Abstract
The documentary The Age of Czeslaw Milosz, directed by Juozas Javaitis, commemorates the 100th birthday of Czeslaw Milosz (1911-2004), the Nobel Prize-winning Polish-Lithuanian poet who lived for virtually the entire 20th century. The article intends, in dialogue with Martin Buber’s thought and Paul Ricoeur’s philosophy of testimony, to address the prophetic and testimonial dimension of Milosz’s thought, recovered with poetic mastery by Javaitis’ documentary. Milosz survived two terrible totalitarian experiences of the 20th century, Nazism and Soviet domination. The same, as he said, freed him definitively “from the illusions and subterfuges” of life and showed him the “shameful nakedness of humanity”. As such, he was, at the same time, a witness who kept the memory of horror alive in his work, and also a prophet, insofar as he was prescient of the dramas and dilemmas that would come to the contemporary world, among them the madness and violence of the masses, the challenges of technology that made the world smaller, and the dominance of scientific vision in what he, echoing William Blake, called the “kingdom of Ulro”. For Milosz, however, the most significant feature of contemporary times would be the profound spiritual crisis of humanity. In a world marked by the advance of attempts at totalitarian domination, the documentary The Age of Czeslaw Milosz contributes to express not only the strength of this form of cinematographic language, but also the poet’s warnings as to the future of mankind.
Keywords: Czeslaw Milosz, Documentary, Prophecy, Testimony, Memory.
Introdução: o documentário como instância da memória e do testemunho
Andrei Tarkovski diria que a função da arte “ é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem.” (Tarkovski, 1998, 49) . Assim o é o documentário de Juozas Javaitis: uma obra de arte cujas imagens abrem as janelas para o infinito, para experiências que envolvem, além dos sentimentos e dos valores, as dimensões espirituais do ser humano. Alternando as belas imagens da Lituânia e da Polônia com passagens da obra de Milosz, assim como de poetas, biógrafos e pessoas próximas a ele, Javaitis consegue desenhar um mosaico onde se ressaltam a beleza e a profundidade espiritual do testemunho do poeta lituano-polonês e de sua arte. E, neste sentido, a atualidade e importância de The Age of Czeslaw Milosz (2012), como, de resto, a obra de Milosz, para o século XXI. Um século à beira de um abismo climático, da destruição das democracias e da repetição da tragédia dos totalitarismos e guerras que emergiram na Europa no século XX.
Esses cenários terríveis têm possibilidades de se alastrar em escala global graças ao aporte veloz das tecnologias de comunicação, que disseminam e replicam a violência de imagens. Imagens que conduzem os corações e mentes das massas através do escândalo, antes que do espetáculo, no sentido de Guy Debord. O escândalo, no seu sentido teológico (Skandalon, em grego). Imagens que atuam como “pedra de tropeço”: o dito ou ato menos reto que dá ocasião à queda do ser humano (Mendonça, 2020).
Em que pese a polissemia e dificuldade em definir o gênero do documentário, a construção narrativa de Javaitis é um documentário na medida em que reenvia o espectador ao real, como proposto por Gauthier e Guynn (2005, p.18), ou seja, à vida de Milosz e ao século XX. Esse real é, invariavelmente, submetido ao horizonte hermenêutico do realizador, ou como afirma François Niney, “Precisamos lembrar que qualquer plano é um corte de espaço e tempo[...] Sempre há algo fora da tela. Um plano é um ponto de vista subjetivo e parcial. É sempre mais ou menos o real.” (Niney, 2002, 15)
The Age of Czeslaw Milosz tem como tema principal o testemunho de um poeta que atravessou o século XX, assistindo e participando das grandes mudanças e tragédias históricas desse período no Ocidente. A narrativa é construída em uma aliança entre o factual e a subjetividade do realizador; onde o testemunho poético de Milosz é intercalado com as imagens cuidadosamente selecionadas de momentos históricos, de seus manuscritos, de paisagens lituanas, tudo unido pela marcante trilha sonora de Ignas Juzokas que conduz a película aos momentos fortes. Aqui montagem e trilha sonora são verdadeiras “marcas da subjetividade” do realizador (Lépine, 2008)
Contando com o depoimentos dos que conviveram com Milosz, intelectuais, professores de Berkley, sua secretária etc., a obra não perde o caráter documental, mas este é construído através de um patchwork onde se intercalam as imagens da natureza lituana, da Revolução Russa, da II Guerra Mundial e do mundo contemporâneo. Em off, uma voz masculina narra, representando Milosz, excertos de sua vasta obra. Todos esses recursos constituem o material onde ocorre o diálogo entre realizador e o grande tema do testemunho que atravessa o documentário assim como atravessou a vida e a obra de Milosz.
