Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Opera pills for children - mini documentaries to raise awareness among parents and teachers

Pílulas de ópera para crianças – minidocumentários para a sensibilização de pais e professores

Karen Acioly

Brasil

Cristina Rego Monteiro da Luz

Brasil

Abstract

This paper proposes a brief historical review of opera for children and a new way to make it better known to the aimed public though mini-documentaries in digital pills format.

Keywords: Children, Opera, Education, Imaginary, Digital Media.

Introdução

Falar de ópera no Brasil – e em outros países do mundo- ainda intimida. Costuma-se pensar que o gênero segue intacto desde seus primórdios, quando servia ao entretenimento das elites sociais ou intelectuais. Ignora-se, assim, sua popularização, crescente desde o século passado, antes com o apoio do cinema e da televisão, hoje também com a ajuda das mídias digitais.

Com o avanço das novas tecnologias, pouco a pouco, um novo gênero vem se firmando na linha do tempo: a ópera para crianças.

Envolta em mistérios, pouco a pouco este novo gênero vem conquistando novos públicos e nos suscita novas perguntas:

O que é, afinal, a Ópera para crianças? Por que produzir minidocumentários sobre o tema para a sensibilização de pais e professores? A resposta envolve muitos elementos, integrados na experiência de criação e produção de sentidos.

Adultos e crianças. Palavra e música. Som e silêncio. Movimento e pausa. Música, literatura, teatro, cinema, artes digitais e imaginário.

O presente estudo parte da correlação entre universos que, embora particulares, em conexão complexificam-se na medida em que se complementam. Uma proposta que exige mergulhar em um mundo de sentidos apurados, coragem para um reencontro possível das partes de modo dinâmico, amplo e relacional.

Esta comunicação reúne a experiência pessoal de Karen Acioly, autora de 19 livros e de 30 peças infantojuvenis, com cursos de pós-graduação em literatura infantil e em metodologia de ensino superior, um recente mestrado em estudos teatrais pela Universidade de Sorbonne Paris 3 dedicado especificamente à opera infantil, um Mestrado em Mídias Criativas e um Doutorado em Educação em curso. A Proposta das Pílulas de Ópera compõe o projeto do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC), da ECO – UFRJ (Escola de Comunicação - da Universidade Federal do Rio de Janeiro), orientado pela Profa Doutora Cristina Rego Monteiro da Luz.

A realização prática dos minidocumentários se propõe a investigar como se manifesta a produção de sentidos na criação da ópera para crianças e novos públicos a partir de experiências que fazem a ligação entre as linguagens cênicas-audiovisuais, nas plataformas digitais, observando o imaginário do público receptor. A pesquisa documental - em produção- sobre o tema (vídeo a ser exposto), toda comentada, propõe-se a servir como apoio pedagógico para pesquisadores, pais, filhos, professores, bem como a auxiliar a comunidade acadêmica em futuras investigações nesse campo.

Consideramos serem três os eixos principais do gênero operístico infantil a definirem a construção dramatúrgica essencial– música, texto e encenação. A relevância de cada um desses campos é reforçada pela evidência das investigações poéticas do audiovisual contemporâneo, dado o valor artístico, etnográfico, acadêmico, pedagógico e estético explicito em cada um. Emerge da pesquisa a necessidade de identificar critérios qualitativos e movimentos – especialmente no que tange às artes digitais – para a difusão da ópera para crianças, com a criação de novos repertórios, formatos e linguagens.

Ao correlacionarmos esses objetivos, observamos que eles se complementam e se ampliam, na medida em que envolvem outras questões, a exemplo: como é possível existir um único formato ou padrão para a ópera para crianças, uma vez que existe a exigência da adaptação da dramaturgia produzida para utilização das mídias digitais, e a expectativa diariamente comprovada de novas mídias ainda inexploradas, abertas para tornar a elaboração de novas produções ainda mais populares?

Partindo do pressuposto de que as noções de infância são móveis, dinâmicas e variam conforme cada contexto cultural e, visto que, nesse século, estamos diante de referências múltiplas – digitais e analógicas – encontramo-nos em um momento importante para a reflexão sobre a “educação do ser poético” 1, aí incluindo-se o papel da ópera, também no audiovisual e nas artes digitais – como elemento educativo fora dos padrões conservadores, o que defenderemos ao longo deste artigo.

Importantes perguntas apresentam-se para a identificação dos aspectos essenciais de uma ópera para crianças na contemporaneidade. No que difere das montagens dedicadas aos adultos? Como podemos estimular a experiência da ópera, também no audiovisual, para a sensibilização e formação de novos públicos? Como esse gênero se relaciona com o cinema e as artes digitais? De que maneira as mídias criativas podem contribuir para esta forma artística de tantas linguagens? Essas e outras perguntas conduzem a investigação a que nos propomos.

Desenvolvimento

Objetivando responder diversas perguntas relacionadas ao tema de nossa comunicação, logo a revisão bibliográfica sobre o tema nos levou à escassez de fontes publicadas no Brasil até o presente. Os poucos trabalhos dedicados ao assunto creditam o surgimento desse gênero à Europa, mais exatamente à Itália, Alemanha e França.

A ópera, desde suas origens no século XVII, destinou-se quase exclusivamente a adultos da alta nobreza. Veio servindo a uma mesma elite com o passar dos séculos, tornando-se praticamente restrita a esse público. Diante de tal realidade, no final do século XX, diretores europeus se deram conta da urgência em formar novos públicos, inclusive a partir da sensibilização das crianças. A questão, porém, esbarrava em outros obstáculos, como a ausência de repertórios e formatos variados, capazes de atender à realidade contemporânea. Note-se, por outro lado, que o público infantil exige, para além de boas performances, histórias que dialoguem com a comoção e os mistérios de seu universo, o que complexifica a tarefa de criação dessas peças.

Quanto às motivações para o desenvolvimento das óperas infantis, em artigo dedicado ao assunto, Tereza Schmitz (2012) aponta para um diagnóstico ao mesmo tempo mercadológico e pedagógico, pois, afinal, era preciso renovar o público apreciador desse gênero artístico teatral.

O ponto de partida para se aproximar desse público não se limita à dimensão técnica, à teórica e ao conhecimento operístico. Como um adulto, que há muito abandonou os dons e devaneios infantis, pode enveredar pelo caminho da criança para estabelecer um profícuo diálogo com ela? A familiaridade com o texto teatral tradicional, estruturado em início, meio e fim não basta. É necessário ir além. O espírito que anima o interesse dessa trajetória pode ser sintetizado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) que se indaga, na crônica “A educação do ser poético”, de 1974, sobre a perda de encantamento pela poesia ao longo da vida:

Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a poesia um estado de infância relacionado com a necessidade de jogo, a ausência de conhecimento livresco, a despreocupação com os mandamentos práticos de viver- estado de pureza na mente, em suma? Acho que é um pouco de tudo isso, se ela encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que compõem ou absorvem a poesia.

