Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

The visible textures in the film The Invisible Life of Eurídice Gusmão: an analysis of the production design

Texturas visíveis em A Vida Invisível: uma análise da direção de arte

Mariana Schwartz

Universidade da Beira Interior, Portugal

Alfredo Taunay

Universidade da Beira Interior, Portugal

Abstract

In a fiction film, characters are surrounded by settings that were, most of the time, carefully planned and built by an art department. The production designer is the head of this department and is responsible for materializing the film’s universe. Although the results of his work are visible environments, they often go “unnoticed” by the viewers. The production designer uses elements to make up the settings that are in different materials, colors, shapes, sizes, and textures. To better understand the importance of textures in cinematic production design, this article aims to analyze the film The Invisible Life of Eurídice Gusmão (2019), directed by Karim Aïnouz. The film won the Un Certain Regard Award at Cannes Film Festival in 2019, among other awards. Using authors like Giuliana Bruno and C. S. Tashiro as a basis for the research, this study intends to reflect upon the work of the film’s production designer, Rodrigo Martirena. We perceive that the textures in the film’s settings enrich the images and reflect the characters’ emotions, therefore, contributing to the viewer’s experience.

Keywords: Cinema, Production design, The Invisible Life of Eurídice Gusmão, Rodrigo Martirena, Textures.

Introdução

Dentre os cineastas brasileiros de maior reconhecimento mundial, está Karim Aïnouz. Karim é um consagrado diretor, que comandou aclamados filmes como Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006), Praia do Futuro (2014) e A Vida Invisível (2019). Esse último, uma adaptação do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, escrito por Martha Batalha, recebeu diversos prêmios, dentre eles o de melhor filme na mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes, em 2019.

A Vida Invisível foi analisado por diversos pesquisadores a partir de diferentes perspectivas. Neste estudo, ao levantarmos uma questão sobre as texturas do filme, o mais evidente para muitos leitores seria compreender que se trata de uma metáfora, que estamos buscando analisar as relações retratadas ou a forma como o patriarcado e o machismo são representados no filme. Porém, como o próprio título do estudo expressa, buscamos analisar as texturas visíveis, ou seja, aquelas presentes nas imagens do longa-metragem.

Verifica-se que há um número considerável de pesquisadores acadêmicos que se debruçam sobre as imagens fílmicas, no entanto, em se tratando da direção de arte1, esse número é pequeno. Muitos daqueles que encaminham suas pesquisas para a área da direção de arte cinematográfica abordam a paleta cromática das produções. A cor é elemento essencial e digno de análise, mas é relevante percebermos que a imagem fílmica é composta por diversos elementos. Dentre esses, estão as texturas. Ainda que presentes em todas as imagens fílmicas, percebe-se uma lacuna nesta área de estudo.

A pesquisa que aqui se desenvolve tem como intuito entender a importância das texturas nas imagens fílmicas. Para tanto, analisamos as imagens de A Vida Invisível, mais especificamente o trabalho do diretor de arte Rodrigo Martirena, que comandou o departamento artístico da obra e materializou o universo da história.

A Vida Invisível 2

A Vida Invisível conta a história das irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte), separadas por uma mentira contada pelo pai, o Sr. Manuel Gusmão (António Fonseca). Para Guida, o pai conta que a irmã recebeu uma bolsa de estudos e foi para a Áustria estudar piano. Entretanto, Eurídice casou-se com Antenor (Gregório Duvivier), homem machista que a impede de seguir o sonho de tornar-se uma pianista profissional. Karim explora a história dessas irmãs, que vivenciam situações díspares enquanto tentam se reencontrar, mas vivem em comum o drama de ser mulher em uma sociedade machista, sexista e patriarcal. Apesar do Sr. Manuel Gusmão nunca ter dito à Eurídice que Guida havia retornado ao Brasil e procurado pela irmã, ela nunca desistiu de tentar reencontrá-la. Infelizmente, o reencontro nunca aconteceu.

