Abstract
The article aims to study the haunted scenarios of the miniseries Amorteamo (2015) directed by Flávia Lacerda, broadcast by Rede Globo de Televisão. Amorteamo’s narrative was freely inspired by the book Assombrações do Recife Velho by Northeastern sociologist Gilberto Freyre, where the dead come back to life to rescue pending issues. The five-episode miniseries presents in its narrative characteristics of the fantastic genre, according to Todorov (2006) for the fantastic to be installed, it is necessary to have a strange fact, which causes hesitation in both the protagonist and the spectators. The return to life of the character of the suicidal bride Malvina generates hesitation in the characters who witness the act of the bride rising from the grave as in the spectators who watch the scene. Amorteamo’s scenarios contextualize the fantastic narrative, so we identify three places where strange events occur, such as the mansion, the church and the cemetery. German expressionism is the visual concept worked on in the miniseries, represented in the worn out scenarios and in the play of light and shadow. To interpret such scenarios, we seek the contribution of the semiotics of Russian culture represented by the linguist Iúri Lótman (1996) and by the Brazilian researcher Irene Machado (2003), as this theory provides us categories of analysis that allow us to discuss all the symbology present in the images. In our investigative path, in addition to the authors already mentioned, we also used Lotte Eisner (1985), Ana Luísa Camarani (2014) and Bertrand Lira (2013).
Keywords: Amorteamo, Fantastic narrative, Haunted scenarios, German expressionism, Semiotics of culture.
Introdução
As ficções seriadas têm se firmado no cenário midiático mundial em virtude da qualidade e criatividade dos seus roteiros bem como na atuação de profissionais capacitados em todas as fases da produção das obras, além das novas possibilidades de fruição das mesmas. Os serviços de streaming nos proporcionam acesso a uma variedade de produções internacionais. No Brasil, as séries ficcionais da TV aberta, cujas narrativas foram inspiradas na literatura brasileira, se destacaram pela forma inovadora de adaptação realizada pelos diretores. A minissérie Amorteamo, objeto desse estudo, foi veiculada pela Rede Globo de Televisão no ano de 2015, em cinco episódios. Esta minissérie dirigida por Flávia Lacerda é uma criação do draumaturgo Newton Moreno, que juntamente com Claúdio Paiva e Guel Arraes roteirizaram a narrativa. Inspirada livremente na obra Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre, a minissérie narra o desenrolar dos acontecimentos sobrenaturais e trágicos na vida de dois triângulos amorosos na cidade da sombria Recife do século XX e foca nos personagens mortos que retornam a vida com o propósito de resgatar assuntos pendentes. Percebemos as caracteristicas do gênero fantástico na narrativa de Amorteamo, por apresentar de forma simultânea a união e a oposição mantida entre o real e o sobrenatural, o que gera incerteza e ambiguidade. Como também conseguimos identificar nos cenários onde os fatos sinistros ocorrem, elementos do expressionismo alemão, movimento cinematográfico que evidencia o contraste entre luz e sombra, geometrização dos espaços, ambientes desgastados e obliquos. A metodologia dessa pesquisa utiliza os conceitos da semiótica da cultura de Irene Machado (2003) e Iúri Lótman (1996), além desses pesquisadores, utilizamos também a contribuição de Camarani (2014), Lira (2013), Eisner (1985) e Todorov (2006). Sendo assim, organizamos esse artigo em cinco tópicos, após a introdução, refletimos a narrativa dos mortos-vivos brasileiros e a sua aproximação com a literatura fantástica, em seguida, temos os elementos expressionistas nos cenários sobrenaturais de Amortemo, a seguir interpretamos os cenários assombrados no olhar da semiótica da cultura, e finalizamos com as considerações finais que suscitaram essa pesquisa, que resultou da tese A narrativa imagética e sonora na semiosfera de Amorteamo (2015).
A Narrativa dos mortos-vivos brasileiros e a sua aproximação com a literatura fantástica
A trama principal de Amorteamo gira em torno de dois triângulos amorosos. O primeiro constituido por Aragão (Jackson Antunes), a esposa Arlinda (Letícia Sabatella), e o amante dela, Chico (Daniel de Oliveira). O segundo triângulo é formado por Gabriel (Johnny Massaro), filho extraconjugal de Arlinda com Chico, mas que Aragão criou como filho legítimo; Lena (Arianne Botelho), filha da empregada do casarão de Arlinda e Aragão, o amor de infância de Gabriel; e Malvina (Marina Ruy Barbosa), a noiva abandonada por Gabriel no dia do casamento, que se suicida na ponte do rio Capibaribe. A narrativa adquire um aspecto de assombração após o suicidio da personagem Malvina. O noivo arrependido desenterra o corpo, que volta a viver. Quando Malvina retorna do mundo dos mortos, ela traz uma maldição na cidade: Todos os mortos enterrados no cemitério retornam a vida para resgatar algo. Percebemos no desenrolar da trama dos mortos-vivos, amparados por Camarani (2014) elementos da literatura fantástica. Gênero literário que surgiu na França há aproximadamente duzentos anos. O precursor da literatura fantástica foi o autor francês de O diabo enamorado (1772), Jacques Cazotte (1719-1792), e o pioneiro no que se refere as reflexões teóricas sobre o fantástico, foi o escritor também francês Charles Nodier (1780-1844), principal figura dentro do movimento romântico, cujos contos e novelas fantásticas de caráter sobrenatural se destacaram no mercado literário.Camarani (2014) enfatiza que para Nodier, a tendência do fantástico nasce e se estabelece na literatura do seu tempo, como também na sociedade. O autor leva a sua reflexão sobre o fantástico para os prefácios e o interior de suas obras. E consegue clasificá-lo em tipos.
