Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

The influence of statistics in structuring the participatory and expository mode

A influência da estatística na estruturação dos modos participativo e expositivo

João Pedro Fernandes

Escola Superior de Media Artes e Design, Instituto Politécnico do Porto, Portugal

Filipe Lopes

CIPEM/INET-md, uniMAD, Instituto Politécnico do Porto, Portugal

Abstract

This article aims to discuss the relationship between the adoption of a specific mode of documentary during the ideation phase, usually performed during pre-production, and the structure of the final version of the film. This relationship will be approached by implementing quantitative analysis methods to assess the number and duration of different types of shots. To this end, we will correlate and present a statistical framework about the expository mode and the participatory mode, as defined by Bill Nichols (2001), based on an extensive analysis of the documentaries Inside Job (Ferguson 2010) and Capitalism: A Love Story (Moore 2009). The shot analysis includes the number of interviewees, cutaway shots (b-roll), graphics, and archive footage, as well as the duration of each of these elements. Based on this analysis, we will analyse the two films in order to better understand what constitutes the essence of each of these documentary modes through the lens of statistics, as well as reflect on how this data can help structure the editing process.

Keywords: Quantitative Analysis, Modes of Documentary, Editing, Inside Job, Capitalism.

Introdução

No contexto de um estágio curricular feito numa produtora (Fernandes, 2022), o primeiro autor foi confrontado com a possibilidade de montar um longa-metragem documental que aborda assuntos económicos complexos, ou seja, assuntos que relacionam bancos, governo, sociedade, personalidade públicas, agências económicas e todo um conjunto de termos e procedimentos específicos da área da economia. A este documentário vamos chamar-lhe Documentário X. Perante este desafio, foi necessário definir uma estratégia que permitisse pensar quais as formas pertinentes e interessantes que poderiam ser adoptadas para a montagem desse documentário e, dessa forma, foi necessário definir um plano para a estruturação do filme. Este passo preparatório que antecedeu a montagem propriamente dita foi, de facto, essencial porque o documentário era de longa duração, tratava de temas complexos e havia uma grande quantidade de material gravado e de imagens de arquivo. Perante esta situação, colocou-se a seguinte pergunta: como começar a montar o Documentário X? Se por um lado não nos interessava aplicar fórmulas pré-concebidas e impingi-las no material audiovisual que tínhamos em mãos, pareceu-nos fundamental conhecer documentários que se situassem no mesmo território temático para os analisar e dessa análise “extrair” ideias que apoiassem esta fase preliminar da montagem. A montagem é um tema muito complexo, com longa tradição no cinema e um aspeto essencial naquilo que faz o cinema ser cinema. Foram Edwin S. Porter (1870-1941) e D. W. Griffith (1885-1948), com base nos filmes que realizaram, que deram os primeiros passos na compreensão do potencial narrativo que a montagem oferece à linguagem cinematográfica. Nos anos seguintes, chegaram ideias frescas pela mente de Lev Kuleshov (1899-1970), Dziga Vertov (1896-1954) e Eisenstein (1898-1948), bem como mais recentemente por Walter Murch (1943- ), entre muitos outros. Descrever em profundidade a história da montagem no cinema está fora do escopo deste artigo, porém, sugerimos que o leitor consulte (Crittenden, 2003; Dancyger, 2014; Murch, 2001; Pearlman, 2012) caso deseje conhecer em detalhe a história e influência da montagem no cinema. Para efeitos de investigação no contexto deste artigo, quando nos referirmos a montagem estaremos a falar da ordenação e duração de planos ao longo do tempo. Não obstante, e sempre que possível, iremos fazer a ligação a aspetos artísticos e discursivos que estão implicados na montagem para contextualizar as nossas ideias num espectro mais largo sobre montagem.

