Abstract
This work aims to investigate the production of images of an artistic nature in the field of generative artificial intelligence systems, emphasizing the creation process used by these machines, indicating why they operate a convulsion in the classification and understanding of their production in the field of art and what implications of their uses arise in the spheres of creativity, originality, ethics and work, including the challenges for cinema. By tracing a line of analysis between the discourse that crosses the introduction of this tool in contemporary times and the insertion of this reflection in the social fabric and structure of capital, the text intends to provoke and question how concepts such as progress sustain the functioning of AI and how it operates as a statement. In this analysis, supported by media theories, in special the contribution of cinema as media archaeology, media ecology and Marshall McLuhan legacies and Arthur Danto’s context-temporal understanding of art, we seek to establish the theme in its aesthetic, technological and collective amplitude, enabling updates that can encompass the great horizon of questions raised by AI. From “Metropolis” (1927), by Fritz Lang to “AI: Artificial Intelligence” (Steven Spielberg, 2001), science fiction created a technological imaginary regarding the representation and limits of the man-machine relationship, a relation that, in the century, moves to extra-film, demanding new understandings about art from the moment in which works can be experimentally generated and directed by artificial intelligence. Art and movies made by AI can help us understanding new dilemmas and challenges to images in the contemporary world.
Keywords: Inteligência artificial, Arte, Discurso, Ficção Científica, Imaginário tecnológico.
Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. (...).
Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva...
Roy, Blade Runner, 1982.
Introdução
A inteligência artificial povoa o imaginário humano há pelo menos um século. Em “Metrópolis” (1927), o diretor Fritz Lang insere em cena um dos primeiros robôs da história do cinema. Através do diálogo entre o cientista alucinado e o dono das fábricas da cidade, “ninguém, Joh Fredersen, poderá diferenciar o Homem-máquina de um mortal!”, ressoa a representação daquilo que viria a se tornar uma obsessão à partir de meados do século XX: os dispositivos que mimetizam as capacidades humanas. Tecnologias que pretendem não só espelhar o funcionamento humano, mas ampliar, estender e acelerar os processos inspirados nessa performance.
Para além de uma fisicalidade robusta, onde olhos são capazes de filmar, pés podem correr dez vezes mais e torsos são nocauteados sem sofrer danos, nossa projeção homem-máquina procura, progressivamente, dar conta de dominar mecanismos mentais, o que significa compreender em sentido concreto e efetivo como se dão os fenômenos e estruturas que envolvem a produção e interpretação das informações no cérebro. O que viemos fazendo ao longo das consolidadas linhas produtivas do início do século XX, o desenvolvimento da robótica em torno de 1970 (se pensarmos a cibernética esse desenvolvimento vem de antes) e a inserção do digital na década de 90 é transformar movimentos, até então humanos, em atividades mediadas ou geridas por controles fabricados, artificiais e pré-programados. Com isso, conceitos como rendimento, tempo ocioso e produção apresentaram novos contornos – que seguem se atualizando com a incorporação da tecnologia de inteligência artificial.
Se durante esta trajetória instrumental o homem trouxe para dentro das artes a representação deste mundo equipado e robótico, discutindo suas fronteiras e delimitações, no início de século XXI, são as possibilidades de produção artísticas através deste mesmo mundo que tem ocupado uma série de pautas no estudo estético, jurídico e ético no campo acadêmico, além da mobilização da atenção social. Neste artigo, olhar-se-á para o movimento de fabricação de equipamentos projetados para pensar como humanos na criação imagética, textual, sonora e outras formas expressivas no campo artístico, e quais discursos são produzidos em torno desta tecnologia, considerando os impactos promovidos por ela em diversas áreas do conhecimento. Se toda uma dimensão ética se faz mister nos estudos e na práxis de inteligência artificial, de certo modo, há uma pedagogia da IA necessária ser lida através da arte e do cinema.
