Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Sound, Body and Emotion in Cinema

Som, Corpo e Emoção no Cinema

Inês Xará

Escola Superior de Media Artes e Design, Instituto Politécnico do Porto, Portugal

Filipe Lopes

CIPEM/INET-md, uniMAD, Instituto Politécnico do Porto, Portugal

Abstract

The present article reflects on the role of sound in cinema as a catalyst for emotions, starting from the idea that sound, by itself, without visual support, is a force capable of eliciting visceral emotions and provoking visual imagination. For this purpose, on the one hand, the transition from silent cinema to sound cinema will be analyzed considering films such as Man with a Movie Camera (Vertov 1929), focusing on the relationship between sound and emotion. On the other hand, case studies will be examined, addressing the materiality of sound through the listening of sound excerpts without visual support. The aim of this research is to construct a theoretical and practical framework to allow the envision of the role of sound materiality as an activator and emotional force in cinema.

Keywords: Sound, Cinema, Emotion, Materiality, Physicality.

Introdução

Ao assistir pela primeira vez a O Homem Com Câmara de Filmar, realizado por Dziga Vertov (1929), foi desencadeado um processo reflexivo profundo acerca influência da sonorização na experiência cinematográfica. Trata-se de uma construção sonora, entre outras que existem, feita à medida da imagem que foi concebida e aplicada muito mais tarde. A composição sonora proposta por Nyman, assim nos parece, está tão bem enquadrada com o filme que é-nos impossível não sentir o impacto que tem na experiência visual e, assim, desencadeou-se esta reflexão que aqui apresentamos.

Desde que o áudio chegou ao cinema e se entrelaçou no tecido de criação cinematográfica, por contraste aos “adornos” sonoros que se ouviam nas salas de cinema, quer os intencionais (e.g. música tocada ao vivo), quer os não-intencionais (e.g. barulhos da maquinaria), tem gerado discussões acerca da natureza da sua função e articulação com a parte visual. Os talkies tomaram de assalto a produção cinematográfica e, embora realizadores como Charlie Chaplin tenham recusado inicialmente o emprego de som nos seus filmes, o som entranhou-se na criação e produção cinematográfica enquanto possibilidade de melhor entreter o público e tornar mais realista a experiência cinematográfica. Sabendo-se e conhecendo-se a relação de valor acrescentado que a conjugação da imagem com o som oferece (Chion 1994), a nossa reflexão foi no sentido de pensar no som enquanto canal de expressão de emoções na sua relação com a parte visual de um filme. Partimos então do pressuposto que a fala (i.e. diálogos, narração) tem um alcance limitado quando se trata de excitar emoções e que é todo o espectro sonoro (e.g. paisagem sonora, música, efeitos sonoros, sons concretos) que ajuda a mergulhar o espectador na vivência emocional do filme. Para este efeito, embarcamos em leituras e experiências que pudessem abordar a relação emocional que temos com som e que o som desperta de acordo com a seguinte tese: Com uma imagem, sem som, podemos tentar despertar os sentidos das emoções, mas com um som, sem imagem, podemos sentir visceralmente as nossas emoções e projetar mentalmente diversos cenários visuais. Estamos em crer que há qualquer coisa de corporal e visceral no som que a imagem por si só não tem o poder de provocar. Neste artigo pretendemos trazer à discussão a materialidade do som como excitador emocional no contexto do cinema, particularmente a materialidade enquanto sensibilidade da fisicalidade do som na relação com o corpo humano.

