends) do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) de 2019 (UNITED NATIONS, 2020), sabe-se que 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar em todo o mundo. Esse número revela a expressiva existência de perseguição, conflito, violência, violação a direitos humanos ou eventos causadores de severa desordem pública em todo o mundo.

Vulnerabilidade na migração da América Central

A vulnerabilidade dos migrantes tem sido um tema de grande preocupação em qualquer parte do mundo, mas a situação da América Latina tem sido observada e relatada como sendo também uma questão socioeconômica de uma região.

Oscar Misael Hernandez Hernandez (2015), professor do Colégio da Fronteira do Norte, declara no livro Migrações e cidades nas Américas: processos históricos e análises do tempo presente de Erica Sarmiento e André Nunes de Azevedo os seguintes dados:

Estes dados estão no artigo dos autores Guadalupe Corea-Cabreraz e Maria Fernanda Machucas no texto Migração irregular, trata de pessoas e crime organizado em três cidades fronteiras mexicanas: Matamouros, Reynosa e Novo Laredo (2022) local central do Crime Organizado e do trafico de drogas dentre outras ações ilícitas no México. As ações violentas contra os migrantes estão encobertas pela Luta contra o Narcotráfico.

Dentre as varias situações desde 1980 há o “migrante recorrente” que faz várias viagens aos Estados Unidos e é deportado e além de não poder mais entrar no país não tem condições igualmente de voltar ao seu país de origem. Também é o caso dos solicitantes de refugio que são rotulados como “indeferidos” que permanecem na mesma situação e nada muda em suas vidas. À estes migrantes denomina-se “presos em sua mobilidade”.

Desafios psicossociais

No artigo, Migração: emergentes questões e condições de um mal-estar, de Wallace Araújo, Regina Andrade e Diogo Brum, ainda no prelo, abordam-se algumas questões relativas a questões psicossociais e de mal estar do processo de migração. Os corpos que migram têm marcas, origens e motivos com suas buscas e necessidades que nem sempre são supridas ou acompanhadas. Um sofrimento com muitas camadas se instaura em vínculos sociais que se despedaçam enquanto tentam-se novos modos de existir, outros contatos e a transposição de barreiras. Grandes transformações que distanciam um ideal de bem-estar humano, seja no país de origem ou no país de refúgio, mapeiam desesperados pedidos de ajuda.

O corpo padece pelas próprias circunstâncias a que é submetido e consequentemente a família, pois na maioria das vezes são “jovens” que estão dispostos a migração. Parece ser um movimento que atinge certa idade, quando ainda há esperanças de mudanças e de resoluções de problemas socioeconômicos. Para os idosos a situação da migração é diferente e só ocorrerá se houver um outro motivo maior que o simples fato de mobilização, por exemplo acompanhar a família, um filho, um parente.

No entanto, há que se reconhecer possíveis testemunhos de resistência, insensibilidade, preconceito e intolerância contra pessoas que escaparam de conflitos armados e testemunham uma crise humanitária de grandes proporções.

Nos últimos anos, o avanço da crise migratória junto com o medo de uma nova recessão econômica e o surgimento de discursos racistas e xenófobos criaram um cenário político hostil à imigração. Este cenário tem sido um terreno fértil para novos movimentos e partidos anti-imigração em toda a Europa, incluindo a Espanha. Uma explicação para esse fenômeno pode ser a percepção de que a imigração produz efeitos negativos sobre o sistema de bem-estar, a economia e a identidade cultural dos países receptores. (Moldes-Anaya, Aguilar, Bautista 2019, 59, tradução nossa)

O risco da busca pela sobrevivência em outro lugar é constantemente pautado pela violação a direitos humanos, fazendo fundir dinâmicas, percursos e subjetividades enquanto os migrantes são produzidos em sua dimensão real de vida. Com as mudanças e deslocamentos desenfreados, buscar ou aguardar respostas e cooperações partem das urgências de muitas histórias que se fundem nas rotas migratórias e carregam consigo a tentativa de se resguardar de conflitos ou violações (Ramos, 2009, 2020; Ramos, M. 2020). É nessa imersão que o migrante se qualifica, no estado de desamparo absoluto ao não ter fronteiras corporais, para além das fronteiras geográficas.