A inteligência artificial generativa se circunscreve numa subárea da inteligência artificial e combina redes neurais e algoritmos evolutivos – noções mais à frente exploradas – para provocar o chamado aprendizado profundo na geração de dados e informações, passando, assim, a ser empregada em problemas de ordem do design e planejamento. Nesse desenvolvimento, diversas plataformas digitais advieram a integrar a IA generativa para fins artísticos, inaugurando questões inéditas e fundamentais como: qual o estatuto de uma imagem produzida através deste modelo? Quais os discursos sustentam a percepção da IA generativa como produtora de arte? Pensando a teoria das mídias em relação às mudanças tecnológicas, o que a IA generativa torna obsoleto e o que ela se reverte quando levada ao aperfeiçoamento?
Através, sobretudo, de uma retomada do exame do filósofo Arthur Danto em “O que é Arte” (2013) e das teorias das mídias de Thomas Elsaesser, em Cinema como Arqueologia das Mídias (2018), e Marshall McLuhan, nas formulações a respeito da relação meio-mensagem e a postulação de sua teoria tetrádica, buscar-se-á sinalizar possíveis leituras sobre o movimento de produção, principalmente de imagens, geradas pelas inteligências artificiais. Neste cenário, é frutífero o levantamento de experiências como “The Safe Zone” (2022), “Latent Space” (2023), curtas escritos e finalizados por IA, ou a obra de Refik Enadol, inspirada pelo cenário de “Blade Runner” (1982), entre outras obras que propõem o uso da IA ativamente.
É intenção deste artigo associar uma reflexão estética ao domínio da realidade material, situando de que forma a questão da introdução da IA no mundo da produção criativa é atravessada pelo sistema capital vigente e como a ferramenta manifesta dilemas labirínticos no sentido jurídico e ético. Ao considerar-se a tendência de aplicação massiva dessas técnicas na era digital, ou ainda, na era da primazia imagética, encontra-se a importância de olhares que sigam reciclando as teorias das mídias e suas correlações com as estruturas da realidade expressas.
A produção imagética de uma Inteligência Artificial é arte?
No campo disciplinar centenário da História da Arte, a pergunta que a fundamenta objetivamente é polêmica, ampla e inconclusiva. “O que é arte”? O questionamento iniciado por Platão tomou diversas guinadas, principalmente com a entrada na modernidade. O que antes levava em consideração a mimesis, depois a estética do belo, é posto de ponta a cabeça com o dadaísmo, o movimento fluxus, a pop art, etc… São muitas as reviravoltas conceituais instigadas a partir do século XIX, acentuadas na contemporaneidade. À pergunta de Platão, a partir de Warhol, foi acrescida o indagamento de como dois objetos “indiscerníveis pelo ponto de vista material e óptico possam ser tão distintos, um ser arte e outro não” (CASTRO, 2014, p. 58). Atualmente esse questionamento adquire uma nova camada com a entrada da tecnologia no meio das artes.
Nesse contexto, vem-se ampliando o uso e a discussão da Inteligência Artificial como uma ferramenta produtora de arte. Para discutirmos arte no contexto em questão, torna-se imprescindível o entendimento básico de como operam as inteligências artificiais. A IA generativa funciona em um decorrer de etapas que podemos dividir em: 1) escritura do prompt, 2) processamento de um dataset, 3) deep learning, 4) espaço latente, 5) geração e 6) output. O processo se inicia quando o usuário digita em um prompt (interpretador de linha de comando) uma série de descrições que servirá como instrução para a elaboração da imagem desejada. Em seguida, o software fará uma busca em um dataset (conjunto de dados) de tudo que pode ser coletado na internet através de uma técnica denominada “raspagem de dados”, de acordo com o prompt fornecido. Essa filtragem é feita por meio de tags que são vinculadas às imagens disponíveis na internet, sendo a tag uma descrição do que a imagem comunica. Após essa pesquisa, a IA entra na fase de deep learning (aprendizado profundo), que se resume a coletar e separar esses dados segundo uma semelhança observável nas tags. Nesse momento, a IA começa criar redes de associação ao receber a descrição das imagens e fragmentar o conceito pedido, buscando descrições distintas sobre ele e encontrando pontos em comum entre tais descrições, gerando uma imagem “média”. É deste modo, inclusive, que uma IA generativa segue ampliando seu vocabulário visual. Vale ressaltar que um aspecto importante deste aprendizado é que, até o momento, ele não pode ser desfeito – em outras palavras, uma imagem aprendida, ou apreendida, não pode ser desaprendida pela máquina.
