Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Motorized Passenger’s Cinematography: Sudden Experiences in Literature

A Cinematografia do Passageiro a Motor: Experiências do Súbito na Literatura

Francisco Silveira

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal

[...] os comboios são simples pensamentos,
como Antuérpia, uma inspiração difusa [...]
Herberto Helder, “Os Comboios que Vão para Antuérpia” (1963)

Abstract

Starting from a cinematographic stock image, a reflexive high accentuated by music in which characters travel as passengers by the window in motorized transports, I begin by presenting paradigms – e.g., a sequence from the film Sans Soleil (Chris Marker, 1983) or some shots from Lost In Translation (Sofia Coppola, 2003). I then move, analeptically, to a literary terrain in which “travel literature” appears to be ascendant of this “stock image”, advancing to a set of works in which the aesthetic structure of cinema has already retroacted on the verbal arts. The short story “Ómnibus” (Julio Cortázar, 1951) and a couple of fragments from Livro do Desassossego (Fernando Pessoa, 1982) circumscribe the idea in literary objects whose narrative totality consists of this motor trip: a silent contemplation forming an internal cinema. In the intermedia punchline of the essay, the analysis of rock songs’ lyrics that thematize travels in toto – “A Movie Script Ending” (2001) by Death Cab For Cutie and “We Look Like Lightning” (2018) by The Wonder Years – epitomizes the proposal of a “motorized passenger’s cinematography” in a multimodal literary format. The perception of a poetic subject that has internalized cinema and music in these two songs oscillates, intertwines and deepens with phenomenological notes on traveling today, a favorable situation for sudden, disalienating experiences.

Keywords: Cinema, Literature, Travel, Profane illumination, Phenomenology.

Como um travelogue hipertextual, um caso de vaporwave antes de a internet inventar o próprio movimento, Sans Soleil (1983), documentário-ensaístico de Chris Marker, flui em torno da fugacidade e percetividade da memória. Sem uma narrativa baseada em personagens, deambulando entre lugares, imagens, cenas e pensamentos que projetam a não-linearidade do nosso funcionamento cerebral, Marker encontra no Japão, na imensa Tóquio, um dos ganchos da sua composição.

Ora, sustentando-se o filme numa narradora que lê cartas a ela enviadas por um operador de câmara ficcional, chega-nos algures:

Um dia, ele escreveu-me: “Descrição de um sonho. Cada vez mais os meus sonhos se passam nas grandes lojas de Tóquio, nas galerias subterrâneas que prolongam e duplicam a cidade. Um rosto aparece, desaparece, um traço encontra-se, perde-se. Todo o folclore do sonho está tanto no seu lugar que no dia seguinte, quando acordo, eu percebo que continuo a procurar no labirinto dos subsolos a presença oculta na noite anterior” (Sans Soleil 1983)1

Importa para o presente ensaio o múltiplo desdobramento de alguém que nos conta algo que outrem sonhou e lhe contou; que a sequência se inicie com uma grande vidraça de um qualquer estabelecimento invadida por uma catarata de chuva a distorcer a face de ocupantes à mesa; que, passando para um ponto de vista interior, uma iluminação sorumbática os anonimize na mesma com a mesma vidraça em fundo a delinear-lhes a silhueta; que, enfim, tudo isso seja acompanhado pelo começo sonoro de um transe eletrónico murmurando em “vozes” dissonantes quer velocidade quer lentidão, tanto empolgamento quanto assombração, e abafando quase in toto os ruídos diegéticos.

Enquanto as imagens consumam a duplicação da cidade nas galerias subterrâneas onde vemos espécies de MUPIS, letreiros eletrónicos, telefones, até bizarras estátuas de pessoas ao telefone (qual culto tradicional do futuro), e escadas rolantes, a narradora prossegue a leitura:

Começo a perguntar-me se esses sonhos são realmente meus ou se fazem parte de um conjunto, de um gigantesco sonho coletivo do qual a cidade inteira seria a projeção. Bastaria, talvez, atender um dos inúmeros telefones que há por aí para ouvir uma voz familiar, ou o bater de um coração, como no final de Les Visiteurs Du Soir – o de Sei Shōnagon, por exemplo (Sans Soleil 1983).

Desde já, atente-se nas ideias de um sonho coletivo; da cidade como tela; da associação do telefone a um órgão vital; do encadeamento disso com uma referência ao cinema – um filme de Marcel Carné em que, aliás, a memória e a conexão humana são temas nucleares – e à literatura – a escritora Sei Shōnagon (966-1017), cuja obra mais conhecida, O Livro do Travesseiro, se caracteriza por uma escrita no estilo livre zuihitsu, “ao correr do pincel”, e se intitula assim por um episódio aí incluído de um monte de papel a servir de almofada. Interessa-nos esse registo impressionista, anticronológico, de notas esparsas e ainda tal proximidade entre um suporte literário e um objeto de sono.