Detendo a atenção sobre esses três tipos de fantástico assinalados por Nodier, seria impossível afirmar que ele propõe, de modo ainda tênue, fundamentos teóricos dos quais a teoria de Todorov (1970b) estaria bastante próxima, quando este considerando o maravilhoso e o estranho como dois gêneros vizinhos do fantástico, aponta a existência de gêneros transitórios ou subgêneros: o fantástico-maravilhoso ( onde a existência do sobrenatural não é contestado e o fantástico-estranho (que apresenta uma explicação racional, possível de ocorrer na vida real); o fantástico-puro, que corresponderia ao segundo tipo apresentado por Nodier, seria aquele no qual a hesitação se mantém, deixando “a alma suspensa na dúvida” (Camarani, 2014,p.17).
Para Nodier, a narrativa fantástica verdadeira evidencia acontecimentos de fenômenos estranhos, como o dom da premonição, a loucura e os sonhos; estes assumiriam a mesma função na narrativa fantástica, de ativar os acontecimentos fantásticos. Inter-relacionando o argumento de Nodier com a minissérie Amorteamo, percebemos o fenômeno da premonição ocorrido durante um sonho da personagem Arlinda, que reviveu o assassinato do seu ex amante Chico. O sonho teve a função de flash forward, ou seja, apresentou eventos futuros, pois o mesmo anunciou o retorno do personagem Chico como morto-vivo. Já em relação à função que a loucura tem de despertar os acontecimentos fantásticos, Camarani (2014) cita Nodier para nos explicar que o personagem caracterizado como louco assume um papel muito importante na narrativa, o de revelar as verdades da imaginação. “É verossímil que loucos relatem fatos estranhos e até mesmo sobrenaturais”(Camarani, 2014, p.20). Em Amorteamo, o personagem Zé Coveiro (Tonico Pereira) é o funcionário do cemitério que ao limpar os túmulos conversa com os espíritos, os quais revelam segredos. Ele é visto na cidade como uma pessoa estranha. Há também outro personagem na minisserie que adquiri transtornos psiquiatricos ao constatar a presença dos mortos na cidade, Aragão enlouquece diante da perseguição macabra de Chico morto-vivo. Diferentemente da visão de Nodier, o também escritor da literatura fantástica, Guy de Maupassant (1838-1893), reflete o fantástico interior, ou seja, que é inerente à alma humana, onde não há espaço para monstros ou qualquer outra criatura. Maupassant evidencia dois pontos relevantes para a literatura fantástica cujas crenças reverberam tanto no escritor como também na recepção da obra.
Assim, quando o homem acreditava sem hesitação, os escritores fantásticos não tomavam precauções no desenvolvimento de suas surpreendentes histórias; entravam de uma vez no impossível e nele permaneciam, variando infinitamente as combinações inverossímeis, as aparições, todas as estratégias assustadoras para fazer nascer o terror. Em um segundo momento, quando a dúvida penetrou na mente humana, a arte tornou-se mais sutil. O escritor buscou nuances, girou em torno do sobrenatural em vez de nele penetrar; encontrou efeitos aterradores permanecendo no limite do possível, lançando o espírito na hesitação, na inquietação (CAMARANI, 2014, p.25).
A literatura fantástica que desperta a hesitação tem em alguns escritores como o alemão Ernst Hoffmann (1776-1822) e os estadunidenses Edgar Allan Poe (1809-1849) e Howard Phillips Lovercraft (1890-1937) seus representantes, eles se tornaram famosos pelo talento na singular forma de narrar o fantástico e gerar a inquietação a partir de fatos naturais um tanto quanto inexplicáveis ou quase impossíveis. A hesitação também é vista como uma palavra-chave na definição e desenvolvimento da teoria sobre a literatura fantástica do linguista búlgaro naturalizado francês Tzvetan Todorov (1939-2017). Na visão de Todorov, para que o fantástico se instale, faz-se necessário a existência de um fato estranho que provoque uma hesitação tanto no protagonista como também no leitor. A narrativa fantástica pressupõe três condições: Primeiro, o leitor deve ser convencido de que o mundo das personagens é um mundo de pessoas vivas, e deve haver a hesitação entre um esclarecimento natural e um esclarecimento sobrenatural sobre os fatos. Segundo, essa hesitação deve ser sentida também por um dos personagens. E finalmente, o papel do leitor é confiado a uma personagem, a hesitação é representada na narrativa e é um dos temas desta. Todorov (2006) acrescenta que o fantástico permanece apenas durante o tempo da hesitação, esta que é comum ao leitor e à personagem. Na minissérie Amorteamo, comungamos da hesitação das personagens diante dos fatos sobrenaturais. Quando Malvina se levanta do túmulo e provoca um estado de total pertubação em Gabriel sentimos como espectador a mesma percepção.
Após traçarmos uma breve contextualização do surgimento e desenvolvimento da literatura fantástica, e localizarmos a narrativa de Amorteamo nesse gênero, no próximo tópico discutiremos os elementos estéticos do espressionismo alemão identificados na minissérie.
Elementos expressionistas nos cenários sobrenaturais
A cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco, localizada no nordeste brasileiro do início do século XX serviu de inspiração para ambientar o drama dos mortos-vivos, já que as lendas de assombração recifense coletadas pelo sociólogo Gilberto Freyre em sua obra, nos falam da convivência não muito harmônica entre vivos e mortos nessa cidade. A narrativa de Amorteamo se desenvolve principalmente nos cenários do casarão de Aragão e Arlinda, na igreja, no prostíbulo, no bar, na ponte do rio Capibaribe, no cemitério, casa/loja de antiguidades do pai de Malvina e em algumas ruas. A estética predominante apresenta como características os ambientes desgastados, a geometrização dos espaços, o jogo de luz e sombras, além de elementos cenográficos recorrentes como vidraças, espelhos e escadas que nos remetem ao movimento cinematográfico expressionismo alemão. Eisner (1985) informa que o expressionismo surge após a Primeira Guerra Mundial, época em que Alemanha tenta se recuperar com dificuldade do sonho imperialista.
