Abstract
Crossing reflection and concepts in mental health with concepts in film aesthetics, here is an introduction to a research focuses on the Portuguese cinematography. I’ll start de work with a choice of relevant films whose content refers to specific cases of mental health — not only in the psychiatric field, but also in the broader scope of social pathologies. Our starting assumption is that Cinema is as important for Psychiatry as Psychiatry is for Cinema. Certainly, this does not happen in a direct way, since Psychiatry is not an aesthetic activity, and Cinema is not, in turn, a clinical activity, in the proper sense of the term. Considering the critical territory of our project — our field of research —, a film like «Jaime» (António Reis, 1974), apart from its more salient content, was the first to show, in Portugal, the space of a Psychiatric Hospital and the presence of patients in these spaces. It is a film that was decisive both for Psychiatry and for Cinema. What we are doing here is raising questions from that film, with that film, and above all from the interview given by António Reis to João César Monteiro — the vocabulary we are going to highlight is therefore certainly not common.
Keywords: Portuguese cinema, Mental health, Film aesthetics, Character as clinic case.
eu também trabalhei com esferográficas
O cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência — trata-se de um enunciado que parece corresponder a uma vontade de afirmação, ou a um grito; parece mesmo conter qualquer coisa de arrogante... E talvez seja arrogante — não o julguemos por isso. Em todo o caso, não são palavras de António Reis, mas sim de João César Monteiro, na introdução que faz à entrevista a António Reis «Jaime, o inesperado no cinema português»2. António Reis não se exprimiria assim, talvez não se exprimisse assim — e isso importa pouco ou nada. Quero só dizer que a humildade, neste cineasta, é um grande poder de afirmação. Mas mesmo estas arrogantes palavras são palavras que têm que ver com a dádiva que o cinema (que uma dada arte considerada, esta a que chamamos cinema) pode ser. A afirmação do cinema é, pois, uma dádiva do cinema, e por isso estas palavras dizem muito bem a arte de António Reis e o que é dito por António Reis nesta entrevista. Talvez António Reis se exprimisse assim, vamos, pois, agora dizer... Mas é claro que não é isso que interessa... Interessa-nos, sim, este encontro frutuoso de dois grandes artistas, frutuoso para o trabalho de ambos (neste caso, cremos que mais, ou mesmo tudo, para o trabalho de João César Monteiro), frutuoso para o cinema, frutuoso para o seu pensamento, frutuoso para nós.
Num pequeno texto, detivemos já a nossa atenção neste “inesperado” — “inesperado no cinema português” — inesperado que Jaime foi, que Jaime é3.
O texto da entrevista começa com a manifestação de uma desconfiança prévia, mas já, ao mesmo tempo, a antecipação do que se aproxima. João César Monteiro dá uma definição do que seja “um grande filme” — entenda-se, diz ele, “um filme em que a severa vigilância ética nunca se separa da permanente invenção estética”, e depois continua, com palavras lindíssimas, que devem ser ouvidas também. Mas fiquemos desde já com o emprego destas grandes palavras, ética, estética — grandes, às vezes grandiloquentes naqueles que não sabem muito bem o que lhes fazer; mas sempre necessárias também, cremos, ou ao menos necessário é o esforço de perceber o que querem dizer. Adivinhamos, pois, já o “grande filme” que para João César Monteiro Jaime é — e é-o porque o surpreende nestes dois patamares e na relação entre si, entre a ética, quer dizer, na relação com o que é filmado, e a estética, quer dizer, no modo como é filmado e composto. Seja, pois, lembrado que se trata em Jaime da obra até aí desconhecida (desenhos, pinturas) de um doente mental já desaparecido e do alto valor que António Reis atribui a essa obra e à vida que a segregou. António Reis faz uma obra sobre essa obra e esse sopro de vida. O desafio não tem medida.