E De Repente Fez-se Som

Na transição do cinema mudo para o cinema sonoro, Don Juan (Crosland, 1926) teve um papel determinante já que foi a primeira experiência em que o áudio foi trabalhado de forma deliberada. Foi este filme que permitiu, no ano seguinte, que os irmãos Warner lançassem The Jazz Singer (Crosland, 1927). Apesar deste último ser considerado o primeiro filme sonoro – famoso porque se ouve a voz de Al Jolson (como Jack Robin) em sincronia com a imagem com a célebre frase “You ain’t heard nothing yet!” –, o filme era apenas part-talkie, ou seja, ainda constavam legendas para as personagens e não existiam ambientes ou efeitos sonoros tecnicamente trabalhados. Foi apenas no ano seguinte que se deu a estreia oficial do primeiro filme all-talkie, Lights of New York (Foy, 1928). O cinema estava perante uma das suas mais impactantes transformações tecnológicas, mas as reações perante esta mudança não foram bem acolhidas por toda a comunidade. Segundo Donald (2016), alguns teóricos questionavam-se se o som no filme acrescentaria ou prejudicaria o meio cinematográfico enquanto arte. Rudolf Arnheim, um escritor e teórico do cinema, via na introdução do som a perda artística daquilo que era até então a essência dessa arte, insistindo em separar o cinema mudo do cinema sonoro. No seu livro Film As Art (1957), caracteriza-os como duas abordagens distintas, transmitindo não um avanço tecnológico no cinema, mas a perda de estética, teorização, sentido e de “pantomima pura” que ocorre sem a palavra. Segundo Arnheim, foi pela ausência de som que o cinema desencadeou o estímulo para desenvolver possibilidades de efeitos artísticos que vieram a tornar-se particulares e idiossincráticos (Arnheim 1957). Bonetti acrescenta que:

O filme mudo apresenta, pois, grandes possibilidades artísticas por sua condição silenciosa: o que não pode ser dado em sua forma original acústica é transposto num equivalente óptico e, em vez de apresentar somente a situação tal como se dá na realidade com suas características, o filme mudo é capaz de formatar a situação e de interpretá-la.

(Bonetti 2012, 65-66)

Apoiando-se, por exemplo, nos filmes de Chaplin, onde a palavra falada é substituída pela pantomima, a principal ideia que Arnheim faz valer é que o cinema mudo tem valor artístico enquanto objeto “dedicado à retina” e, dessa forma, enquanto compreensão visual imaginária que se dá sem o recurso sonoro. Por outra palavras, defende que os cenários emotivos e narrativos que conseguimos criar intelectualmente ao sermos estimulados apenas opticamente pela imagem em movimento produzem uma experiência cinematográfica pura. Como exemplo, diz-nos que ver uma personagem a disparar uma arma sem se ouvir o tiro, tem maior valor artístico porque a ausência do som permite que o espectador produza internamente o seu som, resultando também daqui que cada espectador “ouvirá” um som privado. Reportando-se ainda diretamente à música (i.e. banda sonora tocada ao vivo), Arnheim compreende a integração das composições orquestrais que acompanhavam os filmes, no entanto, diz-nos que “as soon as the accompaniment has turned to the imitation of reproduction of noises—bells, shots, instruments—then we have crossed the line to the talkie.” (Arnheim 1929). Como se sabe, depois de Don Juan (1926), o cinema não voltou atrás na relação que iniciou com o som, estabelecendo progressivamente uma relação umbilical com toda a trama da produção cinematográfica, quer ao nível tecnológico (e.g. microfones, áudio, espacialização do som) quer ao nível narrativo (e.g. som diegético, som meta-diegético, l-cut, j-cut). Neste artigo não iremos abordar os desenvolvimentos tecnológicos ou traçar uma história exaustiva do som no cinema, apenas pretendemos salientar um ponto essencial, a saber: o receio que o cinema viesse a perder a sua essência pela introdução do áudio sincronizado no início do séc. XX. Para uma informação em detalhe da história do som no cinema, o leitor poderá consultar os livros Silent Film Sound de Rick Altman (2004) e Sounds of the Early Cinema (Abel & Altman, 2001).