Metodologia de investigação

Este projeto de investigação é possível ser situado como um estudo descritivo e correlacional mas, ao invés da situação típica deste tipo de estudo i.e. determinar a existência de uma relação ou associação entre variáveis, pretende-se gerar uma conclusão qualitativa que aponte um caminho para a montagem e não o caminho para a montagem. Em termos metodológicos, decidimos analisar dois documentários que abordassem esta temática mas que o fizessem de forma diferente em termos de abordagem narrativa. Para esse efeito escolheram-se os documentários Inside Job - A Verdade da Crise de Charles Ferguson (2010) e Capitalism: A Love Story de Michael Moore (2009), daqui para a frente apenas referidos como Inside Job e Capitalism, que, ao mesmo tempo, representam dois dos modos de documentário teorizados por Bill Nichols (2001), a saber: o modo expositivo e o modo participativo. Temos então um quadro teórico oferecido por Nichols e dois estudos de caso contrastantes enquanto matéria de análise. A análise de cada filme poderia assumir diferentes variáveis e abordagens, no entanto, optou-se por uma abordagem quantitativa que, por sua vez, está subjacente a uma classificação do tipo de planos, a saber: entrevistas, planos de corte, arquivo e grafismo. A escolha deste tipo de planos decorre, por um lado, porque os documentários escolhidos apresentam este tipo de planos de forma recorrente mas, por outro lado, o material audiovisual que tínhamos para o Documentário X era também perfeitamente enquadrado nesses termos. Ora, assumindo a definição de montagem dada anteriormente, a análise quantitativa servirá para conhecer a “epistemologia” da montagem e, a partir dessa, refletir sobre a essência dos modos e da pertinência de criar um modelo de estrutura abstracto.

Modos de Documentário

Segundo Nichols (2001), as duas características que moldam o estilo do realizador ou o estilo de um documentário em particular são, por um lado, a forma como o realizador vai tentar traduzir a perspetiva do mundo histórico em que habita para a linguagem audiovisual e, por outro lado, como decide gerir o seu envolvimento com a matéria que pretende abordar. Nichols defende que é possível identificar seis modos de representação que funcionam como subgéneros do documentário, a saber: poético, expositivo, participativo, observacional, reflexivo e performativo. Estes modos agrupam convenções que um determinado filme pode adotar, e que, como tal, cria determinada expectativa que o público espera ver cumprida. É importante referir que as diferenças dos modos surgem da evolução natural do género:

To some extent, each mode of documentary representation arises in part through a growing sense of dissatisfaction among filmmakers with a previous mode (…) The desire to come up with different ways of representing the world contributes to the formation of each mode, as does a changing set of circumstances.

(Nichols 2001, 100-101)

Está fora do escopo deste artigo abordar todos os modos, pelo que nos vamos concentrar nos modos expositivo e participativo, tal como teorizado por Nichols. No entanto, não nos iremos concentrar em exclusivo nos escritos de Nichols, trazendo para a discussão outros autores que abordam estes modos. Para uma consulta mais abrangente sobre os modos de documentário, tal como teorizados por Nichols, o leitor poderá consultar o livro escrito pelo próprio autor (Nichols, 2001). Passaremos então a definir os modos mencionados, salientando os aspetos pertinentes no contexto desta investigação à luz das duas características acima mencionadas.

Modo Expositivo

Segundo Penafria (2013), o modo expositivo,

organiza os acontecimentos de modo mais argumentativo e retórico e dirige-se diretamente ao espectador, por norma através de um narrador que propõe uma leitura desses acontecimentos.

(Penafria 2013, 132)

Penafria acrescenta ainda que os documentários do modo expositivo são

filmes que se encontram associados à objetividade e omnisciência e a voz do narrador organiza as imagens dando-lhes sentido: (…) a montagem está ao serviço desse discurso e não das imagens.

(Penafria 2013, 132)

A narração oferece a interpretação do realizador da imagem apresentada. A imagem serve um papel secundário: ilustra, evoca, confirma ou refuta o que foi dito. Em concordância com Penafria, Desmond Bell refere que, “this voice is often didactic in tone, authoritative in manner and expository in form” (Bell 2011, 52). Estes documentários têm geralmente uma estrutura linear e cronológica, com um início, meio e fim claramente definidos. O realizador pode, assim, apresentar informação complexa de forma acessível e permite que o espectador acompanhe o raciocínio apresentado, e compreenda os temas em discussão. Bill Nichols (2001) argumenta que a edição no modo expositivo não tem como principal preocupação estabelecer um ritmo ou um padrão formal, mas sim manter a continuidade do argumento apresentado. É mais importante para o realizador manter a continuidade retórica do que a continuidade temporal ou espacial. A edição do modo expositivo enfatiza a sensação de objetividade e de um argumento bem-estruturado - este tipo de edição chama-se evidentiary editing - oferecendo também uma análise eficiente de um tema, já que a argumentação pode ser feita de forma clara, concisa e direta através de um discurso bem articulado. Este factor faz com que documentários do modo expositivo sejam presenças regulares em contexto educativo, quer em contexto de sala de aula como na televisão. Esta eficiência de discurso é também atingida pelo estilo visual, que faz uso de elementos visuais como imagens de arquivo, elementos gráficos e animações para ilustrar pontos-chave do argumento e dar contexto sobre o tema. O modo expositivo procura retirar o realizador da cena: a apresentação do argumento por voice-over esconde o realizador do seu público, tentando criar a ilusão de que ele não está lá, com o corte das perguntas do mesmo e a apresentação apenas das respostas dos entrevistados. Estas características do modo expositivo ditam a relação do realizador com o ator social, que em si dita a edição realizada. A parte essencial desta relação é aquilo que este último pode oferecer ao realizador (e assim, ao filme). Esta oferta pode assumir a forma de um depoimento sobre um acontecimento ou contextualização sobre uma temática. Qualquer que seja a declaração do ator social, esta tem valor pelo potencial que a mesma tem para avançar a argumentação do realizador, no seu diálogo com o espectador. A participação do ator social é, assim, um ingrediente nas mãos do realizador, enquanto este cozinha o seu argumento: misturando os vários depoimentos, imagens reais, imagens de arquivo, narração e grafismo num produto final que reconfigurou poética e argumentativamente a situação social inicial.