É tempo pois de começarmos por essas duas passagens da introdução de João César Monteiro:
...um grande filme. Entenda-se: um filme em que a severa vigilância ética nunca se separa da permanente invenção estética e, por via da feroz manutenção desse disciplinado equilíbrio, que não é só o da obstinação, mas também, e sobretudo, o desse pleno voo da inteligência a que se dá o nome de capacidade poética, projecta, no espaço que é da história [H], o corpo da sua própria vidência, feita de um novo furor e mistério4.
E diz ele mais à frente:
...Jaime, quanto a mim, um dos mais belos filmes da história do cinema, ou, se preferem: uma etapa decisiva e original do cinema moderno, obrigatório ponto de passagem para quem, neste ou noutro país, quiser continuar a prática de um certo cinema, o cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência.
Portanto, o “inesperado” não é apenas português — o inesperado é para o cinema.
António Reis refere-se ao seu trabalho de cineasta enquanto “um modo de salvaguardar” — portanto, trata-se de uma intenção que não é meramente arquivística e que o leva a uma busca em filme, por intermédio do filme, que o leva assim à necessária conversão estética — “Acima de tudo, interessou-me a vida de um homem e, sem lamechice, parece-me que só poderia interessar outras pessoas se pudéssemos converter esteticamente a vida desse homem (...)” Ponhamos a questão de modo simples: como salvaguardo? Como salvaguardo se não fizer um grande filme, quer dizer, um filme que esteja à altura do legado de Jaime Fernandes, da obra e da vida de Jaime Fernandes?
Assentemos no seguinte: um grande filme pode não ter nada de grandioso, e de caro, e etc., um grande filme pode ser pequeno e pobre, com o seu “aspecto descascado, sem preciosismo”, como diz António Reis. Trata-se aqui da equivalência, mesmo da irmandade, entre o filme e aquilo do qual o filme é filme, entre o cinema e aquilo que filma: António Reis também trabalhou com esferográficas. “Não quero desculpar a falta de brilho do filme, a falta de retoques, mas houve uma espécie de pudor que comandou a própria concepção estética. Eu também trabalhei com esferográficas.”
não tem nada a ver com um documentário
As palavras de António Reis revelam um certo dilaceramento íntimo (a que alguns podem chamar teórico), uma espécie de debate em filigrana sobre a forma do filme, e, portanto, sobre a forma dos filmes, que atira longe, vindo ao encontro de práticas cinematográficas que vieram mais tarde consistentemente a desenvolver-se no cinema português. Passa, pois, por aqui a discussão sobre a relação ou separação entre o ficcional e o documental. Talvez no tempo em que estas palavras foram proferidas, em 1974, talvez por essa altura o ficcional existisse menos aprisionado, ao contrário do que parece ser hoje em dia o caso, e assim, enquanto menos aprisionado, distinto do documental, submerso este talvez por apressados ou pesados compromissos e pressupostos.
António Reis zangava-se se lhe dissessem que o seu filme era um documentário. Ele diz isso quando João César Monteiro lhe quer perguntar qualquer coisa sobre o plano com a viúva de Jaime, pergunta que não chega a ser formulada, não podemos, pois, saber o que João César Monteiro iria perguntar, sendo que este ainda lhe diz “São muito estranhas as tremuras que ela tem.” E António Reis fala na dificuldade do plano, fala da violência que o acto de filmar pode infligir, em particular nessa mulher que tanto sofreu, sempre com a ausência do marido como horizonte dos seus dias, uma vida inteira. “E nunca digam que, no filme, este aspecto é documental, porque eu zango-me. Não tem nada a ver com um documentário, nem biográfico, nem nada. É uma espécie de memória e imaginação.” Quer dizer que, diante do sofrimento real da viúva, só é admissível registá-lo numa base para-além do documental; enquanto documental, o plano com ela poderia de muitas maneiras ser obsceno, pura e simplesmente. Só é admissível, enquanto “uma espécie memória e imaginação”, como diz António Reis, isto é, numa base ficcional. Portanto, é somente admissível nesse solo, nesse lugar onde a imagem existe sempre em relação com o fora-de-campo abissal que é a vida de Jaime Fernandes e certas razões da sua obra, e nesse acto onde a imagem é “um modo de salvaguardar” — é aí, nesse solo e com esse acto, que “as águas da ficção, e as do documentário se misturam e voltam a separar-se como as do rio Amazonas e do rio Negro, numa precipitação selvagem”5, como diz Maria Filomena Molder.