Um Homem Com Câmara de Filmar

No fim da era do cinema mudo, sob um olhar que mistura o documentário e a ficção, estreia O Homem Com Câmara de Filmar realizado por Dziga Vertov (1929). Este filme torna-se um dos pioneiros, não só do que é um ‘filme sobre o filme’ (i.e. metacinema), mas também do que conhecemos hoje como algumas das principais técnicas de montagem. Filmado em três cidades soviéticas diferentes, o filme retrata o quotidiano da Rússia da época onde se vai sentindo o modernismo a palpitar nos indivíduos e sociedade. Sem narrativa concreta e linear, legendas e atores – sendo que o próprio operador de câmara é o único ‘protagonista’ ao longo da narrativa – há neste filme uma clara e arriscada fuga ao convencionalismo. Há uma mistura entre o estilo documental do quotidiano soviético, com o experimentalismo, tanto na escolha de enquadramentos, ações e reações captadas, como na própria lógica de montagem, com a particularidade da ficção presente no operador de câmara, na câmara enquanto objeto personificado e nessa mesma lógica de montagem que auxilia a manipulação das micronarrativas. Todo o filme é ritmo. Seja na aceleração da sociedade em si, pelas numerosas populações, meios rodoviários e ferroviários, estações de rede de comunicação, indústria fabril e têxtil e comércio, seja nas atividades de lazer modernizadas da sociedade, retratadas através dos ginásios e desporto misto, convívios em bares, banhos de sol, água e materiais argilosos nas praias, tempo de qualidade em carrosséis, espetáculos de rua e cabarés, corridas de motas, entre muitas mais. Estando atualmente habituados a lidar com um cinema falado e musicalmente preparado para o espectador, pensemos agora: naquela altura, para este filme mudo, a orquestra ao vivo teria de acompanhar o seu ritmo visual desprovido de explicações. Se todo o filme é ritmo, por si só, todo o ritmo é filme, onde o som teria (e tem) um papel muito preponderante na sua visão inovadora e compreensão intelectual. Vertov arriscou desafiar o cinema convencional da sua época introduzindo o inesperado ao espectador, não só pelo metacinema, mas também pelo surgimento do jumpcut, stop motion, slow motion, e pela dissolução e sobreposição de imagens na sua montagem. Se objetivo seria criar um ritmo que impactasse o espectador, que estaria mais preparado para uma estrutura narratológica viabilizada pela pantomina e ficção, a sua exibição não poderia carecer de ritmo sonoro. Não estando em 1929 para experienciar a composição orquestral original, sabemos que existem atualmente pelo menos três versões completas do filme, uma delas sem som e outras duas com composições musicais aplicadas mais tardiamente. Sabendo que a magia do ritmo no cinema, pela relação imagem-som, é de extrema importância na receção da mensagem audiovisual e cinematográfica, O Homem Com Câmara de Filmar (1929) não é um filme que fuja à regra para a análise que aqui se pretende fazer. Ver este filme sem som, respeitando a sua versão mais autêntica e pura, é extrair dele uma perceção muito diferente do que será ou seria vê-lo com música ou som real. Foram as composições musicais que atualmente acompanham inúmeras versões do filme, que nos levaram a refletir sobre a importância do som na resposta emocional ao filme. Foram as diferenças nas tonalidades e géneros musicais de duas dessas versões que fizeram com que percecionássemos a sua cinematografia de forma diferente. Por um lado, uma versão que acarreta uma composição musical mais orquestral (e, por vezes, celestial) faz-nos, de certa forma, transportar para esse lado mais clássico do cinema mudo, para aquela época das orquestras ao vivo. Há algo de simbolicamente histórico e patrimonial. É como se recebêssemos o filme como herança cultural e artística em si, com uma vertente mais expositiva e embelezada do que era o cinema e a sociedade naquela altura. Ainda que represente um salto socio e tecnologicamente mais moderno, a composição musical transporta-nos para esse universo cronologicamente mais longínquo.1 Por outro lado, há uma versão que integra uma composição musical composta por inúmeras variações de jazz que dá ao filme um ritmo que, não só nos aproxima mais ao próprio modernismo representado no filme, mas também ao mundo contemporâneo, como se ainda o estivéssemos a viver e sentir. Sabendo que o mundo e o ritmo da evolução não cessam e estão sempre em constante crescimento, recebemos este filme com uma certa intemporalidade. Da mesma forma, a dada altura, por identificação e aculturação, estamos a ouvir aquilo que hoje é o drum and bass numa festa de música eletrónica e o hip hop urbano, mas também aquilo que esperamos de um filme de ação cheio de movimento, por exemplo.2 Existem aqui determinadas características sonoras que fazem com que consigamos sentir mais humanamente o ritmo no filme e do filme, como se também nós ficássemos acelerados e em ressonância com a imagem. A nossa perceção e emoção também altera nitidamente quando o recebemos com outras composições musicais ou sem som. É a magia do ritmo sonoro, que acompanha o visual, que tem um impacto mais determinado na resposta emocional ao filme.3

