Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Living in the margins: contemporary cinematographic visions

O habitar à margem: visões cinematográficas contemporâneas

Walmir Pavam

Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP)
Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Miriam de Oliveira Gonçalves

CIAUD, Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design
Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal

Abstract

Cities, their inhabitants, communities, and dilemmas have been present in cinematographic narrative since the cinema inception. However, the language has evolved, and in the last decades this thematic has been increasingly explored in the universe of documentaries.
More recently, a mix of documental and fiction languages has been explored as an effective vehicle to provide a more authentical portrait of personal and collective issues. In this sense, this article aims to analyse two cases of the documental production on community action in precarious ways of living in the contemporary world: “The Cambridge Squatter” by Eliane Caffé (Brazil, 2017) and “Nomadland” by Cloé Zaho (USA, 2020). The first, focuses on migrants and refugees’ occupation of an abandoned hotel building in the centre of São Paulo, while the second, portraits the daily life of those who decide to live in trailers, in a nomadic way.
The film selection seeks – with the common theme of the housing issue and alternative ways of living in the fringes of the capitalist system – to contemplate different geographies and contexts. The analysis will focus on the commonalities and disparities of the approaches – both a mix of documentary and fiction, with actors and non-actors and their interaction with the built and non-built spaces. How are the segregated spaces appropriated and experienced by these communities? How do the characters relate to each other? How does this alternative cinematographic language contribute to convey the sentiment of these communities?

Keywords: Documental Cinema, Communities, Squatting, Housing Crisis, Nomadic Life.

Introdução

Desde a crise imobiliária global de 2008 até a catástrofe climática iminente, passando pela pandemia de Covid-19, o direito de habitar tem sido desafiado e colocado sob extrema pressão. Especialmente nas urbes, parece estar cada vez mais difícil encontrar espaços com valores acessíveis para viver, para conviver e sobretudo ter o tempo para simplesmente ser e respirar, como seres humanos dignos, para além da capacidade produtiva de cada um. Neste sentido, têm surgido por toda a parte do globo conceitos alternativos de habitar que colocam em questão as formas tradicionais, buscando inovação seja do morar em si, seja das relações por ele criadas e a forma de se estar no mundo.

As análises críticas recentes sobre a dicotomia urbano e rural, tanto em seus aspectos geográficos quanto sociológicos e antropológicos têm explorado e exposto as múltiplas escalas e subjetividades plurais da crise global da habitação. Diversos autores têm focado, por exemplo, no papel da dívida imobiliária, nos domínios da habitação e da reprodução social, na exclusão do futuro (Cavallero and Gago 2021), da financeirização global da moradia (Rolnik 2017; Harvey 2005), nas implicações de longo prazo da ecologia política da austeridade global (Calvário, Kaika, and Velegrakis 2022) ou dos desafios para simplesmente respirar em meio às doenças respiratórias e à atmosfera opressiva e/ou racista vigente (Mbembe and Shread 2021).

O agravamento das diferentes formas de violência no Antropoceno (Nixon 2011) têm recebido como resposta diversas propostas (Bratton 2019). Estas somam-se às tentativas crescentes de reconfigurar e ressignificar espaços e lugares urbanizados não só para as formas de vida humana, mas também as demais (Cousins 2021). Além disso, movimentos migratórios desencadeados pelos diversos conflitos em todo o globo, somados à tragédias naturais, levam populações a buscar novas formas de se situar no mundo e recomeçar suas vidas (De Castro and Danowski 2017).

Talvez o momento peça uma reflexão imaginativa e especulativa sobre os futuros que podem existir para a habitação planetária. Estes imaginários passam por múltiplas escalas e por diversas perspetivas, sejam estas humanas ou outras, que podem ir desde experiências em políticas habitacionais até novas formas de respirar em um planeta pós pandêmico e sujeito à novas pandemias. Estas são ideias para se pensar transversamente a habitação (Lancione and Simone 2021).

Todas estas tentativas de imaginar este futuro da habitação planetária passam por um lado através das lentes dos estudos urbanos, geografia, política, planejamento espacial, arquitetura, antropologia e assim por diante. Por outro lado, a ampliação dos imaginários culturais presentes e futuros são também propiciados pela produção cinematográfica, como os dois exemplos que veremos a seguir.