Compreendemos que seja preciso aliar o caráter humanístico à dimensão estética da formação artística, que deve ser estimulada desde cedo, a fim de evitar, conforme nos ensina o próprio Drummond, que engenheiros só descubram “a existência da poesia” aos 30 ou 40 anos. Neste mesmo texto o poeta praticamente lamenta não haver mais antecedência na descoberta da poesia ...encontrando-a em si mesmo, quando ela se manifestava em brinquedos, improvisações aparentemente absurdas, rabiscos, achados verbais, exclamações e gestos gratuitos...

Sintonizadas com esse pensamento, entendemos que a ópera serve como instrumento para essa “educação do ser poético”, ajudando-nos a superar as limitações apontadas por Edgar Morin em Rumo ao abismo, no qual apela para que haja uma chamada de consciência sobre o lugar do homem no mundo vivo e da fraternidade. É necessário refutar, diz Morin (2011), “as concepções maniqueístas [que] se apoderam das mentes glorificando a racionalidade” e favorecer as forças criativas que nós encontramos na infância, capazes de se expressar nas várias linguagens.

Whitman (2007, p. 501), por sua vez, revela essa mesma consciência quando afirma que dentro de um espaço interior existem sempre outros espaços interiores, assim como dentro de uma audição ou vozes, existem outras visões, audições e vozes, como podemos ver em Leaves of grass: “[...] eu creio ser possível que [...] a visão seja uma outra visão, a escuta uma outra escuta, a voz uma outra voz”.2 Nesse sentido, a ópera é arte multifacetada, tornando-se um campo rico a se explorar quando se pensa em um público em idade de formação, pois, afinal, apresenta-nos o lírico a partir de sentidos diversos, ajudando-nos a “transver o mundo”, um conceito pensado por Manoel de Barros (2007) que nos ajuda a problematizar os limites da percepção dos adultos.

Em suma, o exercício de aprender com o olhar das crianças e “transver o mundo” (BARROS, 2007 ) nos guiará nesse estudo, auxiliando-nos a investigar como se manifesta a produção de sentidos na criação da ópera para crianças e novos públicos, a partir do oceano de experiências que faz a ligação entre as linguagens cênicas, audiovisual e digital interligando-as ao afetivo, imaginário e ao público receptor.

Para embasar as reflexões que se seguem, optamos por um referencial teórico-metodológico multidisciplinar, conforme exposto a seguir.

Referencial Teórico-Metodológico

Tendo em vista que o complexo universo da ópera para crianças exige referencial multidisciplinar, utilizamos nessa pesquisa um arcabouço que se embasa nas reflexões legadas por autores de áreas diversas, como filósofos, teóricos da literatura e educadores. A pesquisa abarcou cinco eixos principais: o imaginário, o pedagógico, o afetivo, o literário e o criativo. Apoia-se assim, nos seguintes pressupostos: Antropologia da Complexidade, de Edgar Morin (2003 a 2010); Antropologia do Imaginário, de Gaston Bachelard (2008) e de Gilbert Durand (2012); que, por sua vez, nos aproxima da Filosofia da Educação de Paulo Freire (1996) e de Jorge Larrosa (2002, 2013). Além disso, integramos os estudos da cinemópera e do conceito de qualidade aplicado à programação de conteúdos audiovisuais dirigidos à infância e à adolescência, usando como referência a recente produção operística voltada a esse público. A escolha pela multidisciplinaridade se explica pela complexidade que o tema abarca e por ser a ópera contemporânea para crianças um gênero que contém muitas linguagens e nuances entrelaçados, como num caleidoscópio de sentidos singulares e plurais, que se transformam e dialogam ao se contactarem.

As referências teóricas passeiam pelos estudos de Peter Hunt (2010), do teórico da comunicação digital Henry Jenkins (2009), do educador Liv Vigotski (2021), de palestras ministradas pela produtora de conteúdos audiovisuais para crianças, Beth Carmona, diretora do Festival Comkids e pelo conceito de edutainement (educação+ entretenimento) criado em 1940 pelo produtor de televisão americano John Rice.

Além das referências teóricas acima mencionadas, reunimos no corpus deste artigo a experiência da ópera Bem no meio (2020/2022), de autoria de Karen Acioly, com músicas do francês Camille Rocailleux, gestada no período da pandemia. A experiência nos levou a documentar e a criar materiais inéditos de experimentações, tais como o acompanhamento de seu processo criativo e seus desdobramentos como mini doc de pílulas audiovisuais para as redes sociais.

Ademais, as reflexões legadas por Gaston Bachelard (2018), Edgar Morin (2003), Joseph Campbell (1999) e Gilbert Durand (2001) serviram de aporte para investigarmos a poética e os simbolismos desta ópera; responsável pelo piloto do projeto que motivou a escrita deste artigo.

Desse modo, reunimos material inédito, sob os aspectos criativo, iconográfico e teórico, capazes de criar um panorama visual e histórico da ópera para crianças neste recorte do século XXI.

Por fim, ressaltamos que a pesquisa se desdobrou em novas perguntas acerca do tema, concluindo-se, dada a riqueza do material encontrado, pela necessidade de aprofundamento, a ser possivelmente desenvolvido em investigações futuras.

Pequeno Recorte da História da Ópera

Embora a música seja invisível, podemos senti-la plenamente quando, através de instrumentos ou vozes, torna-se perceptível aos nossos ouvidos. Presente em diversos rituais, religiosos ou não, e nas mais diversas culturas humanas, a música nos conecta com o que está para além dos sentidos, interligando-nos a sentimentos dificilmente expressos por meio racional, mas que afetam em profundidade os ouvintes. Cultuada de geração em geração, em seus mais diversos estilos, transverte-se e acompanha o mundo em suas transformações, ao mesmo tempo que, como nenhuma outra arte, permanece na memória inconsciente. Somos, por exemplo, capazes de cantar uma canção de ninar que escutamos na mais tenra infância, por toda a nossa vida. Versátil, profundamente afetiva e adaptável, a música é o espelho das sociedades, seus mitos, devaneios, paixões e valores.