Som e Emoção

A relação que a grande maioria dos humanos tem com som remonta ao período de gestação. Como caracteriza a investigadora Lavia durante o documentário SOA (2021), o primeiro elemento que uma criança desenvolve, que é também o último a abandonar, é o sentido acústico que, segundo a psicóloga, está ligada a tudo o que fazemos, bem como a forma como nos sentimos e relacionamos com o nosso ambiente externo. A autora afirma que

Se não respeitarmos o sentido da audição, retiramos muitas das multidimensões do que significa estar vivo. Consideremos, por exemplo, que quando as ondas de som viajam num meio, o meio aquático, são acentuadas várias vezes. E os nossos corpos são maioritariamente água. Então, é impossível imaginar que não somos total e continuamente afetados pelo som 24/7 todo o dia e toda a noite

(Lavia 2021)

Poderemos afirmar que o impacto do som e da música no funcionamento humano é tão umbilical que nos afeta neurológica, psicológica e fisicamente “em áreas tais como aprendizagem, processamento de linguagem, expressão de emoção, memória e respostas fisiológicas e motoras.” (Tomaino 2014). É por isso natural que em toda a história que vai desde o homem antigo ao homem moderno, se encontrem vestígios dessa relação umbilical que estabelecemos com o som, quer seja na primeira pessoa, enquanto como meio comunicante com o meio social, bem como com o espaço físico que habitamos. A propósito deste último aspeto, sabe-se que os homens históricos e pré-históricos, deslocavam-se até às cavernas porque a acústica do espaço permitia uma reverberação favorável e encantatória aos sons, fossem esses produzidos para proteção, resguardo, misticismo ou arte rupestre (Hendy, 2013). Curiosamente, a associação entre a reverberação longa com os locais em que se encontram pinturas rupestres poderá ser entendida como uma primeira articulação artística entre som e imagem. Partindo então do pressuposto que o som nos afeta na plenitude da nossa vivência, de formas mais ou menos conscientes, é possível afirmar que o som tem o poder de afetar diretamente o nosso estado emocional. A música é um caso particular e porventura o mais imediato de aludir quando se associa som a emoção. É na música que recorrentemente buscamos refúgio e conforto emocional, um escape perfeitamente identificável no período da adolescência, fruto da busca e confusão emocional que esse momento da vida de uma pessoa implica (Rogers & Ogas 2022). Sabendo-se que a música atua emocionalmente por si só, sabemos que também tem impacto emocional quando articulada com a imagem. Não é por isso estranho que a música tenha um papel de destaque na relação que tem com o cinema. Para Queiróz, “a música utiliza-se da relação sensorial [...] e quanto mais verdadeiro e significativo o que transmitir, e quanto mais simpaticamente atingir a sensorialidade humana, maior será a Arte” (Queiroz, tal como citado em Moura e Almeida 2019). Sabendo-se então que a música e a emoção têm uma relação muito forte e que essa relação é parte intrínseca daquilo que é ser-se humano - a música e a dança estão presentes em todas as culturas conhecidas -, vamos agora discutir o potencial emocional do som que não é música, ou seja, e grosso modo, tudo aquilo que não tem uma relação evidente com a noção ocidental vulgar de música (i.e. algo tocado por instrumentos musicais, fazendo-se valer de elementos como notas de altura definida e/ou indefinida, ritmo, compassos, notas). Para este estudo em particular, decidimos fazer uma experiência que iremos descrever de seguida.