O habitar incerto: expressão entre a ficção e o documental

Como base para estas reflexões, foram selecionadas duas películas focadas na temática da questão do habitar precário em diferentes geografias: São Paulo e a região oeste/sudoeste dos Estados Unidos, neste segundo caso na modalidade nômade. São eles: “Era o Hotel Cambridge” de Eliane Caffé (Era o hotel Cambridge 2017) e “Nomadland” de Cloé Zaho (Nomadland 2020).

A primeira centra-se na ocupação por migrantes e refugiados de um hotel abandonado no centro de São Paulo, enquanto a segunda retrata o quotidiano daqueles que, na maioria das vezes por falta de trabalho ou por terem empregos cada vez mais precários, decidem viver em trailers, de forma nômade.

Esta seleção de filmes foi baseada no uso comum de uma linguagem cinematográfica que mistura documentário e ficção – ou docudrama – além de contemplar diferentes geografias e contextos.

A análise se concentrará nas semelhanças e disparidades das abordagens – ambas uma mistura de documentário e ficção, com atores e não atores e sua interação com os ambientes construídos e não construídos. Como os espaços segregados são apropriados e vivenciados por essas comunidades? Como os personagens se relacionam? Como esta linguagem cinematográfica alternativa contribui para transmitir o sentimento dessas comunidades?

Com este intuito, primeiramente analisaremos os filmes em separado para então, em seguida, buscar as semelhanças e diferenças das abordagens, com o intuito de descobrir como esta linguagem contribui para envolvimento do espectador nas narrativas.

Nomadland

Em Nomadland, de Cloé Zaho, Fern, com cerca de 60 anos, torna-se viúva e perde o emprego, já que a mineradora em que o casal trabalhava encerra as atividades. Então, sem perspectivas, decide sair pelos Estados Unidos num trailer, em busca de trabalhos temporários.

O roteiro do filme, adaptado do livro Nomadland: Sobrevivendo aos EUA no século 21 – edição original em 2017 – pela jornalista americana Jessica Bruder (Bruder 2021), baseia-se no real fechamento da US Gypsum, mineradora de gesso em Empire, Nevada, em 2011. Depois de 88 anos de funcionamento, o término das atividades foi motivado pela recessão de 2008. Como consequência e como se não bastasse, alguns meses depois, não apenas a mineradora fechou, como também a pequena cidade, habitada por trabalhadores da empresa. Depois, em 2016, uma outra empresa comprou a fábrica, a mina e também a cidade, que atualmente tem um número menor de habitantes/trabalhadores (Kane 2021).

Uma jornada pessoal e coletiva

A partir de um motivo sócio-econômico-familiar, causado pela precarização das relações de trabalho nos EUA, a personagem Fern se questiona sobre o sentido da sua vida. Mas sua decisão vai em direção oposta ao que se espera do papel de uma mulher viúva numa sociedade convencional: ela decide sair pelos Estados Unidos num trailer (Fig. 1).

Figura 1 – Na estrada (Nomadland 2020)

Assim como na tradição da aventura do herói, a personagem sai do mundo comum em que vive para desenvolver uma trajetória, por iniciativa própria ou impulsionada por algum motivo ou pessoa. No entanto, talvez seja mais adequado associarmos essa trajetória à jornada da heroína, que ao não se identificar mais com o universo que vive, já muito dominado pelas regras patriarcais, e já tendo rejeitado a visão de feminino como manipulador improdutivo ou passivo toma a decisão de buscar outras possibilidades de vida. (Murdock 2013). Ela poderia, logo ao perder o marido, ter como primeiro objetivo casar-se novamente, na mesma região, e viver dentro de uma casa, espaço tradicionalmente considerado próprio da mulher, mas não o fez – embora na sua idade e no contexto trabalhista precário, essa opção seja bem menos viável.

Apesar de passar por uma série de obstáculos durante a sua trajetória e aprender algo com ela, assim como numa jornada mitológica, também podemos identificar a narrativa como um filme de estrada (road movie). Em Nomadland (Nomadland 2020), a transformação da ação se estrutura não apenas pelas relações intersubjetivas que a protagonista estabelece, já que sua trajetória ficcional é constantemente permeada por depoimentos reais, adaptados, sim, à ação, mas por outro lado, épicos e documentais.