A atmosfera conturbada atinge o paroxismo com a inflação, que provoca a destruição de todos os valores; e a inquietação inata dos alemães adquire proporções gigantescas (EISNER, 1985, p.17).
É nesse clima de miséria e inquietação emocional que a doutrina apocalíptica surge. A atração por contrastes violentos que a literatura trouxe para as artes, além da nostalgia do claro-escuro encontraram na arte cinematográfica um modo de expressão ideal. Lira (2013) acrescenta que os filmes representativos desse movimento giram em torno do mal, do macabro, do fantástico. As imagens trabalhadas apresentam certas peculiaridades que ressaltam a narrativa sombria. Os temas ligados à fascinação pela morte provocaram uma inovação estética no cinema. A principal função do jogo de luz e sombra, do contraste do preto e branco, dos grafismos dos cenários e das figuras distorcidas é causar estranhamento aos olhos dos espectadores. Na minissérie Amorteamo, identificamos cenários repletos de provocações de ordem emocional e sensorial, os quais foram produzidos de forma conjunta por cenógrafos e os responsáveis pela iluminação e fotografia. Na figura 1, as características da estética expressionista alemã estão evidenciadas no enquadramento da câmera, em que observamos o perfil de uma mulher maltrapilha sentada sob uma janela em ruinas, com as portas danificadas e os vidros faltando. Madeiras na diagonal foram pregadas para evitar que a janela fosse aberta, produzindo formas geométricas. Esse ambiente devastado mostra sintonia com o da decadência física e moral da personagem. Percebemos também o contraste da escuridão do ambiente com a luz do sol que entra pelas frestas dos buracos da janela. Lira (2013) nos explica que os expressionistas buscavam materializar em imagens a angústia, o medo e o horror, principalmente em relação à morte. As imagens devem transparecer os sentimentos melancólicos e mórbidos não apenas no conteúdo como também através da sua forma. A fotografia expressionista acentua a distorção da arquitetura dos cenários, os objetos cenográficos e a caracterização dos personagens, o que engloba maquiagem, figurino e interpretação dos atores.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
As figuras 2 e 3 apresentam imagens em um tipo de enquadramento conhecido como câmera alta ou pelo termo francês plongée. Nesse procedimento, a câmera filma o objeto/personagem principal da cena do alto para baixo. Esse artifício foi empregado pelos diretores expressionistas com o objetivo de facilitar a imagem do conjunto, principalmente das imagens imaginadas, conforme nos esclarece Eisner (1984).
Os expressionistas recorrem apenas a imagens depositadas na memória, chegando assim, naturalmente, àqueles muros oblíquos sem qualquer realidade. É uma das características das “imagens imaginadas” representar os objetos de viés, vistos do alto, em plongée: este ponto de vista facilita uma apresentação precisa do conjunto, podendo evitar em grande parte a interrupção das linhas
(EISNER, 1985, p.30).
Nas figuras selecionadas com o enquadramento plongée, as imagens não foram fruto da imaginação de nenhum personagem. A câmera assume o papel de um narrador ao nos mostrar do alto a cena em que o caixão do Padre Lauro sai no cortejo funebre até o cemitério.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Na figura 3, a câmera exibe a imagem do cemitério do alto até chegar no personagem Gabriel que está dormindo sob um túmulo.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Conforme, já discutimos no item anterior em relação a gênese da literatura fantástica e a identificação de elementos dessa narrativa na minissérie Amorteamo, buscamos novamente a contribuição de Camarani (2014) que descreve a cidade francesa Rouen da obra Qui sait?, de Maupassant.
A cidade é descrita evidenciando-se as características medievais e os monumentos góticos, até ser focalizada uma “fantástica ruela” onde se localizam os antiquarios. Em uma dessas lojas, casa vasta e tortuosa como um labirinto, o narrador vai reconhecendo seus móveis, um a um; alguns dias depois, recebe a surpreendente notícia do retorno de todos os objetos (CAMARANI, 2014,p.27-28).
Identificamos alguns pontos de contato entre a cidade da obra fantástica de Maupassant com Amorteamo. Percebemos traços góticos nas esculturas do cemitério, conforme nos mostra a figura 4, com as cabeças inclinadas para frente ou para trás, a rigidez nas posições e o panejamento dos tecidos. Contudo, a cidade retratada em Amorteamo foi fortemente inspirada na estética expressionista e não na arte gótica, pois segundo Gozzoli (1978), as cidades que apresentam essa estética exibem fortes muralhas com o objetivo de defesa, possuem o traçado urbano variado e irregular e exibem ruas estreitas e tortuosas que obedecem aos acidentes naturais do terreno. Observamos na figura 5 o traço expressionista no segundo andar de alguns sobrados, totalmente oblíquos.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Em relação a descrição da cidade na obra de Maupassaunt, constatamos que a presença de lojas de antiguidades é um recurso usualmente utilizado em obras que tratam de temas fantásticos, uma vez que nessas narrativas alguns objetos podem adquirir vida ou apresentar poderes mágicos. Em Amorteamo, temos a loja de penhores do judeu Isaac. Apesar de nenhum objeto dessa loja apresentar dons mágicos, a figura 6 mostra uma imagem animalesca que se assemelha às gárgulas, presentes na arquitetura gótica.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Outro objeto decorativo que chama atenção no cenário da personagem Malvina é o espelho. No quarto dela, identificamos vários espelhos junto aos porta-retratos e porta-joias. O espelho é um dos itens decorativos ao lado das escadas e dos corredores mais exibidos nas obras expressionistas. Ele revela reflexos, sombras:
nos filmes alemães, janelas, vitrinas, portas envidraçadas, poças de água, tal como espelhos, captam figuras e objetos em sua superfície opalescente”( EISNER, 1985,p.94).