Uma Pessoa Com Gravador Áudio

Para efeitos de reflexão nossa sobre a relação do som com emoção, foram feitas gravações áudio pela primeira autora que posteriormente deu a ouvir, sem apoio de imagens (i.e. acusmática), a um conjunto diferenciado de pessoas para discutir o que se sentiu. Esta atividade teve inspiração nas ideias de Murray Schafer (1977) com o propósito de perceber se as pessoas, ao ouvir essa gravação que, por sua vez, contempla sons de forte relação causal (e.g. som de um carro) com outros sons com potencial mais abstrato (e.g. chuva), reagiam emocionalmente ao que escutavam e que comentários partilhavam. Experimentando criativamente a banalidade da vida quotidiana, foram captados sons em diferentes momentos do dia a dia. Sem recorrer a qualquer manipulação tecnológica digital de pós-produção, este exercício limitava-nos a escolher determinado momento do quotidiano e a exclusivamente clicar no botão de gravação e no botão stop do gravador de áudio. Ao longo de semanas, repetimos o processo e captamos ondas sonoras que se propagavam em diferentes momentos da imprevisibilidade da rotina, juntamente com os diferentes estados emocionais que rondavam o nosso Ser no momento presente. Esta fase de experimentação serviu para que mais tarde se pudesse dar início à fase de seleção do áudio que melhor poderia servir o ouvinte à uma experiência descrita. Por fim, o áudio escolhido para testar o exercício foi captado durante uma viagem de carro. Era um dia de inverno e o ar condicionado estava ligado única e exclusivamente para desembaciar os vidros. No entretanto, uma chamada foi recebida pelo sistema de Bluetooth do carro e, por estar a decorrer a captação áudio, foi rapidamente desligada. Entre os piscas do carro sinalizados nas rotundas, as respirações humanas quase impercetíveis, os sons do motor e do interior do carro e o ligeiro aumento de volume do rádio com a intenção de verificar a música que passava naquela estação, captou-se um áudio com duração de dois minutos. Ao escutá-lo, rapidamente percebemos que, apesar de nos lembrarmos exatamente do que acontecera realisticamente, aquando da captação, havia a possibilidade de navegar por diferentes universos iconográficos com diferentes emoções associadas. E o que parecia uma banal viagem de carro, transformar-se-ia rapidamente numa composição sonora que permitiria a criação de infinitas histórias, tendo assim uma grande margem criativa para o surgimento de diversos cenários e sensações no imaginário percetivo e cognitivo do ouvinte. Deste modo, passou-se à fase da escuta e entrevista. Propôs-se aos ouvintes que colocassem os headphones, escutassem o áudio e se deixassem levar pelo que estariam prestes a ouvir, partindo essencialmente de duas perguntas previamente lançadas: “O que sente ao ouvir isto?” e “Que história poderia contar ao ouvir isto?”. A faixa etária dos ouvintes focou-se entre os 20 e os 60 anos. As respostas foram múltiplas e as sensações foram completamente diferentes. Um dos ouvintes conseguiu criar uma história em que a sua premissa descrevia uma personagem que, num dia cinzento e chuvoso, se deslocava de comboio para outro lugar, com uma sensação de saudade, nostalgia e tristeza, estando a deixar algo importante para trás. Outro, imaginava-se numa tranquila viagem de carro até à praia, num dia de verão, pela simplicidade de uma sensação de calmaria e leveza ao ‘ouvir o mar’, cercado também pelo ‘silêncio’. Outro, viu-se no meio de uma multidão, rodeado pela correria de uma cidade barulhenta e movimentada, com uma sensação de desespero e ansiedade extrema por querer sair dali. Uns sentiram-se sós, tristes, confusos e amedrontados. Outros sentiram-se calmos, alegres, seguros e em equilíbrio. Uns viajavam de comboio, de carro e de metro, outros sentiam-se parados na multidão, na praia, em cascatas e diferentes lugares que apelam os sentidos humanos. Uns relembraram algumas memórias das suas vidas, outros criaram histórias nunca antes vividas. Uns espelharam-se a si mesmos naquelas vivências do imaginário, outros criaram personagens que nunca conheceram. Uns ouviram relógios, buzinas, carruagens e até malas a cair no chão, outros sentiram o vento, a chuva, o mar e o tempo parado em si mesmo. Olhando para estes testemunhos e diversos cenários – e estando em proximidade com os próprios ouvintes –, conseguimos constatar que cada pessoa interpretou aquela composição ‘natural’, não só de acordo com o que estava a sentir, conscientemente ou não, mas também de acordo com as experiências já vividas e necessidades ou aspetos emocionais humanos que decorreram e/ ou ainda decorrem ao longo das suas vidas. Sabemos de antemão que, por exemplo, a pessoa que imaginou alguém a partir de comboio, é uma pessoa que se sente muito sozinha na vida e que se inibe de tomar decisões difíceis que gostaria de tomar. Ou, por exemplo, a pessoa que se viu a sufocar no meio de uma multidão, é uma pessoa que lida diariamente com dificuldades provocadas pela ansiedade social extrema. Já a pessoa que se viu na praia tranquila, a ‘ouvir o mar’, é uma pessoa com um estilo de vida muito equilibrado que preza pelo autoconhecimento e desenvolvimento espiritual e que se desloca até à praia para se refugiar, por exemplo. A nossa relação com o som é de tal visceralidade que a sua fisicalidade tem um grande impacto emocional. Se tal não se verificasse desta forma, não seria possível que os ouvintes navegassem livremente por cenários do abstrato criativo. Há algo de realístico (e humano) nesta abstração e é essa presença que certamente provém de uma identificação emocional e relacional com o som. Pode tornar-se complexo expressar a dinâmica deste exercício sem que nos possamos servir da parte auditiva do mesmo e, por isso, propomos que este seja um exercício que acompanhe a leitura do artigo como uma componente prática.