A disposição do corpo migrante para o enfrentamento dos problemas sociais, políticos e humanitários que lhe fogem do controle só encontra consolo ao fazer valer as suas necessidades vitais. Ainda assim, não se perdem de vista as violências, as recusas, os preconceitos, e as complexas influências em que a vida se estrutura ou desestrutura. Tudo o que vivemos nos modifica como parte das contingências da vida.

O ser migrante tem que ser muito criativo e resiliente em seu exercício de forças e percepções para lidar com o sofrimento e as exigências de sua mobilidade. Novas culturas, modos de vida e práticas sociais são desafios que atuam nesse corpo em questão, como fonte de compreensão do que está em aberto ou não dentre suas marcas e rastros possíveis. Pressões diversas que sacrificam vidas, criam vulnerabilidades, desenham discrepâncias como restrições, xenofobia, estereótipos, limitadas políticas públicas, entre outras (Ramos, 2004, 2008, 2020).

Os fluxos de diferentes naturezas trazem a complexidade e a imprevisibilidade da demanda migrante. Cruzam-se fronteiras, encontram-se outras, e também se reforça a precarização de vidas que buscam dignidade e segurança em situações de ordem pública, internacional e humana, num campo de distâncias e proximidades, de perdas e ganhos, em que o migrante lida a todo momento com o seu mal-estar.

Casa en Tierra Ajena: no más muros

O longa-metragem documental Casa en Tierra Ajena realizado em 2017 pela diretora costa-riquenha Ivannia Villalobos Vindas foi baseado na obra do professor costa-riquenho Carlos Sandoval García, No más muros. Exclusión y migración forzada en Centroamérica, publicado em 2016. Sandoval estará ativamente presente na realização do documentário como poderemos observar nos créditos do filme, ele será creditado logo no inicio quando nos é indicado que o filme foi baseado em seu livro, mas igualmente estará presente na coordenação geral, na produção, no roteiro literário e na captação do som direto. A estrutura clássica e expositiva do documentário estará evidenciada nas diversas sequencias que compõem a obra. O documentário é, sobretudo, constituído de entrevistas e depoimentos de pessoas que estão em processo de migração, mas igualmente teremos o ponto de vista de pessoas que buscam auxiliar os migrantes ao longo de seus deslocamentos, muitos deles serão religiosos vinculados à igreja católica. Além das entrevistas que permeiam todo o documentário teremos a presença de cartelas que trazem informações factuais e concretas sobre a migração na América Central, como esta que abre o documentário, “Na América Central migraram aproximadamente entre 10% a 12% de sua população”, mas igualmente frases mais gerais e não contextualizadas, a exemplo “O direito de não migrar” ou “Direito à esperança”. O uso de cartelas estará presente ao longo de todo o documentário e tem por objetivo trazer o olhar e a voz da realizadora, ou seja, o seu ponto de vista. Neste sentido podemos estabelecer uma aproximação com o texto de Bill Nichos, “A voz do documentário”, quando este afirma que,

Por “voz” refiro-me a algo mais restrito que o estilo: aquilo que no texto, nos transmite o ponto de vista social, a maneira como ele nos fala ou como organiza o material que nos apresenta. Nesse sentido, voz não se restringe a um código ou característica, como o dialogo ou o comentário narrado. (Nichols 2004, 50.)

A presença de intertítulos não será o único elemento denotador da presença da voz do documentário e da diretora no documentário, observamos igualmente que a construção da narrativa fílmica através da montagem é realizada na costura que é estabelecida através das entrevistas visando trazer uma compreensão dos processos migratórios em países da América Central, nesse sentido é importante observar que a edição do documentário será assinada por David Ramírez Baldizón e pela diretora, Ivannia Villalobos Vindas, ou seja, a realizadora construirá a narrativa de seu filme em estreita colaboração com o outro editor.