Os depoimentos de pessoas reais em meio à ação ficcional são uma espécie de “ruído” que injeta ainda mais veracidade à narrativa, até porque não identificamos a maioria dessas pessoas como atores conhecidos, ao contrário da protagonista, atriz estadunidense consagrada. Por outro lado, nos momentos em que esses depoimentos acontecem, mesmo inseridos e justificados na ação central, trazem elementos épicos e líricos que desaceleram o ritmo convencional da ação focada na relação conflituosa entre indivíduos, típica do drama. No filme, a troca de experiências entre os personagens importa mais do que necessariamente o desenvolvimento gradual dos acontecimentos e conflitos até um ápice.

Durante toda a sua trajetória no filme, ela desenvolve relacionamentos momentâneos com pessoas que fogem à regra do comportamento familiar patriarcal: encontros profissionais, de amizade ou amorosos cujas experiências a retiram do tempo convencional da produção e a permitem buscar internamente um universo de possibilidades de ser mulher hoje. Nesse sentido, o roteiro também apresenta uma busca de aprofundamento das visões de mundo dos personagens não protagonistas, ao se relacionarem com Fern; essa multiplicidade de visões de mundo permite que não se concentre o foco apenas na ação central. Se por um lado a ação de Fern conduz obviamente o filme e sejam criadas tensões entre a protagonista e os outros personagens distribuídas pela ação, elas têm uma importância similar aos momentos de reflexão coletiva e de percepção profunda dos sentimentos dos vários personagens.

O filme se estrutura em uma jornada na qual a cada encontro, cada momento/unidade, a protagonista desenvolve uma experiência importante com determinados personagens, como Linda, amiga de Fern na Amazon CamperForce – um programa de trabalho temporário da empresa para moradores de trailers (Tarasov, 2021) – e Bob Wells, criador de um encontro anual desse tipo de moradores na comunidade de Quartzsite, Arizona. (Ribeiro 2021). A experiência pessoal de Fern é evidentemente coletivizada por meio da relação com os outros personagens, que pelo fato de serem em sua maioria reais, promovem também um diálogo constante entre ficção e realidade na narrativa.

A casa que é estrada

A protagonista, no decorrer de sua trajetória na estrada, desenvolve relações em diferentes espaços de ação, que de certo modo permitem a amplificação do seu universo pessoal. Os espaços que abrigam uma forma de habitação e convivência não tradicional – embora já incorporados na lógica produtiva capitalista – são aqueles em que a personagem mais desenvolve encontros que fazem sentido para sua nova perceção de mundo. Um exemplo é o acampamento de moradores de trailers de Bob Wells em Quartzsite.

Os espaços percorridos e vivenciados pela protagonista são muito significativos dos diferentes momentos de sua trajetória. No início do filme e de sua jornada com o trailer pelo interior dos Estados Unidos, numa primeira parada na estrada, ela urina. A ação de uma mulher sozinha abaixar a calça para urinar em meio à paisagem gelada e inóspita pode simbolizar o início de uma reintegração do seu corpo com a natureza, além da desconstrução de uma atitude convencional feminina e domesticada.

Um espaço muito significativo da produção capitalista é o prédio da Amazon em que ela trabalha; no entanto, o filme subverte essa função produtiva: quando ela conversa com os trabalhadores, uma delas - a líder do seu setor – lê trecho de letra de música dos Smiths que põe em questionamento o significado de casa:

Home is just a word
Or is it something that you carry within you?1

Em que sentido a casa é mesmo o espaço central da existência do feminino? Uma mulher deve apenas ter a função de acolher o marido e os filhos? Mas por outro lado, ocupar o espaço do mercado de trabalho que foi historicamente reservado ao masculino é suficiente para contemplar todas as necessidades do feminino?

No ano seguinte, ela retorna ao trabalho temporário na Amazon porque precisa de dinheiro para voltar à estrada com seu trailer. Essa ironia traduz a contradição de que para vivenciar momentos de liberdade no sistema capitalista, é preciso se vincular a ele. Segundo a irmã, Dolly, que ela reencontrou quando, também em função da penúria, retornou à casa dos familiares: “Para ser livre, você precisa estar dentro do sistema”.