António Reis defende o seu trabalho enquanto ficção (e defende-o logo no início, quando começam a abordar Jaime) porque se trata de uma busca dos e pelos lugares que Jaime Fernandes frequentou, enquanto origens da sua pintura, e para corresponder à “pressão emocional” que originou esses desenhos e pinturas, pressão ligada ao seu traço. Portanto, quando no filme a câmara se aproxima dos cabos de cebolas pendurados, dos alhos, das alfaias agrícolas, da madeira esventrada das portas, ou quando em contra-picados se fixa nos barrotes do telhado, estamos aí num trabalho com o incerto de uma busca, de uma maneira de sentir e de articular (a de António Reis) e não de uma maneira de relatar o existente enquanto um dado de facto. Pode talvez argumentar-se que António Reis terá uma visão redutora do que seja o documentário, mas a questão não é essa. Não podemos, nem podemos querer corrigi-lo. A questão é que essas classificações não cabem aqui enquanto oposição estrita — talvez não caibam mesmo em lado nenhum, talvez caibam nuns lugares mais do que noutros, será uma questão de discurso e convencimento; mas aqui, em Jaime, na prática de Reis, é que não cabem de maneira nenhuma6.
o filme está permanentemente a fugir da mão
Quando António Reis assim se refere a Jaime, ao filme, dizendo que este está permanentemente a fugir da mão, ele está a falar da sua composição7. Quer dizer que não é um filme que se estabilize numa certificada compreensão, como se de um raciocínio ou argumento articulado se tratasse. Ah, é isto! Ah, é isto por causa disto!... Não é nada disto. Quando é que um filme foge? Foge sempre, se for conseguido, a questão é essa. Foge porque é necessário um esforço de unidade, de recondução do disperso à unidade. Em Jaime é algo que se coloca do modo mais acutilante, dado que o que foge eminentemente nunca chega a aparecer – foge não aparecendo, o prório Jaime Fernandes, o artista que nasce pouco antes de morrer já velho. E o filme foge por si mesmo, ele foge quando escapa a quadros prévios de entendimento, definidos, como por exemplo são os da ficção e os do documentário, mas não só, foge de todos os clichés, de todas as ideias feitas, de tudo, de tudo, tem de fugir de tudo; e foge mesmo de si próprio — “Todos os filmes, mesmo depois de prontos, estão em preparação, a preparação não cessa.”8 É pois preciso descascar as imagens9, o que envolve modos insuspeitos e certeiros de as atirar umas contra as outras (é de cinema que se trata) — “Descasco as imagens / e entrego-as na boca // como quem sabe / o corpo / mais importante / que a roupa”10 Descascar as imagens, o que é? É retirá-las de toda a ganga, retirar-lhes toda a ganga, para se lograr olhar uma realidade ‘muito falada’ e ‘muito vista’, muito coberta de palavras, muito coberta de imagens, muito coberta de ideias prévias (aquilo que se chama por vezes ideologia) que já as vêem sem se deter naquilo que vêem, que já as sabem sem se deter naquilo que sabem. “Descasco as imagens / e entrego-as na boca // como quem sabe / o corpo / mais importante / que a roupa” — e entrego-as na boca, porque é alimento necessário, como para uma criança; e na boca de quem? Não pode ser de ninguém em particular, porque é de todos, incluindo ele próprio, artista. Entregar na boca é o sentido daquele que faz descascando.