Modo Participativo

Sobre o surgimento do modo participativo, Nichols (2001) argumenta que:

Participatory documentary took shape with the realization that filmmakers need not disguise their close relationship with their subjects by telling stories or observing events that seemed to occur as if they were not there

(Nichols 2001, 100-101).

Agora o realizador pode assumidamente intervir no filme (i.e. dando a ouvir-se, dando a ver-se), desconstruindo a ilusão da ausência de uma equipa de filmagem, tal como nos explica Nichols:

When we view participatory documentaries, we expect to witness the historical world as represented by someone who actively engages with, rather than unobtrusively observes, poetically reconfigures, or argumentatively assembles that world. The filmmaker steps out from behind the cloak of voice-over commentary, steps away from poetic meditation, steps down from a fly-on-the-wall perch, and becomes a social actor (almost) like any other

(Nichols 2001, 116)

Segundo Penafria (2013, 133), “a eliminação da voz única do narrador a favor de uma multiplicidade de vozes é a aposta” do modo participativo. A relação do realizador com os intervenientes do filme é, assim, a parte nuclear da produção deste modo. A edição é também afetada pela presença do realizador em cena, e pelo reconhecimento dessa presença em cena por parte do espectador.

We expect that what we learn will hinge on the nature and quality of the encounter between filmmaker and subject rather than on generalizations supported by images illuminating a given perspective. We may see as well as hear the filmmaker act and respond on the spot, in the same historical arena as the film’s subjects. The possibilities of serving as mentor, critic, interrogator, collaborator, or provocateur arise

(Nichols 2001, 116)

O documentário participativo oferece a participação ativa do realizador com os seus entrevistados, evitando a exposição através de uma narração anónima. Isto situa o filme no local, no momento, e numa perspetiva específica, enriquecida com o comentário de vozes individuais, que só são captadas pela presença do realizador nos eventos dos quais o próprio é participante. Como espectadores, esperamos assistir a um encontro situado num contexto específico, dentro de uma interação negociada, num encontro com emoção.

The mode introduces a sense of partialness, of situated presence and local knowledge that derives from the actual encounter of filmmaker and other. Issues of comprehension and Interpretation as a function of physical encounter arise: how do filmmaker and social actor respond to each other?

(Nichols 1991, 44)

A estrutura de um documentário deste modo poderá ser mais fluída, já que o realizador está a explorar o tema em conjunto com o espectador. O documentário poderá avançar ou retroceder no tempo e mudar várias vezes de localização, resultando numa estrutura não-linear, e a possibilidade de ter um final em aberto, que permite ao espectador retirar as suas próprias conclusões. Uma das principais vantagens do modo participativo é permitir que se forme uma conexão emocional mais pessoal entre espectador, realizador e sujeito retratado. A presença e participação do realizador pode ajudar a criar uma maior conexão emocional com o tema do documentário, devido à proximidade do realizador ao tema em questão e de este servir como o representante do espectador na cena. Este facto, aliado à assunção da presença da câmara em cena, confere a este tipo de documentários maior autenticidade. A estrutura menos rígida permite também a procura e inclusão de momentos de maior conexão e clarividência sobre o tema em questão que surjam inesperadamente, assim como a utilização das experiências e emoções do realizador para orientar o filme. Estas qualidades tornam o modo participativo apelativo para realizadores, por tornar possível a abordagem de tópicos do âmbito mais pessoal. No entanto, o modo participativo exige a seleção dos atores sociais certos, e uma boa gestão da relação com o ator social, porque, segundo Nichols (1991, 44) “Textual authority shifts toward the social actors recruited: their comments and responses provide a central part of the film’s argument”.