Fazendo jus às palavras de William Gibson de que nos anos 80 “[m]odern Japan simply was cyberpunk” (apud Anders 2009), o subterrâneo avistado em Sans Soleil está na linha do seu fascínio pela “light of a thousand media-suns” (ibidem) no bairro Shibuya de Tóquio coloridamente repleto de letreiros animados e “commercial information” (ibidem). Neste lugar-modelo da hipertecnologia, de uma sensação de pós-futuro, acompanhamos a sobrelotação de transeuntes e a carta completa-se por fim:

Todas as galerias levam a estações, as mesmas companhias possuem as lojas e a ferrovia que transporta o seu nome. Keio, Odakyu – esses nomes de portos. O comboio, cheio de pessoas que dormem, junta todos os fragmentos do sonho e faz deles um único filme, o filme absoluto. Os tíquetes do distribuidor automático, da máquina de venda, tornam-se nos bilhetes de entrada (Sans Soleil 1983).

A um demorado foco hipnótico em milhentos braços e mãos entregando os bilhetes a revisores junta-se o clímax do referido transe eletrónico – a “voz” assombrada desassombra-se; aumentado em volume, excitação e velocidade: frenético. E, no entanto, verifica-se mais incapaz de conter rumores diegéticos de avisos em altifalante junto ao metro... De seguida, deparamo-nos com um novo desdobramento, com vários planos perspetivados desde o interior de um dos comboios, desde uma vidraça refletora na penumbra do subterrâneo a que a câmara se cola e que projeta os seus passageiros na estrutura, janelas e viajantes de uma carruagem passando ao lado.

Já de dia, no exterior, entre mais focos interiores da ferrovia e das linhas de energia aéreas que lá fora vão ficando para trás, a cadência, o ruído rítmico do comboio ascende, conjuga-se agora com um soporífero eletrónico qual aragem pós-clímax. Marker capta então a dramaturgia dos passageiros: alguns de pé, outros sentados; há quem leia e quem viaje de auriculares postos; casos sintomáticos de viajantes devolvendo o olhar da câmara e estilhaçando a quarta parede; mas acima de tudo, há sono. Há uma multidão de olhos fechados. Adentrados na cidade dos sonhos, com bilhete para o filme absoluto, uma montagem entrecruzada com tais olhos dá-nos uma representação do seu inconsciente mediático. Quer dizer, as suas derivas oníricas expostas em cortes rápidos consistem em imagens televisivas, cenas fílmicas. Percebemo-lo desde logo pela moldura de um televisor e pelo trémulo granulado de um animado comboio voador, seres monstruosos e demoníacos, um combate de samurais, um corpo nu... Mas de outro ângulo, essa é também a forma como o operador de câmara visualiza (e sonoriza) aquelas pessoas...

Trata-se, portanto, de uma experiência intersubjetiva, sobejamente conforme Tóquio – a cidade das cidades feita espetáculo, um cinema vivo transitando todos os dias pelas suas veias elétricas. Como a narradora lê noutro instante de Sans Soleil, cartazes, murais e outdoors gigantes “voyeurizam os voyeurs”. Daí que o comboio, um lugar intersticial com visão privilegiada, se assuma o coração da memória afetiva e estética da população. Aí, numa aceleração ritmada do pensamento que transcende a invisibilização percetiva causada pela banalidade repetitiva do quotidiano, o meio de transporte coalesce com o meio cinematográfico. Um motor propulsor que é o girar da película no projetor afigura-se assim um modo particular e não institucionalizado do ponto de vista artístico de suscitar massivamente algo sempre contingente: experiências do súbito ou, nos termos de Walter Benjamin, “iluminações profanas”. “Like religious illumination” (Wolin 1982, 132), este apreendimento do acaso num instante em que a consciência crítica deflagra num nível mais denso

captures the powers of spiritual intoxication in order to produce a “revelation”, a vision or insight which transcends the prosaic state of empirical reality; yet it produces this vision in an immanent manner, while remaining within the bounds of possible experience, and without recourse to otherworldly dogmas
(Wolin 1982, 132).

Benjamin extrai este despertar de uma tónica que privilegia a experienciação materialista sobre um cartesianismo teórico. As energias e a embriaguez do surrealismo transparecidas por uma rua urbana banal feita lugar encantado de encontros fortuitos ou pela ressignificação inspirada de objetos quotidianos desfuncionalizados servem-lhe de arquétipo. Curiosamente, quanto a essa concomitante utopia da estética/estética da utopia captada no romance surrealista Nadja (André Breton, 1928), e no preciso ensaio em que apresenta o conceito de “iluminação profana”, o filósofo alemão assinala

o casal Breton e Nadja conseguiu converter, se não em ação, pelo menos em experiência revolucionária, tudo o que sentimos em tristes viagens de trem (os trens começam a envelhecer), [...] no primeiro olhar através das janelas molhadas de chuva de uma nova residência. Os dois fazem explodir as poderosas forças “atmosféricas” ocultas nestas coisas. Imaginemos como seria organizada uma vida que se deixasse determinar, num momento decisivo, pela última e mais popular canção de rua
(Benjamin 1994, 25).

