Abstract
The word plays a crucial role in F.W. Murnau’s last film, Tabu: A Story of the Seas (1931). It is the action of the word that expels the protagonists from Paradise and seals their tragic fate. Written or spoken, the word finds expression through multiple media, which means that there is plurality in the way the word is represented during the course of the film. Therefore, the aim of this essay is to analyze what formal strategies Murnau adopts to inscribe the word into the plot, as well as to ascertain what is the possible symbolic meaning of the word in the film.
Keywords: Paradise; Silent Cinema; Transgression; Word; Writing.
Introdução
Friedrich Wilhelm Murnau morreu a 11 de Março de 1931 na sequência de um acidente de viação em Santa Bárbara, Califórnia. A sua morte quase que coincidiu com a estreia da sua última longa-metragem, Tabu: A Story of the South Seas (1931), que foi apresentada em Nova Iorque uma semana mais tarde, a 18 de Março. Por sua vez, a estreia do filme e a morte de Murnau confluíram com o declínio do cinema mudo. Em 1929, quando a filmagem de Tabu começou, menos de 4% das salas de cinema norte-americanas tinham equipamento sonoro, ao passo que aquando da sua estreia, dois anos depois, esse número rondava os 90% (Langer 1985: 57). Como tal, Tabu, uma produção muda, estreou-se numa paisagem cinematográfica transfigurada, uma vez que a transição da indústria para o cinema sonoro já se encontrava num estádio avançado. Numa época em que o som síncrono dava à palavra uma nova preponderância no cinema através do diálogo e da voz-sobreposta, Tabu afirmava-se enquanto filme mudo que dispensava, quase na totalidade, intertítulos dialógicos e expositivos. Murnau, que havia escrito que o filme mudo ideal não deveria ter qualquer intertítulo, desenvolve em Tabu estratégias alternativas para inscrever a palavra no corpo do filme (2004: 68).
O cineasta alemão tinha realizado uma experiência semelhante em Der Letzte Mann (1924, F.W. Murnau), outro filme em que praticamente não recorre a intertítulos. De acordo com Kamila Elliot, a utilização de intertítulos era um dos elementos mais censurados por parte da crítica durante o período mudo (2003: 18). Ao reduzir ao mínimo a utilização de intertítulos, Murnau correspondia aos anseios daqueles que preconizavam que o cinema devia expressar-se somente através de imagens. Conforme o próprio Murnau refere: “by its very nature the art of the screen should tell a complete story pictorially” (2004: 66). Todavia, a ausência quase total de intertítulos não significa que a palavra desempenhe um papel lateral quer em Der Letze Mann quer em Tabu, a obra que será alvo desta investigação. Na realidade, o filme que Murnau realizou na Polinésia Francesa está repleto de materiais textuais. Assim sendo, o objectivo deste ensaio é apurar quais são as técnicas adoptadas por Murnau para incorporar componentes textuais na acção do filme, assim como compreender qual é a função simbólica da palavra em Tabu. A proposta desta análise é, então, que a palavra, embora silenciosa, cumpre em Tabu uma função tão ou mais importante quanto nos filmes sonoros que lhe eram contemporâneos.
Paraíso
Murnau não concretizou em Tabu: A Story of the South Seas a sua idealização de realizar uma obra sem intertítulos. O filme encontra-se dividido em dois capítulos e o começo de ambos é demarcado por um intertítulo que age enquanto separador narrativo. Cabe a esses intertítulos delimitar o princípio dos capítulos, assim como nomeá-los. O primeiro capítulo é intitulado “Paraíso” e o segundo “Paraíso Perdido”. Por sua vez, os intertítulos que cumprem a função de separador são sucedidos por outros cartões de texto que contextualizam o espectador, conforme se pode verificar nas figuras seguintes:
Estes intertítulos exercem o papel convencional que os cartões de texto desempenhavam no cinema mudo – isto é, informam o espectador, conferindo inteligibilidade à acção. A entidade que comunica com o espectador é um narrador omnisciente. Uma vez que o narrador se encontra fora da realidade diegética, este intervém na matéria do filme através de intertítulos eles próprios adventícios à diegese. As palavras gravadas nos intertítulos não são fruto de nenhuma subjectividade, mas sim de um narrador fora do tempo e do espaço que ordena o caos através da palavra. Desta forma, as palavras escritas por este narrador devem ser interpretadas como Lei, signos que regulam o espaço diegético a partir de uma posição supranatural. O facto deste par de intertítulos surgir antes da acção iniciar reforça a ideia de que são as palavras pertencentes ao narrador omnisciente que dão origem às imagens que se seguem.