Devido às características mencionadas em na introdução deste artigo, a ópera sobreviveu ao longo dos séculos com distintas roupagens, relembrando-nos que os movimentos culturais são dinâmicos, complexos e não acontecem somente em um único lugar ou tempo. Assim, após diversos movimentos musicais que buscavam dar contornos diferentes à voz humana, em madrigais e saraus, esse gênero musical se consagrou na Florença seiscentista, mais precisamente no casamento real de Henri IV e Maria de Médicis. A cerimônia representava a união e potência de dois reinos, unindo, também, o gesto musical ao gesto teatral. Após numerosos dias de torneios, concertos e peças teatrais, a comemoração contou com a apresentação de um concerto, no Palácio Ritti, que traria uma novidade: ao invés de o texto ser declamado, como de costume, ele seria cantado do início ao fim. A obra, composta por Jacopo Peri e Giulio Caccini, com libreto de Ottavio Rinuccini chamava-se Eurídice3, tornando-se uma das primeiras óperas conhecidas da história, composta por três eixos principais: texto dramático, música e encenação.

Inicialmente restrita à língua italiana, logo a ópera chegou a outros países, transpondo, dessa maneira, diversas fronteiras culturais por meio das transformações que adotou ao longo dos séculos, bem como pela assimilação por outras culturas, como as francesa e alemã. Criou vínculos culturais e legados, chegando, mesmo que de forma não intencional, aos ouvidos das crianças de diversas gerações. É preciso, no entanto, entender como a ópera chegou ao público infantojuvenil e de que maneira começou a agradar os mais jovens.

Conforme o artigo “Cendrillon, uma ópera para crianças” (ACIOLY, 2022), a literatura infantojuvenil, notadamente os contos de fadas, presentes em algumas óperas, podem ter despertado o interesse desse público. Afinal, o valor simbólico contido nesse estilo de narrativa atravessou as gerações, arrebatando diversas faixas etárias, conforme demonstraram os recontos de Giambattista Basile, Charles Perrault, Lewis Carrol, Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen, La Fontaine, entre outros.

O mundo do maravilhoso despontava nas linguagens da ópera e da literatura. O teórico Paul Fry (2012), da Universidade de Yale, nos diz que a literatura deve ser entendida como ficção, invenção, ao invés de referência. Ou seja, “diferente de outras formas de expressão, que pressupõem dizer alguma verdade sobre o real estado das coisas do mundo, a expressão literária não tem esta obrigação. Invenção ao invés de referência”. Partindo desse pressuposto, a ópera, como a literatura, buscava, por assim dizer, a ficção. Nada mais adequado do que se apropriar, pois, dos contos de fadas.

Diversas histórias desse tipo de narrativa, aliás, foram adaptadas para a linguagem operística, agradando as crianças. No século XIX, por exemplo, encenações inspiradas em contos de fadas demonstraram o movimento de aproximação desse gênero literário e a ópera: em 1817, no Teatro do Valle, em Roma, estreava La Cenerentola, de Gioacchino Rossini (1792-1868), com libreto de Jacopo Ferreti. A ópera foi inspirada nos libretos de Cendrillon, de Charles Guillaume Étienne (musicado por Nicolas Isouard, em 1810) e o seu derivado Agatina, o la virtú Premiata, de Francesco Fiorini (musicado por Stefani Pavesi, em 1814), também inspirado no conto “Cendrillon”, de Charles Perrault (Acioly, 2022). No entanto, a ópera italiana La Cenerentola recusava o universo do maravilhoso e optava por adaptar a história sem os elementos mágicos dos contos de fadas. Escrita para adultos, a produção fez um estrondoso sucesso.

No final daquele século, já em 1899, estreia outra adaptação de Cendrillon na Opéra Comique de Paris. Com música de Jules Massenet (1842-1912) e libreto de Henri Cain, Cendrillon é classificada pelos autores como um «Conto de fadas, dividido em quatro atos» (ACIOLY, 2021C, p. 116-117).

De todo modo, essas produções revelam que os contos de fadas já passaram pela escuta de diversas pessoas e gerações, realizando, como nos diz Gaston Bachelard (1984, p. 300) ressonâncias em nosso imaginário coletivo, abrindo, assim, novos campos sensoriais, ecoando imagens, sons e sentidos.

Das muitas óperas inspiradas em contos de fadas em períodos posteriores à criação de Cendrillon, podemos ressaltar Rusalka, de Antonín Dvorák (1901), com libreto de Jaroslav Kvapil, conto tcheco que apresenta similaridades com os contos “Ondine”, de Friederich de La Motte-Fouqué; A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen; O Gato de Botas, de Cesar Cui (1915), com libreto de Marina Stanislavovna.

Importante ressaltar que, em 1975, o cineasta Ingmar Bergman lança no cinema sua versão de A Flauta Mágica (1791), de Mozart, com libreto de Emanuel Schikaneder, inspirada no universo da maçonaria e no conto “Lulu, oder die zauberflôte”, escrito por Christoph Martin Wieland (1786). A versão do cineasta incorpora todos as simbologias maçônicas e, como personagens do exterior da cena, filma crianças assistindo à ópera. Nesta história, o bem aparece como mal e o mal aparece como bem, o que se contrapõe ao depoimento do Professor Alessandro Di Profio, visto que a ópera de Bergman parece ter atingido também -mesmo que involuntariamente - o público infantil, auxiliando, desse modo, na democratização da ópera no século XX.

Outro marco importante, que une ópera à literatura infantojuvenil e ao cinema, foi a criação e encenação da ópera O Pequeno Príncipe, de Rachel Portman, com libreto de Nicholas Wright e encenação de Francesca Zambello, inspirada no best-seller mundial, de Saint Exupéry (1944). A ópera, realizada em 2003 (Houston Opera House), obteve grande sucesso de público e crítica em todas as suas apresentações,4 e circulou por diversos países, começando a sua temporada nos Estados Unidos,5 repercutindo sua estética em diversas outras montagens no Canadá e Inglaterra. No entanto, longe de ser uma versão teatral filmada, a ópera ganhou sua versão cinematográfica, em grande estilo, concebida e filmada por Zambello. Pela qualidade estética, excelência e apuro em todas as linguagens contidas na concepção cinematográfica e no alcance de público - que continua até os dias de hoje, pelo canal do Youtube - O Pequeno Príncipe é um marco da ópera para crianças e, também, na cinemópera, gênero artístico que combina elementos da ópera e do cinema, assim batizado no início do século XX .