O documentário traz igualmente sequencias ficcionalizadas, onde logo no início do filme iremos acompanhar os preparativos de uma jovem mulher que deixa uma casa simples e inicia uma caminhada por uma estrada de terra, esta mesma mulher será vista em outras partes do filme, mas nesses outros trechos não estará mais sozinha, e sim acompanhada de outras três pessoas, e continuam a caminhada por estradas e campos no que nos é apresentado como sendo um grupo de jovens migrantes. Na banda sonora durante essas sequencias ouvimos tanto vozes de pessoas não identificadas abordando a questão da migração, como igualmente serão apresentados intertítulos com dados sobre o processo migratório. Ao longo do documentário será igualmente ouvida uma musica instrumental em tom nostálgico, que visa sublinhar o duro e difícil conteúdo dos depoimentos. A sequencia final do documentário, ficcionalizada, remete ao inicio do filme, pois apresenta este grupo de migrantes caminhando ao longo de um campo com mato e algumas árvores, e nesse momento é-nos apresentada a última cartela do documentário “No más muros. Por el derecho a no emigrar y el derecho a inmigrar”.

Figura 1 – Cartaz do documentário Casa en Tierra Ajena. Produtora: Consejo Nacional de Rectores (CONARE)

A construção narrativa do filme é composta, sobretudo, de sequencias de entrevistas e segue uma ordem cronológica das fases da migração, podendo considerar-se o documentário um tipo de “road movie”, no qual o deslocamento ocorre através das sequências ficcionalizadas analisadas acima, mas sobretudo através do olhar da câmera e da diretora em diversos contextos e nesses três países da América Central trazidos como exemplo dos processos migratórios na região. Foram escolhidos locais específicos dos três países, Honduras, El Salvador e Guatemala, a fim de exemplificar os motivos e razões das pessoas desejarem deixar seus países. As situações apontadas apresentam a extrema violência contra pessoas que vivem em comunidades rurais que se veem obrigadas para sobreviver a deixar seus locais de origem. Em uma dessas sequencias bastante emblemática é-nos apresentada a situação do povo Garifuna que vive em Barra Vieja uma idílica praia de Honduras, local desejado por empresas de turismo, que obrigou os Garifunas a deixarem suas terras e instalou no local um centro turístico de luxo, o “Indura Beach e Golf Resort”, proibindo inclusive o povo do local a exercer sua atividade de subsistência, a pesca. O processo de desapropriação foi violento e muitos Garifunas viram-se obrigados a deixar o país, como nos é exemplificado através do depoimento de uma mulher que diz “Daqui se foram muitos. Barbaridade! Até estão proibindo os Garifunas de pescar, há pouco se foi um filho meu, felizmente chegou aos Estados Unidos, estão à procura do sonho americano.”

A diretora utiliza nesta sequência sobre a violência perpetrada contra este povo de um recurso que estará presente ao longo do documentário, o material de arquivo. No caso da desapropriação serão utilizadas imagens de arquivo mostrando sequencias da violência do exército contra a população local, na banda sonora, ouviremos gritos e disparos, ao final de uma sequência de violência, vemos a imagem ser tapada por uma mão o que não permite que vejamos o que ocorre, mas ao nível sonoro ouvimos tiros e gritos.

Duas outras sequencias nas quais são utilizadas imagens de arquivo apresentam tanto a impunidade de políticos quanto a violência contra a população na Guatemala. A primeira apresenta o julgamento do ex-presidente da Guatemala que governou o país entre 1982 e 1983, Efraim Rios Montt (1926-2018), por crime de genocídio, a juíza estabelece a pena de prisão de 50 anos não comutáveis. Uma cartela logo a seguir nos informa que “12 dias após a sentença a sentença foi anulada pela Corte Constitucional da Guatemala. Rios Montt segue impune.”

A outra sequência apresenta a violência contra um membro da igreja, esta composta com fotografias em preto e branco mostrando pessoas com expressão de medo, uma pessoa assassinada, a foto de Monsenhor Romero. Na banda som ouvimos a voz do monsenhor, transmitida pela rádio, durante a homília dominical de 23 de março de 1980, “Em nome de Deus, em nome deste povo sofrido, cujos lamentos sobrem aos céus cada dia mais tumultuosos. Suplico a vocês, rogo a vocês, ordeno em nome de Deus. Pare a repressão.” Na sequência ouvimos o depoimento de Omar Serrano nos informar que após o assassinato em 1980 do arcebispo Monsenhor Romero, desencadeou-se a guerra em El Salvador. O arcebispo foi assassinado no dia seguinte ao ter proferido esta homilia na qual defendeu os direitos humanos das pessoas mais pobres. Sua demanda e clamor não somente não foi ouvida, como ele próprio pagou com sua vida a defesa de um mundo mais justo.