Estudos Analíticos

No contexto desta investigação foram escolhidos os filmes Inside Job - A Verdade da Crise (2010) e Capitalism: A Love Story (2009) porque, não só tipificam os modos expositivo e participativo, como também analisam o tipo de temática que queremos abordar e carregam a complexidade que o Documentário X também carrega. Há diversas formas de partir para a análise de filmes, porém, no contexto desta investigação decidiu-se quantificar o número de planos em termos de segundos. A abordagem estatística surgiu porque nos pareceu adequado quantificar a montagem nesses termos, além disso, e no decorrer da investigação, apercebemo-nos que esta abordagem não é muito popular enquanto ferramenta de análise fílmica, o que nos fez interessar ainda mais pelas possibilidades que tal abordagem poderia trazer. Dividimos, grosso modo, os tipos de planos em entrevistas, planos de corte, arquivo e grafismo (i.e. qualquer animação de elementos vetoriais, motion graphics). A razão desta escolha decorre, por um lado, por serem imagens bastante contrastantes em termos semióticos e, por outro lado, porque sentiu-se que seriam este tipo de imagens que iriam compor o Documentário X.

Inside Job – A Verdade da Crise

O documentário Inside Job tem a seguinte estrutura: uma introdução, um genérico, e cinco capítulos com durações divergentes, com uma média de 19 minutos por capítulo. Para cada capítulo, foram enumerados o número de entrevistados, grafismos, planos de corte e imagens de arquivo. Na coluna dos entrevistados, cada linha contém o nome do entrevistado seguido da duração do seu on (i.e. o intervalo de tempo em que o entrevistado faz a sua intervenção ininterrupta, sem cortes para outro elemento ou outra parte posterior ou anterior do seu discurso). Foram contabilizados dois tipos de ons: imagens de arquivo e imagens de entrevista. Os ons de arquivo foram contabilizados nesta coluna, além de serem também contabilizados na coluna de arquivo, por se entender que o conteúdo é equiparável ao de uma entrevista visto que é utilizado o discurso de um interveniente-chave da história. Na estrutura geral, o número total de entrevistados é menor do que a soma do número dos entrevistados dos vários capítulos, porque vários entrevistados aparecem em vários capítulos, e não são contabilizados duas ou mais vezes. Na coluna dos grafismos, cada linha contém um breve resumo do conteúdo mostrado (e.g. texto, gráfico, highlighting de texto num documento, animação). Na coluna dos planos de corte, são enumeradas a totalidade das imagens mostradas, das quais x são de arquivo, e dessas, y são fotografias. Na coluna das imagens de arquivos, incluem-se fotografias e outros documentos históricos, como currículos vitae dos entrevistados, relatórios que os mesmos redigiram, relatórios governamentais, imagens de noticiários, conferências de imprensa, e comissões de Inquérito. A análise de Inside Job demonstra que o mesmo é um documentário de modo expositivo. Vejamos: o realizador, Charles Ferguson, usa maioritariamente ons com duração igual ou inferior a 15 segundos (156/212 = 74%), ou seja, os depoimentos dados são altamente editados, e o conteúdo do discurso de cada entrevistado é encadeado com o imediatamente anterior e posterior, criando uma lógica argumentativa; o uso de declarações mais longas, tanto de entrevista, como de arquivo, é uma excepção, e serve na generalidade, o propósito de explicar ao público conceitos financeiros complexos essenciais à compreensão da narrativa; a relação de Charles Ferguson com os entrevistados é marcada pelo formato de pergunta-resposta de uma entrevista tradicional, sendo que o valor que os atores sociais trazem ao documentário é pautado pelo seu conhecimento específico sobre o tema e o seu testemunho dos eventos que decorreram, que motivaram a realização do filme, ou seja, são anteriores à presença da câmara e do realizador; o grafismo é empregue regularmente como veículo para comprovar ou desmentir declarações dos entrevistados e explicar conceitos complexos, sendo utilizado como uma ferramenta retórica que ajuda a alimentar a lógica apresentada pelo realizador; são utilizados grafismos na forma de animações em movimento, como gráficos de barras, e como forma de destacar frases relevantes em artigos científicos, declarações oficiais ou relatórios governamentais, que comprovam ou desmentem o discurso do entrevistado; certas imagens de arquivo são utilizadas para providenciar contexto ao espectador, apresentar depoimentos contraditórios, e apresentar personagens relevantes para a história, nomeadamente através do uso de imagens de noticiários, comissões de inquérito, declarações a órgãos de comunicação social e fotografias; os planos de corte - imagens reais, quer atuais, como de arquivo, fotográficas, e em vídeo - têm um uso meramente ilustrativo. “Pintam” o discurso dos entrevistados, com imagens que permitem a identificação do tempo, espaço e intervenientes na ação; a organização destes mesmos planos, nomeadamente na ordem e duração dos mesmos, é também utilizada de forma expediente; o realizador utiliza planos curtos (entre meio segundo e dois segundos de duração) para comunicar o descalabro financeiro e o pânico que se sentia, na sequência dos eventos que levaram à crise económica de 2008, bem como para comunicar a velocidade e despreocupação do estilo de vida dos corretores de bolsa; por fim, e de forma contrastante, o realizador utiliza planos longos, acima dos 2 segundos de duração, para diminuir o ritmo do documentário, explicar conceitos complexos (e.g. procedimentos jurídicos, conceitos financeiros), e refletir nas consequências das ações danosas dos responsáveis. Para concluir, o filme está claramente estruturado, com uma separação em capítulos. O capítulo inicial sobre a Islândia serve como introdução. São depois apresentados os créditos iniciais. A conclusão é apresentada a partir do capítulo V: Where Are We Now.