As imagens são janelas para o infinito: seja para o caos, para a destruição, para a violência e para a luta de todos contra todos , seja para a ascensão espiritual (Mendonça, 2018). As imagens são, ao mesmo tempo, aberturas para o invisível (seja ele divino ou infernal) e condutoras de energia (sejam elas divinas ou infernais). Em grande parte, a dificuldade de compreendermos o poder da imagem decorre da perda da percepção de energia divina (ver Mendonça, 2018). A perda pelo pensamento ocidental das noções de energia e de sinergia, presentes em São Paulo e nos Padres da Igreja, não é pequena e sem consequências. Se temos imagens, sagradas ou artísticas, que abrem portas para o infinito e podem manifestar as energias divinas, podemos considerar também, que na cultura imagética contemporânea, temos imagens que abrem portas para o mal. É inegável o poder de disseminação, de réplica de comportamentos sociais violentos, desagregadores, orientados pelo medo, pelo ódio e pela indiferença, provocados pela invasão de imagens propiciada pela tecnologia midiática.
No filme de Javaitis, pelo contrário, as imagens são ascendentes, no sentido dado por Pavel Florenski (2016) aos ícones: imagens que elevam o ser humano ao céu; visão metafísica da imagem que podemos claramente adotar para as artes cinematográfica e visuais em geral. O documentário de Javaitis abre as janelas para a beleza, para a paz, quando destaca as imagens das paisagens lituanas onde Milosz nasceu. Mas também abre as janelas para a profecia quando apresenta o caos em que mergulha a humanidade, seja nos momentos de guerra quanto de paz, como ocorre nas cenas iniciais e no ápice das cenas finais, em uma aliança com a poderosa trilha sonora de Juzokas, que em um crescendo mostram a humanidade perdida em meio aos neons, à tecnologia, à confusão urbana, ao barulho, aos carros, à poluição e às ilusões terrenas, decidindo, por si própria, sem qualquer apoio divino, as suas próprias escolhas.
O compromisso da obra de Milosz é com a memória. Consciente estava ele de que se a perdermos totalmente, perdemos também o sentido da vida. Este foi o seu alerta durante seu discurso de recepção do prêmio Nobel.
Nosso tempo só conserva do passado ficções opostas ao senso comum ou ideias onde a relação entre o bem e o mal é muito elementar. E isso pode ser corroborado com uma recente declaração do jornal Los Angeles Times: O número de livros em várias línguas que negam a verdade do Holocausto, atribuindo-o a uma ficção de propaganda judaica, ultrapassa uma centena. Se eles conseguiram inventar um delírio tão excessivo, por que a perda total da memória seria improvável como um estado permanente do espírito? E isso não representa um perigo maior do que a engenharia genética ou a destruição do meio ambiente? (Milosz, 1980).
A escrita de Milosz, como a de Solzhentsyn, teve o propósito de salvar pessoas, fatos e lugares do desaparecimento no vazio do esquecimento. Por isso em sua visão metafísica da apokastasis é tão importante. Ela seria a regeneração cósmica de tudo, quando então “Nenhum detalhe é perdido, nenhum momento desaparece completamente.” (Czarnecka, Fiut, 1987, 247). Essa é a preocupação presente na obra de Milosz e na película de Javaitis, onde memória e testemunho se entrelaçam formando aquilo que Ricoeur chamava de memória viva, que é a manifestação da memória como guardiã da relação entre presente e passado (Ricoeur, 2000, 106). Este, que sem a memória não existe.
Falando francamente, nós não temos nada melhor do que a memória para significar que alguma coisa teve lugar, aconteceu, aconteceu antes de nos lembrarmos. Os falsos testemunhos,[...], só podem ser desmascarados por uma instância crítica que não pode fazer melhor do que opor testemunhos considerados mais confiáveis àqueles que estão sob suspeita. No entanto,[...], o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a história. (Ricoeur, 2000, 26).