A diretora Flávia Lacerda usou o recurso da captação da imagem em vidraças, com a câmera inclinada para obter a geometrização dos espaços, como podemos perceber na figura 7.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Percebemos em Amorteamo, outro enquadramento de câmera recorrente, o qual procura filmar as imagens por trás de alguns elementos orgânicos e não orgânicos, caso dos troncos de árvore e dos traços do ferro do automóvel, ou ainda da mistura dos dois. Essas imagens provocam um tipo de estranhamento sombrio aos espectadores. A câmera em suas diversas opções de enquadramento dos cenários nos possibilita visualizar as imagens de diversos ângulos – no caso das obras expressionistas, com o objetivo de provocar repulsa. Eisner (1985) cita Wegener que afirma que o filme O estudante de Praga apresentava uma combinação esquisita do natural com o artificial, da realidade com o cenário.
O verdadeiro poeta do filme deve ser a câmera. As possibilidades do espectador mudar continuamente de pontos de vista, as numerosas trucagens que duplicam o ator na tela dividida em duas partes, as sobreimpressões, em suma, a técnica, a forma, dão ao conteúdo seu verdadeiro significado (EISNER, 1985,p.41).
A câmera teve esse papel em Amorteamo ao nos mostrar diferentes perspectivas, com o propósito de revelar o lado sombrio da cidade do Recife. Eisner ainda nos recorda que “a luz e a escuridão desempenham no cinema o papel do ritmo e da cadência da música” (1985, p.51). Nas cenas onde a imagem foi captada atrás de elementos orgânicos e/ou estruturas de ferro, as várias nuances dos tons de cinza e preto são exibidas, além dos pontos de luz. São imagens imersas na atmosfera do anoitecer, que fragmentam a visão do espectador e, consequentemente nos fornecem uma visão enigmática.
No próximo tópico, vamos interpretar três cenários assombrados com a contribuição da teoria da semiótica da cultura de origem russa.
Os Cenários assombrados no olhar da semiótica da cultura
A semiótica da cultura russa não é uma teoria muito utilizada em pesquisas na área do audiovisual. Conforme constatamos em uma breve análise sobre as pesquisas dessa área, há uma preferência pela adoção das semióticas de origem americana e francesa. Sendo assim, antes de adentrarmos nas análises semióticas, destacaremos alguns conceitos de forma concisa.
A semiótica da cultura surge na década de 1960 na Escola Semiótica de Tártu-Moscou na Universidade de Tártu, Estônia. Espaço destinado à discussão de pesquisadores que buscavam entender o papel da linguagem na cultura. O pensamento de que a cultura se forma a partir da combinação de muitos sistemas de signos, os quais cada um tem a sua própria codificação, define a semiótica da cultura como uma semiótica sistêmica. A sugestão dos semioticistas russos que buscavam entender o mito, a religião, o folclore, a literatura, a arte, o cinema, o teatro, os hábitos e os costumes como uma linguagem se guiava por um princípio no qual a codificação dos sistemas ocorre de forma dependente da sua relação com os outros sistemas. Logo, o pensamento sistêmico adquire um dos enfoques mais relevantes da semiótica da cultura, conforme nos explica Machado (2003). As investigações desenvolvidas no campo da semiótica da cultura visam compreender as relações entre os sistemas de signos. A teoria geral dos signos é a hipótese de trabalho para avaliação dos mecanismos semióticos que guiam o funcionamento da cultura. Assim, a disciplina semiótica da cultura apresenta suas formulações através de conceitos com designações próprias. No arcabouço conceitual, existem os estudos sobre a semiosfera, formulado por Iúri Lótman (1922-1993) em 1984 para definir o habitat e a vida dos signos no seu espaço cultural. Nesse universo, os sistemas modelizantes dos signos estão em evidência através de conexões dinâmicas entre os códigos culturais para enfim produzirem as linguagens da cultura. Lótman (1996) além de definir o conceito de semiosfera, também forneceu as características que definem o espaço cultural dos signos. Como o caráter delimitado e a irregularidade semiótica. Um dos conceitos essenciais do caráter semioticamente delimitado é o da fronteira, e esta por ser um organismo bilíngue que traduz as mensagens externas à linguagem interna da semiosfera ou vice-versa, possibilita os contatos dos espaços não semióticos e alosemióticos. A função de toda fronteira pode ser reduzida à tarefa de limitar a penetração do externo para o interno, processo que consiste em filtrar e elaborar as mensagens e a tradução delas em uma linguagem. Já em relação a irregularidade semiótica, Lótman (1996) nos esclarece que a irregularidade estrutural da organização interna da semiosfera é definida pelo fato de, por ela ter uma natureza heterogênea naturalmente, ela se desenvolve com velocidades distintas em seus respectivos setores. As diversas linguagens possuem diferentes tempos e magnitudes de ciclos, ou seja, as línguas naturais se desenvolvem de forma mais lenta do que as estruturas ideológicas mentais. Logo, não se deve falar em sincronicidade dos processos que ocorrem na semiosfera, porque ela é atravessada inúmeras vezes por fronteiras internas que tornam os setores cada vez mais especializados do ponto de vista semiótico. A transmissão de informações pelas fronteiras se assemelha a um jogo entre diferentes estruturas e subestruturas.