A perceção da vida nômade alarga a visão de mundo da protagonista: em diferentes momentos, ela observa as paisagens da estrada. Além disso, de quando em quando, para em um riacho, um lago ou cachoeira para tomar banho (Fig. 2). Quando é obrigada a voltar a um espaço familiar para pedir ajuda financeira para consertar o seu trailer, o espaço confinado e as relações familiares parecem não fazer mais sentido e parecem oprimi-la.

Figura 2 – Paisagem (Nomadland 2020)

Noutro momento, quando ela vai à casa do filho de Dave, companheiro que conhece na estrada e com quem chega a trabalhar, tenta, mas não se adapta mais ao espaço caseiro e a função “feminina” que ela poderia ter nessa família. Habitar não é mais sedentário e acolhedor para uma mulher que, viúva, madura e em situação financeira precária, decide vivenciar uma experiência não convencional do feminino. Para que possa viabilizar a sua subsistência, ela decide ir além da família, da cidade, da casa, o que lhe traz novos sentidos para a sua própria existência.

Por outro lado, o filme traz à tona o fato de que o espaço urbano, tradicionalmente o palco do desenvolvimento de ações dramáticas contemporâneas, passa a não ser o ambiente de ação único para representar a luta pela sobrevivência, autoconhecimento e crescimento de uma mulher.

Era o Hotel Cambridge

Era o Hotel Cambridge (Era o hotel Cambridge 2017), filme dirigido por Eliana Caffé, com roteiro dela, Luís Alberto de Abreu e Inês Figueiró, foi uma criação coletiva dos autores com a Frente de Luta por Moradia (FLM), o Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST) e a Escola da Cidade, durante alguns anos da ocupação do prédio. (Escorel 2017)

O hotel Cambridge, hospedagem de luxo no centro de São Paulo, após oito anos de abandono, foi ocupado em 2012 pelo Movimento Sem-teto do Centro (MSTC), filiado à FLM. Desde o início do processo de criação, Eliane e sua irmã Carla Caffé ofereceram oficinas de vídeo e de atuação para os moradores, o que permitiu, entre outros aspectos, que a equipe conhecesse de fato os diferentes personagens e espaços da ocupação. Na verdade, o processo de elaboração do filme parte de um princípio colaborativo, de uma criação que necessariamente deve resultar de diferentes olhares (Matos 2020).

A luta nossa é a minha

A narrativa do filme centra-se na ocupação do Hotel Cambridge; as diferentes histórias reais de sem-tetos e refugiados são organizadas por uma estrutura narrativa e alguns personagens ficcionais que dialogam com os fatos, elementos e pessoas que vivem na ocupação. Ou seja, o filme parte de um material documental, mas que forma uma intrincada teia com a ficção, de modo a nos provocar novos olhares sobre a realidade.

A narrativa é organizada, como em um livro, por capítulos, marcados através das imagens de indicação de cada andar do edifício (Fig. 3). Desta forma, o espectador vai adentrando tanto o espaço físico do edifício quanto a história que está sendo apresentada.

Figura 3 – Capítulos Filme / Andares do Edifício (Era o hotel Cambridge 2017)

Uma estrutura narrativa com várias histórias/linhas de ação (multiplot), mas todas unidas ao fato real da ocupação, inclusive o tempo ficcional provocado pela organização dramatúrgica do filme está diretamente ligada ao tempo real da ocupação, já que a diretora e os autores foram desenvolvendo a dramaturgia juntamente com os ocupantes. Entre os diferentes personagens/figuras apresentados na narrativa, um palestino, Hassan – proveniente de um campo de refugiados na Jordânia – um congolês, nordestinos. Algumas dessas trajetórias, como a do palestino e do congolês, são aprofundadas durantes o filme, assim como de Carmem Silva, baiana, líder do MSTC e da ocupação. Os personagens ficcionais como Apolo e Gilda, interpretados por consagrados atores brasileiros, estabelecem relações e criam situações com esses e outros personagens e também com as situações reais vividas pelos ocupantes.