O fim do processo se dá quando esses aprendizados em rede são reunidos e compactados em um espaço central chamado de “espaço latente”, onde os pontos em comum encontrados se tornam ainda mais próximos. Uma vez que esses dados estão adjacentes, ocorre o início do que seria a geração da imagem, mediante o movimento de difusão – tipo mais usado pela IA. O software divide todos os dados coletados e os fragmenta em pequenos pedaços, denominados ruído. A IA utiliza esses ruídos de dados triturados e começa a reintegrá-los através da linha fornecida no prompt. Então, obtém-se o output, a nova imagem. Esse desdobramento imagético promovido por uma máquina faz retornar, assim, o controverso questionamento de “o que é arte?”. Considerando o procedimento descrito, poderia uma imagem gerada virtualmente por uma IA ser considerada arte?
O primeiro ponto a se ter em vista é a questão da autoria, que é dúbia por uma série de razões. Há de lembrar que os grandes mestres da renascença muitas vezes faziam apenas os rascunhos e moldes a serem terminados por seus ajudantes em seus ateliês, contudo, a autoria não era partilhada, tendo em conta a esquematização e a planificação da obra. Isso adentra em uma discussão ontológica da história da arte: onde reside a arte? Na ideia, no processo ou no objeto? Quando se pensa numa obra de Duchamp ou em qualquer ready-made, é evidente que a esfera unicamente material da obra já foi subvertida. Não obstante, um ready-made é percebido enquanto arte dentro de um contexto – fora de seu lócus utilitário industrial, mas inserido dentro dessa lógica. Quando transladado para um espaço expositivo, a sua autoria é subvertida por meio da apropriação, de modo que seu produtor material não necessariamente (e no contexto dadaísta, nunca) é o artista – e a autoria da obra, pelo menos as consolidadas no mercado de arte, não é mais contestada (“A Fonte” é uma obra reconhecidamente de Duchamp, não do construtor do urinol).
No entanto, na conjuntura informacional, o uso de imagens de outrem espalhadas pelas redes esbarra no direito autoral, sendo os critérios de apropriação artística como uma nova obra difusos. No panorama recente da IA, essa ainda é uma questão em debate.
No panorama plural de produção de arte e imagens, Danto (2013) identifica que uma obra de arte é pautada por três critérios essenciais: a materialização, o significado e a percepção do público, que complementa e colabora com a obra em sua interpretação. Nas artes geradas em meio tecnológico, o público assume a função de usuário, e nessa esfera, o diálogo com a obra ganha uma nova vertente, pois o usuário também se torna conteúdo, como bem esclarecido por McLuhan. Essa dinâmica reconfigura as regras do jogo.
A relação entre arte e tecnologias incipientes é um campo em constante expansão. Por exemplo, não há uma corrente clara que assuma a criação de IA como arte (ou não), o que existe é um espaço de questionamentos. Num aspecto geral, segundo Danto, uma expressão, objeto, imagem, etc, será considerado arte quando simbolicamente seja avaliado como tal, tendo em consideração o tempo histórico no qual está circunscrito. Mas resta a dúvida, por quem é feita essa análise?