Quanto ao conteúdo dos intertítulos, o narrador situa a acção geograficamente, mas mantém a posição temporal incerta. No entanto, a alusão à natureza encantatória, remota e intocada da paisagem sugere que a porção da intriga relativa a “Paraíso” se passa num período antediluviano, fora da História. A primeira sequência de planos reforça esta interpretação. Um grupo de homens esbeltos, como que esculpidos em bronze, pescam junto aos recifes de água cristalina. Coroados com uma grinalda de folha de coqueiro e com um arpão tridentado em riste, os homens deste povo são caracterizados sob o signo de Poseidon. A facilidade com que pescam e a destreza com que se movimentam por entre as ondas demonstram que a água é o meio destes jovens. Uma vez distantes da costa, os jovens banham-se em cascatas que cintilam ao toque do sol e mergulham nos cursos de água límpida que adentram a sua ilha edénica. Os rapazes, guiados por Matahi, o pescador e mergulhador mais hábil, encontram então um grupo de raparigas que estão a brincar dentro de água. A presença de Matahi entre as mulheres desencadeia uma luta entre Reri, a jovem que será declarada tabu, e uma outra rapariga. Contudo, até a briga entre as mulheres tem uma sensibilidade pueril. A sequência termina com a reconciliação entre Reri e Matahi, que a tinha assustado anteriormente, e com a consequente figuração do matrimónio entre ambos através de uma troca de coroas. De igual modo, Reri coloca, neste momento, uma flor branca atrás da sua orelha direita. Mais tarde, quando a ligação entre ambos se romper, essa flor representá-la-á por metonímia.
Assim sendo, a preocupação central de Murnau não se prende com questões de veracidade documental ou investigação etnográfica, muito embora Robert Flaherty tenha desempenhado um papel decisivo na produção do filme, em particular numa fase inicial1. O que cativa o olhar do cineasta alemão é a representação de um imaginário mítico. As praias de areia branca das ilhas da Polinésia Francesa e as suas populações nativas são elementos que Murnau potencializa com o intuito de recuperar a aurora da Humanidade através do cinema. Conforme Assenka Oksilok comenta, a paisagem de Bora Bora encena a fantasia Ocidental do Paraíso, o que faz com que o referente das imagens não seja exactamente a realidade, mas sim um imaginário cultural compartilhado (1999: 21-22).
A noção de que o povo indígena desta ilha representa o ser humano antes da Queda é enfatizada pela não-relação que as personagens estabelecem com a palavra. A ausência de intertítulos que expõem diálogos e a inexistência de marcas textuais na ilha sugerem que esta população dispensa de linguagem idiomática para comunicar. Os habitantes deste Paraíso não precisam da mediação providenciada por um sistema linguístico porque ainda conservam uma forma primeva de comunicação, tal como Oksilok defende:
In the first world, the birthplace of the young lovers, no communicative mediation through verbal language seems necessary. Like the striking beauty of the fantasy landscape that leaps out in full display toward the viewing eye, the reality of the natives is determined by a seemingly direct form of physical interaction […] In such a world of pure harmony, meaning is transparent and does not need to be deciphered. It is conveyed via an immediate form of expression without words where emotions are privileged over ideas. (1999: 22)
Para estes homens e mulheres a comunicação parece ser intuitiva e o real imediatamente apreensível – os sentidos é tudo de que necessitam para interagirem com a natureza. O elogio a um modelo de comunicação mais simples, que nega a palavra e privilegia a visão acima dos restantes sentidos, pode ser interpretado como uma celebração do cinema mudo, que na época se aproximava do seu ocaso a uma velocidade vertiginosa. Ao retratar um imaginário paradisíaco no qual o ser humano não requere da linguagem, Murnau reflecte acerca do próprio cinema enquanto expressão que tem o potencial para comunicar significado sem recorrer a qualquer língua natural.