Essa polifonia de narrativas está intimamente ligada à fragmentação da vida dessas pessoas, que precisam a todo o instante recompor os pedaços de suas vidas e do próprio edifício – dos objetos e dos locais de vida pregressos. Quando chegam em São Paulo, precisam reorganizar o seu próprio universo cosmológico, rever as suas tradições e suas referências culturais para que estabeleçam uma convivência possível e construam juntos a causa política. Mas, evidentemente, é uma eterna construção, em que o diálogo pode se complicar, os medos e discordâncias podem fazer perder o objetivo comum.

Um dos moradores, engenheiro eletrônico, que havia sido encarregado da reforma elétrica, diz durante uma assembleia dos moradores, que se forem despejados, não vale mais a pena ele trabalhar nesta reforma. Carmen replica que eles estão lá para tomar conta e cuidar , não podem desistir. Em cena posterior, Apolo, nordestino responsável pelo vlog da ocupação, questiona o engenheiro por sua atitude desagregadora: “Cadê o foco narrativo?”. Essa fala parece traduzir ironicamente a própria estrutura do filme, de múltiplas narrativas, mas ao mesmo tempo reflete a necessidade de manutenção da luta central, mesmo que sejam respeitadas as individualidades dos integrantes da ocupação.

As vozes individuais se contrapõem com frequência aos interesses coletivos, criados pelo coro de moradores, principalmente durante as ações internas e externas do coletivo, além das assembleias para a tomada de decisões. Mesmo entre os personagens individuais, enxergam-se conflitos resultantes das diferenças entre seus diversos locais de origem e culturas.

Por outro lado, além dos conflitos criados por meio das ações intersubjetivas e dos diálogos – elementos dramáticos – também se destacam as reflexões que os personagens desenvolvem a partir dos dilemas vividos por eles. Um exemplo é a fala reflexiva do personagem palestino para o mesmo engenheiro, logo na sequência da discussão citada acima:

Nós agora somos ocupantes de um local, enquanto eu fui colocado para fora de minha pátria por causa de ocupantes que foram, um dia, vítimas. Isso não dá para eles o direito de ser criminosos (Era o hotel Cambridge 2017).

Outra característica importante da narrativa são as ações artísticas estimuladas por Apolo para alimentar o vlog, como as imagens de danças criadas pelos moradores (Fig. 4), ou então as falas poético-filosóficas de Apolo e de Hassan. São espaços líricos criados na narrativa, que juntamente com os elementos dramáticos e épicos-documentais, permitem que seja formado um olhar panorâmico amplo e complexo que vai desde a situação macro e social (a ocupação) aos sentimentos dos indivíduos que vivem essa realidade de segregação.

Figura 4 – Dança (Era o hotel Cambridge 2017)

O interior do edifício abriga o mundo

O filme se inicia com imagem de edifícios altos na cidade, passando pelas estruturas físicas do prédio ocupado e apresentando inicialmente os personagens, cujas histórias serão introduzidas e desenvolvidas no decorrer da ação, em diálogo com os fatos reais da ocupação e do movimento dos sem-teto.

Do mesmo modo, ao fim do filme, passa-se do interior da ocupação recém-conquistada pelo coletivo aos ataques externos da polícia e em seguida, às imagens externas de vários prédios ocupados na cidade. Durante a ação do filme, apenas no momento em que eles saem do edifício inicialmente ocupado para ocupar um outro é que vemos imagens da rua. Entram também personagens externos, como um advogado. Além disso, vemos imagens dos locais de origem dos ocupantes, sejam eles refugiados ou sem-tetos.

O interior dos edifícios (Fig. 5) como lugares centrais da ação, em contraste com imagens ocasionais dos espaços externos da cidade ou então de locais estrangeiros ou não paulistanos, é uma dialética decisiva para apresentar a luta desses ocupantes por um espaço digno de moradia de modo vivo. Eles se deparam com todas as dificuldades enfrentadas na ocupação, ao mesmo tempo em que se defendem dos ataques externos trazidos pelas instituições sociais e também se recordam de suas vidas pregressas, como forma de manterem uma memória originária.

Figura 5 – Escada Edifício (Era o hotel Cambridge 2017)

Os conflitos, concentrados nos espaços internos dos edifícios, nos obrigam a enxergar um cotidiano de personagens sociais excluídos da lógica burguesa da habitação, e que vão além do retrato preconceituoso e violento dos sem-teto que vemos veiculados na mídia em geral. Busca-se a humanização das pessoas envolvidas em uma ocupação, associada a uma mise-en-scène que estimula a percepção do público sobre a relação entre os fatos e os sentimentos dos ocupantes.

