Abstract
In Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle (2012), Marxist philosopher Silvia Federici centers the theme of Reproduction, which she considers forgotten even by Marx in his analysis of relations of production. If Das Kapital (1867) showed that in capitalism value is generated by labor power, he neglected that Reproduction is the work that produces the workers themselves. Based on such premise, the present reflection ponders the reasons for this erasure of the political, social and economic role of Reproduction through the analysis of the 2017 film Mother! by Darren Aronofsky. The film tells the story of an anonymous woman who, after a devastating fire, tries to rebuild the house where she lives with her famous writer husband. However, the process of domestic rehabilitation ends up frustrated by crowds of admirers who invade and damage the house attempting to meet the writer they idolize. The architectural destruction gives material shape to the psychological damage caused to the protagonist and to her body. The body becomes a resource made available to perverse and abundant demands of her husband, those of his admirers and of his art. The way that Aronofsky’s film renders central the domestic space, as well as production conceived as art, will serve to question the extent to which the sociopolitical erasure of Reproduction results either from the glamorization and fetishization of the productive role of said Reproduction, or else from a process of the domestication of bodies is operated by the political category of space.
Keywords: Reproduction, House, Home, Body, Commodity fetishism.
I. Casa-Corpo
Narra o mito de Prometeu que a humanidade se fez civilização pela dádiva do fogo enquanto sinédoque, mais do que símbolo, da possibilidade de conhecimento. No interlúdio da metamorfose – a fenomenologia dos mitos que os impele a medialidade descritiva e os liberta de prescrição morigerante –, o ganho manifesta-se perda, porquanto há qualquer coisa de humano que foi sonegado pelo civilizado. Porém, entre o deslumbre, tende a cantar-se a clarividência ocasionada pela luz, a gracejar-se o sacrifício e a salvação no encómio de grandeza da espécie das espécies. Esquecida a hipótese da cegueira no momento preciso da sua manifestação, o humano tornado civilizado entretém-se com o “que” da certeza do fogo e, naquele funambulismo do abismo entre o ingénuo e o perverso, abstém-se de questionar o “como” da ignição que gera e garante a combustão. A consciência da dádiva mercantilizada? Não se trata de averiguar qual o seu preço, mas de perceber o que a dá a ver como valor. É que mesmo suspensa a convicção da luz que é lucidez e volvendo-se questão o fogo dado, o fetichismo da mercadoria impõe-se limite lançado sobre o questionamento. Continuamos, por isso, a ter compaixão por gigantes e titãs e apelidá-los de filantropos. Como se oferecer à humanidade o fogo possuído, até então pelos deuses e usado em todo o tipo de sacrifícios e hecatombes fosse um ato de amor e não apenas uma mudança de tutela que redefiniu o carrasco. A transladação do fogo. A forja dos novos deuses de sempre. A manutenção da ordem. O sacrifício. De quem? De Prometeu a quem a águia de Zeus devora o fígado? No fundamento de qualquer narrativa está sempre uma distração. A filantropia. A compaixão pelo titã. A gratidão ao gigante. Mas continua a arder. Como? A matéria anónima da ignição que dá a ver o fogo como valor. É que, antes e depois de Prometeu, a poética do fogo sagrado que assegura a incandescência permanece a história por contar da matéria extinta no smog da condição.
É essa história que Mother!, a longa metragem de 2017 realizada por Darren Aronofsky, leva ao grande ecrã. Como que abrindo os grilhões do anonimato, o filme apresenta a matéria na sua dimensão de corpo vivido, situando-nos, para isso, no quotidiano de uma jovem mulher que, após um incêndio devastador, tenta reconstruir a casa em que vive com o marido, um escritor famoso. Não é, contudo, na finitude e no ser tempo que se centra a diegese, mas no espaço enquanto experiência corporal que, na sua subjetividade, mostra a relacionalidade da matéria no materialismo das relações. Sintomático que toda a diegese se passe dentro de quatro paredes e todas as personagens surjam em cena sem nome próprio, pejadas de uma identidade alegórica que brota das relações materiais que estabelecem ao contracenar umas com as outras no interior da casa. A protagonista como “mother” (interpretada por Jennifer Lawrence), o marido como “him” ou “writer” (interpretado por Javier Bardem), os deuteragonistas como “man” (Ed Harris) e “woman” (Michelle Pfeiffer) e os filhos destes como “younger brother” (Brian Gleeson) e “oldest son” (Domhnall Gleeson). Segue-se, em frenético burburinho, a entrada e saída vertiginosas ora de um “cupbearer”, ora de uma “damsel”, de uma “consoler” e de um “bumbler”, de um “philanderer” e de uma “fool”, de um “adulterer”, de um “idler”, de uma avalanche de “zealots” que, em magote apocalíptico, irrompem pela casa dos protagonistas e, a título de hospitalidade, fazem dela um lugar inóspito. Esta multidão de admiradores, na demanda de privar com o escritor por eles adorado, alberga-se na habitação em reconstrução e danifica o que vai sendo restaurado pela protagonista. Os estragos arquitetónicos confluem com a perturbação e o dano que a situação causa nesta jovem mulher e se inscreve no seu corpo feito condição de possibilidade para as muitas demandas do marido, da sua arte e dos seus admiradores. De musa inspiradora a dona de casa, recai sobre ela a tarefa de forjar um ambiente idílico que motive o exercício poético, assim como a manutenção dos cuidados de subsistência e bem-estar de todos quantos ali se hospedam.