A ópera para crianças e seu recente percurso

Segundo a já citada pesquisadora Thereza Schmitz (2012), é necessário rejuvenescer a ópera. Não somente por meio da criação de novos repertórios, mas, também, pela sensibilização e formação de novos públicos. Entre eles, as crianças. Para que haja a sensibilização de novos públicos, é válido apresentar a ópera aos sujeitos preferencialmente em seus primeiros anos de vida, para tal necessitamos da presença dos adultos. Parentes e educadores. Porém, é necessário ir além: conhecer o universo infantil em profundidade para promover de fato esse encontro. Uma vez que as noções de infância são móveis, dinâmicas e dependem de cada contexto cultural, como veremos neste estudo, a criação de óperas para crianças está intimamente ligada à produção de sentidos e do conhecimento contemporâneo. Isso significa envolver dinâmicas complexas, interessantes para a pesquisa científica voltada às novas estéticas e experiências. Uma vez notada a escassez de produção teórica relacionada a esse tema, julgamos essencial o desenvolvimento de teorias que possam servir futuramente como material de apoio a outros pesquisadores e público leitor, valorizando, desse modo, o acesso à cultura operística - presencial e audiovisual - durante a infância e contribuindo para o desenvolvimento de novas investigações sobre o gênero ao redor do mundo.

Desse modo, para além da necessidade de investigar as origens históricas desse gênero, percebemos que o tema aponta para questões inerentes às criações destinadas ao universo infantil, como, por exemplo, as exigências específicas desse público, que não se restringem à qualidade das performances. Pede-se o despertar da comoção, uso de linguagem poética, as subjetividades da representação simbólica e a exploração da realidade da criança, o que complexifica a tarefa de criação e estudo dessas obras. O ponto de partida para se aproximar desse público não se prende, portanto, tão somente às dimensões técnico-teóricas e ao conhecimento operístico. Menos ainda se basta na familiaridade com o texto teatral tradicional, estruturado em início, meio e fim.

Quando dizemos que o exercício de aprender com o olhar das crianças e tentar “transver o mundo” nos guiou ao longo dessa pesquisa, é porque nos valemos de experiências em meio a esse público para compreender a ligação entre as linguagens cênicas e audiovisuais, o afetivo e o próprio público receptor. Dado esse contexto, tentamos lançar uma lupa sob os três eixos principais do gênero operístico infantil – música, texto e encenação – estabelecendo, assim, sua relevância como objeto de investigações poéticas da cena contemporânea, dado seu valor artístico, etnográfico, acadêmico, pedagógico e estético.

O Mistério do Imaginário

Para entender o por que é importante realizar novos formatos da ópera para crianças, buscaremos investigar primeiro se existe alguma definição sobre o que é a ópera para crianças. Em Cabeça bem-feita (2003, p. 97), Edgar Morin afirma que devemos integrar os conjuntos complexos, isto é, criar interações e retroações entre as partes e o todo, compreender a complexidade dos contextos sem separá-los e sem temer as dúvidas. A partir dessa perspectiva, buscaremos responder à pergunta: “O que é, afinal, a ópera para crianças? Afirmamos, desde logo, que a questão é controversa, visto que há pouca literatura acadêmica voltada para definições mais específicas sobre esse gênero operístico, sobretudo que nos ajude a compreender como ele se difere da ópera para adultos. Trata-se, pois, de assunto que merece ser investigado, aprofundado e atualizado.

A fim de suprir essa lacuna, entrevistamos compositores e pesquisadores da área, além de consultar teses e artigos já produzidos sobre o tema, capazes de nos levar a definições mais amplas sobre o que venha a ser esse gênero em suas subjetividades e objetividades. Reunimos, nesse sentido, reflexões que visam ampliar o olhar sobre nosso objeto de pesquisa, na medida em que apresentam percepções distintas sobre ele. Julgamos válido, contudo, iniciar nossas reflexões a partir da produção bibliográfica já produzida sobre o assunto.

Nesse sentido, na tese Ópera brasileira nos séculos XX e XXI de 1950 a 2008, da cantora lírica brasileira Alessandra Hartkopf, encontramos um capítulo dedicado à ópera dirigida ao público jovem. Segundo a autora: “Classificamos uma ópera como infantil ou infantojuvenil quando o compositor assim a definiu e/ou quando artigos jornalísticos a reconheceram como infantil e/ou quando o grande comparecimento do público infantil justifica a classificação” (HARTKOPF, 2010, p. 163). Trata-se, portanto, de definição que não leva em conta a temática, o libreto, a proposta da encenação, a forma, a imagem ou a composição em si. Sem se aprofundar no tema, a pesquisadora não revela de que maneira(s) ocorria(m) essa(s) aproximação(ões) entre o público infantil e as experimentações das linguagens cênicas possivelmente presentes em uma ópera para crianças.

Importa, ainda, perguntar de que criança a pesquisadora fala, visto que ignora a questão da faixa etária, um elemento que julgamos relevante para o desenvolvimento dessa pesquisa. Afinal, as crianças não são objetos e, por isso, não são “classificáveis” no que tange a seu desenvolvimento cognitivo, algo demonstrável pela flutuação que encontramos nessas classificações a depender dos países e suas culturas. Apesar dessas peculiaridades, há certos elementos mais ou menos aceitos entre diversos povos: a divisão da infância em três principais etapas, por exemplo. De todo modo, embora do nascimento à fase adulta existam marcadores “comuns” de desenvolvimento, a vivência de cada uma dessas fases ou momentos depende de fatores socioculturais, o que torna o desenvolvimento e as aprendizagens infantis notadamente subjetivados.

Sobre esse aspecto, o Manual do KIT de educação da UNICEF (2003), escrito por Mireci Busano, endossa que as classificações etárias da infância dependem da cultura de cada país. A fim de estabelecer um norte para essa diversidade, a UNICEF sugere uma divisão de ordem mais genérica: 1) Lactentes, crianças pequenas e crianças em idade pré-escolar, aproximadamente do nascimento aos sete/oito anos; 2) Adolescentes jovens entre dez e catorze anos; 3) Adolescentes mais velhos entre 15 e 19 anos. Tomando por base essa análise generalista, devemos nos perguntar: a ópera para crianças se destina a qual fase da infância e/ou juventude? A esse respeito, concluímos pela ausência de consenso, pois em cada cultura há diferentes referenciais e classificações indicativas.

A fim de tentar suprir, pelo menos em partes, essa carência de fontes investigativas, realizamos uma série de entrevistas entre os meses de fevereiro e março de 2020. Buscamos acessar pesquisadores, encenadores, cantores e compositores capazes de formular, a partir de suas experiências e narrativas próprias, o que seria uma ópera para crianças e em que ela diferiria da ópera para adultos. Cumpre assinalar que a pesquisa também integrou os dados para “a observação do panorama recente dos repertórios de Paris e Rio de Janeiro” (2019 / 2020).