O filme propõe um painel social amplo, que conecta o local ao mundial, a partir do viés habitacional: quanto de diálogo os diversos atores sociais conseguem manter perante a lógica do lucro que permeia o habitar? O quanto de resistência e consciência histórico-geográfica-social-política é preciso ter para que a humanidade mantenha princípios básicos da chamada civilização, conceito europeu contraditório, mas que ainda utilizamos para nos lembrarmos do que pode ser a barbárie sem freio. Como diz personagem Carmen:

A nossa ordem vai ser a desordem total do sistema e a desordem do sistema é a nossa ordem (Era o hotel Cambridge 2017).

Conclusão

As fusões entre documentário e ficção promovem uma investigação artística original que colabora para a reflexão sobre as transformações da realidade social, e assim como acontece nos dois filmes aqui analisados, os gêneros se confundem no decorrer da narrativa. Segundo David Bordwell e Kristin Thompson,

Às vezes, porém, as formas como as imagens e os sons foram produzidos não nos farão distinguir nitidamente entre um filme de ficção e um documentário. Documentários podem incluir cenas de eventos pré-arranjados ou encenados, enquanto as ficções podem incorporar material não encenado (2008, 341, tradução do autor).

Essa superposição permite que os filmes consigam criar formas muito próprias de interação com a sociedade e além disso, pode estimular no espectador o interesse pela pesquisa sobre o tema e os fatos que originaram a abordagem dos diretores. Nomadland (Nomadland 2020) e Era o hotel Cambridge (Era o hotel Cambridge 2017) são dois filmes que mesclam o documentário e a ficção de modos diferentes, embora com algumas similaridades

Enquanto Nomadland (Nomadland 2020) apresenta uma protagonista ficcional que estabelece relações com personagens reais e assim são desenvolvidas diversas micro-histórias em diálogo com o plot central, por outro lado, Era o hotel Cambridge (Era o hotel Cambridge 2017) estabelece várias narrativas simultâneas, em sua maioria de personagens reais e alguns ficcionais, e assim várias histórias com o mesmo tema central se desenvolvem paralelamente.

Se por sua vez, Nomadland (Nomadland 2020) mostra uma realidade de recessão económica num país rico e que afeta as pessoas de modo a buscarem alternativas para sua sobrevivência, vê-se uma realidade economicamente mais devastadora em Era o hotel Cambridge (Era o hotel Cambridge 2017), que apresenta um mosaico de nacionalidades – não apenas a brasileira – que revelam a situação precária de países subdesenvolvidos. Em um dado momento a personagem Carmen, ao ser confrontada com uma reação xenófoba de alguns moradores em relação aos refugiados – representados pelos personagens Hassan e seu sobrinho – rebate com a seguinte frase:

Hassan: Eu sou refugiado palestino no Brasil. Vocês, refugiados brasileiros do Brasil.
Multidão: Não, não (vaias)
Cármen: Dá licença, ô gente, ó: brasileiros, estrangeiros, somos todos refugiados da falta dos nossos direitos
(Era o hotel Cambridge 2017).

Ou seja, reforçando a ideia da crise planetária, que independe de fronteiras ou guerras no sentido clássico, e que ameaça a todos com a retirada de direitos básicos, se é que estes um dia existiram de fato.

A estrutura narrativa do filme norte-americano dialoga com a tradição do protagonista central do plot convencional, muito comum no cinema comercial daquele país, mas neste caso, ironicamente, mostra-se sua condição de anti-heroína, que assim como o anti-herói, não consegue mais superar os obstáculos impostos pela sociedade apenas com sua iniciativa individual, como os heróis tradicionais.

Ao se relacionar com pessoas reais que buscam formas alternativas de vida, a protagonista se fortalece em sua singularidade e relação coletiva, além de encontrar histórias de vida muito próprias e tocantes. Com isso, a própria ação dramática central se desconstrói, funde-se com diversos depoimentos e estabelecem-se relações sensíveis, que desaceleram o ritmo da ação, mas ao mesmo tempo, remetem a uma espécie de contestação do tempo produtivo norte-americano.