A palavra chega à ilha propelida pelo vento. Tal como em Nosferatu (1922) a peste aporta em Wisborg a bordo de um navio fantasma, em Tabu é a aproximação do veleiro Moana à ilha que muda o destino dos protagonistas. No centro do convés da embarcação encontra-se Hitu, o porta-voz da autoridade que governa as tribos daquele arquipélago. O mensageiro traz a notícia de que Reri, devido à sua beleza e virtude, foi escolhida para ser a Virgem a quem as diferentes tribos devem prestar culto. Consequentemente, a jovem deixa de ter poder de decisão sobre a sua vida e passa a ser tabu – qualquer um que ouse tocá-la ou lançar-lhe um olhar lascivo será morto. A palavra dita o fim da existência edénica de Reri e Matahi, que passam a estar subordinados à sua autoridade. Como tal, a palavra, que se tornava omnipresente com o advento do sonoro, é caracterizada em Tabu, que tece uma apologia do cinema mudo, como o agente que arruína um Paraíso primevo no qual existia um modo de comunicação não-verbal. De acordo com Murnau, o realizador de cinema devia divorciar-se das tradições literárias e teatrais de maneira a explorar melhor o meio cinematográfico (2004: 68). Portanto, infere-se que no seu entender a palavra devia desempenhar um papel menor no cinema, uma proposta que o sonoro descartava. De igual modo, a crítica de cinema da época dividia-se entre os que eram partidários das novas possibilidades do sonoro e os que preconizavam que o mudo era esteticamente superior. Aliás, essa questão foi amplamente discutida aquando da estreia do filme (Drew 2010: 27). Tendo isto em consideração, Tabu pode ser lido como um comentário acerca do desenvolvimento do cinema, com a introdução da palavra falada a ser representada como nociva.
De forma a problematizar o efeito da palavra, Murnau tem de inscrevê-la no corpo do filme. Todavia, o cineasta alemão não recorre a intertítulos, um mecanismo narrativo que achava que devia ser evitado. A estratégia de Murnau para introduzir a palavra de forma orgânica passa por integrar os objectos textuais na realidade diegética. No caso anterior, o documento que Hitu e o espectador lêem pertence ao espaço ficcional do filme. Ao contrário do intertítulo, que interrompe o fluxo da acção, remetendo o espectador para um espaço extra-diegético no qual um narrador omnisciente expõe informação, os materiais textuais de Tabu integram a mise-en-scène. Gilles Heno-Coe refere o seguinte a este respeito: “the texts in Tabu, such as Hitu’s scroll in this scene, come from within Murnau’s visually created world. They become veritable agents of dramatic action and function as more than merely accompanying text – they are literally filmed images2” (2018: 42). A integração dos artefactos textuais na realidade diegética é um artifício que visa criar fluidez entre a dimensão imagética e textual do filme.
Assim sendo, o texto em Tabu não desempenha somente a função instrumental de esclarecer o espectador quanto a determinadas informações. Os materiais textuais diluem-se no espaço diegético e catalisam o desenvolvimento da acção. Na cena supracitada, conforme Heno-Coe detalha, a leitura do documento, por parte de Hitu, faz mais do que informar as personagens e o espectador quanto aos contornos de um certo ritual religioso – é o próprio acto de fala que convoca o tabu da página para o real: “In reading this document, Hitu is not merely describing or relating the taboo placed on Reri – he is ‘doing’ it, so to speak, acting it out. It is this very act that changes Reri’s status, and propels the story’s dramatic action for the entirety of the film” (idem, 43). A proposta de Heno-Coe é que os diferentes actos de leitura e escrita retratados em Tabu não são exactamente recursos expositivos, mas sim acções que propulsionam a narrativa.