Numa composição em anel, o filme abre com a mesma imagem com que termina: o som laranja escarlate de labaredas que consomem o rosto já carbonizado de uma mulher. Não se ouvem dela gritos de dor, já que o fogo, com o seu monólogo silenciador, não permite sequer que eles sejam desenhados na morfologia dos lábios. Com a expressão de uma árvore devorada num incêndio, os cabelos dela esvoaçam como galhos espavoridos pelas chamas ruidosas que os sacodem à medida que os devoram em ruminação. O grande plano inicial fecha num plano italiano que coloca em cena os olhos já lânguidos, mas capazes ainda de, num último pestanejar, verterem uma lágrima que ecoa, impotente, a sua denúncia entre as chamas. Silêncio total e na tela completamente escura é pincelada a tinta branca e em exclamação a palavra-título do filme – Mother!. Assiste-se, por fim, à transformação de uma casa em cinzas que, qual Fénix, recupera o vigor de cada um dos seus compartimentos. Na cama do quarto que se reergue dos destroços desperta uma outra mulher ali deitada, a protagonista. A palavra cede lugar à corporeidade e, qual verbo que se fez carne, a protagonista nomeia com a materialidade do seu corpo a matéria outrora anónima: mother. Entre a sensação de que a casa em cinzas tenha renascido mulher ou parido uma, no decorrer da trama fica a certeza de que as cinzas se tornaram casa pelas mãos daquela figura feminina que, pedra por pedra, reedificou o edifício que, por sua vez, a tornará na mãe. Superando a mera personificação da maternidade, o filme de Aronofsky traz à tela o tema da Reprodução nos moldes de uma parábola concebida na dialética casa-corpo. Não se limitando a enunciar que a matéria é relacional e as relações são materiais, do argumento à mise-en-scène, a metragem explora em que medida a relação se processa em materialismo e a matéria se realiza em relacionalidade. Por outras palavras, na sua parábola dialética, Mother! visa compreender o como da matéria na alegoria do corpo e o como da relação na alegoria da casa, mesclando-os na tensão casa-corpo que encontra distensão na Reprodução como síntese quer da relacionalidade da matéria, quer do materialismo das relações. Para tal, o filme adentra-se pelo domínio dos relacionamentos familiares como caso de estudo, desvelando através do vínculo marido-esposa o substrato institucional omisso sob o lato espectro da afetividade.
Em certa medida, apresenta-se uma tentativa estética de problematizar a ética do talento e do mérito enquanto fenómeno de parasitismo do masculino sobre o feminino. Mas mais do que isso, com o típico mindfuck da filmografia de Aronofsky, propõe-se equacionar os alcances desse subtexto sexista e do seu tratamento estético, através da descrição em ato daquilo que gravita em torno do masculino e o define, mais do que “homem”, enquanto modus operandi extrativista. O retrato do masculino cinzela-se, assim, nos moldes de uma falocracia cujo poder não reside per se em possuir ou não falo, mas ergue-se e renova-se na legitimidade do direito de propriedade que, assegurado pela posição social e política que tem à cabeça o prestígio, consiste na subjugação e dominação de corpos como pecúlio próprio. O feminino surge como epítome desses corpos e o masculino feito masculinidade mostra-se, mais do que ser, a estrutura que faz deles domesticidade disponível, uma vez dispostos por dinâmicas arquitetónicas que emolduram a domesticação e, assim, garantem a autopreservação. O motivo da casa em constante restauro, reparação e conservação remete para essa autopreservação sistémica da estrutura na sua relacionalidade arquitetónica de posição ou cargo. Já o corpo da protagonista tornado mother projeta as consequências materiais dessa mesma relacionalidade, porquanto ele é, na sua subjetividade vivida, a inscrição das relações que se cravam na matéria. Por sua vez, a Reprodução, nas suas várias camadas de sentido, aparece na equação a desmontar a narrativa das mentalidades. Para lá de mero produto ideológico, cultural e comportamental, a Reprodução irrompe engajada com o materialismo das relações, desde logo porque é a condição material de possibilidade da propriedade, sendo-lhe imputada a gestação e cuidados de corpos disponíveis que asseguram a manutenção biológica da espécie e, em concomitância, a autopreservação social e política da falocracia que depende da sua domesticação.