Da mesma forma que a constituição e o material de estudo do campo é subjetivo, a validação de uma expressão ou obra artística também é complexa. Há uma forte presença institucional, na qual se inserem os museus e o mercado de arte, representado por galerias e colecionadores. Contudo, apesar de o mercado de arte ser influente, é ingênuo, além de beirar o elitismo, pensar que ele seria o único determinante do que é arte. Mas há de se ter em conta o potencial englobador e a flexibilidade desse mercado, que acopla e absorve novas interpretações e vertentes que inclusive se pautam como não-arte ou contra-sistema – incluindo expressões que satirizam ou critiquem o mercado de arte – que, no final, são associadas ao campo da arte.
Apesar de numa esfera institucional e do campo de estudo terem menos poder, a opinião pública e o senso comum também têm um certo nível de influência na definição do que é arte. A institucionalização da arte urbana e do grafite, por exemplo, é um resultado da popularidade que esse ramo expressou. A opinião pública também é relevante tendo em vista que o espectador se constitui como parte da obra, sobretudo na contemporaneidade. Entretanto, em amplo aspecto, o público é uma massa volátil não coesa, e na prática não é um validador do que é considerado arte – mas não deixa de ter influência.
O último grupo que discute e valida o que é ou não arte são os próprios historiadores da arte e artistas, que estão atentos às manifestações novas e antigas. A validação de uma obra enquanto arte passa de maneira não uniforme pela consideração desses três grupos, o que não significa que seja uma qualificação unânime, e por isso também se mantém polêmica.
O tempo é juntamente uma variável quando pensado se uma expressão é ou não arte. Na ocasião em que invenções como o cinema e a fotografia vieram à tona, o estatuto da arte também foi questionado, naquele momento frente à uma reprodutibilidade técnica. A IA ainda é uma ferramenta em nascimento. Junto a todas as possibilidades que não temos conhecimento, vem associado um medo do cenário desconhecido. Isso apenas é assimilado com tempo, que permite avaliar com determinada percepção que assegure maior consciência do processo histórico.
Bem como o público geral, diversos artistas começaram a explorar o terreno da IA como ferramenta de arte. Apesar da indefinição sobre como devemos interpretar a criação generativa de IA, há uma diferenciação nítida entre um uso geral e um uso artístico quando avaliado pela lente do campo das artes e sua introdução neste mesmo meio. Da mesma forma que um desenho de criança não tem a mesma valoração artística de um Paul Klee, se ambos forem semelhantes em resultado, ou que um ready-made não tenha a mesma a carga que um objeto trivial em seu contexto, a arte produzida por IA também tem sua distinção de uma utilização comum, e isso é avaliado subjetivamente de acordo com a natureza do meio artístico. A regra do jogo da arte contemporânea segue valendo na esfera artística tecnológica.
Discursos e semânticas da introdução da IA no contexto contemporâneo de arte.
Diante dos dilemas apresentados na primeira parte deste estudo, nota-se que, qualquer que seja o curso da produção a partir de inteligências artificiais generativas, devemos continuamente pensá-la em termos de sua aplicação na materialidade. Ou seja, como esta ferramenta vem sendo recebida na sociedade e quais impactos ela manifesta, inclusive, no meio artístico. Voltemos, então, a um princípio de análise do tecido cultural para nos perguntar que terreno poderia sustentar que a produção gerada pela IA seja considerada arte. Em um olhar mais generalista, nota-se três grandes grupos que dividem os discursos gerais sobre a utilização da IA no contexto artístico. A proposta adiante é provocar e refletir a discussão em questão atravessando cada um destes grupos.
Um exame digital sobre IA em buscadores revela que as palavras ‘futuro’, ‘progresso’ e ‘democratização’ têm sido vinculadas, por colunistas, à divulgação de sites que trouxeram a nova tecnologia para o uso cotidiano. Há um deslumbramento que paira na sociedade ao perceber a possibilidade de aceleração de processos que, naturalmente, seriam mais duradouros para serem concluídos – ou, ainda, supostamente impossíveis por humanos dentro de suas limitações de espaço e tempo.