No entanto, a composição tipográfica de alguns dos planos que representam materiais textuais aproxima-os dos intertítulos dialógicos, algo que Heno-Coe ignora. Por exemplo, na figura 5 “RERI” tem uma dimensão e espessura maiores que as restantes palavras. De igual modo, na figura 6 as palavras “SHE IS TABU” destacam-se. Embora o espectador tenha acesso a um documento escrito pertencente à realidade diegética, as palavras grafadas parecem ser sensíveis à fala de Hitu. A ênfase em certas palavras é uma estratégia convencional associada aos intertítulos dialógicos do cinema mudo – o objectivo desta técnica era fazer reflectir no texto a intensidade da fala, redobrando, assim, o poder dramático do diálogo. Assim sendo, planos como estes despertam ambiguidade no espectador, uma vez que são simultaneamente representações de um manuscrito e reproduções da leitura desse mesmo objecto textual.
A conjuração do tabu do manuscrito para o real tem implicações imediatas. A meio da leitura do documento, Matahi, ignorando o que se desenrolava, atira para Reri a coroa que esta lhe havia oferecido. Ou seja, assim que Hitu declara que os homens que dirigirem o seu olhar concupiscente para Reri serão mortos, Matahi faz de Reri um alvo. Como tal, o destino do protagonista fica traçado. Na sequência do arremesso da coroa, que simboliza a união dos amantes, uma anciã retira-a prontamente da cabeça de Reri e lança-a no chão do veleiro. A cena termina com um plano da sombra de Matahi sobrepondo-se à coroa que lhe foi oferecida e que agora jaz no piso do convés.
A transformação de Matahi, cuja fisicalidade e beleza foi repetidamente exaltada, em sombra, prefigura a sua morte, mas também indica o efeito da palavra no código imagético do filme. O carácter solar da ilha e a translucidez safirina das suas águas aparentam dever a sua existência ao estado anterior à linguagem idiomática em que este povo se encontrava. O desfasamento entre o real e a representação originado pela palavra tem como consequência o desdobramento da luz em sombra. Deste modo, à medida que os amantes ficam enredados pela autoridade da palavra, mais as sombras os envolvem. Aliás, a última sequência protagonizada pelos amantes no primeiro capítulo tem uma dimensão nocturna acentuada. Matahi resgata Reri do veleiro no qual Hitu segue e foge com ela para uma das ilhas ocidentalizadas do arquipélago. Lá a luminosidade do Paraíso é substituída pela sombra e a comunicação imediata dá lugar à ininteligibilidade.
Paraíso Perdido
À semelhança do que acontecera no princípio de “Paraíso”, o segundo capítulo, “Paraíso Perdido”, começa com uma série de intertítulos convencionais que expõem informação. O primeiro cartão de texto demarca o fim da primeira metade da acção e o início da segunda, ao passo que os dois intertítulos seguintes dão conta do destino de Reri e Matahi após a sua fuga. Este par de cartões de texto informa o espectador de que os amantes conseguiram chegar a uma outra ilha do Pacífico Sul – um território onde a lei ritualística foi elidida pela ordem Ocidental. No seguimento dos intertítulos, surge uma sequência de planos que mostram Matahi e Reri a serem socorridos depois de terem dado à costa numa canoa. Logo de seguida, esses enquadramentos são interrompidos pela presença da palavra. Um plano de inserção dá a ver as páginas do diário do chefe de polícia local, que relata como é que os novos habitantes se estão a adaptar aos costumes da ilha.