A parte final do filme estará concentrada em centros de acolhimento ao migrante existentes no México, estes tendo por finalidade ser uma base de apoio a estas pessoas que esperam encontrar do outro lado, nos EUA, uma vida mais digna, com trabalho e paz. Muitos dos depoimentos presentes nestas sequencias foram realizados por pessoas que administram estes espaços, quase todos vinculados à igreja católica, mas também podemos ouvir a fala de pessoas que se encontram em processo migratório. São relatos que apresentam a enorme violência e agressões que estas pessoas sofrem até chegarem à proximidade do objetivo, a fronteira norte-americana. Observamos que a grande maioria das pessoas que buscam migrar é jovem entre 20 e 35 anos, sendo que muitas já haviam tentado a empreitada anteriormente, mas sem sucesso, e a fim de mostrar uma diversidade etária no processo migratório, o documentário apresenta o depoimento de um senhor de 60 anos que deseja migrar para que sua família possa ter melhores condições de vida, ele diz estar saudável e que não há nada que o impeça de trabalhar. Uma sequência do documentário apresenta outro espaço, este fechado, no qual são instalados os migrantes que foram abordados pelos policiais mexicanos, sendo centros de detenção do migrante nos quais as pessoas aguardam para serem extraditadas para seus países de origem. No momento da realização do documentário havia acordos instituídos entre o México e os Estados Unidos visando um bloqueio da enorme quantidade de pessoas que vinham dos vários países da América Central com objetivo de cruzar a fronteira entre o México e os EUA.

Na parte final do filme, há uma sequência emblemática que demonstra esse difícil e violento deslocamento efetuado pelos migrantes, ela será protagonizada pelo Padre Pedro Pantoja, que esteve presente através de situações de entrevista ao longo do documentário, mas agora ele irá realizar, juntamente com um grupo de migrantes, uma procissão que o padre denomina “Via crucis de denúncia”. O grupo caminhará pelas ruas da cidade carregando uma cruz onde constam nomes de migrantes assassinados e cantam em conjunto, “Por mim também mataram e hoje matam também. Em cada irmão que sofre segue morrendo outra vez. Os poderosos de sempre mataram o inocente.”

Vozes, entrevistas e depoimentos em Casa en Tierra Ajena

O documentário é composto essencialmente de entrevistas que posteriormente no processo de montagem nos dão uma ideia de depoimento, já que não ouviremos ao longo do filme as perguntas que foram feitas aos diversos atores sociais presentes na obra. Estas entrevistas cumprem diversas funções no documentário, trazer informações sobre a situação migratória bem como relatos de pessoas que se encontram em processo de migração. Os pontos de vista são quase todos convergentes já que não há praticamente vozes discordantes sobre a migração. Observamos que estes depoimentos apesar de serem similares em sua estrutura narrativa, ou seja, a pessoa entrevistada estará frequentemente sentada olhando diretamente para a câmera, trazem olhares diversos sobre a questão da migração. As pessoas serão filmadas no seu próprio ambiente familiar ou local de trabalho. Um recurso utilizado com frequência pela diretora é o de apresentar inicialmente a voz do entrevistado e somente após alguns minutos nos será mostrada sua imagem e a seguir uma cartela com o nome e local onde se encontra. Algumas entrevistas serão montadas e apresentadas em um único trecho do filme, outras como a do Padre Pedro Pantoja serão apresentadas ao longo do documentário.

O teórico Leger Grindon em um artigo de 2007, “Q&A: poetics of the documentary film interview”, traz considerações pertinentes para se refletir sobre o uso de entrevistas no filme documentário através de cinco categorias: presença, perspectiva, contexto pictórico, performance e polivalência. Grindon inicia a discussão discordando da abordagem proposta anteriormente por Bill Nichols, sobretudo presente no livro de 1991 Representing reality: issues and concepts in documentary, que trazia uma tipologia e classificação de entrevistas no filme documentário. Nesse sentido Leger Grindon

Concebe uma abordagem que, diferentemente da proposta por Nichols (1991), não sugere tipos possíveis de entrevista, mas categorias de análise, para as quais se deve olhar levando em conta contextos históricos e práticas autorais, a fim compreender como a relação imagem/som criada na obra comunica (Serafim e Santos Filho 2021, 9).