Guida é a filha rebelde, aquela que, mesmo dentro de casa, tenta ao máximo não cumprir as convenções. A jovem tem o hábito de sair às escondidas durante a noite, contando sempre com a cobertura da irmã. Em uma dessas saídas noturnas, ela conhece Iorgos, um marinheiro grego, por quem se apaixona. Guida é vibrante, impulsiva e vive a vida intensamente e em toda a sua potência, características que confrontam a educação conservadora e polida que recebeu dos pais, ambos de origem portuguesa. Sua personalidade forte e o desejo de viver o romance, possivelmente reprovado pelo pai, a faz optar por fugir com o amado para a Grécia.

Na Grécia, Guida é confrontada com a realidade da convivência com Iorgos, decepcionando-se ao conhecer a face machista e desrespeitosa do homem amado, “um canalha” como ela descreve em carta para a irmã. O sonho do romance se desfaz e, desiludida e grávida, retorna ao Brasil. Apesar de ter infringido as convenções sociais, Guida ainda aguarda pela solidariedade e acolhimento da família, decidindo retornar para a casa dos pais. Entretanto, temendo a desonra, o Sr. Gusmão bane a filha do convívio familiar, expulsando-a sem direito a nenhum tipo de apoio financeiro ou emocional. Mesmo diante da recepção agressiva do pai e não tendo para onde ir, Guida não se humilha e promete a seu progenitor: “se eu for embora dessa casa, você nunca mais vai me ver”. O Sr. Gusmão não muda de ideia e, apesar do maltrato de uma vida marginal, Guida mantém a promessa, nunca mais procurando os pais, apenas tentando manter contato com a irmã Eurídice através de cartas. Sem marido, com um filho e sem o suporte dos pais, Guida encontra apoio e proteção em Filomena (Filó), mulher negra que se sustenta cuidando dos filhos e das filhas de mulheres pobres que precisavam trabalhar para sobreviver. As duas amigas apoiam-se e auxiliam outras mulheres com vidas tão difíceis quanto as suas.

Eurídice, diferente da irmã, decide agradar os pais e cumprir as normas sociais estabelecidas. Atendendo às expectativas colocadas sobre ela, casa-se com Antenor, mesmo sem amá-lo, tornando-se aquilo que todos desejavam: uma dona de casa “de respeito”, recatada e obediente ao marido. O casamento lhe garante uma vida financeira relativamente confortável, mas nem por isso feliz. Desde a celebração do casamento, a falta de sintonia (e respeito) entre o casal é evidente. Há, desde o princípio, a ideia de “propriedade” do homem sobre o corpo da mulher, o que fica claro também quando Eurídice se vê obrigada a avançar com uma gravidez, mesmo sem desejar ser mãe naquele momento da vida. A gestação lhe faz adiar o sonho de fazer o teste para ingressar no conservatório de música de Viena. Entretanto, apesar das limitações das quais está sujeita, Eurídice nunca se conforma e segue a vida orquestrando maneiras de ludibriar o marido para conseguir realizar seu sonho.

A Vida Invisível é, simultaneamente, uma denúncia ao patriarcado e uma homenagem à “vida invisível” das mulheres do Brasil e do mundo. Trata-se de uma obra politizada que permite a muitos espectadores tomarem conhecimento de situações que fizeram parte do cotidiano de suas mães, tias e avós. É uma obra ficcional, mas, infelizmente, inspirada naquilo que foi a realidade de muitas mulheres, vítimas da cultura e da legislação machista brasileira dos anos quarenta, cinquenta e sessenta, que privilegiava os homens e colocava as mulheres em posição subalterna, condicionando suas liberdades e existências à figura masculina.

Para o crítico Pedro Mendes (2019),

O que poderia resultar em um filme absolutamente previsível oportuniza que Karim Aïnouz conjure um “melodrama perfeito”, ao mesmo tempo em que revisita diversos elementos que compõem a sua assinatura autoral, como seu interesse por personagens complexos e angustiados, diálogos crus e uma paleta de cores saturada e com alto contraste. (...) Não restrito apenas às questões de costumes, o interesse pela reconstituição de época é palpável e reminiscente da abordagem estética utilizada em Madame Satã e aqui construída a partir do trabalho sensível e sofisticado da direção de fotografia de Hélène Louvart e da direção de arte e design de produção de Rodrigo Martirena, bastante interessados em dar textura às vivências e ambientes por onde se desencontram as irmãs.