Ora, a partir da Primeira Guerra Mundial e da aceleração industrial houve uma ruptura na continuidade da memória, criando, como bem lembra Gagnebin (2019, 45), “um abismo de experiência e de vida que torna a transmissão das histórias e do sentido dessas histórias, do sentido da vida, profundamente problemático, e mesmo impossível”. Destruídas as relações comunitárias, no sentido dado por Buber (1987) à comunidade, como esfera privilegiada das relações Eu-Tu, destrói-se também a memória e a ligação com o passado é perdida. O processo se intensificou de tal maneira no século XXI, com o avanço de tecnologias digitais e do excesso de imagens e de informações.
O documentário busca recuperar a memória do próprio Milosz e do século XX; testemunhando, através da vida e da obra do poeta, o cenário de caos que o século passado propiciou, onde milhões perderam as vidas sob as duas Grandes Guerras, o nazismo, o fascismo e o regime soviético. A obra de Milosz oscila entre, por um lado, o poderoso testemunho do século XX e, por outro lado, sua inequívoca dimensão profética, perceptível no século XXI. São esses temas que pretendemos abordar brevemente neste ensaio.
2. Czeslaw Milosz: o testemunho como missão espiritual
Da infância em meio à natureza de uma aldeia lituana ao mundo em meio ao caos, assim transcorreu a vida de Czeslaw Milosz em um processo que atravessou a Revolução Russa, a Segunda Guerra Mundial, o avanço do nazismo, a visão da destruição de Varsóvia, o cotidiano plúmbeo sob o totalitarismo soviético e, por fim, a liberdade ocidental e o caos que também ela contém.
A película se inicia com as palavras de Milosz: “Assim meu século está chegando ao fim, um século de loucura de massas e de crimes de massas” (The Age of Czeslaw Milosz 2012), loucura e crimes que persistem no século XXI. Ao mesmo tempo Milosz aborda temas importantes para o mundo contemporâneo envolvendo: o avanço tecnológico, a crise de valores, a crise climática e a crise espiritual da humanidade. Tudo isso está submetido ao conflito, primário, horrível e insolúvel para Milosz, entre o universal e o individual..
Parece-me que todos nós, aqui, na Europa e em outros continentes, entramos em um período que tem duas características já definidas agora. Primeiramente, acima de tudo, nosso planeta tornou-se repentinamente pequeno por causa do avanço tecnológico e a consolidação de tradições, modas divertimentos e atividades artísticas tornou-se mais pronunciada do que a diferença entre várias nações, junto com isso “uma consciência global” saindo de sua casca e a compreensão de que o envenenamento do mar e da terra é uma ameaça a toda humanidade. Em segundo lugar, um traço definitivo dos próximos tempos será a profunda crise espiritual. Nós podemos ver os sinais dessa crise hoje, e eles são a prova de que a crise será duradoura. (The Age of Czeslaw Milosz 2012).
A partir de então Javaitis abordará a biografia daquele que diz:. “Nasci entre Roma e Bizâncio” (Milosz, 1987, 13). Em sua tenra infância ele terá a primeira experiência literária poderosa, a história, contada por sua avó, de uma criança que retorna à aldeia queimada e destruída pela guerra em busca da sepultura da mãe. Isso o afetou tanto que ele começou a chorar. Suas lembranças mais longevas falam de um menino perdido em uma estação de trem na Europa Oriental, fugindo com a família da Revolução Russa rumo à Lituânia. Foi naquela época que o medo se introduziu em sua vida:
O mundo parecia muito cruel para mim. Já como um menino pequeno eu sofri com a crueldade do mundo. Os anos de guerra tiveram um impacto. Embora eu fosse pequeno, algo se infiltrou em mim. Eu atravessei a Revolução Russa em Rzhev próximo ao rio Volga. Foi lá onde meu irmão Andrzej nasceu. Eu vi muitas cenas e estive perto de nem ir para a Polônia. (The Age of Czeslaw Milosz 2012).
Fear- Dream (1918), escrito 70 anos mais tarde, será o testemunho poético dessa traumática infância:
Orsha é uma estação ruim. Em Orsha, um trem corre o risco de parar durante dias.
Assim talvez em Orsha eu, seis anos de idade, me perdi
E o trem de repatriação estava partindo, prestes a me deixar para trás,
Para sempre. Como se eu compreendesse que teria sido outra pessoa,
Um poeta de outra língua, de outro destino.