Já a estrutura extremamente fragmentada de Era o hotel Cambridge (Era o hotel Cambridge 2017) escancara o esfacelamento da possibilidade de uma trajetória individual de sucesso, já que além do fato de os personagens serem de classe social pobre, eles lutam juntos, coletivamente, por direitos que os regimes democráticos ocidentais consideram básicos, principalmente o direito de ter uma habitação. Se por um lado, veem-se fragmentos das múltiplas histórias acontecerem no prédio, as trajetórias individuais - e suas sobrevivências – estão completamente dependentes da luta em comum. Além disso, ao conectar pessoas reais de diversos países, a estrutura narrativa do filme associa a luta por dignidade e sobrevivência a todos os trabalhadores do mundo.

Os espaços de ação dos filmes, apesar de suas diferenças, são representativos de como as formas alternativas de vida procuram ressignificar os lugares conforme a sua luta pela sobrevivência. Em Nomadland, os ocupantes de trailers ressignificam espaços de pouca socialização no cotidiano capitalista, como por exemplo os estacionamentos dos supermercados durante à noite; o filme também evidencia a quebra de vínculo com os espaços familiares na medida em que a própria noção de família tradicional perde o sentido no contexto econômico atual.

A personagem central quando confrontada com a possibilidade de um habitar de forma tradicional, já não é capaz de voltar aos padrões de vida anteriores e declina o convite, deixando talvez o espectador um tanto perplexo. Da mesma forma, o refugiado da Jordânia, Hassan, em Era o Hotel Cambridge (Era o hotel Cambridge 2017) busca se adaptar novamente com a possibilidade de morar de uma forma que não seja a do acampamento de refugiados. Fica claro no diálogo com uma das moradoras:

Moradora: Seu Hassan…
Hassan: Sim
Moradora: O senhor não está no acampamento na Jordânia…
Hassan: Sim
Moradora: Aqui tem que ter móveis, tem que ter uma casa montada…
(Era o hotel Cambridge 2017).

Em Era o hotel Cambridge, personagens de várias partes do mundo e do Brasil se exilam num prédio ocupado do centro da cidade mais rica da América Latina para que possam minimamente sobreviver em um mercado de trabalho que certamente os absorverá em funções de pouca remuneração. Já alijados de seus locais de origem, são novamente oprimidos em uma nova terra, mas se reúnem para unir forças numa ação coletiva. Eles próprios na tentativa de serem aceitos por este novo ambiente urbano e sociedade organizam um vlog, onde tentam provar que são seres humanos dignos. No atual contexto capitalista, a única forma de o provarem é através de suas profissões (Fig. 6).

Figura 6 – Pessoas e profissões (Era o hotel Cambridge 2017)

Os dois filmes se apropriam de simbologias turísticas para falar de formas marginais de habitação: os trailers, muitas vezes associados a viagens recreativas, são hoje forma de buscar empregos temporários num país em crise; por outro lado, um ex-hotel é ocupado por estrangeiros e migrantes que em sua atual situação, dificilmente poderão ser turistas ou viajantes.

Estar à margem é um processo evidentemente contraditório: ao se posicionarem de modo organizado contra as formas tradicionais de habitar, os personagens dos filmes provocam rachaduras no sistema capitalista; ainda assim, ao conquistarem direitos básicos ou se estabelecerem em sua nova forma de habitação e sobrevivência, são reabsorvidos pelo sistema de um outro modo – mesmo que mantenham suas próprias atitudes e valores. Porém, nesse processo, amplia-se cada vez mais a consciência social dos direitos e das formas de vida que precisam ser contempladas: qual sociedade, qual cidade, qual país, qual mundo de fato desejamos?

O cinema, em especial as formas que fundem ficção e documentário, têm um importante papel nessa conscientização.

Notas finais

1Lar é somente uma palavra? Ou é algo que você carrega dentro de si? (tradução dos autores)

Bibliografia

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Filmografia

Era o Hotel Cambridge. 2017. De Eliane Caffé. Brasil: Vitrine Filmes. DVD

Nomadland. 2020. De Cloé Zaho. USA: Searchlight Pictures. DVD

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto Estratégico com a referência UIDB/04008/2020.

A autora Miriam de Oliveira Gonçalves é financiada pela bolsa de doutoramento da FCT referência 2021.07021.BD.