As irmãs Guida e Eurídice são vítimas do patriarcado, mas aquilo que Karim nos apresenta são mulheres que não aceitam essa posição e lutam contra o sistema da forma que lhes é possível. Portanto, vemos no filme o modo como elas orquestraram pequenas rebeliões cotidianas para fazer valer as suas existências.

Direção de arte

Um dos pontos fortes de A Vida Invisível são as imagens da obra. As imagens de um filme são responsabilidade, principalmente, de uma tríade composta por diretor, diretor de fotografia e diretor de arte. Esse último coordena o departamento artístico e é responsável pela materialização do universo da história. Para que essa materialização ocorra, é necessária interpretação, reflexão, planejamento, comunicação, construção, confecção e adaptação. São diversas etapas que, na produção de longas-metragens envolvem o trabalho de muitos profissionais, das mais distintas áreas.

No processo de materialização de cenários e figurinos, cores, formas, materiais e texturas são colocados diante das câmeras no intuito de funcionarem não apenas como plano de fundo para a história, mas também como transmissores de mensagens e construtores de significado. Segundo Jane Barnwell (2013, 101) 3, em um sentido prático, o departamento de arte “constrói um lugar para que a ação aconteça e, em um sentido criativo, ele torna esse lugar apropriado para a narrativa e para as personagens que vivem nesse espaço”.

Quando falamos em direção de arte, estamos referindo-nos à concepção do ambiente plástico de um filme, compreendendo que este é composto tanto pelas características formais do espaço e objetos quanto pela caracterização das figuras em cena. A partir do roteiro, o diretor de arte baliza as escolhas sobre a arquitetura e os demais elementos cênicos, delineando e orientando os trabalhos de cenografia, figurino, maquiagem e efeitos especiais. Colabora, assim, em conjunto com o diretor e o diretor de fotografia, na criação de atmosferas particulares a cada novo filme e na sua impressão de significados visuais que extrapolam a narrativa (Hamburger 2014, 18).

De acordo com Gilka Vargas (2014, 57), o diretor de arte “deve exercitar sua capacidade de criar, gerar ideias, soluções, metáforas visuais, adaptando-se aos diferentes universos diegéticos e características do projeto, realizando um trabalho que ultrapassa a viabilização do registro, estabelecendo criação visual”.

Em Pretty Pictures: Production Design and the History Film, C. S. Tashiro (1998) se debruça meticulosamente sobre o trabalho do designer de produção. Segundo o autor, um dos propósitos do design de produção, é “discriminar e selecionar a fim de criar um pano de fundo plausível para a narrativa”4. Para Tashiro,

espera-se que os designers tenham um conhecimento profundo do universo de um filme, desde os fundamentos do estilo arquitetônico até o formato de uma abotoadura. Como em qualquer posição colaborativa, o poder do designer varia de acordo com a circunstância. Um designer conhecido trabalhando com um diretor novato pode ter mais controle sobre a imagem final. Um designer menos consagrado trabalhando para um diretor com um forte estilo visual pode ser pouco mais que um funcionário. O que permanece verdadeiro para todos os designers é seu foco no domínio visual e físico do filme (Tashiro 1998, 3) 5.

Tashiro (1998) apresenta uma reflexão interessante sobre o design de produção ao salientar que o design, apesar de ser pensado muitas vezes em termos de riqueza, funciona a partir de deficiências. O autor (1998, XIV) aponta que a riqueza é um efeito relativo, “criado não tanto por um excesso de detalhes, mas por uma composição seletiva que leva ao máximo impacto”6. O design de filmes funciona, para Tashiro, “a partir da diferença entre o mundo físico tal como existe e os requisitos de uma narrativa particular”7. Ou seja, é necessário adequar o ambiente onde serão feitas as filmagens às necessidades da narrativa.