A fisicalidade do som

O som atua fisicamente por processos de aculturação, psicoacústica e processos neurológicos. Sendo o som por definição um fenómeno físico e uma onda mecânica, fica claro que exige a vibração algum material para “existir” e, nesse sentido, o nosso corpo é perfeitamente possível de ser excitado e posto em vibração através da pressão sonora porque o corpo humano é um corpo vibrante. Todo o nosso mecanismo de audição assenta precisamente no facto de que o tímpano é colocado em vibração através da pressão sonora que lhe chega através do ouvido. Ainda assim, apesar da sua especificidade e de ser o veículo principal para a nossa perceção do som, não é apenas o tímpano que pode vibrar, ou seja, não nos relacionamos perceptualmente com som exclusivamente através da audição. Todo o nosso corpo pode vibrar e as diferentes partes do corpo têm frequências de ressonância específicas, o que implica que todo o corpo pode sentir som. Uma forma popular de se sentir a fisicalidade do som numa escuta não dependente em exclusivo do mecanismo de audição, é através das frequências graves e infrassons. Sabendo-se que essa perceção física sonora é componente essencial na experiência musical e social em situações de clubbing, por exemplo, há outras experiências próximas da composição musical e arte sonora que se fazem valer dessa sensibilidade enquanto recurso artístico. Exemplo disto mesmo é o trabalho da compositora Cat Hope (Lockwood, 2009), que vem desenvolvendo trabalho no campo da música e da arte sonora, e que pode ser entendido enquanto possibilidades de “ouvir” (Hope, 2008). Considerando-se agora as qualidades de intensidade sonora e não as qualidades espectrais do som, a sensação de volume, que tem relação próxima com a fisicalidade do som, de um determinado som tem também um impacto físico e não raras vezes emocional. Sons muito intensos podem provocar tonturas, sentimentos de medo ou até ansiedade (e.g. quando um alarme que é disparado, jumpscare). Num contexto que relaciona sons graves e sons muito intensos, podemos aludir às pessoas surdas que se socorrem precisamente da vibração física que o som provoca nos materiais para “ouvirem”. Por fim, precisamente porque o som implica a vibração e uma determinada amplitude, e que certos corpos têm elasticidade finita, é natural que quando a vibração é reforçada e a amplitude cresce continuamente, esses corpos quebrem. Quando isso acontece ao tímpano, por exemplo, a pessoa corre risco de ficar surda. Em suma, fica claro que o som pode ter impacto físico no nosso corpo apenas pela sugestão que o mesmo carrega por força da aculturação, como também através do contacto físico mediado por materiais vibratórios.