Se antes um pintor precisava preparar sua tela, deixar a água reduzir, passar horas em desgaste físico e mental a pintá-la, esperá-la secar e realizar procedimentos de conservação, além de dedicar anos à não mensuráveis horas de treino e observação, hoje ele tem a possibilidade de abrir uma ferramenta digital, digitar um prompt e ter diante de si uma imagem “original” com duração ilimitada. Este panorama é disruptivo e carece de paradigmas diferentes. Ainda, caso este artista não goste do resultado, ele pode pedir que a máquina revisite o prompt e realize outra combinação. Outra “inédita” imagem aparecerá na tela. Se a imagem não o agradar novamente, ele pode reescrever o prompt, modificando-o progressivamente até encontrar um resultado de interesse, treinando a máquina para que proponha dentro de um universo específico de referências. Surpreendentemente, todo este processo pode levar não mais que alguns minutos, obtendo-se, no final, um resultado objetivo semelhante ao do artista que realizou o processo sem intervenção da máquina.
As imagens, a produzida por um artista e por uma máquina, podem, ainda, apresentar traços estilísticos e técnicos muito semelhantes. Destarte, percebe-se que a obra de arte, mais do que nunca, tem tido seu significante deslocado para fora de si mesma, existindo como um objeto de valor atrelado à sua realidade direta e técnica, dentro de uma esfera utilitária e mecanicista.
Walter Benjamin dedicou uma empreitada teórica a respeito da ideia de reprodutibilidade técnica, conceito amplamente utilizado no campo de estudos da mídia e arte. Seria possível pensar a reprodutibilidade em uma nova camada a partir da introdução das IA generativas? A capacidade de mimetizar uma produção artística humana transforma os critérios do relacionamento com a produção imagética, o que, por consequência, modifica também a função social da arte. Isso foi visto, no início do século XIX, no contexto da invenção da fotografia, quando se perguntou se ela seria ou não uma arte, quando, de fato, ela já estava a modificar a própria natureza da arte naquele momento. Ao investigar a perda do valor do ritual, que esteve por séculos ligado à técnica, Benjamin pontua que “com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual” (BENJAMIN, 1994, p.171)
Significa que o chamado valor de exposição da arte ganhou primazia na modernidade. Partindo da problemática da massificação e esvaziamento das técnicas, trabalhada profundamente pelos textos da Escola de Frankfurt a respeito da Indústria Cultural, pode-se pensar que a IA generativa promove um choque estrutural nos paradigmas a partir do momento em que permite que qualquer ser humano seja capaz de obter seu próprio Guernica. Para mais, que um livro infantil seja ilustrado, que a capa de um vinil seja feita ou que o visual de personagem de jogo seja criado sem gasto de material ou grande conhecimento técnico - mesmo que se precise indicar estilos à máquina. Todos esses resultados não serão gerados e lançados no vazio, eles acontecerão no interior da organização social do capital. Uma tecnologia não deve ser pensada independente de seu habitat de surgimento e recepção, dessa forma, faz-se necessário pensá-la acoplada ao sistema econômico e político vigente.
A quem ou ao que serve a ideia da implementação das IA’s como facilitadoras da vida humana? Com o desenvolvimento e aprimoramento do sistema capitalista ao longo dos últimos séculos, mais radicalmente após a revolução industrial, há um ambiente propício para a criação e acolhimento de discursos que exaltem novas formas de produção e consumo. Resolver impasses artísticos com o uso da IA transforma as relações mercadológicas no campo da arte quando o valor de uma obra passa a ser atravessado pela possibilidade de obtê-la da forma mais eficiente possível. No regimento capitalista, todas as ações acontecem sob uma guia que se apoia em valores como rapidez e grandeza, de maneira que realizar uma tarefa em menos tempo possível permite que mais tarefas sejam feitas e mais lucro seja gerado. O mais e o muito são entendidos como melhores. Seria a IA uma ferramenta de predação ao dimensionalizar a produção artística em uma camada de esvaziamentos e competição com artistas? É possível entender a automação em um domínio de libertação?