Capitalism – A Love Story

A análise do documentário Capitalism produziu conclusões que apontam para a ideia deste documentário ser do modo participativo. O argumento mais marcante a favor deste filme como um representante do modo participativo é a presença de Michael Moore, como realizador, no filme. O realizador narra o filme, aparece em câmara nas entrevistas e em planos de corte, e a sua presença, assim como a de toda a equipa, e a respetiva parcialidade dos mesmos não passa despercebida. Talvez o exemplo mais gritante do âmbito pessoal deste documentário seja a visita que Michael Moore faz com o seu pai – Frank Moore - à antiga fábrica onde este trabalhava. Outros exemplos são as suas interações com figuras de autoridade, como seguranças e agentes da polícia. Dos ons escolhidos por Michael Moore, 30% têm uma duração superior a 15 segundos. Embora este número seja muito semelhante ao de Inside Job (26%), há algumas diferenças impossíveis de ignorar: os depoimentos dados são esparsamente editados. O realizador dá espaço (e tempo) aos seus entrevistados de chorarem, soluçarem, assoarem-se, e respirarem, permitindo que a conversa entre realizador e ator social (às vezes até uma família inteira de atores sociais) flua em tempo real, e seja apresentada ao espectador em tempo real, como se o mesmo estivesse presente no local. Os ons dos entrevistados dependem do setup. Quando o formato clássico da entrevista é seguido, em que existem duas câmaras, uma no realizador e uma no sujeito, o discurso é editado, mas ainda assim os ons são mais longos quando comparados com o documentário Inside Job, dando uma ideia de entrevista contínua. Quando o formato é mais semelhante a uma reportagem, como no caso da visita à família Hacker ou na comunidade de Miami que retoma uma casa, os ons são ininterruptos, permitindo ao espectador ver a progressão da conversa em tempo real, com a ação e as demonstrações de emoção dos atores sociais. Poderia dividir-se este filme não em capítulos, mas de acordo com as localizações e setores da sociedade que Moore aborda. O filme não é escravo de nenhuma estrutura lógica ou lineariedade. Um exemplo desta liberdade, que permite a acomodação de momentos imprevistos nas entrevistas, é a transição do fim da “peça” sobre os jovens incarcerados para a “peça” sobre os pilotos de aviação, que acontece por um entrevistado referir que o seu sonho é tornar-se piloto (34:42). O realizador dá aos seus atores sociais tempo para se exprimirem. O uso de ons de arquivo acontece quando necessário, sendo os ons breves e entrelaçados na narração ou no testemunho, para complementar o que foi dito. Os planos de corte usados têm uma longa duração porque têm como papel retratar a localização em que realizador e ator social se encontram, e acentuar o peso emocional do que foi referido pelos intervenientes, como, por exemplo, os planos da família que queima os seus pertences. Sobre os planos de corte de arquivo, são usados extensivamente, para comprovar testemunhos ou a tese da narração, e fazer avançar a narrativa. São, por exemplo, utilizados elementos de comissões parlamentares, declarações à imprensa e noticiários para conectar os pontos na história. São ainda utilizadas imagens de arquivo de filmes, documentários, publicidade, vídeos educacionais e outras formas de conteúdos antigos para ilustrar a narração de Moore. Fotografias e planos de corte são utilizados para apresentar personagens importantes na história, assim como retratar certas ocasiões específicas (e.g. sessões do Congresso, conferências imprensa). O grafismo é usado esparsamente, maioritariamente na forma de texto ou para realçar determinadas frases em documentos. O filme argumenta a sua perspetiva principalmente através da partilha de experiências vividas em tempo real ou recontadas pelos atores sociais, e não só através da utilização de imagens reais ou de arquivo que suportam a narração. A narração do realizador serve, em Capitalism, o propósito de posicionar o espectador no tempo e local do exemplo que está a ser apresentado. No entanto, Moore, tanto através da narração como na sua interação com os atores sociais, faz uso de todo o leque de alternativas que este modo lhe abre. Como Nichols (2001) definiu, Moore serve de colaborador quando consola famílias, interrogador perante senadores e congressistas, ou provocador através de uma narração recheada de ironia, ou nas suas interações com os seguranças e polícias no Financial District de Nova Iorque, no final do filme.