Passo a simplificar: comboios entrelaçados a viagens taciturnas, um fitar via janelas e canções fazem parte da sua enumeração, de condições levitadas a uma atmosfera mental revolucionária. Claro está, importa ressalvar, interligar e retomar, a porta de entrada num corpo coletivo que Sans Soleil concretiza de forma minuciosa e prolongada na supra-analisada sequência assume-se como uma espécie de imagem cinematográfica-tipo, um ápex contemplativo acentuado por música. Numa ótica diegética e extradiegética, a tecnologia torna-se, dessarte, o lugar em que sujeito e objeto se fundem, transferidos para o domínio de uma imersiva representação comum. Um desenvolvimento moderno de um enraizamento entre filme e transporte que vem desde os primórdios do cinema de atrações. Algo antecipado pelo género dos panoramas em movimento ainda em meados do século XIX nos quais, por exemplo, os espectadores se sentavam num comboio-modelo e fitavam pelas janelas laterais a viagem e a paisagem simulada de camadas de pinturas gigantes ocultamente em rolagem entre bobinas. Algo depois epitomizado pelo género dos passeios fantasmas com uma câmara e seu operador na dianteira de um veículo em movimento a invisibilizarem-nos tudo senão o próprio cenário e paisagem em frente. Ademais, a começar pelo uso comum de um narrador in loco a dramatizar o cenário pré-cinema dos ditos panoramas em movimento, “the travelog and its derivative genres were pivotal in the development of film narration, serving as vehicles for early cinema’s transition from actuality footage to narrative film” (Boczkowska 2023, 2). Mas já no presente, dentre uma miríade de exemplos nem sequer circunscritos e referentes a travelogues ou road movies – e rememorando da etimologia de “cinematografia” uma “escrita da luz em movimento” (iluminação!) –, pense-se:

Posto tudo isto, deslocando o objeto de estudo para um campo literário, é preciso primeiro traçar uma certa genealogia em que se inscreve e distingui-lo depois enquanto aproximação a um ramo específico. Se, óbvio, a longa história do género “literatura de viagens” nos leva redundantemente a milhares de anos atrás (e.g., a própria Odisseia), a delimitação número um passa por objetos artísticos pós-Revolução Industrial – ou seja, relativos à aceleração ritmada da máquina a vapor e, numa segunda fase, do motor de combustão interna.

Ideologicamente falando, o que está em causa descende da mas não é a febre maquínica e futurista de uma Ode Triunfal com toda a sua sensação onomatopaica de movimento, velocidade e ruído, em que a estrutura estética do cinema já retroagiu sobre as artes verbais.

Para apertar o cerco, dois exemplos mais próximos, até pelo carácter autobiográfico dos mesmos:

Não está, contudo, aqui em causa o cânone da literatura de viagens enquanto género que se ocupa de grandes espaços e de grandes temporalidades, tantas vezes pretexto para a lentidão de uma narrativa de aprendizagem e entrecruzado com a História e a Antropologia. Tal como não interessa particularmente neste artigo reconceptualizar ou encaixar no dito subgénero novas obras ou formas artísticas, mas apenas salientar esta herança estética. Assim, mais ainda, em conclusão, aquilo a que chamo “a cinematografia do passageiro a motor” realiza-se quase maximamente sob a forma de “experiências do súbito na literatura” em três casos:

Ora, em rescaldo, há três aspetos que nos compete sobremaneira fixar: 1) As várias instâncias de personificação e animalização de transportes durante a viagem – “vinha mansamente o 168, soltando o seu seco suspiro insatisfeito ao abrir a porta” (Cortázar 2015, 41); “o horrível uivo de uma locomotiva a toda a velocidade” (Cortázar 2015, 48); “o veículo estremecia como um corpo enorme” (ibidem); “Dez buzinas ladravam atrás do autocarro” (Cortázar 2015, 50-51); “O 168 acelerou ainda mais [...] furioso por chegar” (Cortázar 2015, 51); “a porta bufou ao fechar-se” (Cortázar 2015, 52)... 2) A sugestão de que tanto os olhares quanto o homem possam ser um delírio da protagonista – “era como se a incluíssem no mesmo olhar, como se unissem os dois na mesma observação” (Cortázar 2015, 45) quando ainda estavam em bancos diferentes –, dado o clima de paranoia crescente. 3) Escapados do que já escalara ao nível de ameaças do cobrador e do condutor, “ela” e “ele” caminham lado a lado, silentes, por um plácido parque à beira-rio – onde compram flores, amores-perfeitos! Quer dizer, a viagem num “ómnibus” (aquele que transporta todos e conduz a todos os lugares e coisas) parece emular o percurso da personagem principal de um estado de alienação à mais profunda conexão humana. Aliás, a interpretação onírica apontada em “2)” ganha força pelas flores adquiridas se designarem “pensamientos” no castelhano original. Daí que na coda do conto o homem deixe de agarrar o braço dela, quiçá como se desvanecesse, porquanto agora a mulher – da solidão para a solitude – se sente una per se.