Tecnologias não se desenvolvem em quartos desocupados, a existência de estados-nações militarizados, com poder narrativo, tornam a IA ainda mais adversa. O mundo contemporâneo vive a queda de regimes, a manobra da opinião pública ou o estímulo a certos consumos de maneira intimamente ligada à disseminação de conteúdos manipulados dentro de um determinado viés discursivo – não à toa o conceito de pós-verdade ganhou os holofotes. A IA tem potencial para refinar deepfakes e atuar como difusora de imagens falsas ou textos com informações contestáveis. Quando não existem limitações éticas como base estruturante de um novo sistema a ser desenvolvido, essa ética acaba sendo gerada espontaneamente como um reflexo da ética implícita no contexto dos próprios criadores, neste caso, empresas, em uma circunstância neoliberal, que visam maximizar seus lucros.
Logo, são muitas as questões éticas que explodem com a chegada da IA em termos coletivos, como também, no tocante ao âmbito individual. Se voltarmos a pensar o campo artístico em relação ao funcionamento da IA, há uma área cinzenta em evidência: a autoralidade. Ao entrar em portfólios online e recortar imagens pré existentes para juntar as partes em um processo de construção, a IA cria duas questões. A primeira sobre a proteção das obras as quais a IA realizou a leitura. Um artista inspirado por uma obra ainda é um artista que precisará produzir através de seu próprio viés técnico e interpretativo.
Artistas olham para outros artistas para aprender como resolver alguns problemas visuais e se inspirar, mas olhar para outros artistas é só isso. Os artistas trazem seu próprio conhecimento técnico, solução de problemas, experiência, pensamentos e vidas para cada obra de arte. Tudo passa pelo seu próprio “filtro humano” de conhecimento, técnica e experiências de vida. (ORTIZ, 2022).
A outra óbvia indagação proveniente desta circunstância é: quem é esta imagem gerada? Ela pertence ao indivíduo que redigiu os prompts de comando? Ao programador que concebeu os códigos? À empresa que detém a tecnologia? Aos artistas que a compuseram indiretamente? Esta é uma imagem produzida em um vácuo tecnológico, ela carrega o vetor de geração de si mesma através do software, ao mesmo tempo em que conserva, através do mecanismo criado e alimentado por humanos, vetores de outros indivíduos. “É essa dinâmica entre programadores, usuários e máquina que cria uma questão complexa de ser resolvida pelas atuais leis de Direito Autoral” (WACHOWICZ; GONÇALVES, 2019, p.77).
Descendente da problemática da autoralidade e considerando o cenário de mercantilização da arte, pode ser interessante voltarmos-nos para a natureza da produção e consumo artístico e para o que socialmente foi compactuado como arte, o que nos trará aos conceitos paradigmáticos de criatividade e fazer criativo. Sobre isto, Morris Stein enfatiza que:
O grau de novidade de uma obra depende do grau do desvio do tradicional ou do status quo. Isto pode muito bem depender da natureza do problema que é atacado, do fundo de conhecimento ou experiência que existe no campo no momento, e das características do indivíduo criativo e dos indivíduos com quem ele [ou ela] está se comunicando (STEIN, 1953, p. 311-312).
Ou seja, a arte seria a possibilidade de reformulação do padrão, alcançada através do traço subjetivo que reorganiza elementos ou a interpretação de elementos já existentes. Diante desta formulação, existe uma correlação real entre o processo de criação humano e o processo de criação de uma IA? Poder-se-ia considerar que ela não seria capaz de “real originalidade, pois todo trabalho que ela produz é fruto ou derivação das informações utilizadas como valor de entrada” (WACHOWICZ, GONÇALVES, 2019, p.71). Ao passo que, ao mesmo tempo, a criação humana surge igualmente da justaposição de informações pré-existentes. Haveria diferença na forma como essas ações se desenvolvem, considerando que nenhuma delas cria informações, apenas as combinam, descartando a possibilidade de uma essência da ‘verdadeira criatividade’? Para essa discussão, pode ocorrer um ponto de distinção entre as duas experiências: se a IA combina elementos seguindo os comandos algorítmicos, a inteligência artística humana os combina usando o agregador da sensibilidade, isto é, não apenas mobilizando toda a carga cumulativa do artista em vida, mas conferindo interpretações específicas para cada um desses elementos que, fundidos, resultarão na obra. É como uma espécie de traço individual, e não uma derivação de produtos indiscriminados, é um ato específico – ainda que dadaísticamente – e não genérico.