Síntese

Concluindo, enquanto em Inside Job o realizador utiliza todas as ferramentas possíveis para criar uma tese e defendê-la, esperando assim convencer o espectador da justiça do seu argumento, em Capitalism, através da presença do narrador em várias situações e da sua interação com vários atores sociais (e.g. famílias com familiares falecidos em quem empresas tiraram seguros de vida, crianças encarceradas, pilotos, famílias que perderam a sua casa, pessoas em greve, padres e membros do Congresso americano) elimina a voz única do narrador que se serve de vários argumentos (e.g. arquivo, grafismo), escolhendo, em vez disso, passar a sua mensagem através desta multiplicidade de vozes.

A análise estatística enquanto impulsionador criativo

A análise de filmes tem neste projeto três propósitos muito específicos: (1) conhecer a estrutura do filme (2) relacionar a análise estatística dos filmes analisados com os modos abordados (3) extrapolar modelos abstratos que possam servir de orientação para a montagem de temas de complexidade semelhante. Cumpridos os pontos (1) e (2), iremos agora explorar o ponto (3), começando por abordar brevemente alguns fatores que cada realizador deve ter em conta na pré-produção de um documentário que irá adotar um destes modos. Para realizar um documentário do modo expositivo, o realizador deverá focar-se em reunir informação factual e verdadeira, para poder organizar a apresentação da mesma de forma clara e concisa. Este trabalho engloba uma pesquisa extensiva para uma compreensão vasta do tema antes do início das filmagens, a identificação e contacto com testemunhas-chave e especialistas sobre os temas, e o planeamento da estrutura do filme com antecedência para assegurar que a informação é apresentada de forma lógica, coerente, em sequência e num arco narrativo claro que guia o espectador pela história. O realizador que adote o modo participativo irá focar-se numa exploração mais pessoal e subjetiva do tema a abordar, de forma a criar uma conexão emocional entre o público e o tema. Isto englobará passar mais tempo com os atores sociais, talvez até antes de começar a filmar, e estar aberto a surpresas e momentos inesperados durante as filmagens. Saltos no tempo, diferentes localizações e diferentes perspetivas são todas ferramentas à disposição do realizador que, não estando sujeito a estruturas decididas previamente, pode deixar que a história se desenvolva de uma forma mais orgânica e imprevisível, visionando os conteúdos e decidindo novos rumos para a narrativa à medida que vai realizando as entrevistas. Esta reflexão do realizador será um produto não só do modo escolhido, mas também muito influenciada pelo tema escolhido e os objetivos que o realizador tem para o filme. Esta reflexão terá que ter em conta como estruturar o filme, que tipo de imagens e entrevistas quererá recolher, e como equilibrar as diferentes perspetivas e vozes para criar um produto final convincente e envolvente. A escolha do modo poderá influenciar ainda o estilo visual, tom e ritmo do filme, o que tem também impacto no processo de produção, mas que já cai fora do âmbito deste artigo. Tendo esta informação em conta, parece-nos que os dados analíticos revelam duas facetas interligadas: uma faceta microcósmica que revela a estrutura (i.e. sequenciação e duração do tipo de planos) e outra faceta macrocósmica que revela o peso que cada tipo de plano tem no filme (i.e. proporção).