A segunda deficiência citada por Tashiro deriva da própria imagem. Ainda que a imagem cinematográfica apresente uma convincente ilusão de espaço tridimensional, trata-se de uma superfície bidimensional que deve ser organizada de maneira a acentuar a profundidade para maximizar essa ilusão.

O diretor de arte uruguaio Rodrigo Martinera foi o escolhido para construir o universo do filme A Vida Invisível. Com um olhar sensível, Martirena foi capaz de recriar ambientes do Rio de Janeiro dos anos 1940 e 1950. Conforme o profissional, dois filmes do diretor chinês Wong Kar-Wai foram suas principais inspirações: Happy Together – Felizes Juntos (1998) e In the Mood for Love – Amor à flor da pele (2001) (Barco 2020).

Sobre o cinema de Wong Kar-Wai, Giuliana Bruno (2014, 4) salienta que nele

encontramos uma superfície flutuante luminosamente densa que mostra grão e granularidade, resíduo e sedimentação. Não somos solicitados a ver claramente através do tecido dessa tela, pois vários revestimentos e superfícies planas são construídos com diferentes materiais e todos são dobrados no plissado visual da edição. Com tantas camadas a percorrer na superfície, a própria tela, estratificada como um pano, ganha volume e se torna um espaço de real dimensão8.

Tal como William Chang, designer de produção que comandou a arte de ambos, Martirena lançou mão de ricas texturas para compor os ambientes e figurinos de A Vida Invisível. Essas texturas enriqueceram o filme não apenas visualmente, mas colaboraram também para a produção de significados dentro da narrativa e para despertar sensações no espectador.

Texturas

Em A sintaxe da linguagem visual (1997, 22), Donis A. Dondis afirma que

em todos os estímulos visuais e em todos os níveis da inteligência visual, o significado pode encontrar-se não apenas nos dados representacionais, na informação ambiental e nos símbolos, inclusive a linguagem, mas também nas forças compositivas que existem ou coexistem com a expressão factual e visual. Qualquer acontecimento visual é uma forma com conteúdo, mas o conteúdo é extremamente influenciado pela importância das partes constitutivas, como a cor, o tom, a textura, a dimensão, a proporção e suas relações compositivas com o significado.

Conforme Dondis (1997, 51) os elementos visuais: o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala e o movimento, são os componentes irredutíveis dos meios visuais e constituem a substância básica com a qual “contamos para o desenvolvimento do pensamento e da comunicação visuais”. Dondis ressalta que todos esses elementos “são a matéria-prima de toda informação visual em termos de opções e combinações seletivas. A estrutura da obra visual é a força que determina quais elementos visuais estão presentes, e com qual ênfase essa presença ocorre”. Na pesquisa que ora se desenvolve, almejamos direcionar um olhar atento a um desses elementos visuais. Constatamos que as texturas dos ambientes cinematográficos se configuram em um objeto de estudo ainda pouco analisado por acadêmicos.

Ao verificarmos nos dicionários, encontramos definições para a palavra “textura” como: “1. Ato ou efeito de tecer. 2. Estado ou disposição do que está tecido. 3. Tecido. 4. União íntima das partes de um corpo que formam como que um tecido. 5. Contextura, organização. 6. Disposição das partes de uma obra literária” (Priberam). Há ainda uma definição proveniente da geologia que diz: “Aspecto de uma rocha em que se inclui a forma dos cristais e o modo como eles se unem” (Ferreira 1986, 1316).

Para esta pesquisa, compreendemos por textura, o aspecto de uma superfície, que pode ser notado como, por exemplo, liso, rugoso, macio, áspero ou ondulado por meio da visão ou do tato. De acordo com Dondis (1997, 70),

A textura é o elemento visual que com frequência serve de substituto para as qualidades de outro sentido, o tato. Na verdade, porém, podemos apreciar e reconhecer a textura tanto através do tato quanto da visão, ou ainda mediante uma combinação de ambos. É possível que uma textura não apresente qualidades táteis, mas apenas óticas, como no caso das linhas de uma página impressa, dos padrões de um determinado tecido ou dos traços superpostos de um esboço. Onde há uma textura real, as qualidades táteis e óticas coexistem, não como tom e cor, que são unificados em um valor comparável e uniforme, mas de uma forma única e específica, que permite à mão e ao olho uma sensação individual, ainda que projetemos sobre ambos um forte significado associativo.