As cinco categorias de Grindon para análise das entrevistas podem ser entendidas como parâmetros para refletir sobre a poética da entrevista. No primeiro caso, a “presença”, diz respeito a presença, ou ausência, do realizador na imagem. A segunda categoria, “perspectiva”, concerne, a relação e distancia estabelecida entre a câmera e pessoa filmada. A terceira categoria, “contexto pictórico”, aborda o uso de imagens independentes que podem complementar a entrevista. A quarta categoria, “performance”, diz respeito à gestualidade, linguagem corporal que complementam o conteúdo sonoro da entrevista. Por fim, a quinta categoria, “polivalência”, concerne a entrevista na sua totalidade, cabe aqui observar se há coerência ou indeterminações da fala dos entrevistados.

O documentário Casa en Tierra Ajena apresenta muitos elementos das categorias propostas por Grindon. Observamos que não ouvimos ou vemos na imagem a voz e o corpo da pessoa que entrevista os atores sociais, estes se dirigem diretamente para a câmera e falam certamente após terem sido interpelados por uma pergunta feita durante o momento da filmagem, existindo neste caso uma presença do entrevistado, sendo que o entrevistador estará ausente tanto ao nível sonoro quanto visual. Em uma sequencia do documentário no qual são discutidas questões vinculadas ao incentivo da plantação de palmeira do dendê (Elaeis guineenses) em Honduras, tendo em vista naquele momento os altos preços desta palma no mercado, mas que com o passar dos anos houve uma queda brutal nos valores o que fez que grande maioria dos camponeses não conseguisse mais sobreviver do cultivo da palmeira do dendê e se encontrassem endividados, não havendo para muitos outra alternativa a não ser deixar suas terras e iniciar um processo de deslocamento forçado em direção a outros países. Esta sequencia filmada na região onde ocorre o problema vinculado a esse cultivo, apresenta em alternância os depoimentos de uma mulher e de um homem, que trazem informações complementares sobre o problema enfrentado pelos camponeses desde que ocorreu o inicio do cultivo da palmeira do dendê. Temos a impressão que há um dialogo entre a mulher e o homem, este possível somente graças à montagem.

Em relação à segunda categoria, perspectiva, os atores sociais presentes no documentário quase todos foram filmados em plano médio ou em primeiro plano, quase todos estão sentados, havendo poucos deslocamentos e movimento durante a realização das entrevistas. Uma das únicas sequencias na qual o entrevistado se movimenta, é quando Omar Serrano caminha ao longo de um muro onde estão gravados os nomes de pessoas assassinadas, e em que ele faz referencia à violência em El Salvador e exemplifica apontando para os nomes presentes no muro.

O documentário traz muitos momentos com imagens de arquivo, que visam, sobretudo, corroborar ou exemplificar as questões trazidas pelos entrevistados, a diretora utilizando-se tanto de imagens de arquivo pessoal e amador, quanto de reportagens televisivas, fotografias, programa de rádio etc. Esse material de arquivo traz um “contexto pictórico” que auxilia a visualizar e exemplificar as questões abordadas pelos depoentes.

Em relação à quarta categoria, observa-se que os entrevistados estabelecem uma performance contida, com poucos gestos, os olhares são diretos para a câmera, certamente essa atitude performática se coaduna com o conteúdo das falas que são expressas pelos entrevistados, como situações de injustiça, de violência e de desrespeito aos seus direitos.

No que concerne à polivalência, o documentário traz principalmente um olhar e ponto de vista único sobre a questão migratória, somente estarão presentes no documentário pessoas em processo de migração, e pessoas que buscam auxiliar os migrantes em seu deslocamento. A única voz, e entrevista, que estará presente em várias sequencias do filme será a do padre mexicano Pedro Pantoja que irá ao longo do filme trazer pontos de vista sobre as fases da migração. O único momento em que há certa discordância no discurso é quando são apresentadas as entrevistas de dois migrantes que viveram durante vários anos nos Estados Unidos, mas que foram presos quando de um controle policial. Eles foram extraditados para o México e aguardam para poderem se deslocar até seus países, mas mesmo com a situação irregular e insegura, já pensam em estratégias para retornar para os EUA, como um deles afirma, “Minha mulher e filhos ficaram lá, eles são cidadãos americanos”.