Buscando definir o que vem a ser a ópera para crianças a partir das entrevistas realizadas, chamamos a atenção para proposta de Camille Rocailleux, coautor das óperas Fedegunda e Bem no meio. Para o compositor, “a ópera para adultos é bem mais longa que a ópera para crianças. E a temática é mais grave, mais dramática e densa para os adultos. Há sempre a presença da morte”. Essa parece ser também a opinião do cantor Flannan Obbé, que atuou na ópera infantil L’amour vainqueur, apresentada em março de 2020: o artista aponta a alegria e a duração de um espetáculo como diferenciais relevantes entre os dois gêneros. Já o diretor Olivier Py diverge de Rocailleux e de Obbé no que diz respeito à temática dessas peças, que julga não estarem necessariamente distantes do interesse dos adultos:

Expor a violência do mundo e mostrar por meio da literatura como nós podemos construir um destino…uma fábula iniciática que coloca em cena os erros de uma menina jovem em busca de sua alma gêmea, num reino devastado pela guerra. Em O amor vitorioso (L’Amour vainqueur) nós falamos de feminismo, de ecologia e de dominação. Os temas sérios, tratados pelas canções, com doçura e poesia, para confrontar o mal sem se desesperar (Entrevista em vídeo realizada no centro cultural 104, Paris, em fevereiro de 2020).

O depoimento de Olivier Py revela que conceitos pertinentes ao universo do adulto podem aparecer em óperas destinadas a crianças a partir de 9 anos, daí a necessidade de informar a faixa etária a que se destina cada produção. Pois, afinal, o drama, seja ele qual for, deverá ter sua temática exposta com clareza nos meios de comunicação, de modo a possibilitar a escolha de crianças, pais e professores. Esta não deve se basear somente na compreensão ou incompreensão possível da criança sobre os aspectos abordados pela narrativa, mas se desperta ou não interesse o seu interesse.

Dando sequência à nossa investigação, citamos as conclusões empreendidas pelo musicólogo Alessandro Di Profio sobre o gênero operístico infantil:

Acho que os códigos da ópera devem ser muito facilmente reconhecíveis. Você precisa de um cara mau que seja realmente mau e um cara bom que seja realmente bom. As três dimensões da ópera - texto, música e encenação - devem interagir para que a mensagem chegue diretamente. Como musicólogo, continuo convencido de que a música tem um papel crucial a desempenhar: ela continua sendo o “veículo principal”, o que, naturalmente, não significa que os outros componentes também não sejam importantes. (Entrevista realizada por e-mail, fevereiro, 2020)

Di Profio (2020) alerta para a questão dos códigos pertinentes ao gênero, ressaltando a importância da integração entre as “partes” que o compõem – e que ele chama de “dimensões da ópera” –, sendo a música sua condutora principal. Dessa constatação, perguntamo-nos se existiriam códigos musicais operísticos específicos para as produções infantojuvenis. A esse respeito, alguns compositores consideram não haver grandes distinções, a exemplo de Tim Rescala, músico de reconhecida atuação na área da composição para crianças em nosso país:

Tecnicamente não há diferença. Depende muito da temática. Quando eu escrevi A Orquestra dos Sonhos, comentava com colegas que iria fazer uma ópera para crianças, que teria música dodecafônica, tonal, trechos minimalistas. Todo mundo achou que eu estava doido porque música para criança tinha que ser simples. Sou totalmente contra isso. Acho que é o contrário. Talvez para o adulto tenha que ser. A criança, ao contrário do adulto, é um livro aberto. Você oferece a música e ela vai absorvendo aquilo. A criança tem mais condições, está mais aberta e tem mais capacidade de apreender estruturas complexas que os adultos. Os adultos, ao longo da vida, vão ficando sem paciência e não têm mais essa abertura. A criança reage a uma proposta que você apresenta: ela vai gostar ou não. A reação é imediata. Em A Orquestra dos Sonhos as crianças não só interagiam como saíam do teatro cantando e brincando. Não é o conteúdo musical que determina se o espetáculo é infantil ou adulto: é a temática e a abordagem. (APUD HARTKOPF, 2010, Entrevista para a Fundação Clóvis Salgado, 2008).

A reflexão de Rescala acena para importantes aspectos das produções infantojuvenis: esse público exige que se trabalhe a partir da subjetividade e da imprevisibilidade. De todo modo, se por um lado as crianças têm, de maneira geral, maior receptividade musical, determinadas faixas etárias, por sua vez, exigem certas especificidades referentes à música e à encenação, a exemplo das crianças de 0 a 3 anos. É sobre esse aspecto que nos fala a atriz e cantora Clarice Cardell, uma as fundadoras da companhia hispano-brasileira destinada à primeira infância (que abrange crianças entre 0 a 6 anos, conforme referência etária adotada no Brasil e na Espanha), ao alertar para as singularidades referentes à escuta musical dos bebês:

No meu campo de especialidades, que é o dos bebês, não existem regras…. mas tem uma especificidade que observamos para o canto lírico: a sensibilidade das crianças, principalmente de 0 a 18 meses, em relação aos sons muito agudos: as cantoras que têm vozes muito agudas - soprano - podem não ter um encontro muito efetivo com os bebês, principalmente se cantarem com a voz em todo o seu alcance, tanto na extensão do agudo, quanto em sua projeção no espaço cênico. (Entrevista realizada por e-mail em fevereiro de 2020)

O compositor e doutor em Composição Musical pela Universidade de Manchester, Marcos Lucas (entrevista realizada por e-mail em março de 2020), amplia a questão:

Acho que deveria se pensar muito na natureza deste texto (libreto) em termos da sua adequação ao universo infantil, em suas diferentes faixas etárias. Quanto à linguagem musical da ópera infantil, vejo que há dois posicionamentos. Há os compositores que pensam que devem adequar sua linguagem ao universo infantil e outros que defendem que não devem fazer concessões. Pessoalmente acho que as crianças são, às vezes, bem mais abertas do que os adultos para diferentes linguagens, mas o compositor deve também buscar referências com a música que as crianças ouvem... tudo isso é muito complexo.

Em processo reflexivo sobre esses depoimentos, retomamos a filosofia de Edgar Morin (2003, p.93), para chegarmos a uma definição mais ampla e profunda sobre nosso objeto de pesquisa, já que o autor se vale do princípio sistêmico organizacional, por meio do qual liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo e o conhecimento do todo considerando as partes.