Faceta Microcósmica

Apresentamos de forma visual a estrutura de ambos os modos, na esperança que a visualização desta informação permita a futuros realizadores terem duas estruturas diferentes que podem considerar quando abordando estes ou outros temas. A informação aqui apresentada resulta de uma análise extensiva, feita e trabalhada pelo primeiro autor, e disponibilizada nos links. 1 2

Imagem 1 – Estrutura Inside Job. João Fernandes 2022.

Na Imagem 1 é apresentada uma parte da estrutura do documentário Inside Job. Estes dois minutos foram escolhidos por serem representativos da estrutura geral do documentário, ou seja, contém um tipo de sequenciação que se verifica ao longo do documentário. Destacamos a utilização de grafismos, planos de corte e planos de arquivo, no início e fim deste gráfico, acompanhados de uma narração que apresenta novas informações, assim como a utilização de planos de corte e grafismos (em situações diferentes) para ilustrar o discurso dos entrevistados.

Imagem 2 – Estrutura Capitalism. João Fernandes 2022.

Na Imagem 2 é apresentada uma parte da estrutura do documentário Capitalism. Estes dois minutos, tal como acontece com Inside Job, foram escolhidos por serem representativos da estrutura geral do documentário. Para este documentário, destaca-se a utilização de imagens de arquivo com narração, durante as quais o realizador expressa a sua opinião sobre a imagem que decidiu usar. Destaque ainda para a separação abrupta desse momento de comentário por parte do realizador, para a narração ser novamente utilizada na contextualização da situação individual de um entrevistado, de mão dada com o uso das entrevistas em si e planos de corte.

Faceta Macrocósmica

Se a faceta microcósmica nos dá uma visão da sequenciação de planos, a faceta macrocósmica permite-nos saber qual é o peso que cada tipo de plano tem no filme, em termos de protagonismo. O texto que se segue apresenta uma reflexão perante os dados analíticos recolhidos.

Inside Job Capitalism
Número de planos de cada elemento em relação ao número total de planos Planos de entrevistas 137 / 1269 = 10,8% 168 / 1822 = 9 ,2%
Planos de corte/ B-roll 632 / 1269 = 49,8% 1095 / 1822 = 60,1%
Planos de grafismo 114 / 1269 = 9% 25 / 1822 = 1,4%
Planos de Arquivo 386 / 1269 = 30,4% 534 / 1822 = 29,3%
Duração dos planos de cada elemento em relação à duração total do filme Planos de entrevistas 2487 / 6324 = 39,3%
41min27s / 1h45min45s
2834 / 7335 = 38,6%
47min14s / 2h2min15s
Planos de corte/ B -roll 1005 / 6324 = 16%
17min15s / 1h45min45s
1543 / 7335= 21%
25min43s / 2h2min15s
Planos de grafismo 888 / 6324 = 14%
14min48s / 1h45min45s
205 / 7335 = 2,8%
3min25s / 2h2min15s
Planos de Arquivo 1944 / 6324 = 30,7%
32min24s / 1h45min45s
2753 / 7335 = 37,5%
45min43s / 2h2min15s
Imagem 3 – Análise Macrocósmica. João Fernandes 2023.