Perante estes três últimos exemplos, poderíamos apontar desde já que “a cinematografia do passageiro a motor” na literatura se concretiza principalmente em narrativas curtas, unicelulares – isto, delimitando a ideia em objetos literários cuja totalidade/ quase totalidade narrativa consiste numa viagem de transporte motorizado, numa contemplação silente dentro dele a formar uma espécie de cinema interno. Ou seja, uma sala de cinema emulada quer por janelas feitas telas/paisagens em andamento, quer pela própria atenção em elementos interiores como passageiros, bancos, cores, luzes, texturas, formas geométricas, etc. – já que “a velocidade trata a visão em primeiro lugar como matéria, com a aceleração, viajar é como filmar” (Virilio 2000, 11).

Mas se tais três casos já se cifram num tipo de “experiências do súbito na literatura”, duas letras de canções rock contemporâneas e estadunidenses – “A Movie Script Ending” (2001) do grupo Death Cab For Cutie2 e “We Look Like Lightning” (2018) da banda The Wonder Years3 – substancializam in toto, e não só “quase maximamente”, o subtipo em que me centro aqui. Afinal, estamos diante de um formato (que considero sob um ângulo literário) cuja habitual microextensão temporal, diegético/narrativa se cola com a fugacidade de uma “iluminação profana”. A redução de escala até ao esquelético tende a deixar de lado o universalismo, a descrição de costumes, fauna e flora de outra cultura ou região, premindo-se a fundo na presença, na corporeidade, na intensidade do efémero. Um efémero feito de encontros e desencontros no quotidiano a transcender. Em canções, a poesia da letra, um “movimento-emoção”, configura-se um volante semântico oscilante entre o impressionismo, o intimismo e o psicologismo4.

Em adição, como seria expectável, as viagens motorizadas afiguram-se um tema de escrita e um lugar de escrita para artistas musicais – não fosse a vida em tournée a sua habitual condição existencial. A um nível superficial, os próprios agrupamentos referidos se verificam sinédoques disso. Death Cab For Cutie a começar pelo nome (Cab), continuando por um álbum intitulado Something About Airplanes (1998) e por outro denominado Transatlanticism (2003) em que se junta à canção-título a faixa “Passenger Seat”. Mais do que isso, numa discussão sobre a origem da precisa “A Movie Script Ending”, o letrista da banda, Ben Gibbard, comenta o peso dos beats na sua escrita desde um período formativo e chega a particularizar:

One thing I really admired about Kerouac was how he [...] made these very small moments in time seem very grandiose and very important, and, you known, with a song like “A Movie Script Ending” I wanted to namecheck all these places to make sure that I remember them5.

Já The Wonder Years de forma menos proeminente nos temas “Me Vs. The Highway” (2012), “A Raindance in Traffic” (2013) e “Thanks For The Ride” (2015), sendo, porém, de ressalvar a autocaracterização de Sister Cities (2018), o álbum em que “We Look Like Lightning” se inscreve, como “the sum total of 2 years of travel across 5 continents documented in songs”6 ou as palavras do letrista Dan Campbell: “It was the experiences themselves over two years of life on the road that struck me as most important to write about” (apud Dedman 2018).

De todo o modo, o subtipo que as duas canções materializam e que mais conta neste ensaio é um subtipo precisamente pelo facto de ambas aparentarem partir em primeiro lugar da imagem-tipo cinematográfica que caracterizei e exemplifiquei no início deste preciso trabalho. Uma vez mais, um nível superficial preconiza-o: leia-se o título “A Movie Script Ending” ou a inclusão do tema numa obra, The Photo Album (2001), que aponta para outra prática ótica de reprodução técnica; note-se que The Wonder Years remete para a conhecida e homónima série de televisão estadunidense (Neal Marlens e Carol Black, 1988-1993) relativa à adolescência. Todavia, o motivo pelo qual determino essa origem cinemática enquanto primogénita reside na referência metalinguística à audição de canções durante viagens em transportes motorizados. E isso é tanto mais relevante na medida em que, acrescentando à letra a mediação sonora, tal ocorre em momentos climáticos, em instantes ultra-epifânicos de pequenas narrativas já epifânicas (as canções por inteiro já são o que “ouvemos” numa cena conforme a de Lost In Translation...): na ponte de “A Movie Script Ending” e no refrão de “We Look Like Lightning”. Circulando, aliás, uma terceira vez para o nível imediato dos títulos, estes antecipam a “iluminação profana” pelo clímax (audiovisual!) de um “final” num filme e de um “relâmpago” na meteorologia.