A maior parte de nossa experiência com a textura é, como destacado por Dondis, ótica, não tátil. Grande parte das obras visuais apresenta a aparência convincente de uma textura que não está, verdadeiramente, ali. Discorremos aqui sobre uma obra audiovisual, A Vida Invisível, portanto, o sentido primordial na compreensão das texturas é a visão. Não obstante, é importante ressaltar que ao olharmos para um objeto, os demais sentidos são também ativados. Giuliana Bruno propõe interessantes reflexões sobre materialidade. A autora procura demonstrar “que a fisicalidade de algo que se pode tocar não desaparece com o desaparecimento de seu material, mas pode se transformar culturalmente, transmutando-se em outro meio” (2014, 7)9.

Em sua investigação, Antoine Gaudin discorre a respeito do fato de que um filme não deve ser considerado apenas como uma exibição do espaço. “Também deve ser considerado como um fenômeno espacial em si, envolvendo todo o corpo do espectador, não apenas sua visão e audição, mas também seu sentido cinestésico” 10 (2018, 195).

Em Carnal Thoughts (2004), Vivian Sobchack nos lembra que experimentamos um filme não apenas com nossos olhos. Assistimos, compreendemos e sentimos um filme com todo nosso corpo constituído por memória sensorial acumulada. Como Laura Marks salienta, uma imagem não é apenas visual, mas multissensorial. Marks (2000, 145) elucida que um filme é “apreendido não apenas por um ato intelectual, mas pela percepção complexa do corpo como um todo” 11.

Ao apelar a um sentido para representar a experiência de outro, o cinema apela à integração e comutação da experiência sensorial no corpo. Cada imagem audiovisual encontra uma série de outras associações sensoriais. As imagens audiovisuais evocam associações conscientes, inconscientes e não simbólicas com o tato, o paladar e o olfato, que não são experimentados como separados. Cada imagem é sintetizada por um corpo que não necessariamente divide as percepções em diferentes modalidades de sentido (Marks 2000, 222) 12.

Segundo Marks (2000, 223), as obras audiovisuais são capazes de “invocar a memória dos sentidos para intensificar a experiência que representam”13. Destarte, o diretor de arte, ao planejar o universo de uma narrativa, deve refletir sobre quais texturas estarão presentes nas imagens e de que maneira elas influenciarão a experiência do espectador. No caso das texturas, a memória tátil também é despertada durante a visualização. Conforme Jennifer Barker, ao explorar a tatilidade, o cinema possibilita uma conexão mais intensa entre o espectador e o filme. “Dizer que somos tocados pelo cinema denota que essa experiência nos foi significativa, que se aproximou de nós e que literalmente ocupa nossa esfera, a ponto de compartilhar algo com ela: textura, orientação espacial, comportamento, ritmo e vitalidade” (Barker 2009, 2)14.

Texturas de A Vida Invisível

Como pode, então, um diretor de arte lançar mão de texturas para enriquecer as imagens fílmicas? Essa foi a pergunta que desencadeou a pesquisa aqui desenvolvida. É importante ressaltarmos, primeiramente, que a memória sensorial é individual, condicionada a bagagem de vida de cada pessoa. No entanto, espectadores de uma mesma nacionalidade podem ter bagagens similares e, portanto, podem reagir de maneira parecida a determinadas texturas. As imagens de A Vida Invisível são percebidas por brasileiros de forma diferente de como são percebidas por, por exemplo, suecos, uma vez que os brasileiros têm experiência com as texturas apresentadas. O que, para nós, pode remeter a aconchego e ser compreendido como belo e familiar, para pessoas de outras nacionalidades a percepção poderá ser diferente. Além disso, discorremos aqui sobre como as imagens nos tocaram e não buscamos afirmar quais eram as intenções dos criadores dessas imagens.