Nesse sentido, a índole tão bizarra quanto insólita de Mother! abre o seu absurdo ao sentido. É sobretudo a sequência final do filme o momento mais caótico e desconcertante. Escrita a sua obra-prima cuja primeira edição esgotou em apenas um dia, o escritor e marido da protagonista recebe em sua casa os zealots que, em peregrinação estimulada por ele e pela sua ânsia de prestígio, lhe chegam à porta com manifestações de idolatria. De repente, aquilo que era um pequeno grupo a rogar por autógrafos transforma-se numa multidão incontrolável que estilhaça abajures e danifica paredes e soalhos para obter um caco como recordação do escritor. Ainda que a protagonista suplique ao marido que os mande sair da habitação, ele recusa a pretexto de um alegado altruísmo empático – não pode deixar uma multidão desalojada – que, apenas performance, oculta o motivo real da recusa: manter o prestígio implica ter ali, à sua disposição e sob as suas ordens, um aglomerado de corpos. Entre música e gritos, festejos místicos e lutas profanas, o desejo de manter a alma poética viva instaura dentro de quatro paredes uma mortífera guerra civil, com exércitos, fações e cadáveres jazentes pelos compartimentos. Há quem clame por comida e dinheiro e, no desespero, a adoração institucionaliza-se culto e o escritor entidade sacrossanta, como sempre ambicionara. Ressalta-se a hierarquia assente na liderança filantrópica do profeta-poeta laico. A esfera conjugal, a relação marido-esposa, o extrativismo masculino-feminino, assim como todo o subtexto sexista que deu premissa ao filme ampliam-se, deste modo, à plenitude da sociedade, demonstrando que, além da misoginia, está em causa a preservação da estrutura social e política, nutrida, na sua totalidade, pela domesticação da Reprodução que assegura corpos como propriedade disponível através do doméstico. O desfecho da cena é sugestivo dessa nutrição que preserva e regenera a ordem.
A protagonista grávida acaba a dar à luz na casa destruída que havia reconstruído e, naquele clima de trincheira e barricada travestido de amor ao próximo, os zealots, congregados em partidos e rituais, devoram-lhe o filho recém-nascido, repartindo o seu pequeno corpo desmembrado entre eles. Um deles aproxima-se, então, da protagonista e recita-lhe um poema do marido: “He’s not dead! Still cries out to be heard, loud and strong. Listen. That’s the sound of life. The sound of humanity! His cry of love! His love for you!” (Mother! 2017). Dilacerada pela perda do filho e incrédula perante o insólito da união no canibalismo, a protagonista, em soluços chorosos ritmados pela revolta, responde: “Get off! Get off! You killed him!” (Mother! 2017). Acusada de egoísmo e insensibilidade para com o dever da partilha recomendado nas máximas poéticas do marido, acaba prostrada no chão pela multidão que a espanca enquanto grita “Die, cunt! Dirty whore! Slut! Bitch! Fat pig! You bitch! Take that, tramp! Cunt! Kill the pig!” (Mother! 2017). O marido, do alto da sua falsa empatia pejada do altruísmo sádico com que acolheu os admiradores para que o adorassem, recebe também o corpo agredido da esposa nos seus braços, evitando que os zealots a matem, já que o extermínio da mother significa o término da relacionalidade casa-corpo que garante a autopreservação do seu império alicerçado no materialismo da Reprodução. Procura, assim, convencê-la a perdoar os zealots:
They just want to see him. They just want to touch him. It’s horrible. I’m sorry. I’m so sorry. But we can’t let him die for nothing. We can’t. Maybe what happened could change everything. Everyone. You and I, we have to find a way to forgive them. Well, listen to them. They are so sorry. Listen. Have faith in me. We need to forgive them! (Mother! 2017).