Como se eu adivinhasse meu fim nas margens de Kolyma
Onde o fundo do mar é branco de crânios humanos.
E um grande pavor me visitou então,
Aquele destinado a ser a mãe de todos os meus medos.
Um tremor do pequeno diante do grande. Diante do Império. (Milosz, 2005, 487)
O poeta revive a sensação dos milhões que vivenciaram, de um modo ou de outro, a guerra, o fascismo, o nazismo e todos os abusos totalitários, que se alimentam do medo: “O medo, como ele foi montado, hora a hora, parecia tornar-se quase físico, uma presença tangível. (The Age of Czeslaw Milosz 2012).
Entre o drama terreno e a busca pela transcendência divina caminhou Milosz sobre a terra. Seu testemunho tem dimensões religiosas, éticas e políticas inseparáveis. Mergulhado em contradições, mas, buscando o divino, em busca de um sentido para a vida. Uma provável saída ele encontrou no maniqueísmo já que o problema do mal o fascinou durante a vida toda. O maniqueísmo prega a força própria do mal. As sementes disso encontram-se na juventude quando ele se ligou a um grupo de poetas catastróficos, os quais, criticando os que se prendiam a um passado romântico, previam o que viria: a Segunda Guerra Mundial. Milosz, entretanto, afirmava que isto não era uma profecia, mas a atmosfera geral reinante então de que a civilização europeia rumava para a catástrofe, segundo Mindauvas Kvietkrauskas, e que ninguém sabia o que adviria disso.[43.14].
A força e o gênio de Milosz estavam ocultos em suas contradições: no amor pela vida, pelos prazeres terrenos, pela pele do pescoço da garçonete, Arenque com creme azedo, tudo o que arrebatou com aquele seu apetite, mas ao mesmo tempo dirigindo seus pensamentos para o alto, para a transcendência, para Deus, fazendo se sofrer enquanto contemplava sobre o fato de que a vida moderna é afetada pela erosão da imaginação religiosa, que a teologia não tem nada mais a dizer e que a poesia está se tornando uma ferramenta para falar sobre todas essas coisas importantes. Para mim ele foi um buscador de sentido. (Jerzis Illgas in The Age of Czeslaw Milosz 2012)
O poeta testemunha a velocidade da mudança, buscando nesta os rastros do eterno: “Nações caem e esquecem e tiranos afundam nas areias, contudo, a terra, o céu e o berço da criança permanecem conosco através dos séculos”. (The Age of Czeslaw Milosz 2012). Essas marcas do eterno são elas também marcas da universalidade da condição humana, do que ele tinha profunda consciência. Embora sendo um “filho da Europa”, como se autodesignava, se afastava de quaisquer ranços nacionalistas, o que lhe trouxe inúmeros problemas diante dos poloneses (muitos deles, inclusive membros da Igreja, o consideravam um traidor ou um Lituano, mas não um polonês), até o dia de seu enterro (Haven, 2022). Quando, após 52 anos de ausência ele visita Vilnius durante a independência da Lituânia, em 1992, dirá:
Eu tenho 89 anos. Eu cresci aqui, nesta cidade, e devo admitir que Vilnius é um fardo para mim. Infelizmente ao vir para Vilnius parece que se precisa caminhar sobre gelo fino e que não basta ser uma pessoa porque em cada lugar eles perguntam quem ela é - um lituano, um polaco, um judeu, um alemão, como se as divisões étnicas do escuro século XX permanecessem dominando. (The Age of Czeslaw Milosz 2012).
As imagens das ruas de Vilnius se juntam à voz em off recitando Pity (The Age of Czeslaw Milosz 2012): a poesia como testemunho da dor de milhões de vidas anônimas, convidadas pelo poeta para irem à sua casa:
Na nona década da minha vida, o sentimento que surge em mim é de compaixão, inútil. Uma multidão, um número imenso de rostos, formas, destinos de seres particulares e uma espécie de fusão com eles por dentro, mas ao mesmo tempo a consciência de que não encontrarei mais meios para oferecer um lar em meus poemas a estes meus convidados, pois é tarde demais. Eu também acho que, poderia começar de novo, cada poema meu teria sido uma biografia ou um retrato de uma pessoa em particular, ou, na verdade, um lamento sobre o destino dele ou dela. (Milosz, 1998, 106).