Depois de trazer os conceitos introdutórios da semiótica da cultura, assim como o mecanismo geral da semiosfera, identificamos alguns elementos fundamentais dessa semiótica sistêmica. Através da característica da semiosfera, que define o seu caráter delimitado, chegamos ao elemento “fronteira”. Já a característica da semiosfera chamada irregularidade semiótica, nos fornece o elemento “texto” que se movimenta na semiosfera pelas fronteiras, gerando mais textos culturais. Segundo Ramos et al. (2007), a semiótica da cultura desenvolve um novo conceito de “texto” na área acadêmica. Para os semioticistas da cultura, a conceituação de texto implica no mínimo em dois tipos de codificação: uma codificação definidora do sistema semiótico e outra codificação da esfera da cultura que modeliza o sistema como um texto. Por exemplo, uma dança de um ritual é distinta de uma dança performática em um espetáculo de entretenimento, pois, apesar de pertecerem a um sistema semiótico, ambas possuem textos culturais diferentes. O texto é visto como um espaço semiótico que conjuga vários sistemas e que pressupõe um caráter codificado. Quando é selecionado um objeto ou um processo como texto é porque ele se encontra codificado de alguma forma. Ramos et al. (2007) acrescentam que Lótman vê o texto como a conjugação de vários subtextos em um diálogo constante com muitos outros. Ou seja, a multivocalidade é o traço indispensável do texto, e é isso que torna a semiótica da cultura distinta das outras disciplinas. Os autores reforçam que a distinção das abordagens é evidenciada nas considerações que Lótman realiza sobre as três funções do texto: a comunicativa, a de gerar sentidos e a função mnemônica. As três funções do texto foram organizadas mediante o mecanismo semiótico próprio da cultura, que é a mudança da informação em texto. Outro conceito importante da semiótica da cultura é o conceito de sistema modelizante. O processo de modelização, isto é, de estruturar a linguagem pode ser denominado de sistema modelizante. Os semioticistas da cultura classificaram os sistemas modelizantes em dois tipos: o primário e o secundário. A linguagem verbal, por possuir uma estrutura, é definida como sistema modelizante primário; os outros sistemas da cultura, como a literatura, o mito, a religião e a arte, por não ter uma estrutura e sim construírem uma estruturalidade, são chamados de sistemas modelizantes secundários. Sendo assim, os sistemas modelizantes secundários utilizam a linguagem verbal como uma referência estrutural, pois a reconhecem em um determinado sistema a sua estruturalidade. Logo, todos os sistemas semióticos da cultura são sistemas modelizantes de segundo grau, pois se relacionam com a língua, formam linguagens, porém não possuem propriedades linguísticas do sistema verbal.
A ideia básica da modelização é, portanto, a possibilidade de considerar tanto as manifestações, os produtos ou atividades culturais quanto as organizações segundo qualquer tipo de linguagem e, consequentemente, como um texto (MACHADO, 2003,p.51).
Machado (2003) acrescenta que o campo conceitual da modelização oferece estratégias de análise aptas a alavancar o processo de alfabetização da semiótica sistêmica. Além disso, trata-se de uma abordagem que privilegia todo e qualquer sistema da cultura, que jamais pode ser vista como um sistema isolado e acabado. Como consequência, um texto da cultura só sobrevive mediante uma organização solitária de outros textos. Machado (2003) também nós fala da necessidade de compreender a cultura como um vasto ecossistema, ou seja, sistemas dentro de sistemas. Logo, a alfabetização semiótica se torna imprescindível. Esse processo de letramento semiótico se funda no conhecimento de códigos culturais, possuindo um papel estratégico na análise semiótica da cultura que oferece um conjunto de práticas interventivas das mentalidades criadoras de signos. Para Machado (2003), os códigos culturais formam um vocabulário mínimo da cultura, em constante movimentação. A autora cita Ivanov para explicar que os homens desde a infância, são educados conforme os códigos culturais, pois a cultura nunca poderia estabelecer a esfera social sem signos. Nessa situação, todos os códigos pertencentes, do bio ao socius, são culturalizações, são configurações convencionais que localizam o homem no ambiente. Os códigos culturais produtores da linguagem e, por conseguinte, dos textos culturais, são perceptiveis no som, na imagem, no movimento, na textura, no cheiro, no paladar. É importante não os confundir como uma simples extensão do sensório. Sob o olhar da modelização, trata-se de um processo de culturalização, pois sempre o código traduzido é a mediação sígnica. Nessa perspectiva, os textos audiovisuais são modelos, já que os seus exemplares são sistemas semióticos complexos resultantes das travessias de vários códigos como o som, a imagem e o movimento. Machado (2033) reforça que sem os códigos culturais não pode ocorrer a semiose. A codificação é ativada através da percepção que abrange os cinco sentidos e o movimento. Esse processo consiste na mediação sígnica entre o que se vê e o que se compreende.
Exemplificamos a citação da pesquisadora brasileira Machado (2003) com o processo criativo de um artista na produção de uma obra de arte. A obra que é um texto cultural representa a materialização das influências, estilos, tendências e interesses do artista. Antes da produção da obra, toda a subjetividade do artista se encontrava em um ambiente externo à cultura. O artista na produção de suas obras utiliza códigos visuais (forma, cor e espaço) e táteis (texturas). A partir de suas escolhas, ele cria a obra de arte, um dos textos da cultura mais pesquisados pelos semioticistas. É possível fazer uma analogia do exemplo da criação da obra de arte com a concepção de cenários de uma minissérie televisiva. Em Amorteamo, o cenógrafo que criou um determinado cenário, como o cemitério, utilizou todos os seus conhecimentos de História de arte e da arte tumular, selecionou o estilo mais apropriado para atmosfera promovida pelo roteiro, como a arte gótica, e assim produziu as esculturas com a postura fiel à arte selecionada. As suas escolhas foram materializadas nas esculturas, transformando-as em textos da cultura.
Foi necessário esse percurso conceitual na semiótica da cultura antes de interpretar os cenários assombrados da minissérie Amorteamo, para que a reflexão semiótica de cada cenário selecionado se torne mais compreensível.