A protagonista desenreda-se dos braços do marido e, enquanto grita “Murderer! Murderers! It’s time to get the fuck out of my house!” (Mother! 2017), corre para a cave onde está a maquinaria de funcionamento da casa. Ao vê-la fugir, o escritor persegue-a, dizendo-lhe “Don’t leave me alone! I love you. You were home!”. Sem ceder, a mother acerca-se de um barril de combustível usado para aquecer a água do banho e, como que tomando os meios de produção, incendeia a casa. Tentativa infrutífera de libertação, no entanto. Reaparece no ecrã a imagem de um rosto feminino queimado, semelhante ao do grande plano de abertura, porém, desta vez, reconhece-se nele a face da protagonista. O que terá falhado? A casa reergue-se novamente das cinzas e sobre a cama do quarto de casal ergue-se, nos mesmos moldes da cena inicial, o corpo de uma nova mulher que assegurá, de novo, a ordem reprodutiva de gerar corpos para serem consumidos, de ver tecer encómios à vida vivida para que ela possa ser absorvida, desfeita e digerida pela estrutura falocrática.
II. Amor e o caráter Fetichista do Lar
Durante a década de 70, diferentes movimentos feministas colocaram no centro das suas reivindicações o tema da Reprodução. Em França, Françoise d’Eaubonne, no âmbito da Front Féministe, erguia os alicerces do Ecofeminismo sob a premissa de que a devastação do planeta e a opressão das mulheres e da classe trabalhadora emerge da apropriação e violentação falocráticas da capacidade reprodutiva, seja ela a fecundidade do útero, seja a fertilidade da terra. Em Itália e, principalmente, nos Estados Unidos e no Canadá, aquando do movimento The International Wages for Housework Campaign, feministas socialistas como Mariarosa Dalla Costa e Silvia Federici revisitaram a análise marxista para frisar o papel materialista da Reprodução. Esboçando uma teoria do trabalho reprodutivo, estas advogavam que, sendo o valor produzido pela força de trabalho como demonstrado em Das Kapital, a Reprodução, negligenciada naquelas páginas, é o trabalho que produz a própria força de trabalho. Nesse sentido, defendem que os diversos processos de exploração de corpos são tramitados à sombra do não reconhecimento da Reprodução como um trabalho capitalizado económica e politicamente. Premissa que Mother! ilustra na invisibilidade do trabalho doméstico da protagonista – desde a reparação arquitetónica, à limpeza da habitação, sem esquecer a alimentação física e anímica dos seus habitantes e hóspedes – cuja desconsideração significa não só indiferença face à sua existência, mas sobretudo a expropriação da mesma, na sua corporeidade de indivíduo vivo, para um qualquer propósito grandioso da estrutura falocrática. Acresce a isto que todas as singelas tentativas por parte da protagonista de reivindicar o canto político do seu corpo no mundo – o apego à escala de cumplicidade biomórfica entre ela e a habitação retratam-no – sejam encaradas pelos demais como um pedantismo egoísta.
Quer o dealbar do Ecofeminismo, quer o feminismo socialista da teoria do trabalho reprodutivo, não obstante as idiossincrasias de cada um, assentem que a opressão, na qualidade de fenómeno não datado, resulta das relações materiais intrínsecas ao modo de produção e perpetuação falocráticas. Criticam, por isso, o trabalho assalariado, considerando-o um reformismo que apenas assegura às mulheres um lugar na estrutura opressiva, garantindo, assim, a sua continuidade ao invés da sua destruição. Mais do que um women’s power, que à semelhança da luta de Prometeu contra os deuses apenas substitui a tutela e redefine o carrasco, a consciência reprodutiva demanda por uma mutação revolucionária que vise o não-poder. Pretende-se, portanto, nas palavras de d’Eaubonne, “o desaparecimento da força laboral assalariada (para lá da igualdade salarial), o desaparecimento das hierarquias (para lá do acesso a promoções), o desaparecimento da família (para lá do controle da procriação)” (Eaubonne 2020, 278).