descascar: modos de proceder ou o amor como método
Numa das perguntas onde João César Monteiro deixa meramente de entrevistar para conversar com António Reis, ele menciona uma “procura do lugar exacto”, portanto, o sentido cinematográfico disso, e liga essa procura ao pudor que marca a relação entre aquele que filma e aquilo que é filmado — e, claro, o lugar e as circunstâncias daquelas pessoas internadas estão tão ‘falados’ e tão ‘vistos’ que, se não forem descascadas as imagens, vai-se certo no caminho do desastre. Ora, é isso que marca a “procura do lugar exacto”, a partir de uma posição que meça o ponto a partir do qual não há juízo possível. E no filme não vemos doentes; vemos sombras, muitas, vemos dança, vemos posturas arquetípicas de quem descansa ou medita, de quem mede os passos matando o tempo, etc. E espantamo-nos com a própria câmara, ou sentimo-la, que é uma maneira de nos ser devolvida uma relação com o filmado, o “traço emocional” de António Reis. É, pois, um lugar ético e estético, esse “lugar exacto” — para empregar de novo estas palavras que não queremos estafadas —, o lugar que permite dar “a dignidade de uma estátua de Henri Moore” àqueles que, sem esse trabalho, apareceriam doentes e doentes somente.
É aqui que podemos abordar a ideia do amor como método — se amas, fazes o filme, podemos dizer; é este o dogma. É Maria Filomena Molder quem nos mete isto pelos olhos dentro: “Dá muito que pensar que António Reis fale tanto de amor em tantos momentos (...)”, diz ela, e transcreve depois dois dos seus poemas, chamando a atenção para o pedido do poeta para que o coração bata. Que podemos dizer deste amor enquanto método? Por exemplo, diz António Reis na entrevista, quando começa a falar de Jaime: “Eu creio que basta amar um pequeno cilindro da Mesopotâmia para “sentir” que o Jaime é um artista de génio.” Sentir aparece aqui entre aspas, colocadas por João César Monteiro ou António Reis, tanto dá. Sentir é compreender. O amor enquanto método tem que ver com compreensão, com desdobramento, com receber na oferta, como quando se dá a mão com afecto, num cumprimento ou em ternura, e assim se dá ao mesmo tempo que se recebe, resultando disso uma coisa terceira, uma transformação ou uma intercessão, para empregar aqui o conceito de Gilles Deleuze — quer dizer, resultando aqui um filme, um filme onde e de onde todos surgem de novo modo: Jaime Fernandes, António Reis, o cinema.
Notas Finais
1edmundo.cordeiro@ulusofona.pt
2João César Monteiro, «Jaime, o inesperado no cinema português», entrevista a António Reis, Cinéfilo nº29 (20 de Abril de 1974): 22-32. Reeditada no catálogo António Reis e Margarida Cordeiro — A Poesia da Terra, ed. Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo (Faro: Cineclube de Faro).
3Edmundo Cordeiro, «”Jaime” ou a origem do cinema português contemporâneo», Avanca | Cinema 2018 International Conference, Edições Cine-Clube de Avanca, pp.398-401 — ISSN 2184-0520.
4«Jaime, o inesperado no cinema português», texto citado.
5Maria Filomena Molder, «Causas que seguem os efeitos ou ameixas doiradas com orvalho — sobre Jaime António Reis», in Descasco as imagens e entrego-as na boca. Lições António Reis, Documenta, Lisboa, 2020, p.23.
6Como diz Maria Filomena Molder, “Para António Reis este filme não é documentário nem ficção: «Não tem nada a ver com um documentário, nem biográfico, nem nada. É uma espécie de memória e de imaginação» em que a imagem incontrolável exerce a sua soberania. Muitas vezes, as classificações já estão em estado de fóssil e tornam-se em obstáculos e armas de arremesso, embora não tenham forçosamente de se deitar fora, porque elas correspondem a um gesto compreensivo. Porém, quando se convertem em legislação disfarçada, convém fazer-lhes frente. Na verdade, as ideias feitas sobre documentário e sobre ficção não convêm nem ao homem nem à obra.” Ibidem, p.40.
7Maria Filomena Molder fala disto no seu texto, a partir dessa espécie de repetido lamento de António Reis: Jaime, a pessoa que existiu, fugia-lhe, e assim o filme também.
8Ibidem, p.49.
9Do título do livro de António Reis acima referido.
10António Reis, Poemas Quotidianos, 22, Tinta da China, Lisboa, 2017, p.40.