A história de A Vida Invisível se passa ao longo de vários anos e em locais distintos. Para esse estudo, optamos por destacar os lares que aparecem na narrativa. Para o filósofo fenomenólogo Gaston Bachelard (1964), o conceito de lar como abrigo está profundamente enraizado no inconsciente humano. Segundo o filósofo, a casa esconde, expõe, protege, acolhe e mimetiza os gestos e os movimentos corporais, assim como suas afetividades. Bachelard propõe que a casa é nosso principal canto do mundo, é “nosso primeiro universo, um verdadeiro cosmos em todos os sentidos da palavra” (1964, 4)15. O autor observa que a sensação do menor trinco do quarto “permaneceu em nossas mãos” (1964, 15), porque nossos corpos são formados pela forma e textura dos espaços íntimos que habitamos. Os principais espaços íntimos do filme são: a casa dos pais de Guida e Eurídice, as casas onde Guida morou e as casas de Eurídice.

A residência dos pais (Figura 1) possui paredes ásperas e sujas e os tecidos em diferentes materiais e estampas enriquecem as imagens. O ambiente nos remete ao Brasil, mas também a Portugal, país de origem do casal. Na sala da residência há cortinas com grandes padrões florais que preenchem o ambiente, assim como cortinas azuis de renda que reiteram a nacionalidade do casal e nos fazem lembrar dos nossos avós. As paredes sujas e rugosas parecem úmidas e gélidas ao toque. A mesa e o piano de madeira antiga revelam a época da história e proporcionam uma textura mais lisa ao ambiente. No entanto, as teclas do piano estão encrustadas de sujeira, o que, mais uma vez representa uma superfície áspera. A sujidade das teclas evidencia o quanto o piano é utilizado. O instrumento musical é o único “refúgio” de Eurídice. A poltrona de veludo do Sr. Manuel nos transmite uma sensação de calor, algo pouco almejado devido ao clima da cidade. O veludo é mais uma indicação da época da narrativa. Observamos que até mesmo o espelho do quarto das irmãs não aparenta uma textura lisa, visto que parece estar empoeirado e acaba se camuflando entre os grãos da parede. Ainda nesse ambiente, percebemos como a colcha e a fronha de crochê nos remetem a antigas tradições consideradas “femininas”. O banheiro da casa possui meia parede de azulejo branco que contrasta com a encardida e descascada parte superior. A casa aparenta não ser bem cuidada, talvez um reflexo das relações ali vividas. A aspereza das paredes vai ao encontro da aspereza do relacionamento entre pai e filhas.

Fora da casa, o muro e as escadas são de cimento, com aspecto bastante grosseiro. Há plantas crescendo pelo muro e folhas secas no chão que enriquecem visualmente o ambiente. Novamente, salientamos que a umidade na construção contribui para a sensação de frieza. Na varanda, há alguns espaços sem azulejos que exibem a áspera textura que fica escondida sob as peças lisas. No mesmo frame, há também um contraste entre as lisas folhas de bananeira com o muro rugoso. No espaço onde o pai limpa o peixe, as escamas do animal se misturam à parede suja e à madeira antiga que nos remete à sensação de farpas na pele. Pouco depois dessa ação, o Sr. Manuel lançará, metaforicamente, farpas à filha grávida recém-chegada.

Figura 1 – Frames da casa dos pais de Eurídice e Guida.

As casas de Guida (Figura 2) apresentam uma qualidade textural de ambientes menos assépticos. Na primeira, as telhas de amianto nos transportam para um Brasil precário e são indicativos da época e da pobreza do local. As paredes do quarto são extremamente ásperas e sujas, e a rugosidade salta aos olhos do espectador. O banheiro é imundo, com tinta descascada e nem mesmo os azulejos transmitem a sensação de serem lisos, devido à enorme sujeira acumulada que parece ser perceptível através também do toque. Já na segunda, o muro de barro com grandes pedras nos remete à simplicidade. A nossa memória é ativada e nos recordamos da sensação de tocar no barro, das partículas que se desprendem e grudam nas mãos. As paredes com acabamento rústico revelam, a princípio, a situação financeira da família, e de uma maneira mais abstrata, as camadas de histórias vivenciadas naquele ambiente. As rendas, visíveis em algumas cenas, atuam como um elo entre Guida e sua origem portuguesa, e trazem um conforto maior para o ambiente. O lar de Guida nos remete a uma situação vivenciada pela maioria das pessoas: esbarrar acidentalmente em uma parede áspera e se machucar. Guida, infelizmente, esbarrou em muitas paredes escabrosas ao longo da vida. Ao final do longa-metragem, a residência aparece repleta de plantas que proporcionam uma textura agradável à cena e indicam que a vida de Guida, aos poucos, se tornou mais confortável.