Assim como os depoimentos aqui apresentados são distintos e inquietantes, também Morin nos diz que devemos construir um pensamento alimentado pela incerteza e rejeitar o pensamento mutilante e redutor, ou seja, aquele que exclui outras formas de pensar; pelo contrário, é preciso estimular a investigação inquieta (MORIN, 2003, p. 13-14). Desse modo, se as reflexões de Tim Rescala e Marcos Lucas se referem à recepção dessas produções junto a seu público, também nos lembram que, para aqueles que trabalham com o universo infantojuvenil audiovisual, importa considerar sua complexidade, a exemplo dos mistérios da infância, diferenças entre as faixas etárias, a capacidade de escuta diferenciada das crianças, dentre outros desafios. Desse modo, embora não tenhamos uma definição fechada sobre esse gênero operístico, trouxemos alguns direcionamentos que nos ajudam a diferenciá-lo de outras produções, a partir dos depoimentos colhidos: a natureza do texto; um tempo de duração inferior ao tempo da ópera destinada aos adultos; adequação ao universo infantil, em suas diferentes faixas etárias, considerar a proximidade e/ou distanciamento dos cantores; considerar timbres e tons das vozes do elenco; estabelecer abertura para estruturas simples e complexas; valorizar de forma diferenciada o papel crucial que a música tem a desempenhar, assim como a estética da encenação; não estabelecer restrições às estruturas musicais.

Esses pontos iniciais nos acenam para características mutantes das óperas infantis, percebidas pelos autores dos depoimentos. Veremos, a seguir, como os fatores culturais podem impulsionar a ópera infantil, em diferentes culturas.

Falaremos, então, do que significam estes aspectos se os relacionarmos com os aspectos sobre qualidade do que um produto audiovisual deve conter para crianças. Lembrando que o conceito de qualidade é subjetivo, flexível, variável - e imprescindível. Transforma-se no tempo e no espaço. Contém implícitos valores estéticos, culturais, sociais e com níveis diferenciados de relevância. A qualidade está associada à: diversidade, pluralismo cultural, inclusão, democratização e educação.6 Ou seja, a ópera para crianças presencial, virtual ou audiovisual, deve ter como bússola tais recomendações sobre qualidade.

A ópera para crianças e as mídias digitais

Manuel Castells em seu livro A Sociedade em rede (2016), nos diz que “devido à diversidade da mídia e à possibilidade de visar o público alvo, podemos afirmar que, no novo sistema de mídia, a mensagem é o meio. Ou seja, as características da mensagem moldarão as características do meio” (CASTELLS, 2016 p. 424). Nesse sentido, pudemos observar, pelo número de visualizaçōes do canal do Ópera Comique de Paris, que houve planejamento estratégico, por parte de seus respectivos gestores, para que a ópera para crianças chegasse diretamente ao seu público. A pesquisa nos revelou que o ambiente virtual permitiu que os acessos à ópera para crianças pudessem ser acionados gratuitamente de qualquer parte do mundo, o que nos permite observar que o gênero está sendo cada vez mais difundido e democratizado.

Diferentemente da França, no Brasil -até o momento- ainda não há um teatro como o Ópera Comique de Paris, com estratégias e programas de continuidade para a sensibilização e formação de novos públicos. Porém, existem iniciativas de artistas independentes, grupos e programações descontinuadas que são difundidas separadamente, de forma desassociada e sem políticas culturais estruturantes a pequeno, médio e longo termos. Assim, no período de 2019-2020, foco desta pesquisa, não encontramos óperas brasileiras, criadas no Rio de Janeiro, destinadas às crianças – de forma organizada, em canais de fácil localização – na plataforma Youtube, embora tenhamos encontrado algumas poucas óperas produzidas em períodos anteriores, o que vem a corroborar com a ideia de descontinuidade nos programas de difusão e democratização do gênero no Rio de Janeiro e a ausência de estratégias que considerem o processo de sensibilização de novos públicos.

Ainda assim, a título de verificação destas informações, julgamos válido listar algumas das óperas disponibilizadas, ainda que de forma dispersa, na plataforma Youtube, mesmo que em períodos anteriores. A ópera do Menino Maluquinho, com música do Maestro Ernani Aguiar e libreto de Maria Gessy, realizada na reinauguração do Theatro Municipal de Juiz de Fora (2003), obteve 3.451 visualizações. Em 2015, a mesma ópera foi produzida no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desta vez com outra encenação e ficha técnica. Em 2018, uma nova versão do mesmo título foi criada por Calimério Soares, com libreto de Nilson Nunes e foi encenada no projeto “A escola vai à ópera”7 e obteve 2.367 visualizações. Chamamos a atenção destas três encenações brasileiras, realizadas em tempos diferentes, apenas para identificar que num período de 15 anos esta ópera, adaptada de um clássico da literatura infantil brasileira foi apresentada presencialmente e no ciberespaço por 3 vezes. Tal fato demonstra a que o interesse em encena-la permaneceu, o que impulsionaria uma retroalimentação possível entre a ópera para crianças e a literatura destinada a esse público, expandindo seu alcance ainda mais para os novos entusiastas na internet. Outro fator importante: A ópera do Menino Maluquinho conta com a presença de crianças em personagens de relevância, o que traz imediata adesão do público infantil.

Dando continuidade a nosso levantamento, constatamos que a ópera João e Maria, de Engelbert Humperdinck, realizada pela Orquestra Sinfônica do Paraná (2018), obteve 2.522 visualizações. A mesma ópera foi também realizada pela UFRJ com professores e alunos obteve 5.338 visualizações, no ano 2016. As bodas de Papagueno (2013), recriação autoral do Grupo Ópera Arte8 obteve 7.868 visualizações, O cavalinho azul (2001), ópera do compositor carioca Tim Rescala9, 2.040 visualizações.

Apesar desse interesse crescente do público do ciberespaço, sabemos que para sensibilizar novas plateias é preciso criar um lugar permanente na política cultural de reconhecimento e importância desse gênero. Para tal, urge fomentar novas criações, além de elaborar e difundir estratégias e programas de continuidade que possam estimular, criar o hábito nos novos públicos. Criar o hábito pressupõe conhecer, vivenciar alguma experiência e querer repeti-la.