Na Lei de Direito Autoral baseada na Convenção de Berna, as criações artísticas só são relevantes quando advindas da anima humana, e “assim, a criação intelectual só poderia ser feita pelo espírito humano, que seria o único capaz de atribuir valor cultural a uma criação” (WACHOWICZ, GONÇALVES, 2019, p.79). A demonstração da liberdade de escolha de uma expressão, ou a canalização de uma linguagem e não outra, por determinada causa, que evoca elos para além da obra – que se expandem para o entorno dela – é algo do mundo humano, não-maquínico. De maneira geral, a questão da produção artística de IA resvala em uma investigação filosófica dos limites de nossas classificações e o que significa não-humanos produzirem trabalho criativo.
Imaginários tecnológicos e teorias da mídia no audiovisual na era da IA
O conceito de imaginário tecnológico ganha novo fôlego com os trabalhos com inteligência artificial na arte e no cinema. Se há “poucos anos atrás, a inteligência artificial era um campo que existia principalmente em laboratórios de pesquisa acadêmica e filmes de ficção científica” (LEE, 2019, p.09), hoje ela está presente em diferentes esferas. Nos interessa também notar o que se tem produzido em arte, e mais detidamente no cinema (para além da ficção científica), utilizando-se dessa tecnologia. Um ponto de partida ao considerarmos imaginários tecnológicos pode ser observado de uma inquietação mcluhaniana de que “com a eletricidade e automação, a tecnologia dos processos fragmentados de repente fundiu-se com o diálogo humano (MCLUHAN,1999, p.40). Nota-se que mais e mais há uma produção cinematográfica com IA fragmentada e dialógica exemplificada nos roteiros construídos com ChatGPT. “Latent space” (2023) usou prompts no GPT3 para o roteiro e também ferramentas de IA na pós-produção. A realizadora Daniela Denovescu observa que as “ferramentas de IA generativas são interessantes, mas ainda não conseguem substituir os cineastas (NEDOVESCU, 2023). Essa observação é curiosa, pois de certa forma aponta para a possibilidade de pensarmos que isso um dia ocorra, corroborando para um inédito imaginário tecnológico no cinema, consciente das potências da relação homem e máquina na própria produção de filmes. Já, “The Safe Zone” (2022), escrito e decupado por IA, leva para a diegese do filme as consequências terríveis do uso da inteligência artificial.
A ecologia dos meios em sua essência, o entendimento de que as “atividades comunicativas são caracterizadas [...] pelas circunstâncias materiais de apropriação dos meios” (BRAGA, LEVINSON, STRATE, 2019, p;21) transmite aos trabalhos com IA uma profunda natureza humana pautada pelo imaginário quando pensamos as possibilidades de apropriação. Um exemplo está no trabalho do artista Refik Enadol. Seus projetos partem de algoritmos e machine learning gerando ambientes oníricos ou verdadeiros filmes cósmicos, como os de Jordan Belson, lido por Youngblood em Expanded Cinema (1970). Mas partem também de sua leitura do filme “Blade Runner”, isto é, o imaginário de “Blade Runner”. Há, em sua obra, uma sinergia entre fantasias sociais, apreensões pessoais e a própria tecnologia em uso. Sua obra imersiva Machine hallucination (2016-) é a combinação de uma memória visual coletiva com uma exploração estética dos bancos de dados. Manovich anteviu a poética dos bancos de dados em Language of new media e hoje é um entusiasta não somente teórico, mas um realizador trabalhando as possibilidades da IA com as artes. Os limites entre homem e máquina tão celebrados pelo imaginário tecnológico se dão cada vez mais de forma literal. É inclusive neste campo que o uso da IA tem sido mais acolhida e encontrado respaldo no mundo da arte: a IA como ferramenta de construção à partir da proposta semântica do artista, em outros termos, de um dispositivo conceituado por ele.