Som e Cinema, Emoção e Corpo

Sendo agora mais fácil de compreender o impacto que a música e o som têm na nossa vida emocional e corpo físico, iremos agora fazer a ponte com o cinema que, naturalmente, soube e tira partido do repertório de respostas emocionais que a maioria das pessoas têm ao som. É por isso importante trabalhar o som enquanto veículo narrativo para as imagens, intenções e mensagens do cinema funcionarem. Se se pensar em géneros cinematográficos, é evidente que os universos sonoros trabalhados, por exemplo, num musical ou, em contrapartida, num filme de terror, têm narrativas estruturadas e pensadas para atingirem determinado objetivo que vá de acordo do que é pretendido. Entre produzir uma performance musical e produzir um climax para um jumpscare, encontram-se estruturas narratológicas com diferentes intenções que nos fazem também receber e entender o filme de maneiras únicas. Se tomarmos o exemplo de um filme de ação, por norma tendemos a associá-lo ou a esperar dele, de forma mais ou menos consciente, uma composição sonora que reflita um ritmo que esteja em coerência com a coreografia dos atores, dos tiros, das lutas, fugas e mortes. Todavia, se a minha intenção ao realizar esse filme for pensar melodicamente uma composição sonora melancólica ou cómica, a mensagem e sensação que quero passar terá objetivos e intenções diferentes. Arriscamo-nos a dizer que o som foi um dos importantes veículos narrativos para que os géneros cinematográficos pudessem ser refinados, sendo que, ao invés de prender o cinema à superficialidade do acting exagerado, das legendas e/ ou dos cenários terroríficos, o som permitiu uma materialização que vai além do que se vê. Mais explicitamente, possibilitou uma manifestação no cérebro humano alusiva às sensações primordiais e culturais, à associação de ideias e evidenciação da memória, à transmissão de emoções e informações e restantes processos neurológicos, físicos e cognitivos. Não havendo uma teoria clássica para se pensar e criar som no cinema, podemos ver no desenvolvimento do som ao longo dos anos uma incorporação de técnicas, clássicas e modernas, que funcionam para a criação dos universos sonoros de cada filme, nomeadamente: o mickeymousing ou o leitmotiv, que serve para representar personagens ou alertar situações (e emoções) ao longo de um filme, a construção da paisagem sonora para nos dar uma sensação realista e espacial (e.g. numa sala de cinema com uma imagem que enquadra apenas um plano), o uso da voz, seja nos diálogos ou em off para a narração e conduta das personagens e da história, os trocadilhos entre o que é diegético, não-diegético ou metadiegético que permitem infinitas possibilidades narratológicas, entre outras. As técnicas de composição que se foram cruzando e desenvolvendo foram importantes, não só para a cristalização dos géneros, mas também para que cada história se possa contar por si mesma, integrando todos os seus elementos. Apesar disso, não há melhor narrador sonoro, que fuja a uma normatização de géneros, do que a intenção e o sentido que se projetam num filme. Pensando que trabalhar os sons é ter uma “preocupação especial sobre eles: manipulá-los para chegar às sensações psico-acústicas” (Garcia 2014, 7), no cinema o som deve evidentemente ser pensado para despertar emocionalmente o espectador. Para além das nossas memórias e experiências individuais, culturalmente há uma padronização sonora, proveniente das infindáveis recriações dos géneros, que tende a ser seguida ao fazer filmes de terror, por exemplo. Um som que insinua perigo, deixa-nos em alerta para o perigo, e o género de terror trabalha muito sons com características ligadas às emoções primordiais de sobrevivência humana. Como constatam Moura e Almeida:

os significados musicais pertencem estritamente a um coletivismo (...) resultado de um processo histórico, onde simbologias e significados são convencionalmente construídos. Tais embasamentos nos levam a entender que a música é uma linguagem que possui significados que são criados dentro de um contexto onde a parte está para o todo representado pelo fenômeno musical.