Dito isto, não sendo o intuito do presente trabalho uma análise densa destas ou de outras obras, alguma incidência sobre as letras ajudar-nos-á a esboçar rudimentos teóricos para a tendência literária estético-temática que aqui proponho. Claro está, isso passa por uma perspetiva fenomenológica do passageiro a motor (a par de uma pesquisa exaustiva de obras pertinentes e da sua posterior análise minuciosa, um pensamento mais aprofundado da experiência corporal de viajar abre-se desde logo como necessária via de investigação) e por um tecnológico-cognitivo estado das coisas contemporâneo.

Tudo se passa, antes de mais, como se o “inconsciente óptico” benjaminiano – “a extensão do olho humano proporcionado pela fotografia e pelo cinema, pela sua capacidade de ampliar nossos sentidos” (Stuart da Silva 2013, 107) – tivesse, à boleia inculcada de uma sociedade do espetáculo, entrado no nosso próprio sistema nervoso sob a forma de persistência retiniana maximamente internalizada. Quer dizer, à semelhança de Sans Soleil, andamos por aí de cinema nos olhos e nos ouvidos, mesmo sem uma tela à frente, mas parece ser a analogia em potência do banco num transporte motorizado com o assento numa sala de projeção a trazer, a todo o vapor, o “inconsciente óptico” à superfície.

Lemos na segunda estrofe de “We Look Like Lightning”: I’m suddenly aware of our speed / Sew the world together tightly / Stitch the gaps with pins and strings / And the beacon out there on the wing / It lights the clouds from inside out / And from the ground we look like lightning”. Ou seja, uma perceção aumentada por uma “velocidade, fragmentação e sequencialidade desumana[s]” (Palma, 2003) que aproxima o intervalo e cose o buraco entre sonho e realidade. Daí que a consciência de velocidade do sujeito poético corresponda na enunciação da canção a um ritmo lento como que num espanto perplexo (qual câmara em slow motion!), a uma instrumentação pontilhada, ligeira, suspensiva. Daí, ainda, o despersonalizado olho divino, omnisciente, capaz de ver o avião do chão num plano contrapicado ao mesmo tempo que se está dentro dele. Daí, enfim, que o tutti e o scream trovejante da ponte resgatem uma visão (coletiva/conectiva) do passado – “I’m flashing back to us one night in a prairie town” – e que se entreveja uma sobreposição desse “outrora” com o “agora” – “The bags under my eyes have got space when you bottom out” – dois versos a seguir. Isto, porquanto o plano de pormenor “bags under my eyes” suscita a possibilidade dupla de malas/sacos com que o sujeito poético segue no assento ou aos pés e de bolsas de cansaço nos olhos “one night in a prairie town”.

Talvez, de um ponto de vista fenomenológico, pudéssemos estabelecer uma série de condições favoráveis a estas experiências do súbito, a uma multiplicação e explosão de auras residindo nos sujeitos que, catarticamente, os liberta de repressões sociais pela representação... A representação interna e inadivinhável dos diferentes pensamentos de cada viajante formando um massivo sonho coletivo. Quiçá, por exemplo, algumas dessas condições sejam: a ausência de dor ou de um grau maior de desconforto corporal (e.g., calor ou frio); viagens nem demasiado curtas nem demasiado longas (o suficiente para a perceção de tempo morto sem o fastídio último do “nunca mais chegamos”); seguir sentado e em bancos almofadados. Outrossim, estar no lugar de passageiro e não no de condutor, promovendo-se um estádio cinematográfico de atenção distraída, de uma hipnose sensorial que por vezes desliza, num vaivém, até ao sono; viajar num veículo envidraçado, um ecossistema selado em que as próprias cortinas nas janelas são como um palco que, conforme a vontade de viajante x, mostra ou esconde a tela de fora, a rua absoluta. De preferência, transitar rodeado de estranhos, pelo simples pacto de silêncio a isso subjacente – se as vozes anónimas fazem parte da “coisa”, “eu” mesmo estar em diálogo tenderá a prender-me percetivamente a um mundano constrangido.

Seja como for, num comboio, num avião ou num carro, estamos destinados a uma experiência comunitária, quer pelos demais passageiros, quer pela sua presença ausente chamada “banco”, mas fica no ar, entre outros aspetos, o modo como um panorama rural, suburbano ou citadino, um ambiente diurno ou noturno – quanto a este último, na experiência usual de um expresso rodoviário, uma ténue iluminação totaliza o paralelo com uma sala de projeção e dá-nos ainda, em sintonia, o nosso reflexo mais vincado, “a negrito” no vidro – podem influir nisso tudo. E quais as especificidades de cada transporte? Também a componente sonora levanta questões e, no que concerne a um encantamento face ao ruído rítmico dos motores, “A Movie Script Ending” não poderia ser mais clara ao juntar aos versos de abertura de um possível regresso a casa – “Whenever I come back / The air on railroad is making the same sounds” (sincrónicos com uma bateria pulsante com uma certa cadência ferroviária que permeia a maior parte da faixa) – um refrão “em transe em trânsito” – “Passing through unconscious states / When I awoke I was on / The highway, highway” –, ao ponto de a consciência do sujeito poético saltar do comboio para uma autoestrada. Embora na letra de The Wonder Years não tenhamos uma referência tão direta, há ainda assim uma contextualização inicial de uma perceção magnetizada – “I’m half awake” – a que se segue pouco depois um bar-bar-bar informático/automático – “In a language I don’t understand / There’s a shaking voice on the PA” (qual pináculo da alienação no começo) – inextricável do veículo. Sempre na mesma voz espantada e pausada atrás mencionada...