Mother!, por intermédio da linguagem estética do cinema, recupera esta abordagem teórica da Reprodução, apontando desde logo com a sua composição em anel para a possibilidade da mudança se esgotar num círculo que recicla a estrutura, preservando-a com diferentes atores e corporeidades. A metáfora do fogo traçada em efeito Fénix demonstra essa precipitação na regeneração sistémica do poder em que, de corpo em corpo e casa após casa, a mudança operada é tão somente aquela que permite que tudo fique na mesma. Daí que o devir do incêndio que abre e fecha o filme se faça acompanhar do câmbio dos corpos femininos em que uma mulher se segue à outra quase indistintamente: o mesmo rosto carbonizado, a mesma roupagem, a mesma posição jazente no leito, o mesmo despertar para o novo anonimato da velha Reprodução de sempre. “Revolução ou Mutação?” (Eaubonne, 1978), questionava Françoise d’Eaubonne pondo em destaque a insuficiência da mudança per se que, mesmo enquanto exercício revolucionário, rapidamente é cooptada para fins de autopreservação que frustram os propósitos de uma mutação estrutural. É, porventura, na consciência desse alerta que, na sua dialética casa-corpo, a metragem de Aronofsky aborda a Reprodução através da descrição em ato dos seus mecanismos de capitalização e do papel destes na capitulação de uma mutação efetiva. Da fotografia à montagem, a Reprodução dá-se a ver no filme em processos de esteticização do materialismo da relacionalidade casa-corpo que ocultam a dimensão material da opressão na exacerbação das relações familiares – desvia-se o foco da estrutura social e política, transformando o problema no dilema humano dos laços interpessoais e da conduta moral. Num recorte metapóetico, o filme encontra na autorreflexão sobre o exercício de criação artística, no como do ser poeta enquanto fabricador de nexos e ordens narrativas, uma metáfora desses processos de esteticização. Metáfora essa que, operada pelo culto ao escritor e marido da protagonista, deslinda a forma como se forja em torno do inefável uma aura de clarividência mística que romantiza a opressão. Isto, porque enreda a opressão em tecnicidades exegéticas apreendidas na qualidade de universais verosímeis da condição humana. Clarificando, num quase paradoxo, a consciência política esvazia-se na inexorabilidade de uma natureza gregária que, inevitável na vivência e, por isso, catapultada para o exclusivo da resposta estética, edifica-se conceito operativo da normalização da estrutura falocrática e das suas dinâmicas de subjugação de corpos. Em síntese, trata-se de um “é assim que funciona, porque a humanidade é assim” ou, como disse um dos zealots à protagonista “That’s the sound of life. The sound of humanity! His cry of love! His love for you!”.
Tais palavras, que são reformuladas na deixa do escritor e marido da protagonista quando tenta demovê-la de incendiar a casa – “I love you. You were home!” –, explicitam o elemento que realiza a esteticização dessa inescapável natureza humana que, responsável por romantizar a opressão, precipita de vez a sua normalização na exclusividade das relações interpessoais. Referimo-nos ao amor e à latitude semântica em que, do afeto ao casamento e à família, foi afunilada a sua expressão enquanto supressão da materialidade política das relações. O não reconhecimento da Reprodução como um trabalho inserido em todo o processo de produção e autopreservação deve-se, precisamente, ao entrincheiramento da sua compreensão em fenómeno passional intrínseco às dinâmicas gregárias mediadas por uma suposta natureza humana. Daí que, do marido aos zealots, se espere que a corporalidade da protagonista seja tão somente uma expressão afetuosa e uma agência por amor. Afinal, uma vez casada com o escritor, acaba resumida a esse vínculo familiar que, entre o erotismo e a afabilidade, é encarado como o fogo que predispõe a humana condição para a civilização – fazem dela uma mother mesmo antes de ser mãe. Sintomático que, uma vez mais em diálogo com Mother!, também Silvia Federici e Françoise d’Eaubonne destaquem o papel de Eros na autopreservação sistémica da estrutura e, nesse sentido, como obstáculo da sua mutação. Federici, que não hesita em apelidar o amor de fraude (cf. Federici 2012, 18), afirma: “Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado. Eles chamam de frigidez. Nós chamamos de absenteísmo.” (Federici 2012, 15). Por sua vez, d’Eaubonne defende que “a causa das mulheres está estreitamente ligada a Eros, e o segundo sexo jamais se libertará se não libertar toda a sexualidade, ou seja, as possibilidades do erotismo não serem confundidas com a função reprodutiva” (Eaubonne 2020, 259).