Enfim, se “a convergência cultural é a mudança na lógica pela qual a cultura opera, com ênfase no fluxo de conteúdos pelos canais de mídia” (JENKINS, p. 377, 2009), podemos dizer que a ópera para crianças se posicionou estrategicamente, nos canais de mídia. Independente da estrutura governamental de cada país, podemos acessar conteúdos deste gênero como jamais pudemos acessar anteriormente. Trata-se de uma grande possibilidade de democratização dessas produções, revelando-nos a necessidade de ocupar esses espaços com produções e conteúdos de excelência.

MINIDOC em pílulas digitais

Ao ser iniciada, em 2021, nova aventura criativa com a ópera franco-brasileira Bem no meio, de Karen Acioly e Camille Rocailleux - para novos públicos- nem de longe poder-se-ia imaginar o trajeto a ser percorrido. Partiu-se da ideia de experimentar novos formatos da ópera para crianças, misturando as linguagens da ópera, do cinema e das artes visuais e digitais, mas essa produção seria realizada por etapas tateando um território híbrido e desconhecido.

Foi inicialmente programada a apresentação da ópera em modo presencial no teatro, com a filmagem de todo o processo criativo para registro interno e para que, posteriormente, fossem usados trechos da ópera em looping, em uma instalação cenográfica. Funcionaria como um cinema multitelas: a criança escolheria para onde olhar e construiria, ela mesma, a sua própria história.

Marie Pierre Lassus (2010), em seu livro Bachelard, le musicien, diz que as imagens começam no som. Então, como uma bússola, a música guiou a produção imagética para estruturar a ópera. Porém, havia um desafio: o compositor francês Camille Rocailleux estava na França e não conhecia a língua portuguesa. Foi feito primeiramente um processo por zoom, em que as leituras dos textos eram filmadas. Assim, Rocailleux poderia imaginar o som das palavras no ritmo da leitura. A segunda etapa do processo criativo consistia em filmar os ensaios e o deslocamento das cantoras no espaço poético da instalação cenográfica, inspirado na filosofia de Gaston Bachelard (2008). Nessa segunda etapa, ficou claro que as cenas deveriam ser filmadas de diferentes angulos: a partir de cada um dos três elementos principais da cenografia (ninho, concha e ponto) e em plano geral. Assim seria possível ter os cortes no tempo musical, com menor risco de erros de continuidade. As cenas do coro infantil e do maestro apareceriam nas telas redondas, mas seriam filmadas à parte para serem apenas projetadas na fase da instalação cenográfica, visto que esses personagens não estariam em cena na instância do espetáculo presencial.

Neste momento da pré-produção havia em torno de 50 pessoas na equipe - diretor de fotografia, continuista, figurinista, cenógrafo, técnicos de som, luz, projeção, elenco, coreógrafo, fotógrafo, entre outros. Foi finalizada a etapa de encenação da ópera e Camille chegou ao Brasil. Em dois dias teve início a terceira etapa: a estreia presencial da ópera.

Foi realizado um único ensaio aberto para convidados. Mas a pandemia voltou em novembro e o teatro fechou sem previsão de data para voltar. Pelo compromisso de retorno institucional, em função dos termos da lei estadual brasileira de cultura (ICMS), era imperativo que – independente do que estava acontecendo - fosse cumprida uma temporada online, já que a temporada presencial não pôde acontecer. Mas como realizar uma temporada online se a cenografia foi filmada separada das cenas, por trechos? Só havia sido filmado as cenas que entrariam na versão contemplativa da instalação e o processo criativo; separadamente.

Sem poder trabalhar de acordo com os moldes convencionais, a intuição guiou o processo. Foi escolhido o caminho de filmar as projeções diretamente na instalação cênica. Ou seja; foram filmadas as imagens projetadas na instalação cênica e em suas respectivas multitelas redondas. Deu certo. O resultado foi surpreendente: duas temporadas online no Canal do Youtube do FIL Festival e no Cultura em Casa, plataforma virtual patrocinada pelo Governo de São Paulo. Foi um grande sucesso com mais de 5.000 visualizaçōes em apenas dois meses de exibição online.

Paralela à essa aventura arriscada, em outubro de 2022, um ano depois, foi realizada a temporada com público presencial – sem a presença dos cantores - da chamada sessão contemplativa, em que o público assistia a ópera projetada na instalação cenográfica com suas respectivas multitelas, no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), no quadro da 19 Edição do FIL Festival.

A experiência da sessão contemplativa confirmou a proposta inicial de popularizar a ópera para crianças; na saída do espetáculo a grande maioria das crianças – e do público de adultos- dizia jamais ter escutado uma ópera antes, e, muito menos uma ópera em cinema multitelas, para crianças.

Ficou clara a necessidade de associar o experimento à Educação, desde a mais tenra infância. Mesmo porque muitos professores do ensino fundamental e da educação infantil jamais tinham vivenciado, ou mesmo escutado, a uma ópera para crianças. Para tal fazia-se necessária uma introdução, um convite aprazível para que adultos e crianças se interessassem pelo universo da ópera, em novo formato próximo, curto e curioso.

Surgiu então a ideia de um minidocumentário que contasse o que se passa tanto no backstage quanto na cena de uma ópera, voltada às crianças e que respondesse a algumas perguntas: por que fazemos ópera para crianças? Como ela é feita? Quem inventa o que? Como? Onde?

Esse desejo trouxe o conceito de edutainment 10 (educação + entretenimento), conceito popularizado na década de 70 pelo escritor e produtor britânico John Rice, criador de sucessos como o programa Vila Sésamo. Rice viu o potencial do entretenimento como uma ferramenta para tornar a educação mais atraente e acessível para todos.

Foram então produzidos desdobramentos filmados da ópera Bem no meio, incluídos aí todo o processo de criação, backstage e princípios filosóficos que permearam o arco dramático, estético, audiovisual e musical da história.

Assim foi elaborado esse novo formato das pílulas digitais, em séries de 5 episódios, de curta duração – de 10 minutos cada- em que os pontos mais relevantes da ópera Bem no meio episódio 1. O que é a ópera para crianças? Episódio 2. A música, o corpo e o movimento dos cantores, Episódio 3. A dramaturgia do libreto, Episódio 4 – A dramaturgia do espaço, Episódio 5 - A encenação, é apresentado a seu público.

A curta duração é pensada para que professores que tem apenas 45 minutos de aula possam usufruir deste curto tempo para a introdução deste tema, criando assim, interesse e curiosidade para o desenvolvimento dos temas seguintes em aulas posteriores. O tempo também é palatável para pais que desconhecem o gênero e que podem, a partir destas pílulas digitais, criar vínculo e se aproximar, de modo mais solto, da ópera para crianças e, quem sabe até, levar seus filhos para novas experiências.