O espectador tem acesso à redacção do diário do polícia, tal como havia acontecido numa das cenas finais de “Paraíso”, na qual o capitão do Moana regista no diário de bordo a retirada dos amantes. O visionamento da composição do diário afasta estes planos de inserção dos intertítulos. De igual modo, o diário de bordo e o diário do polícia não só se afirmam enquanto artefactos textuais pertencentes ao espaço diegético, conforme acontece com o documento lido por Hitu, como são materiais construídos pelas personagens no momento, o que confere a estes objectos um estatuto especial. Heno-Cue comenta o seguinte a acerca destes planos de inserção que registam o processo de escrita:
Often Murnau brings these texts to life by filming their entire process of transcription, framing these shots between scenes of actors reading or writing them, and frequently includes the tip of a pen and fingers in the close-ups of the texts themselves. These documents become substantive agents in the drama, as important as either the characters or the foreboding landscapes. (idem, 39)
O visionamento da redacção dos diários permite ao espectador testemunhar o processo de consciência de quem escreve, na medida em que vemos o encadeamento dos pensamentos das personagens ganharem forma na página. Para além de tornar o texto mais dinâmico, o facto de a câmara e a esferográfica escreverem em simultâneo tem uma dimensão auto-reflexiva. Com estes planos que retratam a composição de documentos, Murnau, inadvertidamente ou não, caracteriza o cinema enquanto uma forma de escrita. O movimento lesto da mão contrasta com a fixidez das palavras que esse mesmo gesto evanescente grava na página. O movimento une-se à fixidez, como no cinema.
O polícia anota que Matahi demonstra ser um mergulhador prodigioso - uma constatação natural, visto que este é caracterizado como um ser aquático desde o primeiro plano. A ligeireza com que mergulha permite-lhe apanhar, com relativa facilidade, moluscos brindados com pérolas cor-de-marfim. Desta forma, o protagonista integra o sistema capitalista da ilha que está assente na venda de pérolas. Na sequência de mais um mergulho bem-sucedido, Matahi e Reri são recebidos em festa pelos nativos. Uma multidão agrupa-se para dançar ao som de música ocidentalizada e consumir álcool. Esta cena de dança caótica contrasta com uma cena de “Paraíso” na qual uma dança tribal era realizada. No mesmo sentido, o mergulho em busca das pérolas contrapõe-se à cena inicial na qual os homens pescam para consumo próprio. Tal como acontece em Sunrise (1927 F.W. Murnau) e City Girl (1930 F.W. Murnau), a acção de Tabu está polarizada em dois cenários contrastantes: um associado à debocharia e um outro à possibilidade de harmonia.
Entre as pessoas que dançam e tocam instrumentos encontra-se o polícia. Uma das principais figuras de autoridade da ilha abandona o seu posto e junta-se aos populares, instigando o alvoroço. Assim, o chefe de polícia é caracterizado como um sujeito moralmente corrupto, hipótese essa que será confirmada mais tarde. A sequência termina com a chegada do veleiro Moana à ilha, o que dispersa a multidão, que corre rumo ao cais. É neste instante que Reri e Matahi são abordados pelos comerciantes que providenciaram o álcool. Os mercadores compelem Matahi a assinar um conjunto de documentos que o responsabilizam pelas despesas da festa. Ignorando o que fazia, Matahi assina os recibos. A sua rúbrica consiste na letra “M”, o que dá conta da falta de familiaridade do protagonista com a escrita. Segundo Oksiloff, a escrita força Matahi e Reri a transitar de um modo visual e directo de comunicação para um estilo de comunicação dependente de um sistema de signos abstractos que eles não dominam (1999: 24). Novamente, será a acção da palavra, desta feita escrita, por um dos membros do casal, que os condenará.
De igual modo, a concomitância entre a chegada de Hitu e a assinatura dos documentos é um dado relevante. Tal como a fuga violou o tabu, o não pagamento das despesas é um acto de transgressão. A desobediência às leis do capital nesta ilha onde os “velhos Deuses foram esquecidos” 3 é equivalente à quebra do tabu, o que sugere que o dinheiro assume o lugar do ritual e de Deus neste Paraíso perdido. Neste sentido, Robin Wood assinala: “the struggle against the money-debts of the white man’s law and the struggle against the more ultimate debt of tribal law run parallel” (1971: 24).
O aportar do Moana leva os amantes a refugiarem-se na sua cabana. Pouco depois, o casal é interrompido pelo chefe da polícia, novamente fardado, que entra na palhota munido de um envelope. Dele, o polícia retira uma carta emitida pelo Secretariado-Geral do Governo da República Francesa. Um conjunto de planos de inserção mostram que a carta relata a fuga dos amantes e como as suas acções constituem um perigo para a harmonia do arquipélago. A palavra de ordem é que Matahi e Reri sejam presos. O poder institucional e tribal têm desígnios idênticos.