O mal-estar na migração

Retomando as considerações trazidas pela atemporal obra freudiana O mal-estar na civilização (1930/1976), podemos nos apropriar da compreensão de desamparo e mundo externo para nos aproximarmos do campo das vulnerabilidades e das incertezas do migrante. Freud tomava as ilusões como sintomas da neurose e considerava que a vida psíquica é ameaçada por inúmeros acontecimentos dos quais não se tem domínio. A infelicidade civilizatória se explica, em sua análise, pela troca do sofrimento neurótico (de desamparo, de privação do prazer) pela infelicidade comum (resultante da identificação com o pai e submissão às suas restrições), dando margem a muitos desdobramentos. Não há como viver sem experimentar eventuais infelicidades, adversidades e personificar, assim, os descontentes.

O desafio ao próprio desamparo, quando um migrante sustenta o fôlego motivado por sua busca de sobrevivência, ou inquieto em sua vulnerabilidade e buscando um rumo, sobretudo de trabalho, com os recursos de que dispõe. Desesperos, emoções e estranhamentos diversos atravessam e se instalam no corpo migrante, uma vez que, ele rompe com anteriores vínculos para irromper em novo lugar, desenhando os meandros pelos quais passa e se articulando na tentativa de reagir e corrigir violações de direitos sofridas.

O migrante, cuja Pátria não mais é capaz de provê-lo de proteção, transita entre territórios, lançando-se numa nova busca por alívio ao seu sofrimento, carregando consigo a memória indelével da sua identidade moldada pela sociedade que abandona, para fazer valer em outro lugar o que considera ser seus ideais. Observamos em inúmeras entrevistas do documentário Casa en Tierra Ajena que a demarcação de outras formas de vida e circunstâncias em outros lugares que não o de origem, são desejos e ilusões não realizadas.

O migrante vive por um instante a sensação de não estar sob qualquer jugo ou limite: o sujeito desliga-se de um mundo para unir-se a outro onde reivindique não mais a sobrevivência, mas o direito de ser quem é. O rompimento, entretanto, raramente é total. Ainda que procure suprir necessidades e compensar os impasses do vínculo com sua Pátria, as memórias e as culturas marcam o corpo pertencente a sua terra de origem. A vida se reorganiza e redireciona na superação dos impasses, com todos os custos dos recomeços que obrigam a uma integração psicológica e sociocultural em novo lugar.

Considerações finais

No presente artigo buscamos compreender a vulnerabilidade e o mal-estar causado pela situação de migração ou mesmo na intenção de migrar. Nas entrevistas realizadas no documentário de Ivannia Villalobos Vindas as falas são claras e nítidas e nos fazem pensar em muitas outras condições em especial nas migrações da América Central. Não vislumbramos uma solução definitiva para este complexo tema e as informações servem-nos enquanto possibilidade de caminho a ser trilhado para o entendimento de como o sofrimento acomete o ser humano, qual a sua origem, e de que forma o homem encontra na migração uma tentativa de aliviá-lo.

As vozes, narrativas e entrevistas em Casa en Tierra Ajena trazem uma perspectiva, que mesmo se convergente nos ajuda a visualizar e ouvir as pessoas que se encontram em situação de grande vulnerabilidade social e que mesmo se frequentemente conhecem os riscos que uma deslocação por certos países acarreta decidem arriscar inclusive suas vidas em busca de um sonho, ou do Eldorado que representa para muitos deles os Estados Unidos.

O sentido e o propósito da vida migrante trazem impressões legítimas de força, cujo alcance é monumental se pensarmos a sobrevivência em uma condição vulnerável. Os lugares se misturam, os sentidos são confundidos, mas os sujeitos constroem ou reconstroem o mundo à sua maneira de sobreviver, fazendo-nos pensar de acordo com a sua força tanto ativa quanto reativa frente aos dispositivos de poder.

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Filmografia

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