Nos preocupamos com a estrutura narrativa, com o desenvolvimento dos personagens, com o arco dramático da história e cuidamos para que a temática fosse tratada de forma adequada. Somadas à essa preocupação, nos esmeramos na movimentação de câmera, direção de atores, estilo visual e gráfico, estética, edição, de forma que a trilha sonora, ritmo, cenário, figurinos, pudessem combinar com a linguagem, formato e ideia.

Ao final, criamos a primeira temporada da série de minidocs que batizamos de: A ópera para crianças: um universo. Pretendemos ainda realizar mais três temporadas, no mesmo formato, das óperas Larilá, Fedegunda e Água.

Conclusão

A operacionalidade dos minidocumentários mostrou ser possível a criação de produtos potenciais na identificação do gênero Ópera Infantil - ou Ópera para novos públicos- apesar da ruptura com os padrões de montagem dos espetáculos tradicionais e suas respectivas filmagens.

A integração de novas tecnologias promove aderência de expertises - até então inéditas para essa nova categoria- mas, os elementos essenciais para a elaboração da estrutura inicial do projeto são os mesmos: música, texto e encenação. Cada um dos elementos abre-se a partir do referencial ficcional do libreto em múltiplas possibilidades de escolha de linguagens, entre elas o audiovisual e as mídias digitais.

O acesso contínuo das novas gerações às telas digitais modifica de maneira radical a perspectiva das avaliações analógicas vivenciadas até agora. O contínuo contato infantil com narrativas, musicais e personagens arquetípicos em desenhos animados, games e fandoms, conceituados por Henry Jenkins, são conexões pré-existentes para a experimentação de um gênero que já se firmou ao longo da história e mostra-se não só resiliente como fertilizado para novos formatos. Tanto a música, quanto o texto e a encenação dramática estão prontos para serem absorvidos por um salto quântico na direção da complexificação em processo contínuo já identificada por Morin.

As pílulas digitais de ópera para os novos públicos pretendem absorver e deixar que fluam as experimentações de novas -e misturadas- linguagens. Partindo da participação presencial de cantores, da expressão lírica do canto e do libreto que estrutura a ópera, passando por toda e qualquer inserção imagética que contextuaqlize a narrativa, ousando na direção da comunhão poética e sensorial de um sentimento feito tema, as Opera Pills pretendem pousar do salto que traz o passado para caminhar junto ao futuro que se faz presente. São pílulas por serem pequenas, não por serem asceticamente recortadas. Não por serem aglutinações de arquivo. São sensibilidades narrativas em experimentação. É a conexão mergulhando no humano. Porque não há Inteligência Artificial algorítmica que substitua a sensibilidade humana para atuar frentre a metas passíveis de interpretação, sutileza, experimentação e aproveitamento de novas oportunidades no insondável universo da comunicação humana.

Notas finais

1Publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro – RJ, 20/07/1974. http://www.jornalescolar.org.br/wp-content/uploads/2019/04/texto-poesia-a-educacao-do-ser-poetico-13062012.pdf

2No original: “I do not doubt interiors have their interiors, and exteriors have their exteriors, and that the eyesight has another eyesight, and the hearing another hearing, and. The voice, another voice” (p.50, tradução nossa).

3Antes de “Eurídice”, segundo o Kobbe, o dicionário de ópera, existiu a ópera “Dafne”, de Peri, em 1597, cujos manuscritos foram perdidos.

4“Se você e seus filhos perderam o encantador filme de Francesca Zambello da ópera de Rachel Portman O Pequeno Príncipe - estreado na BBC 2 ontem à noite - duvido que tenham mais de 54 semanas para esperar por uma transmissão repetida. Como Amahl e os visitantes noturnos, de Menotti, A ópera de Portman, que O Pequeno Príncipe relembra em medida com Cerimônia dos Cânticos de Britten, tem a marca de um clássico instantâneo do Natal. de Joseph McManners, de 11 anos, Maired Carlin, de 15 anos, um coro de crianças de 38 anos, e luminares da ópera como Willard White, O Pequeno Príncipe é uma adição significativa ao pequeno, mas crucial cânone das óperas infantis.” Ver: PICCARD, Anna. The Independent, 28 de novembro de 2004.

5“[...] Por mais encantadores que sejam os cenários e figurinos de Maria Bjornson e tão bem manuseados quanto a direção de Francesca Zambello, eles dependem da rima inventiva de Nicholas Wright para lhes dar vida. A iluminação (de Rick Fisher) se torna tão importante quanto a música de Rachel Portman. difícil dizer de quem é essa ópera; talvez seja coletiva: partes modestas superadas por sua soma.”

6Pesquisa Midiativa realizada em 2004 – adaptação do conceito.

7Projeto “A escola vai a ópera” foi criado pela regente Maria José Chevitarese, também entrevistada em nossa pesquisa.

8O grupo Ópera Arte foi criado pela soprano Larissa Lima, o barítono Johnny França e a pianista sul coreana Sin Ae Lee.

9O compositor, aliás, é um dos responsáveis pela continuidade da ópera para crianças no Brasil, dada a sua profícua criação.

10O conceito foi criado na década de 1940 pelo produtor de televisão John Rice e popularizado na década de 1970 pelo escritor e produtor britânico Peter Dixon.

Bibliografia

Livros

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Artigos em revistas

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Livro eletrónico e textos em linha

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Homepages e links:

OPÉRA COMIQUE, Opéra Comique, Paris: 2019-2020. Consulta- do em: 20 mar de 2020. Acesso: https://www.opera-comique.com/en/pastseasons.

The Little Prince (Ópera de Rachel Portman) https://youtu.be/tdpgIeu7DXI

The magic Flute (De Mozart, por Ingmar Bergman) https://youtu.be/ufQxByt7dNM

Introduction to theory of literature (Paul Fry) https://youtu.be/4YY4CTSQ8nY

Conferência, Comunicação apresentada em Congresso

Harttkopf, Alessandra. 2008. “A ópera infantil brasileira contemporânea. Comunicação apresentada no XIX Congresso da ANPPOM,Universidade Federal do Paraná, Curitiba: UFPR, 2009, p-116-135. Citação entrevista Clóvis Salgado, 2008.

Depoimentos:

Alessandro Di Profio – por email 02 de dezembro de 2019 Camille Rocailleux - por email em 01 de dezembro de 2019

Marcos Lucas – por email em 05 de março de 2020

Wladimir Pinheiro – por email em 02 de dezembro de 2019

Zezé Chevitarese – por email em 02 de dezembro de 2019