Os cenários do casarão de Aragão e Arlinda, da Igreja e do cemitério da fictícia Recife foram selecionados para o estudo semiótico em virtude desses espaços se apresentarem como espaços assombrados pela presença de espíritos, de mortos-vivos ou de fenômenos sobrenaturais. Começamos nosso estudo pela figura 8, cena que mostra o cenário do sotão deteriorado, com o telhado faltando telhas e repleto de móveis antigos.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Os cenógrafos de Amorteamo, junto a direção de arte e a direção geral, discutem sobre o conceito visual da obra, o qual deve contextualizar a narrativa sombria. A definição da estética expressionista alemã guia as pesquisas de arte em livros e produções cinematográficas, até se chegar à escolha da cartela de cores e à produção dos cenários. Conforme já foi dito, muitos cenários foram construídos respeitando padrões estabelecidos pela cinematografia expressionista, como uso de vidraças, espelhos, escadas, imagens distorcidas e oblíquas, e a geometrização dos espaços. Ambientes decadentes foram reproduzidos para nos trazer a memória masmorras e porões escuros, onde é mais provável que as assombrações ocorram. Nesse processo criativo dos cenográfos, eles acessam os textos culturais que são as obras expressionistas internacionais. Lembrando que o texto da cultura informa, produz sentido e possui a função mnemônica, ou seja, os filmes emblemáticos da vanguarda expressionista presentes na memória dos espectadores e estudiosos, através dos seus cenários, atuam informando a combinação de móveis e estruturas arquitetônicas mais relevantes, bem como os sentidos que eles provocam.
A semiosfera, segundo Machado (2003), é o local de produção de semiose na cultura, logo é um ambiente onde há a coexistência e a coevolução dos sistemas de signos. A semiosfera é o espaço semiótico indispensável para a existência e o funcionamento da linguagem e da cultura com toda multiplicidade de códigos. Foi necessário trazer novamente a conceituação de semiosfera para mostrar que, da mesma forma que os criadores dos cenários acessaram a semiosfera, os espectadores também o acessam. Os cenográfos, ao reproduzirem os códigos que emanam estranhamento devido a estética expressionista, também incentivam os espectadores a entrarem na semiosfera para compreender o sentido exalado pelos códigos presentes na forma, cores e texturas dos objetos. Fora da semiosfera, não pode haver comunicação, nem linguagem e, consequentemente, não há a própria semiose. Vale relembrar que os códigos como sistemas modelizantes e modeladores possuem o papel de culturalizar o mundo, ou seja, oferecer-lhe uma estrutura de cultura. O objetivo final é transformar um não texto em texto. Portanto, selecionamos alguns códigos culturais presentes no mobiliário e na estrutura arquitetônica do espaço – o sotão do casarão de Arlinda e Aragão, exposto na figura 11 para discuti-los.
Primeiro, existem dois espelhos no sótão: um espelho redondo que faz parte de um móvel que parece um lavabo e outro de formato retangular comprido. Eles estão organizados ou desorganizados, um muito próximo do outro, dando a entender que esses objetos estão nesse local apenas para serem guardados, pois não estão arrumados respeitando a sua funcionalidade. Para os diretores do movimento expressionista, o uso dos espelhos capta figuras e objetos em sua superfície opalescente conforme fala Eisner (1985). Pela figura 11, percebemos que os espelhos não estão sendo usados pelos personagens, nem têm uma função sobrenatural. Os espelhos estão alinhados como pontos de luz, articulando a claridade que adentra no sótão pelas frestas do telhado quebrado, resultando no jogo de luz e sombra, característica marcante da estética expressionista. Outro móvel que chama atenção nessa imagem é a cadeira clássica estilo Luís XV. Pelo formato oval do seu encosto, ela é chamada de medalhão. Uma cadeira luxuosa, de alto custo. Parece que ela não se encaixa mais nos móveis do casarão e está no sotão como um entulho, caída, sem utilidade. Podemos fazer uma analogia com a personagem de Arlinda que também se encontra no chão, caída e sem utilidade, como um objeto a ser esquecido no sótão. O ambiente em geral do sótão é escuro, com paredes e portas desgastadas, assim como a estética expressionista preconiza para lugares onde o personagem confunde a sua existência real com os pesadelos torturantes. A imagem do sótão, ambiente do casarão no qual o espírito Chico, o amante assassinato, passou a viver com Arlinda, emite sentidos deprimentes.
Outro prédio que faz parte da cenografia de Amorteamo - emanando vários sentidos nos espectadores - é a Igreja, local onde houve manifestações sobrenaturais desde o suicídio do Padre Lauro. Porém, foi com a maldição de Malvina, com o retorno dos mortos-vivos, que a Igreja se tranformou em local de acolhida dos antigos frequentadores mortos. As figuras 9 e 10 mostram o interior da Igreja antes da maldição de Malvina e após a maldição, respectivamente.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Na figura 9, a imagem é diurna, o interior da Igreja está decorado com flores brancas nas laterais da nave, pois a mesma foi decorada para o casamento de Malvina, que não ocorreu. A luminária que está na parede central ilumina o altar, mais especificadamente a capelinha de uma santa. Do lado direito, também vemos uma luz localizada. Existem três colunas em cada lateral do interior da Igreja. Do lado esquerdo, percebemos a inclinação sutil das colunas, a luz suave esconde esse detalhe.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Já na figura 10, percebemos que a escuridão da noite invade a Igreja. Somente existe luz no interior da capelinha da santa e em alguns candelabros com velas acessas. Há uma luz que incide em cima das colunas do lado esquerdo que evidencia as colunas inclinadas. Porém, não visualizamos de onde a luz se origina. Há uma sombra muito grande do lado direito, no qual está o morto-vivo Padre Lauro. O Padre Joaquim está perto do altar, consequentemente perto da luz. Parece um embate de forças, a luz representada pelo Padre Joaquim e a escuridão representada pelo Padre suicida Lauro.