Ora, pensar a questão do som direciona-nos também para a tal “referência metalinguística à audição de canções durante viagens em transportes motorizados”, para uma relação disso com a lógica da velocidade contemporânea que o filósofo Paul Virilio conceptualizou como “dromologia”:

Se a revolução dos transportes do século passado tinha visto a emergência e a popularização progressiva do veículo dinâmico automóvel (comboio, mota, automóvel, avião...), a actual revolução das transmissões planeia, por sua vez, a inovação do último veículo, o veículo estático audiovisual, advento de uma inércia comportamental do receptor/emissor, passagem dessa famosa persistência retiniana que permite a ilusão de óptica da projecção fílmica, à persistência do corpo desse “homem terminal”, condição de possibilidade da mobilização repentina da ilusão do mundo, de um mundo inteiro, telepresente em cada instante, vindo o corpo próprio da testemunha a ser o último território urbano... (Virilio 2000, 33-34).

Quer dizer, a ideia que este propõe de uma anulação do trajeto, da experiência vivida e “historicizante” consequente do intervalo espácio-temporal entre um ponto de partida A e um ponto de chegada Z, afigura-se excessiva. Não só a revolução dos transportes se limitou a comprimir esse intervalo – o que é bem diferente de o eliminar –, como a própria era da informação, das transmissões instantâneas e em tempo real coexiste com uma prevalência e dependência crescentes dos veículos motorizados. Precisamente contra a narrativa de uma morte geográfica e da liquidação da noção de passado, as letras em estudo associam à deslocação nesses transportes uma revinda efervescente do “outrora”, um acesso de memória do espaço – o tal “I’m flashing back to us one night in a prairie town” na canção de The Wonder Years e os versos (o primeiro também já apresentado) “Whenever I come back / The air on railroad is making the same sounds / And the shop fronts on Holly are dirty words / Asterisks in for the vowels / We peered through the windows / New bottoms on barstools but the people remain the same” no tema de Death Cab For Cutie.

Assim, quando Virilio afirma antes que “há agora para cada um de nós um desdobramento da representação do Mundo e, por conseguinte, da sua realidade. Desdobramento entre actividade e interactividade, presença e telepresença, existência e tele-existência” (Virilio 2000, 71), a sua argumentação aparenta mais certeira. Isto, um pouco conforme os rumores distópicos de substituição de uma “realidade real” por uma “realidade virtual” – alimentados sobretudo durante as décadas de oitenta e noventa do século XX – se revelaram manifestamente exagerados. Como que na senda de uma “indistinção entre perto e longe, entre vizinho e estranho, entre imagem e coisa” (Edmundo Cordeiro apud Virilio 2000, 12), entre interior e exterior, domina hoje uma mixed reality e, dentro desse continuum realidade-virtualidade, uma realidade aumentada projetada a partir do “aqui e agora” da presença. Concretizando esta linha de raciocínio, a “referência metalinguística à audição de canções durante viagens em transportes motorizados” cifra-se paradigmática de uma situação curiosa: a da revolução do “veículo estático audiovisual” a deslocar-se dentro da revolução do “veículo dinâmico automóvel”.

“And now we all know the words were true / In the sappiest songs, yes, yes”, ouvimos qual revelação ou anagnorisis na ponte de “A Movie Script Ending”, no ápex para que a canção se constrói, na sensação de se flutuar no ar que aí se transmite. «I’m playing “what song do you wanna die to?” / What song do you…?», ouvimos no refrão de “We Look Like Lightning”, na progressiva explosão vocal de quem delira e se extasia com a chance de um acidente. Ambas sugerem portanto, até pelo tom intimista da letra e da música, o uso de próteses mediáticas, aparelhos portáteis da era informática: fones de ouvido. E isto sem prejuízo dos demais ruídos hipnóticos cuja audição do sujeito poético se lê nas próprias canções. Noutros termos, tal como empiricamente, enquanto passageiros, estamos obrigados a ouvir motores, avisos via altifalantes (no caso das letras em análise) ou até uma estação de rádio que se propaga pelas saídas de som do veículo – mesmo que só à entrada; num volume ténue; durante um intervalo entre faixas ou em instantes silentes de tema x escutado através de auriculares.