3. Milosz: um profeta sem um manto
“’Você sobreviverá’, disse-lhe Oscar Milosz antes da guerra. O parente e também poeta, marcou a vida de Milosz para sempre. Seu último poema ditado à secretária, Goodness, foi para ele. Desde então Milosz passa a ser um mediador “entre os que sobreviveram e as diversas vidas e memórias dos destinos que foram apagados”, como destacou Mindaugas Kvietkauskas (The Age of Czeslaw Milosz 2012) sobre Milosz, cuja poesia testemunha os mortos e alerta os que ficaram; Milosz que carregava a dor e a culpa de ter sobrevivido : “Seria mais decoroso não viver. Viver não é decoroso” diria após retornar a Vilnius. (The Age of Czeslaw Milosz 2012).
Milosz encarnou a união entre o testemunho e a profecia. Ele esteve lá, nas grandes transformações e tragédias do século XX que abalariam a Europa e o mundo, mas também mas esteve espiritualmente neste século XXI (Mendonça, 2017). Foi, certamente, “um dos testemunhos mais clarividentes do nosso tempo (Laignel-Lavastine, 2005, 26). Politicamente em oposição à Rússia, ainda assim suas preocupações éticas e espirituais ecoam a de pessoas como Solzhenitsyn,Semyon Frank, Tarkovski e mesmo Dostoievsky. Como para eles, os grandes temas para Milosz, que embasam toda sua obra, foram as questões de Deus e do Mal, cujas respostas ele buscou, em certa medida, mas não encontrou, no maniqueísmo.
Em termos religiosos, Milosz foi ambíguo em vários momentos, contudo, não se desligou da relação com Deus, e deste modo, da condição de profeta que muitas vezes encarnou, mesmo contra sua vontade. No poema Secretaries, escrito em Berkeley, em 1975, ele dirá:
Eu não sou mais do que um secretário da coisa invisível
Que é ditada para mim e para alguns outros.
Secretários, mutuamente desconhecidos, nós andamos na terra
Sem muita compreensão. Começando uma frase no meio
Ou terminando com uma vírgula. E como tudo fica quando concluído
Não nos cabe indagar, de qualquer modo nós não vamos ler (Milosz, 2005, 343).
O poeta/profeta testemunha a dor, mas também o milagre. E é grato por isso (The Age of Czeslaw Milosz 2012):
Mais tarde vivi tragédias reais, não imaginárias, tanto mais difíceis de suportar porque eu não me considerava totalmente inocente.
Aprendi a suportar o infortúnio como se suporta a claudicação,
embora meus leitores dificilmente pudessem adivinhar isso pela minha escrita.
Apenas um tom sombrio, uma inclinação para um peculiar maniqueísmo
estirpe do cristianismo, poderia ter me levado para o caminho adequado.
E, devemos acrescentar, um emaranhamento desse indivíduo na história
do século XX, o absurdo de algumas de suas ações,
suas fugas apertadas e milagrosas.
[...]
Eu agradeço a dádiva da participação
em um extraordinário plano divino para os mortais (Milosz, 2002, 202-203).