Figura 2 – Frames das casas de Guida.

As casas de Eurídice (Figura 3) são menos ricas em texturas ásperas que as demais apresentadas. O que leva o espectador a, por um lado compreender que o status financeiro do casal é mais elevado e, por outro, perceber um ambiente menos “humano” e mais frio. A longa escada que Eurídice precisa subir para chegar à casa é estreita e margeada por um muro alto, com tinta descascada e algumas plantas que teimaram em nascer entre as adversidades do cimento, tal como a personagem que passou a vida enfrentando adversidades. O corrimão de ferro enferrujado tende a ser áspero e pouco confortável ao toque. Há também na parte exterior muito mofo, o que torna as paredes menos lisas. Na sala da casa há uma interessante textura visual de losangos, no sofá, na cortina e na grade fora da janela que contribuem para um rico visual e refletem o complexo emaranhado da vida de Eurídice. No quarto que está sendo preparado para o filho, há uma colcha de fuxico, artesanato comum no Brasil. A textura formada pelas coloridas circunferências faz parte da cultura popular do país. O banheiro da residência é o mais limpo apresentado no filme. O padrão na composição dos azulejos lembra o da casa dos pais, assim como a presença da listra preta que indica o começo da parede pintada. O basculante de vidro martelado nos transporta ao período da narrativa e desperta em nós memórias afetivas. Ao final da história, já idosa, Eurídice aparece, assim como a irmã, em meio às plantas. A personagem encontra-se no famoso Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. O edifício, projetado nos anos 1940, pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, para abrigar funcionários públicos, é um ícone arquitetônico da cidade. Nessas cenas, as texturas visuais criadas pelas linhas das grades, das cadeiras e dos cobogós16 (elementos vazados que separam duas áreas sem prejudicar a iluminação e a ventilação), nos remetem ao Brasil do século passado e enriquecem consideravelmente as imagens.

Figura 3 – Frames das casas de Eurídice.

Não buscamos aqui fazer uma clássica análise semiótica, tampouco adentrarmos profundamente no universo fenomenológico. Acreditamos que ambos os caminhos são válidos e não devem, necessariamente, serem separadamente percorridos. Nosso intuito foi direcionar uma luz às texturas do longa-metragem e perceber como elas são relevantes componentes das imagens fílmicas. A análise das texturas presentes em uma obra audiovisual é um caminho ainda pouco desbravado e acreditamos que profícuas pesquisas podem ser feitas sobre esse assunto.

Conclusão

Giuliana Bruno enfatiza que as superfícies têm profundidade e podem ser interessantes objetos de estudo. Conforme Bruno (2014, 32), “como objetos de design, a arquitetura, a moda e o cinema são superfícies que desenham a textura transformadora da interioridade psíquica”17. A análise aqui decorrida elucidou como a interioridade psíquica dos personagens do filme foi materializada nas texturas que as rodeiam.

As texturas visíveis do filme A Vida Invisívelcarregam vivências repletas de memórias, incertezas, dores e resiliência e contribuem para a transmissão das texturas invisíveis da história. Ao reconhecermos o amplo potencial da expressão material, percebemos que os cenários do filme, assim como a narrativa, são densos, rugosos e repletos de camadas. Vale ressaltar ainda a importância não apenas simbólica das texturas nas imagens, mas também como elementos que contribuem para a riqueza multissensorial da obra que desperta distintas sensações no espectador.