Ainda que estudar a fundo os contornos fenomenológicos da experiência de ouvir música (uma facilitadora de poros abertos e orgasmos de pele) nessa “situação curiosa” constitua outra necessidade que extravasa as fronteiras deste ensaio, talvez seja indispensável “hipotesizar” algo sobre ela. Nesta metamorfose do flâneur num “flâneur-voyeur pós-moderno” (Maia 1997, 136) – em que o interior e “[a]s janelas [de um automóvel] passam a ser as ruas onde ele irá exercer sua flânerie” (Maia 1997, 145) –, a audição de canções por intermédio de fones assume-se um gume emotivo-reflexivo, uma bolha de customização e ordenação do espaço. Com um telecomando à janela, possibilitados de zapping numa atualização tecnológica da escolha entre duas cassetes na diegese de Black Mirror: Bandersnatch, instalamos algures em nós mesmos um dispositivo de home video. Seja uma forma de controlo ou de controlo descontrolado por modo shuffle, tudo se passa como se criássemos dentro de um espaço viável a experiências do súbito um meta-espaço viável. O passageiro a motor de “We Look Like Lightning” é um epítome disso, de uma busca de uma canção apropriada às suas emoções, à atmosfera envolvente do avião e do mundo fora dele – o “filme” produzido será sempre e inevitavelmente uma correlação entre esses três “espaços”. Não só as canções e as meta-referências a canções nas letras em estudo intensificam a noção de passado e uma memória geográfica – quais “madalenas auditivas” – como, noutro espectro, promovem uma sensação de grandeur. Feitos estrelas de filmes, encenamo-nos no centro do mundo, mas essa sensação de proximidade e conexão omnipotente não pode ser reduzida a uma suposta ilusão escapista. De verdade:

[…] headphones allow for individual self-enclosure while not disturbing a social order dependent on crowding, face-to-face interaction, and social transactions between strangers. […] the use […] constitutes mutually agreed upon isolation, a kind of cooperative separation. […] use is actually more effective in a subway car, […] if other people are also using headphones. […] Thus, these bubbles are not separate, disconnected spaces looking for a vacuum or attempting to create a place evacuated of humanity (in that case, headphones would not be necessary), rather their boundaries are strengthened by connecting to the walls of other media bubbles. (Groening 2014, 5-6)

Desta frutuosa simbiose “transporte-auriculares” parece, em suma, provir uma alteração no conceito de paisagem (outro tópico que poderia ser adensado num texto de maior dimensão) enquanto experiência de se estar dentro de um espaço que nunca se alcança objetivamente. Aclarando, os automóveis e “the headphones [...] like the cinema and television [...] help bring the distant closer” (Groening 2014, 5), e a linha do horizonte nos olhos perceciona-se anulada por meio de uma personalizada ordenação cognitiva e geográfica (in sync!). Daí que a enunciação e a narrativa pulantes de “A Movie Script Ending” – supremamente expressas num repetitivo “highway” dito “high” (intervalo) “way” ou até no seu vídeo musical em stop motion7 – encontrem o seu momento melódico mais continuado/expressivo/rememorativo na tal ponte que cita canções, que cita a incapacidade de escapulir à avalanche biográfico-emocional que tais canções causam – “And now we all know the words were true / In the sappiest songs, yes, yes / I’ll put them to bed, but they won’t sleep / Just shuffling the sheets to toss and turn / You can’t begin to get it back”.

Na senda da “velocidade [que] mata a cor”, do “giroscópio [que] quando gira depressa faz cinzento” (Paul Morand apud Virilio 2000, 88), é um pouco como se, metaforicamente falando, um motor nos avançasse pela história da representação pictórica – passando pelo protoimpressionismo de William Turner, pela coalescência de água, terra, céu e transporte no seu Rain, Steam and Speed – The Great Western Railway (1844) – até um qualquer grau zero abstrato, um quadro negro... ou transparente? Cabe-nos a nós habitá-lo, figurá-lo “pensamento-paisagem” (Michel Collot) em que não há “ni pure représentation ni une simple présence mais un entrecroisement entre les deux” (Michel Collot apud Silva 2016, 68), um “espace transitionnel entre l’intérieur et l’extérieur, le réel et l’imaginaire” (Silva 2016, 68). De facto, nesta aceção “le paysage implique un sujet qui ne réside plus en lui-meme, mais qui s’ouvre au dehors” (ibidem) e, feita geografia subjetiva ou o intimismo mundial de um quarto de dormir ambulante, “permet de figurer l’infigurable” (ibidem). É curioso, aliás, que no suprarreferido videoclipe do tema de Death Cab For Cutie se aparente mostrar sobretudo o que o sujeito poético vê interiormente a partir da paisagem que (d)escreve... a paisagem que, portanto, o seu próprio pensamento projeta (desde um comboio primeiro e de um carro depois). A camada videográfica (mais um elemento por “escavar”), focada em imagens congeladas que representam a visualização da memória (daí também o stop motion), edifica uma espécie de ekphrasis do seu cinema interno. Afigura-se um “simulacrum of perception itself” (Ruth Webb apud Lindhé 2013, 10) em que “[i]t is the act of seeing that is imitated” (ibidem). Quer dizer, a recordação de pequenos grandes instantes de uma relação amorosa e a separação final (num aeroporto) que na letra só é aludida por segundos – “With your hands on my shoulders / A meaningless movement, a movie script ending” –torna-se o âmago do vídeo.