Entre o distanciamento e a pertença caminhou Milosz. Ao mesmo tempo em se aproximava da cena histórica, dela se afastava buscando compreendê-la e descrevê-la. Talvez tenha sido esse movimento que o fez sobreviver a grandes tragédias sociais, políticas e pessoais. Possuidor de um “pessimismo extático”, como bem nomeou Robert Royal (2005), ou seja, no fundo, buscando o sentido e a presença de Deus, ele se aproxima de Martin Buber e sua eterna busca de Deus sob o eclipse (Buber, 2007) a que foi condenado pelo homem em tempos tão trágicos. Milosz caminhou, como expatriado e emigrante durante todo o século XX, representando os milhões de anônimos que o seguiriam com a queda do Império Austro-Húngaro, a Revolução Russa, a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e todos os demais eventos políticos e sociais que se estenderiam até o século XXI, nos quatro cantos do planeta. Seu testemunho é poderoso, trazendo a marca de um século cujas atrocidades foram testemunhadas pelas artes poética e literária. Milosz é portador de um testemunho profético (Mendonça, 2017). O testemunho não se limita a designar o visto ou ouvido por alguém em algum lugar, mas “se aplica a palavras, obras, ações, vidas que, enquanto tais, atestam, no coração da experiência e da história, uma intenção, uma inspiração, uma ideia que vai mais além da experiência e da história” (Ricoeur, 2008, 109) e esse é o problema do testemunho do Absoluto, que obviamente só tem pertinência para a consciência que crê no mesmo, como enfatiza Ricoeur. (vide Mendonça, 2017, 163)
Ao mesmo tempo, Milosz também é um profeta dos tempos que vivemos. Como ressalta Szczepan-Wojnarska (2018, 391), “presumindo que a profecia tem uma proveniência não humana, uma profecia/poema pode ser tomada como uma tradução, mas de um texto cuja fonte indefinível é influenciado pela personalidade e ofício de um tradutor – um profeta/poeta.” (Szczepan-Wojnarska, 2018, 393). No caso de Milosz, a dimensão profética de sua poesia reside em uma peculiar “gestão da esperança” que se expressa em “uma busca persistente pelo sentido da existência em geral, não apenas de eventos particulares [...] O que o distingue de outros profetas é que ele fala por experiência pessoal direta, como se já tivesse visto, pelo menos, vários finais do mundo.” (Szczepan-Wojnarska, 2018, 394). Contudo, Milosz rejeita o papel de profeta como um homem puro e, se afastando das designações religiosas, assume a sua fragilidade para essa condição em A Confession:
“Meu Deus, eu adorava geleia de morango
E a doçura escura do corpo de uma mulher.
Também vodca bem gelada, arenque em azeite,
Aromas de canela, de cravo.
Então, que tipo de profeta eu sou? Por que o espírito deveria
visitar tal homem? Muitos outros
Foram justamente chamados e confiáveis.
Quem teria confiado em mim?” (Milosz, 2005, 461).
Mas, em Wherever o poeta reconhece sua filiação espiritual transcendente ao este mundo e o dever de testemunhar, ainda que do outro lado do véu que nos separa da eternidade:
Onde quer que eu esteja, em qualquer lugar do mundo, escondo das pessoas a convicção de que eu não sou daqui. É como se eu tivesse sido enviado, para extrair o máximo de cores, sabores, sons, cheiros, para experimentar tudo o que cabe ao homem, para transpor o que foi sentido em um registro mágico e carregá-lo para lá, de onde eu vim. (Milosz, 2005, 687).
A profecia, assim como a revelação apocalíptica e a oração, é uma forma de se viver a relação com o Tu eterno. Como Martin Buber identificou (Mendonça, 2022; Buber, 1968), na relação profética, como a de Jeremias chamando o povo à conversão, o indivíduo se encontra diante da possiblidade de tomar uma decisão, de agir e mudar seu futuro pelo arrependimento. A relação apocalíptica, ao contrário, apresenta um futuro inevitável, onde não há lugar para a decisão ética e no qual a alteração do destino “[...] é removida da realidade humana e negada lhe é a possibilidade uma ação significativa no contexto presente em favor de um tempo futuro incontrolável” (Buber, 1968, 174). Na relação dialógica entre o homem e o Senhor, será pela boca dos profetas que Deus dará instruções e fará admoestações à Israel. Buber os apresenta como vivendo uma particular relação dialógica, em situações precisas, marcadas pelo mistério e pela fé. O profeta e o apocalíptico, do mesmo modo que o místico, falam a partir de dimensões desconhecidas para nossos sentidos, sendo vozes, como diz: “[...] que formam a comunidade daqueles que ousam falar do abismo” (Buber (1995, 10).
É a partir dessa perspectiva, do diálogo com o Tu eterno, que se poderá falar da experiência profética do artista como sendo a experiência de estar presente e de perceber uma outra dimensão temporal que não a vivida historicamente por ele. Em Milosz é claro o lado metafísico, não totalmente contemplado pelo documentário, nunca abandonado, suas preocupações centrais eram de ordem religiosa, buscando o sentido da vida e impregnado, mesmo que se mostrasse ambíguo em certos momentos, pela cultura católica do Leste europeu. Seus colegas de Berkley, relatam que ele nunca deixou de ir às missas ao domingos e de se ajoelhar em longas orações (Haven, 2022). Assim é que, criticando os que destroem a religião e, indiretamente, o materialismo marxista, ele diria:
Religião, ópio para o povo. Para aqueles que sofrem dor, humilhação, doença e servidão, ela promete uma recompensa na vida após a morte. E agora estamos testemunhando uma transformação. Um verdadeiro ópio para o povo é a crença no nada após a morte, o grande consolo de pensar que por nossas traições, ganância, covardia, assassinatos não seremos julgados. (Milosz, 1998, 22].