Quais são os códigos que podemos perceber nesse cenário que é um texto cultural resultante da dinâmica de vários sistemas culturais? Cada estilo artístico é um sistema semiótico que o cenógrafo acessa e o resultado pode ser a combinação harmoniosa desses sistemas.
Na construção do cenário do interior da Igreja, os cenógrafos buscaram algumas referências na arte barroca, para conceber o altar, e no expressionismo alemão, para evidenciar a inclinação das colunas clássicas e no jogo de sombra e luz. Quando se pensa na arte barroca, vem à tona a decoração extravagante. Mas, no caso da Igreja em Amorteamo, percebemos que o rebuscamento do Barroco foi atenuado. As características mais marcantes desse estilo, segundo o site archtrends Portobello podem ser vistas no uso de colunas tortas, sensação de infinitude e grandeza, uso da iluminação para criar uma atmosfera de mistérios, bem como o uso do dourado. Essa última característica está presente de forma mais simples na capela central, onde conseguimos ver detalhes decorativos nessa cor, bem como as esculturas de anjos na parte superior da capela.
A luz, as flores brancas, as colunas inclinadas e a escuridão são alguns códigos culturais que podemos interpretar nessas duas situações (antes e depois da maldição) em um mesmo cenário. Compreendemos que a decoração com rosas brancas em um casamento expressa inocência, pureza, paz, lealdade e perdão, pois desde a antiguidade foi estabelecido certos simbolismos para as flores, conforme o site Gazeta São Mateus. É possível interligar essas características com a personagem de Malvina e o seu amor puro e inocente por Gabriel. Em relação às colunas inclinadas, poderiamos pensar que esse artifício é exclusivo do expressionismo alemão. Contudo, vimos que o uso de colunas tortas é uma das características da arte barroca. O cenógrafo pode ter feito essa escolha de forma consciente ou não: ele poderia ter pensado somente que é um efeito estilístico do expressionismo alemão, já que essa forma artística foi definida como conceito visual da obra televisiva, e a tendência de objetos inclinados é bem forte nessa estética.
Já em relação ao uso da luz e da escuridão nessas duas figuras, podemos refletir que na situação da Igreja no período matutino, a luz desce da parede central superior e ilumina a capela, como se a luz descesse do firmamento e iluminasse seus representantes na terra. Há ainda a luz que entra na Igreja pelo lado direito, como se o sol fosse um convidado para o matrimônio e trouxesse a iluminação como presente. Todavia, na imagem da Igreja noturna, temos a escuridão e as sombras como convidadas, mas há ainda a luz no interior da capela como se a santidade indicasse a sua presença. A luz que evidencia as colunas inclinadas é um artifício para privilegiar o expressionismo alemão. Esse efeito gera um certo estranhamento nos espectadores, bem como a escuridão e o uso das sombras indicam as forças sobrenaturais no espaço sagrado.
O cenário do cemitério também foi um local onde o sobrenatural se fez presente, pois a volta de Malvina morta se deu nesse espaço. O fictício cemitério em Amorteamo está repleto de códigos culturais: desde a entrada percebemos o simbolismo presente nos portões que convidam o indivíduo para uma terra onde a dor e a saudade são companheiras, ver figuras 11 e 12.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
Portão e portais sempre representaram em obras audiovisuais o limite que separa o conhecido do desconhecido. Por isso, dependendo do gênero do filme ou obras televisivas, o portão recebe um destaque maior. Obras românticas ou dramáticas quase não mostram o portão do cemitério focalizam mais os túmulos, as lápides com o letreiro onde lemos o nome do falecido e as datas de nascimento e de morte, com alguma frase que a família mandou gravar e foto. Se for uma obra contemporânea do audiovisual, o enfoque recai nos túmulos floridos com pequenas lápides. Mas, se a obra for do gênero terror ou do suspense psicológico, o portão é evidenciado e recebe uma carga dramática na atmosfera cênica e no som quando alguém atravessa a barreira que limita o espaço urbano e o lugar de descanso dos mortos. Dessa maneira, entendemos porque o portão de ferro foi exibido em algumas cenas da minissérie Amorteamo. Segundo Declercq (2016,s.p.), as portas no cemitério simbolizam “Cristo abrindo uma porta ou indicando uma abertura”, representam a passagem da vida para a morte, mostram que a morte é uma travessia. Essa interpretação se refere a passagem para os mortos. Já para os vivos, o portão do cemitério representa, no olhar da pesquisadora de Amorteamo, a travessia dos vivos para o mundo do descanso dos mortos, onde os vivos – ao entrar através do portão – devem pedir licença já que não temos o domínio nesse espaço.
Há uns cem anos, as pessoas visitavam muito mais os cemitérios do que hoje; grande parte dos velórios era feita dentro de casa. Com o passar do tempo, a sociedade foi construindo limites entre o que é entendido por “vida” e o território da “morte”. Mas vida e morte são dois fenômenos indissociáveis, que só estão aparentemente e forçosamente apartados (BORTULUCCE apud DECLERCQ,2006,p.1).
Na minissérie Amorteamo, a separação aparente entre vivos e mortos se dá através do portão, o qual é constituído de ferro com espaços amplos entre as grades, o que demostra a fragilidade dessa barreira. A única proteção está na ponta da lança, que tem a função de afugentar os vivos que pulam os muros dos cemitérios.