A carta é lida pelo polícia. Este é o segundo acto de leitura retratado em Tabu – o primeiro havia sido a leitura do decreto tribal por parte de Hitu. Em ambas as circunstâncias, o emissor da carta está ausente. Num caso, é um representante do poder tribal que lê o pergaminho, no outro é uma figura do poder local que enuncia o texto. Hitu e o polícia são instrumentos da Lei, mas não são eles que a designam. As entidades que ditam a Lei têm uma natureza abstracta e o seu alcance aparenta ser ubíquo. Reri e Matahi permanecem mudos durante a leitura. A sua resposta à carta surge na forma de um suborno, não de palavras. Os amantes oferecem uma pérola ao polícia em troca do seu silêncio. Desta forma, os fugitivos aprenderam a comunicar naquela que é retratada como a derradeira língua dos colonos: o dinheiro, visto que a pérola será convertida em moeda.
A carta lida pelo polícia e o manuscrito lido por Hitu são representados de maneira diferente dos textos escritos pelo capitão do Moana e o próprio chefe de polícia. No caso dos dois primeiros, o espectador não tem acesso à redacção dos textos. Os materiais textuais que são apresentados na sua forma acabada têm maior autoridade. A fixidez das palavras gravadas nesses documentos confere-lhes um poder implacável. Depois do polícia deixar os amantes, Hitu deixa a Reri, que se encontra submersa em sombras dentro da cabana, uma mensagem escrita numa folha de coqueiro. Na folha, à qual o espectador acede através de um plano de inserção, Hitu ameaça matar Matahi caso Reri não se entregue. A mensagem encontra-se finalizada, o que reforça a sua agência. A lei tribal é intransigente e irrevogável – como tal, esta encontra expressão tanto em Hitu, uma figura quase sempre estática, quanto na imutabilidade da palavra escrita.
Face a esta nova ameaça, o casal planeia comprar uma passagem para Papeete, uma cidade que se situa na ilha do Taiti. Os amantes, distantes da sua antiga percepção cíclica do tempo, contam os dias até poderem embarcar na escuna. Contudo, no dia em que Matahi decide comprar os bilhetes, a compra é-lhe negada, visto que este ainda deve um montante substancial de dinheiro aos comerciantes. Matahi é confrontado com os recibos que assinou aquando da festa. Derrotado pela sua própria assinatura, Matahi, uma personagem caracterizada pela destreza e elegância dos seus movimentos, permanece imóvel atrás do gradeamento do balcão de atendimento. Com as mãos agarradas às barras, Matahi encontra-se aprisionado pelas leis reguladas pelo dinheiro.
Ao retornar à cabana, Matahi não informa Reri quanto ao seu encontro com os comerciantes. No entanto, mais tarde, à noite, o sono do protagonista é assaltado pela memória do que se sucedeu durante a tarde. Imagens dos recibos assinados por Matahi sobrepõem-se a um grande-plano do seu rosto, o que sinaliza que estas imagens figuram a matéria dos seus sonhos. Entretanto, o grande-plano do seu rosto dissolve-se, dando lugar a uma outra sobreposição de imagens. Desta feita, um plano da palavra “TABU” sobrepõe-se ao plano anteriormente referido, que representa os recibos. A associação da palavra que designa a violação da lei tribal à dívida de Matahi sugere que o não cumprimento de obrigações financeiras equivale à infracção de um tabu nesta ilha.