Nesta linha de raciocínio, a casa revela-se um elemento-chave, porquanto a vivência material do espaço doméstico foi concebida como a experiência afetiva por excelência – o lar enquanto geolocalização da ternura, do descanso e do conforto. Transformada nessa espacialidade idílica e idealizada que omite toda a amplitude pragmática e semântica da casa – de abrigo a prisão domiciliária –, a casa-lar enclausurou as práticas reprodutivas em relações familiares que, por sua vez, foram reduzidas a manifestações de amor que branqueiam a dimensão material da família e do casamento enquanto instituições integrantes da estrutura falocrática. É, por isso, que a violência exercida sobre a protagonista é esvaziada no conflito marido-esposa e, nesse sentido, desvalorizada como mais uma quezília típica da vivência conjugal e própria da natureza humana.
Posto isto, se o movimento The International Wages for Housework Campaign revisitou a análise marxista da acumulação primitiva para nela destacar o lugar da Reprodução nesse processo, a metragem de Aronofsky convida a resgatar as considerações sobre o fetichismo da mercadoria, tecidas por Marx em O Capital, no intuito de explicitar o papel do amor na criação de poéticas da reprodução que glamorizam e fetichizam o espaço doméstico ao enclausurar as suas quatro paredes numa relacionalidade interpessoal esvaziada de materialismo.
Marx designou de fetichismo da mercadoria o modo como o capital investe a forma mercadoria de um caráter místico e simbólico que oculta do processo de produção a força de trabalho ao deslocar para os produtos a capacidade de gerar valor. Processo de fetichização esse que o autor de O Capital descreve nestes termos:
Uma mercadoria parece à primeira vista uma coisa evidente, trivial. Da respetiva análise resulta que é uma coisa muito complicada, plena de subtileza metafísica e de caprichos teológicos. Enquanto valor de uso, nada há de misterioso nela, quer eu a considere sob o ponto de vista de que ela satisfaz carências humanas por via das suas propriedades, quer ela adquira estas propriedades somente enquanto produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por intermédio da sua atividade, transforma as formas das matérias naturais de uma maneira que lhe é proveitosa. Por exemplo, a forma da madeira é transformada quando a partir dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua a ser madeira, uma vulgar coisa sensível. Mas, logo que se apresenta como mercadoria, a mesa transforma-se numa coisa ao mesmo tempo sensível e suprassensível. Não só assenta com os pés no chão, antes sucede que, face a todas as outras mercadorias, se coloca de pernas para o ar e, a partir da sua cabeça de madeira, desenvolve extravagâncias, muito mais estranhamente do que se começasse a dançar por vontade própria. […] De onde nasce então o caráter enigmático do produto do trabalho logo que toma a forma de mercadoria? Evidentemente, desta própria forma. A igualdade dos trabalhos humanos obtém a forma objetiva da igual objetividade de valor dos produtos do trabalho, a medida do dispêndio de força humana de trabalho obtém, pela sua duração, a forma da magnitude de valor dos produtos do trabalho, e, por último, as relações dos produtores, nas quais são postas em prática aquelas determinações sociais dos trabalhos deles, obtêm a forma de uma relação social dos produtos do trabalho. O misterioso da forma mercadoria consiste, pois, simplesmente em que ela reflete para os homens os caracteres sociais do próprio trabalho deles enquanto caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, enquanto propriedades naturais sociais destas coisas e, por isso, também a relação social dos produtores com o trabalho total enquanto relação social existente fora deles entre objetos. Por intermédio deste quid pro quo, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis e suprassensíveis, ou coisas sociais. (Marx 2015, 37-40).
Para compreender o fetichismo da mercadoria, assim como a sua possível aplicabilidade à espacialidade doméstica, importa distinguir valor de uso e valor de troca, porquanto é ao nível desses dois conceitos que o fetichismo da mercadoria se dá a ver como fenómeno. Subjaz ao valor criado pela força de trabalho dos indivíduos vivos – como Marx designa os trabalhadores, quer em A Ideologia Alemã (1846), quer nos Grundrisse (1858) 1 – duas dimensões: o uso e a troca. O primeiro engloba a imensa esfera da utilidade, isto é, o conjunto de propriedades que a força de trabalho impregna no produto de maneira que este satisfaça as mais variadas carências humanas. As horas que mostram os ponteiros de um relógio são o seu valor de uso, assim como o sustentar de um líquido é valor de uso de copo. Na medida em que todo o valor, uso ou troca, é inseparável da força de trabalho, até o valor de uso, que está estritamente ligado às propriedades do produto, mantém inscrito em si o indivíduo vivo, seja na finalidade que motivou a produção, seja no uso enquanto fenómeno corporal de hábito. Isto é, através do uso o indivíduo vivo dota os produtos de um propósito ou utilidade, mas também inscreve neles as suas marcas subjetivas e até afetivas. Pense-se, precisamente, na cumplicidade biomórfica entre a protagonista de Mother! e a arquitetura da habitação, retratada pelo pulsar do coração da protagonista nas paredes da casa ou no chão que jorra sangue e se despedaça quando ela é espancada pelos zealots. Com efeito, a haver alguma dimensão suprassensível, deveria dar-se ao nível do valor de uso e enquanto expressão da relação do indivíduo vivo com os produtos.