A questão do poder destrutivo dessa visão materialista Milosz abordaria em The Land of Ulro (Milosz, 1981), obra profundamente influenciada pelo pensamento místico de William Blakeonde homens servis a uma única ideia, a da morte de Deus-homem e da ascensão do homem-Deus, representados pelo cientista Jacques Monod, seriam os condutores do absinto da destruição da fé e da emergência de um mundo mergulhado na luta de todos contra todos.(Mendonça, 2022).
Ao final da vida, em A Theological Treatise ele assustaria seus tradutores e colegas (Haven, 2011) ao finalizar o poema com A Beautiful Lady:
Bela Senhora, você que apareceu às crianças em Lourdes e Fátima,
O que surpreendeu essas crianças foi sua beleza, indizível.
Como se você quisesse lembrá-las que a beleza é
um dos componentes do mundo.
O que posso confirmar; eu também fui peregrino em Lourdes
junto à gruta, onde se ouve o ruído do rio e,
no puro céu azul acima das montanhas, um estreito pedaço de lua
De acordo com os testemunhos, você ficou em cima de uma pequena árvore,
seus pés cerca de dez centímetros acima das folhas superiores.
Você tinha o corpo, não de uma aparição, mas de alguma substância imaterial
para que se pudesse ver os botões do seu vestido.
Senhora, eu lhe pedi um milagre, embora ao mesmo tempo eu estivesse agudamente ciente
Que eu venho de um país onde seus santuários servem
para fortalecer uma ilusão nacional e fornecer o refúgio
da proteção de uma deusa pagã contra a invasão de inimigos.
Minha presença em tal lugar foi perturbada
Pelo meu dever como um poeta que não deve adular a imaginação popular,
No entanto, que deseja permanecer fiel à sua insondável intenção
Quando você apareceu às crianças em Fátima e Lourdes. (Milosz, 2002, 203)
Conclusão
Milosz, nunca se arrogou o papel de bom, de justo ou mesmo de profeta. Em seu percurso sempre mostrou a sua fragilidade e desconfiou de si mesmo. E, por isso mesmo, ele não é somente uma testemunha, não é apenas um profeta, mas é também, o educador das gerações futuras. Sua poesia espiritualmente nos conduz a uma dimensão oculta, invisível aos olhos humanos, a qual só se pode aceder através de uma hermenêutica espiritual (Mendonça, 2021) que caminha sempre em direção ao Tu Eterno, no sentido buberiano da palavra. O documentário de Javaitis tenta captar isso e transmite em suas imagens finais o sentimento de misericórdia do poeta que se afasta para ver o triste espetáculo desses dois últimos séculos. As últimas cenas das pessoas perdidas nas avenidas de Nova York representam a humanidade. Todos estamos ali. Cegos e à deriva, vivendo em tempos do eclipse de Deus. Nessas cenas, a trilha sonora estabelece a sintonia perfeita da imagem com o espectador e da escuridão surgem as frases finais do poeta:
Cinema, televisão, computadores, seu uso continua a crescer. Acima de tudo, você precisa ocupar (de modo caro) o seu tempo. A pobre palavra terminará no lixo, e eu não posso mesmo imaginar em que tipo de comerciais minhas obras serão usadas (The Age of Czeslaw Milosz 2012).
Em tempos onde prevalecem a mentira e a falsificação, velozmente espalhadas pela tecnologia, onde o ódio rege o comportamento de massas enlouquecidas, talvez, o testemunho de Milosz e de Javaitis sejam apagados, considerados como falsificações ou utilizados em comerciais. Não importa. A eles poder-se-ia aplicar o ditado judaico, que um dia foi dito para Martin Buber: “bem-aventurados os que semeiam mas não colhem”.
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Filmografia
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Notas Finais
A autora é professora e pesquisadora do PPGSA/UFPA. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia.
https://ufpa.academia.edu/KATIAMENDONCA | guadalupelourdes@hotmail.com
Trabalho apoiado por Bolsa de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Processo nº: 307573/2021-4.