De seguida, um fundido encadeado dá lugar a um plano de uma placa na qual está escrito “TABU”. Essa placa marca o território aquático mais rico em pérolas de toda a Polinésia Francesa. Todavia, esse local está interdito aos mergulhadores porque os nativos acreditam que um tubarão protege aquelas águas. O sonho de Matahi prossegue com uma série de planos no qual ele encontra uma pérola enorme e depois paga a dívida aos comerciantes. O pesadelo termina com os mercadores a rasgarem as dívidas de uma maneira idêntica à qual o polícia desfez o mandado de captura depois de ter recebido a pérola. A comunicação dá-se através da troca de produtos – quem não tem dinheiro ou bens, não tem voz nesta ilha. Além de fazer associações entre imagens, este episódio onírico interrelaciona duas ordens simbólicas distintas, conforme Heno-Coe deixa claro:
The superimposed montage of images creates associative links between otherwise disparate symbolic systems of the visual and the textual. Here text comes to make a distinct impression on the psyche in a manner wholly different than we expect of language – it makes a powerful visual – might we say ‘cinematic’ – impression. (2018: 47)
Assim sendo, no sonho de Matahi a palavra assume uma função distinta daquela que desempenharia no contexto de um intertítulo. O termo “TABU” e os recibos assinados pelo protagonista afirmam-se enquanto imagens que evocam os seus actos de transgressão, não enquanto veículos expositivos.
Nessa mesma noite, enquanto o seu amado dorme atormentado, Reri tem um encontro com Hitu, que se preparava para matar Matahi. No preciso instante em que Hitu vai atirar a lança, a heroína coloca-se diante Matahi para o proteger. Coberta por sombras, a posição de Reri, de braços estendidos e rosto caído, assemelha-se à de Cristo na cruz. Então, a protagonista vai ao encontro de Hitu e ajoelha-se diante deste. Embora não troquem palavras, fica subentendido que Reri se está a comprometer com a lei ritualística. Reri sacrifica a sua liberdade para salvar a vida de Matahi. O plano da protagonista é partir com Hitu na manhã seguinte, depois de Matahi deixar a cabana para ir mergulhar.
É isso que se sucede. Ainda durante a noite, Matahi parte para as águas designadas tabu enquanto Reri permanece na cabana e escreve uma carta de despedida. A imobilidade de Reri, que cede ao peso da tradição, contrapõe-se ao movimento de Matahi, que nada até às profundezas do recife interdito com o objectivo de encontrar uma pérola que lhe permita liquidar a dívida. Matahi tenta escapar à punição de ter violado a lei, tanto ritualística quanto capitalista, com um novo acto transgressivo – neste caso, o de mergulhar nas águas proibidas. Wood propõe, inclusivamente, que o mergulho de Matahi nas águas tabu reencena a violação do tabu imposto pela lei tribal:
It is stressed that the natives believe the shark guards the pearl, suggesting Hitu’s guarding of Reri […] The act of plunging the knife into the oyster and extracting the pearl there – upon reveals strong sexual overtones: it is a symbolic act of defloration. Hence the whole episode of Matahi’s plunge down into a terrifying darkness to steal a pearl from an avenging shark becomes a symbolic re-enactment of his original crime. (1971: 26)
Através de montagem paralela, enquanto Matahi enfrenta o tubarão que protege as águas interditas, Reri escreve uma carta ao seu amado. Um plano de inserção permite ao espectador testemunhar a redacção da carta. Nela, a protagonista justifica a sua partida com o desejo de salvar Matahi de uma morte certa. A carta termina com a seguinte passagem: “Across the great waters I will come to you in your dreams when the moon spreads its path on the sea. Farewell”. A cedência às leis do tabu faz com que a natureza solar de Reri se transforme em luz crepuscular reflectida no oceano, que é, como referido, o meio no qual Matahi excele, mas também o meio onde este perecerá. Reri, que ao escrever comunica com Matahi através da palavra, o que também figura a transmutação da sua natureza, assina a carta com a flor branca pertencente ao Paraíso. O seu gesto de despedida tenta recuperar a simplicidade do tempo primevo agora perdido.