Porém, conforme observa Marx, essa dimensão suprassensível ocorre somente ao nível do valor de troca que é a expressão por excelência do valor no seu sentido puramente económico e mercantil de geração, produção e acumulação de riqueza expropriadas pelo capital à força de trabalho dos indivíduos vivos. O valor de troca relaciona-se, assim, não com as propriedades do produto gerado como no caso do valor de uso, mas com o esforço, o desgaste e o tempo de vida despendidos pelo trabalhador na fabricação do produto. Significa isto que um produto, quando assume a forma de mercadoria – isto é, entra no circuito de troca do mercado, torna-se capital –, omite a força de trabalho do indivíduo vivo, na plenitude da sua corporeidade, presente (ou, mesmo, encarnada, já que o produto é carne e corpo daquele que o gerou) no produto gerado. Essa omissão sucede, porque o processo de mercantilização e troca coloca em destaque as propriedades dos produtos, criando a ilusão que o valor advém delas, numa espécie de relacionalidade dos produtos entre si, ao invés do materialismo das relações sociais e políticas de produção. Esgota-se nos produtos feitos mercadorias uma sensibilidade relacional, uma grandeza de valor que, ao ser considerada como exclusiva e inerente ao produto, eclipsa a força humana de trabalho que por meio da sua duração – o desgaste cravado na matéria – é a única responsável pela produção de valor. Trata-se, portanto, do fetichismo através do qual o capital enverga nas mercadorias um conjunto de subtilezas metafísicas e caprichos teológicos que esteticiza o produto, ocultando as dinâmicas de exploração de corpos subjacentes ao modo de produção. A título ilustrativo, pense-se uma vez mais em Mother!. Se a cumplicidade biomórfica entre a protagonista e a casa que ela reconstrói visibiliza o individuo vivo por de trás das relações de produção, a forma como os zealots destroem a habitação no intuito de obterem uma peça imbuída de uma inefável aura poética é retrato do fetichismo mercantil que se assoma da casa, na sua dimensão de produto, quando capitalizada como lucro e acumulação da atividade artística do marido. A análise do fetichismo da mercadoria explicita, assim, a forma como o mercado transaciona corpos de indivíduos vivos – uma multiplicidade infindável de mothers como sugere o filme de Aronofsky –, fazendo-os passar por um qualquer caráter admirável e excelso que as mercadorias possuem per se na relação dos produtos uns com os outros.
Ora, também a casa tornada a espacialidade idílica dos laços afetivos encerra em si o que podemos designar de caráter fetichista do lar. Conforme o fetichismo da mercadoria ostraciza a força de trabalho do individuo vivo ao encerrar os produtos numa relacionalidade mística entre as suas propriedades, o caráter fetichista do lar omite o papel produtivo e material da Reprodução na manutenção e autopreservação da estrutura falocrática, ao enclausurar a espacialidade doméstica numa relacionalidade exclusivamente afetiva e, nessa medida, à parte de qualquer domesticação e subjugação política, social e económica de corpos. Tal como os objetos tornados forma-mercadoria eram misticamente apresentados pelo capital como entidades suprassensíveis e, por isso, transcendentes à força de trabalho do individuo vivo, rebaixando-a, os espaços domésticos são concebidos como lugares de intrínseca afetividade e, por isso, do âmbito das relações interpessoais inatas à natureza humana, mas fora do materialismo da estruturação política, social e económica enquanto deliberação e construção. A consequência prática é que, à semelhança da força de trabalho e dos trabalhadores, a Reprodução que produz ambos, assim como os corpos por ela encarregados são ostracizados da sua própria agência, da sua própria vida vivida enquanto indivíduos vivos. Acresce que, caso a reclamem, são classificados de egoístas, insensíveis ou estultos.