Embora a duração dos planos de corte não tenha sido contabilizada nas análises, foi calculada subtraindo as durações dos restantes elementos à duração total de cada filme. Em Inside Job, em termos de números de planos, os planos de corte são 49,8% dos planos, ou seja, os planos de corte estão em maior quantidade, mas só equivalem a 16% da duração do filme, ou seja, são muito breves. Em termos do número total de planos, 10,8% dos planos são de entrevistas, enquanto 30,4% são de arquivo. Em termos de duração, as entrevistas e o arquivo ocupam 70% do tempo do filme, sendo a principal forma de apresentação da narrativa. É importante realçar o facto de que 10,8% dos planos são de entrevistas, mas as entrevistas correspondem a 39,3% da duração do filme. Isto significa que embora muitas destas entrevistas sejam altamente editadas em certas partes, o realizador também permite que os entrevistados desenvolvam as suas respostas para lá de breves soundbites, o que está relacionado com a complexidade do tema a ser abordado. Os planos de corte e o grafismo ilustram esta narrativa, daí só ocuparem 30% da duração do filme (16% e 14% respetivamente). Em Capitalism, em termos do número de planos, os planos de corte são claramente protagonistas com 60,1%, mas apenas equivalem a 21% da duração do documentário, o que implica que, como em Inside Job, são planos breves que ilustram muito do discurso dos entrevistados. Os planos das entrevistas são 9,2% do número total de planos, mas o tempo das entrevistas corresponde a 38,6% do tempo total do documentário. Os planos das entrevistas e de arquivo conduzem a narrativa (como no caso de Inside Job), constituindo conjuntamente 76,1% da duração de Capitalism. A diferença mais gritante entre os 2 documentários, está no uso de grafismo. Em Inside Job, os planos de grafismo são 9% de todos os planos, enquanto em Capitalism são só 1,4%. Em relação ao tempo, o grafismo ocupa 14% do tempo total de Inside Job, enquanto em Capitalism é só 2,8%. O grafismo em Inside Job é tido como uma ferramenta fundamental para explicar e avançar a tese do realizador, em oposição a Capitalism. Outra diferença relevante (acima de 5%) é nos planos de arquivo. Embora tenham representações semelhantes na quantidade de planos (30,4% vs 29,3%), os planos de arquivo representam 30,7% da duração de Inside Job, enquanto em Capitalism este valor é de 37,5%. Esta diferença está relacionada com a liberdade que os modos concedem aos seus realizadores para marcarem a sua presença. Em Inside Job, o arquivo é usado para confirmar ou refutar informação relativa ao argumento a ser apresentado, enquanto que em Capitalism, Michael Moore faz uso do arquivo para este propósito, mas também para comentar as situações dos seus atores sociais e tendências socio-económicas. Para servir, como diz Nichols, quando fala sobre as características do modo participativo “mentor, critic, interrogator, collaborator, or provocateur” (Nichols 2001, 116). Estes fatores explicam parte das discrepâncias entre os valores da duração dos planos de corte, planos de grafismo e planos de arquivo. Podemos verificar que, em ambos os filmes, os atores sociais fazem avançar a argumentação dos realizadores (as entrevistas são o elemento com maior duração em ambos os documentários). De um ponto de vista macrocósmico, as diferenças entre os filmes estão principalmente na forma como o discurso é ilustrado.

Conclusões

As análises microcósmicas e macrocósmicas indicam, para cada um dos filmes, a sua estrutura e proporção de tipos de plano. Com base nesta informação e levando em conta o tipo de modo adotado, será possível extrapolar algumas considerações para um plano abstrato, nomeadamente: no que diz respeito à estrutura, cremos que poderá orientar trabalho de montagem de documentários que abordem temas semelhantes em termos de assunto e complexidade; no que diz respeito à proporção, cremos que revela uma medida de protagonismo que cada tipo de plano pode adquirir. Ambas estas considerações, foram tidas em conta aquando do processo de montagem do Documentário X que, por esta altura, ainda se encontra em fase de montagem. A análise estatística permitiu-nos também sequenciar tipos de planos e dessa forma ajudar a caracterizar os modos participativo e expositivo em termos quantitativos. Numa situação futura, por exemplo, em processos de montagem automática que recorram a inteligência artificial ou modelos estatísticos, este tipo de análise poderá servir de referência e oferecer “montagens” cruas e brutas a partir da escolha de um modo. Será necessário no futuro conduzir mais análises a outros filmes que se enquadrem nesses modos, e com esses temas, para verificar o que se mantém e/ou aquilo que muda comparativamente com a análise aqui exposta. Cremos, por fim, que será ainda interessante verificar o interesse deste tipo de abordagem estatística para tratar outros temas complexos (e.g. aborto) e para outros modos.

Notas

1Fernandes, João. “Análise Inside Job”. Publicada a 5 de maio, 2013, https://filipelopes.net/insidejob

2Fernandes, João; “Análise Capitalism”. Publicada a 5 de maio, 2013, https://filipelopes.net/capitalism

Bibliografia

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Filmografia

Capitalism: A Love Story (2009). Directed by Michael Moore. USA: Overture Films; Paramount Vantage; The Weinstein Company. DVD.

Inside Job (2010). Directed by Charles Ferguson. USA: Sony Pictures Classics; Representational Pictures; Screen Pass Pictures. DVD.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer o apoio financeiro do CIPEM/INET-md, à ESMAD e aos nossos pais por nos terem feito nascer com a distância temporal suficiente e no local certo para que se cruzassem nesta fase da vida de cada um.