Outro código que identificamos no cenário do cemitério, texto da cultura produzido em Amorteamo que possui uma linguagem própria, ou seja, é um sistema modelizante secundário, são as esculturas. Se olharmos com atenção para figura 12, contemplamos que a maioria é representada por anjos, seres alados, que estão posicionados com gestos utilizando principalmente os membros superiores para expressar tristeza, fuga e dor. Declerq (2016) nos explica que as esculturas de anjos (algumas vezes representados por mulheres voluptuosas ou com aspecto andrógino) simbolizam seres que cuidam das almas das pessoas e que são eles que garantirão uma boa travessia. No cenário do cemitério, eles exalam dor e têm uma forma delgada. Na figura 13, visualizamos a escultura de um anjo que manifesta sofrimento – talvez pelas almas que estão sob sua tutela.
Fonte: Amorteamo. Dir. Flávia Lacerda. Rede Globo. Brasil 2015.
No cenário do cemitério, ao lado das esculturas de anjos sofridos, de crianças, temos também esculturas de caveiras. Declercq cita Bortulucce (2016, p.01) para explicar que essas esculturas são um clássico do século XIX: “é o momento morri (‘ lembre-se de que você vai morrer’), nós que aqui estamos por vós esperamos”. Na figura 14, o esqueleto está com asas simbolizando que é um anjo, mas pelo gestual que parece sugar a energia da escultura de um homem de joelhos, percebemos que se trata de um anjo da morte.
Fonte: Imprensa Globo (2015).
Na figura 15 temos a lápide do personagem Chico. É possível ressaltar a importância da fotografia tumular na cultura de uma época. Para isso, recorremos a Declercq (2016) que entrevistou um antropólogo e uma historiadora de arte para compreender a arte tumular e a sua simbologia.
São as alternativas mais baratas para famílias que não podem pagar por esculturas. Segundo Giampaoli, muitas fotografias tumulares são a única que o falecido tirou em vida, dependendo da época. “O gosto pelo retrato fotográfico demonstra tanto uma nova cultura da época, quanto uma forma mais acessível de se registrar visualmente o rosto do defunto. É assim que vemos vários retratos diminutos engastados em molduras de porcelana. A memória se readequa ao gosto fotográfico”, diz Vanessa (DECLERCQ, 2016,p.01).
Fonte: Imprensa Gobo (2015).
A lápide do personagem Chico apresenta informações gerais da sua existência com sua respectiva foto. Na narrativa de Amorteamo, a família de Chico não é revelada. Há apenas uma cena que exibe o personagem Zé Coveiro falando que antes o túmulo de Chico era visitado e recebia flores de mulheres, mas isso foi só no início. Agora, estava esquecido. A partir dessa constatação, percebemos que a lápide, em comparação com as outras esculturas, demostra um aspecto simples, não foram investidos muitos recursos para eternizar o morto com uma obra tumular. Temos apenas uma cruz cristã fincada na lápide para demarcar fé e pedir proteção para essa alma.
Em relação a manutenção da lápide, constatamos sintonia com a fala do coveiro: o túmulo foi realmente abandonado, já que podemos conferir musgos (pequenas plantas que crescem em locais úmidos e sombreados) se desenvolvendo em cima da lápide.
Conforme já explanamos, o cenário de Amorteamo é um texto cultural composto por vários códigos, que vão se criando e se firmando a partir do sistema modelizante secundário. A inspiração dos cenógrafos e diretores de arte se origina da multiplicidade de sistemas culturais (vários estilos artísticos) e do dinamismo das fronteiras. Vale recordar a sua conceituação para melhor entendimento dessa dinâmica.
Zona de liminaridade e espaço de trânsito, de fluidez, de contato entre sistemas semióticos. Á medida que a estruturalidade garante a organicidade correlacional do sistema semiótico, é impossível admitir a existência de limites rígidos e precisos. Pelo contrário, fronteira configura uma superfície heterogênea e, portanto irregular (MACHADO, 2003,p.159).
Por isso, que observamos no cenário do cemitério referências da estética expressionista alemã na atmosfera acinzentada e sombria, árvores com poucos galhos, ambientes desgastados e abandonados. Da arte gótica, percebemos a rigidez da postura de determinadas esculturas, além das caveiras. Da arte tumular, a simbologia dos objetos criados e eternizados para referenciar os mortos. E da arte barroca, a escultura dos anjos crianças que exalam pureza, logo equilibram as imagens de dor e sofrimento dos anjos sofredores.
Após, a interpretação dos principais cenários assombrados com a contribuição da semiótica da cultura de origem russa, no próximo tópico, concluimos enfantizando a importância dessa teoria na análise de obras do audiovisual, que neste estudo limitamos apenas aos cenários assombrados.
Conclusão
Este artigo é um recorte da tese intitulada A narrativa imagética e sonora na semiosfera de Amorteamo (2015) defendida no ano de 2020. Escolhemos abordar nesse evento a interpretação dos cenários assombrados a partir da semiótica da cultura de origem russa, porque que essa teoria nos proporciona uma leitura dos sentidos emanados dos espaços cenograficos de uma obra televisiva. Além de servir de referência para futuras análises de cenarios de séries e filmes.
Compreender que a obra audiovisual é uma semiosfera, onde os signos circulam através dos textos culturais nos permite identificar os códigos culturais e acessar os movimentos artísticos que os cenográfos se inspiraram para a criação dos cenários. As principais características do movimento cinematográfico expressionismo alemão, como: o jogo de luz e sombra, geometrização dos espaços, distorções, e determinados enquadramentos de câmera nos permitiram compreender a força dos cenários sombrios para o convencimento das narrativas fantásticas. Literatura que nos fornece também algumas características que podem ser traduzidas em elementos estéticos, como ambientes escuros e desgastados e loja de antiguidades; identificados na minissérie Amorteamo, como o sotão do casarão de Arlinda e Aragão, e a casa de penhores do judeu Isaac. Enfim, com a contribuição da teoria sistêmica, podemos entender como esses elementos literários e estéticos interagem de forma dinâmica na obra do audiovisual que é um espaço semiótico produzindo novos textos da cultura.
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