Dito isto, regresse-se a Mother! e àquilo que na metragem inspira esta revisitação do fetichismo da mercadoria na qualidade de caráter fetichista do lar. Ainda na cena inicial, segundos antes da casa se reerguer das cinzas, aparece no ecrã um cristal que o escritor e marido da protagonista coloca numa espécie de tripé e a partir do qual, como que por magia, se desencadeia a ressurreição da habitação das chamas. No decorrer da diegese, tal objeto encontra-se isolado no interior do escritório onde é protegido pelos mais delicados cuidados, porquanto o escritor e marido da protagonista afirma ser aquele cristal a razão da sua inspiração e o responsável por restabelecer o alento e a vida após o incêndio. Contudo, a aura deste enigmático amuleto não só acaba posta em causa quando em contraponto com o exaustivo trabalho de reconstrução levado a cabo pela protagonista, mas também desmitificada em absoluto pelo final do filme que explicita a origem do cristal. Devorada toda a casa pelas chamas, apenas sobreviveram entre aquela enorme multidão o marido da protagonista intacto e ela própria com o corpo de tal modo lesado pela combustão que não tardará a sucumbir. O escritor acerca-se dela, carrega o que ainda resta do seu corpo queimado e, perfurando-lhe o peito com as mãos, extrai dele o que designa ser o amor dela. A protagonista definha de vez enquanto o escritor segura esse dito amor que é, precisamente, o cristal. Assim, sob a chancela do amor místico e inefável, o ato revolucionário da protagonista ao incendiar a casa é frustrado e a tomada dos meios de produção capitalizada para a regeneração da estrutura.
Uma vez mais, a índole mindfuck de Mother! abre o seu absurdo ao sentido: o amor e toda a poética da Reprodução que o envolve dão-se a ver, além de experiência interpessoal amorosa, enquanto a condição material de subjugação e extrativismo de corpos aos quais é expropriada a própria existência no mundo enquanto indivíduos vivos. Tornado propriedade da e para a estrutura, o próprio corpo é impedido de ser corpo próprio. Nesse sentido, se o cristal ilustra o rebaixamento da força de trabalho a mercadoria, compreende-se que o fetichismo que branqueia e legitima todo e qualquer processo de exploração e opressão é desencadeado pela espacialização de corpos que, uma vez dispostos no espaço, permanecem e são tão somente dispor. Isto em nome de um qualquer amor familiar – das núpcias à maternidade, sem esquecer a filantropia enquanto sedimento místico da ordem política – que, performatizado à escala da conduta e das relações pessoais, é instituição que pulsa autopreservação.
Notas Finais
1Os trabalhadores só o são, porque o seu trabalho é a materialização da capacidade de trabalho do indivíduo vivo. Ao ler a obra de Marx verifica-se que, em grande medida, a perversidade do modelo económico capitalista prende-se com a forma como o capital absorve e, por isso, priva cada ser humano da sua individualidade vivente ou, dito com o devido rigor, na sua lógica de acumulação priva uns da sua individualidade vivente a fim de exacerbar a de outros tornados estrutura. É essa expropriação pelo capital do indivíduo vivo, da sua vida viva e vivida, que conduz Marx à análise profunda da economia política do Capitalismo. Como refere o próprio Marx em A Ideologia Alemã: “Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos vivos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via puramente empírica. O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro facto a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos.” (Marx 2007, 86-87). Ou ainda como frisa nos Grundrisse: “Capital has paid him the amount of objectified labour contained in his vital forces. Capital has consumed it, and because it did not exist as a thing, but as the capacity of a living being, the worker can, owing to the specific nature of his commodity – the specific nature of the life process – resume the exchange anew” (Marx 1973, 323).
O presente trabalho foi realizado e financiado no âmbito da bolsa de investigação para doutoramento FCT UI/BD/152562/2022.
Bibliografia
Eaubonne, Françoise d’. 2018 [1978]. Écologie et féminisme. Révolution ou mutation?, Paris: Libre & Solidaire.
Eaubonne, Françoise d’. 2020 [1974]. Le Féminisme ou la Mort, Paris: Le Passager Clandestin.
Federici, Silvia. 2012 [1975]. “Wages Against Housework (1975)”. In Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle, Oakland: PM Press.
Marx, Karl. 1973. Grundrisse, trad. Martin Nicolaus, Nova Iorque: Vintage Books, 1973.
Marx, Karl. 2007. A Ideologia Alemã, trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano, São Paulo: Boitempo.
Marx, Karl. 2015. O Fetichismo da Mercadoria e o seu Segredo, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Antígona.
Filmografia
Mother!. 2017. De Darren Aronofsky. Estados Unidos da América: Paramount Pictures. DVD.