Como a principal impressão sensória despertada pelo filme nos autores deste artigo, podemos destacar a aspereza. A Vida Invisível é um filme áspero, repleto de camadas descascadas, não polidas, impregnadas de história e sentimentos. Essas camadas envolvem e “arranham” o espectador que, ao final do longa-metragem, sente-se profundamente tocado pela história.

Notas finais

1Neste trabalho, os termos “designer de produção” e “diretor de arte” são utilizados como sinônimos.

2Seção derivada da tese de douramento do coautor Alfredo Taunay.

3Tradução nossa. No original: “In a practical sense, they are building somewhere for the action to take place and in a creative sense, making it appropriate for the film and the characters who live there”.

4Tradução nossa. No original: “One of the purposes of production design, even at the homespun level, is to discriminate and select in order to create a plausible background to the narrative”.

5Tradução nossa. No original: “Production designers supervise the overall “look” of a film, working in close collaboration with directors, cinematographers, and their own staffs. Designers are expected to have a thorough knowledge of a film’s setting, from the basics of architectural style to the shape of a cufflink. As with any collaborative position, the designer’s power varies according to the circumstance. A well-known designer working with a neophyte director may have more control over the final image. A less-established designer working for a director with a strong visual style may be little more than a functionary. What remains true for all designers is their focus on the visual, physical realm of the movie”.

6Tradução nossa. No original: “(…) created not so much by a glut of detail as by selective composition leading to maximum impact”.

7Tradução nossa. No original: “Film design works from the difference between the physical world as it exists and the requirements of a particular narrative”.

8Tradução nossa. No original: “Here we find a luminously dense, floating surface that shows grain and granularity, residue and sedimentation. We are not asked to see clearly through the fabric of this screen, for several coatings and planar surfaces are built up out of different materials, and all are folded together in the visual pleating of editing. With so many layers to traverse on the surface, the screen itself, layered like cloth, takes on volume and becomes a space of real dimension”.

9Tradução nossa. No original: “The physicality of a thing one can touch does not vanish with the disappearance of its material but can morph culturally, trans- muting into another medium”.

10Tradução nossa. No original: “(…) It must also be considered as a spatial phenomenon in itself, engaging the entire viewer’s body, not only their vision and hearing, but also their kinaesthetic sense”.

11Tradução nossa. No original: “Film is grasped not solely by an intellectual act but by the complex perception of the body as a whole”.

12Tradução nossa. No orginal: “By appealing to one sense in order to represent the experience of another, cinema appeals to the integration and commutation of sensory experience within the body. Each audiovisual image meets a rush of other sensory associations. Audiovisual images call up conscious, unconscious, and nonsymbolic associations with touch, taste, and smell, which themselves are not experienced as separate. Each image is synthesized by a body that does not necessarily divide perceptions into different sense modalities”.

13Tradução nossa. No original: “Any film or video is capable of calling on the memory of the senses in order to intensify the experience it represents”.

14Tradução nossa. No original: “To say that we are touched by cinema indicates that it has significance for us, that it comes close to us, and that it literally occupies our sphere. We share things with it: texture, spatial orientation, comportment, rhythm, and vitality”.

15Tradução nossa. No original: “(...) the house is (…) our first universe, a real cosmos in every sense of the word”.

16“O cobogó foi criado em 1929 por dois comerciantes e um engenheiro pernambucanos que usaram as iniciais dos seus sobrenomes para compor o nome “co-bo-gó”: Coimbra, Boeckmann e Góes. O desenho foi inspirado nos muxarabis, elementos vazados de origem árabe com tramas pequenas e feitos de madeiras. Eles foram pensados para sacadas e janelas de casas com intuito de trazer mais privacidade” (Santos 2019).

17Tradução nossa. No original: “Ultimately, as objects of design, architecture, fashion, and cinema are surfaces that design the transformative texture of psychic interiority”.

Bibliografia

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Filmografia

A Vida Invisível. 2019. De Karim Aïnouz. Brasil: Rt Features. https://www.filmin.pt/filme/a-vida-invisivel.