A carta de Reri é o último de um longo inventário de objectos textuais que integram o corpo de Tabu. Entre esses objectos encontram-se o diário do capitão do Moana, o diário do chefe de polícia, a mensagem de Hitu escrita numa folha de coqueiro, os recibos assinados por Matahi, os bilhetes de veleiro, a carta do Secretariado-Geral do Governo da República Francesa, o letreiro na loja dos comerciantes chineses e o documento que conjura o tabu. Assim sendo, Tabu afirma-se enquanto obra textualmente rica, embora o recurso a intertítulos expositivos e dialógicos seja evitado. Existe, inclusivamente, uma polifonia textual, uma vez que a palavra é expressa de diferentes formas e por múltiplos narradores: “Different genres of written text, in both visual style and type of utterance, come to coexist within a single film, destabilizing the sense of a singular narrative voice” (Heno-Coe 2018: 43). Entre os principais peões da acção, Matahi é quem mais resiste à utilização da linguagem natural. À excepção da assinatura que escreve maquinalmente nos recibos dos comerciantes, Matahi procura comunicar sempre por outras vias. Depois de encontrar e ler a carta, Matahi responde a Reri com a pérola negra que encontrou dentro de uma concha do recife protegido.
A descoberta da pérola negra prefigura a morte de Matahi, que persegue, num esforço sobre-humano, a embarcação na qual Hitu e Reri se encontram. Matahi corta as águas tumultuosas a uma velocidade excepcional, como se os elementos se curvassem perante o seu esforço. O herói chega a alcançar as cordas da embarcação, mas Hitu rompe o cabo a que o protagonista se agarra com um só gesto, deixando Matahi perdido entre as ondas que, por fim, o engolem. Então, sobre as ondas que sepultam o corpo de Matahi surge novamente a palavra “TABU”. A palavra que conjurou a maldição dos amantes e que conduziu à morte de Matahi transcende qualquer forma de suporte físico e inscreve-se sobre o próprio real. Desta forma, Tabu termina com o triunfo da lei tribal, que reitera a sua função enquanto elemento regulador da estrutura da realidade.
Conclusão
Tabu: A Story of the South Seas foi tido como um filme anacrónico aquando da sua estreia. Realizado por um homem já morto, o filme apresentava uma proposta de cinema que não se enquadrava com as produções que lhe eram coevas. A partir do além-túmulo, Murnau instigava o espectador a reflectir acerca dos códigos do cinema mudo e da maneira como este pode integrar a palavra na imagem e não no som. A intenção do cineasta era inscrever o texto na matéria da diegese, evitando, desse modo, a utilização de intertítulos dialógicos e expositivos que quebram o continuum da acção. Para tal, são utilizados planos de inserção que dão a ver o texto de diferentes objectos, tais como: cartas de amor, diários ou manuscritos tribais. Por vezes, o espectador tem, inclusive, acesso ao acto de redacção destes materiais textuais. Contudo, além das experiências formais com a palavra, a acção desenvolve uma parábola com contornos míticos acerca do poder nocivo da linguagem idiomática. O Paraíso solar de Reri e Matahi, onde dependiam apenas dos sentidos e do olhar para comunicarem, é arruinado pela chegada da palavra a bordo do Moana. Às imposições da lei tribal juntar-se-ão as exigências do capital, sendo que, em ambos os casos, é a palavra que lhes dá autoridade. Todas as tentativas de fuga por parte dos amantes fracassam e as sucessivas transgressões dos diferentes tabus resultam na morte de Matahi, que retorna ao meio ao qual pertence, transformando-se assim na espuma que irá reflectir a luz de Reri nas noites de lua cheia.
Notas Finais
1Cf. Langer (1985) para uma análise detalhada da produção de Tabu: A Story of the South Seas, incluindo a participação de Flaherty no projecto.
2Os itálicos e aspas em todas as citações, salvo indicação em contrário, pretendem respeitar o grafismo do texto original.
3Esta frase é retirada de um dos intertítulos expositivos de “Paraíso Perdido”. No original lê-se o seguinte: “Fleeing the vengeance of the Tabu the guilty lovers fought their way over leagues of open sea seeking some island of the pearl trade where the white man rules and the old Gods are forgotten” (ênfase minha).
Bibliografia
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Wood, Robin. “Tabu.” Film Comment 7, no. 2 (1973): 23-27.
Filmografia
Der Letze Mann. 1924. De F.W. Murnau. Filme.
Tabu: A Story of the South Seas. 1931. De F.W. Murnau. Filme.