Se pensarmos nas produções cinematográficas que declaradamente usam Inteligência artificial – e sabemos que na área de pós-produção todo o cinema comercial dos blockbusters hollywoodianos já estavam conectados a IA – vemos uma cintilação experimental que torna os olhos da indústria cultural reluzentes. Importante destacar que, no mercado de arte voltado para o entretenimento, considerando o contexto sócio-cultural já descrito anteriormente em nossa discussão, a aplicação da IA tenderá à usabilidades que correspondam a lógica de produção em massa, o que significa que poderão haver mais filmes produzidos em menos tempo, dado que algoritmos enlaçam a subjetividade artística à razão capitalista, obras se tornam mercadorias. Nesse sentido, é possível que se perceba a potência algorítmica de criar utilizando referenciais em tendência. Ademais, diversas camadas de IA poderão ser combinadas para que se tenha uma leitura dos temas da época, das narrativas mais atrativas, as estéticas mais chamativas e a forma mais eficiente de produzir uma peça audiovisual, chegando a uma obra de grande recepção – o que poderá, a longo prazo, causar certa homogeneização das obras.
Dessa maneira, a IA coloca grandes interrogações sobre o entendimento atual sobre algo ser arte ou não mediante uma sociedade do consumo, bem como os imaginários tecnológicos perpassam nossas classificações e permitem outras produções virem à tona. A inteligência artificial poderá nos ajudar a compreender os desígnios desses imaginários tecnológicos? Essa é uma questão em aberto, como qualquer outra no atual estado da arte da Inteligência artificial.
Conclusão
“No modo de descobrir de forma retrospectiva que ‘sempre fomos digitais’, a arqueologia das mídias (...) traça seus próprios limites” (ELSAESSER, 2018, p.59), tal como observado em “O cinema como arqueologia das mídias”, entende-se que o próprio cinema sempre lidou com a inteligência enquanto um artifício. Mídiaticamente o cinema é um cérebro pensante para um público que a ele se conecta. Gerar um filme pela por IA é entrar em um universo algorítmico virtual, mas também material, midiático-arqueológico. Um sintoma de mudança das mídias quer do seu estatuto de produção, quer de sua potência de de exibição ou expositiva. Pensamos aqui como esses filmes e exemplos brevemente analisados chegariam às salas de cinema e como os espectadores os sentiriam. Talvez possamos entender essa recepção com a enigmática colocação do crítico francês Serge Daney: “As gerações futuras descobrirão o cinema com a sua perda” (apud MACIEL, 1992, p.25), que nos provoca a pensar que o cinema está em transformação e que seu destino é ainda incerto. Mas longe de qualquer outra morte do cinema, com a IA podemos estar diante de uma outra natureza do cinema. Natureza que não pode esquecer que somos humanos, demasiadamente humanos como observou Nietzsche. E que como tal sentimos e damos sentidos a qualquer nova tecnologia criada e recriada exclusivamente por nós.
Das atentas lágrimas na chuva do replicante Roy, vivido por Rutger Hauer em “Blade Runner” para os olhos cerrados de dúvidas ou mesmo fechados como os da morte do robô criança David em “Inteligência artificial”, de Steven Spielberg, o cinema precisa seguir com um olhar atento ao avanço da IA, lidando com uma uma questão se faz mister: O cinema continua vivo, antenado com as discussões do contemporâneo e seguindo suas potências de criação, sem jamais dever esquecer seu espírito crítico e suas possibilidades emancipatórias de nossa própria inteligência.
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