(Moura&Almeida 2019)

Conclusões

A fisicalidade do som torna-se, além de humana, espacialmente ilimitada, fazendo com que o som por si só agregue muito mais do que uma componente física, narrativa ou complementar à relação com a imagem. A complexidade do cérebro humano e o corpo físico e emocional, que integram memórias e experiências, reações primordiais, emoções e processos de psicoacústica e de associação, são responsáveis pelos infinitos cenários do imaginário criativo do exercício proposto e, por isso mesmo, agentes importantes na relação que o espectador tem com o som ao assistir a um filme. Voltemos ao ponto inicial de discussão, atentando a uma das questões primárias: de que forma pode o som no cinema ser estrategicamente usado e pensado para despertar emocionalmente os sentidos no espectador? Levando em conta a discussão feita neste artigo, o som é narratológico– na criação de modelos e técnicas para que cada filme funcione na sua narrativa –, semiótico – na forma como coloca os signos e simbologias para que funcionem – e fenomenológico – na construção mental em que os signos são efetivamente entendidos para narrativa do filme. Ou seja, certamente podemos ver o mesmo plano de um filme em que sons diferentes transmitirão cargas emocionais diferentes, no entanto, a magia do som no cinema está no som não só enquanto valor sensível para com a história, mas, também enquanto valor estético. Integrando a análise dos três níveis, a saber, a persistência (arcos narrativos, ritmo, regra e estrutura), a autenticidade (imprevisibilidade que resgata o acaso) e a diferença (fuga ao espectável, ao cliché, à convenção e facilitismo), que caracterizam um filme como um ‘bom filme’, todos estes níveis articulam-se com aquilo que é um ‘bom design de som’. O som é importante não só no complemento que dá á imagem, mas também no sentido narrativo profundo e fenomenológico (i.e. perceção física do som) que tem. Ora, é perante o longo desenvolvimento histórico e tecnológico do som que se passa a compreender o cinema como resultado perfeito da simbiose do som e da imagem, simultaneamente necessários para contar uma boa história. O SOM não se separa da imagem, porque ele existe ainda mais com a imagem. Assim como a IMAGEM existe ainda mais com o som. Parte desta simbiose faz também parte o espectador que, através do seu corpo físico, neurológico, emocional, cognitivo e percetivo, é levado a imergir na experiência cinematográfica. Como nota final, gostávamos de finalizar dizendo que para que o som físico e emocional possa atuar no espectador na sua plenitude, é fundamental ver-se e ouvir-se cinema com boas condições acústicas e bons altifalantes. Numa altura de smartphones, tablets, lcd’s com altifalantes incorporados e laptops, corremos risco de “aculturar” o público do cinema a uma gama dinâmica e banda de espectro reduzida, castrando o som do seu potencial narrativo e físico. É importante reafirmar as salas de cinema como ponto de escuta e como local privilegiado para a experiência acústica, física e emocional do cinema.

Notas

1Nyman, Michael. “Man With a Movie Camera”. Publicada em 2018, https://vimeo.com/251988511

2The Cinematic Orchestra; “Man With a Movie Camera”. Publicada a 1 de dezembro, 2016, https://www.youtube.com/watch?v=cGYZ5847FiI

3Kristóf, Bihari; “Man With a Movie Camera”. Publicada a em 2021, https://www.youtube.com/watch?v=mpJpEO8OE-s

4Castro, Raquel; “SOA”. Publicada a em 2021, https://www.rtp.pt/programa/tv/p41359

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Van Sijll, J. Narrativa Cinematográfica: Contando histórias com imagens em movimento. Wmfmartinsfontes, 2017.

Filmografia

Don Juan (1926). Directed by Alan Crosland.

Lights of New York. Directed by Bryan Foy.

Man With a Movie Camara (1929). Directed by Dziga Vertov.

The Jazz Singer (1927). Directed by Alan Crosland.

Soa (2021). Directed by Raquel Castro. Portugal: C.R.I.M.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer o apoio financeiro do CIPEM/INET-md, à ESMAD e a todas as pessoas que participaram nas nossas conversas e que nos ajudam a escutar mais e além.