No fim de tudo, o que estes dois casos literários de uma cinematografia do passageiro a motor nos revelam trata-se de uma indistinção geográfica entre a consciência e o mundo, uma monumental conexão eufórica entre ambos – “I’m everywhere at once again / I hear the ocean in the engine / I feel the moonlight creeping in”, “escreve-nos” omnipresente e omnipotente a canção de The Wonder Years. Da pura primeira pessoa individualizada e enfadada com que “A Movie Script Ending” – “Whenever I come back / The air on railroad is making the same sounds” – e “We Look Like Lightning – “I forgot what month it is again / I’m half awake” – abrem, chegamos, à boleia de música nos veículos, ao auge de uma intersubjetividade ecuménica: “And now we all know the words were true / In the sappiest songs, yes, yes”; «I’m playing “what song do you wanna die to?” / What song do you…?». Tal como, enfim, recordemos, as duas gotículas de chuva de The Shape Of Water se unificavam numa elevação final. Num qualquer comboio, “[e]ntre a imobilidade de dentro e de fora, introduz-se um qüiproquó, fina lâmina que inverte as suas estabilidades. O quiasma é efetuado graças à vidraça e aos trilhos” (Certeau 1998, 194), derivando daí que a dor seja refletida no espelho como prazer. À medida da frase de Victor Hugo em que a “melancolia é a felicidade de estar triste”, o viajante tem a (im)possibilidade co(nfo)rtante de ver o desejo à distância. Um desejo de mundo.

Assim, paradoxo, são os próprios meios de transporte paradigmáticos dos “não-lugares” – a conhecida designação do antropólogo Marc Augé para espaços nem identitários, nem relacionais, nem históricos característicos da contemporaneidade – a suscitar condições para um trajeto da alienação até a desalienação. Ou seja, partindo do mais mundano e já automático anonimato contratual, também a mente se desocupa e, acelerada com música à mistura, projeta transcendente e palimpsesticamente “lugares antropológicos” – identitários, relacionais, históricos! A letra de “A Movie Script Ending” espelha-o ainda num duplo sentido. Em “Whenever I come back / The air on the railroad is making the same sounds” a genérica “railroad” (ferrovia) é em concomitância a específica rua “Railroad” da cidade de Bellingham no estado de Washington – sítio onde a banda se formou. Esta leitura ganha força porquanto “Holly” no verso seguinte – “And the shop fronts on Holly are dirty words” – designa uma rua que se cruza com a anterior nessa precisa cidade. Nessa via de raciocínio, o refrão “Passing through unconscious states / When I awoke, I was on / The highway, highway”, a palavra “states” aí presente pode tanto ser a passagem por distintas fases de uma consciência em son(h)o quanto a passagem por diferentes estados (governativos) do país. Estados esses que uma hipálage qualifica de “inconscientes”. Paira acima de tudo uma sensação sinestésica em que os “states” geográfico e consciente se interpenetram. E, não bastasse, também no centro de Bellingham, próximo de Railroad e Holly, se encontra uma rua chamada State.

De um “beacon out there on the wing” que alcança materialidade nessa parte do avião e que “lights the clouds from inside out” até que “from the ground we look like lightning”, transitamos para outro sujeito poético que testemunha: “When I awoke, I was on / The onset of a later stage / The headlights are beacons on / The highway, highway”. Do meio da canção de The Wonder Years ao final rodoviário do tema de Death Cab For Cutie, a “iluminação profana” à boleia de um meio de transporte motorizado só se firma mais explícita. “Beacon”: “a lighthouse or other signal for guidance”, “a source of light or inspiration” (Merrian-Webster Dictionary), lemos no dicionário. Poderíamos talvez adicionar, ao fitar a janela com oxigénio sonoro a ligar um interruptor epifânico: “um lar retórico de nem falar”. Chega-nos uma letra vocalizada por outrem tão inscrita nas entranhas que a simular a nossa própria voz interna, de forma não prescritiva, não imperativa, antes combustível (reescreví(vi)vel) da imaginação. Como se de novo crianças a esquissarem nos velhos vidros embaciados. Contra o estereótipo de uma indiferença massiva com o outro e de uma tão proclamada atomização como doenças sociais da contemporaneidade, talvez este combo de transportes e auriculares possa até constituir uma espécie de treino e exemplo estético para uma individuação diferente da hegemonia institucional realmente existente. Uma individuação em que o fazer sentido de um olhar autoral parte de um anonimato estrutural de todos; parte da grandeza pequena, igualitária de um ser humano à medida de cada assento. Mais do que parte de um sufocante protagonismo circuncluso de um patrão, uma coordenadora, um presidente ou uma líder a definirem-se no espaço pelo anonimato hierárquico dos demais. Os demais que aos recursos concentrados dos primeiros têm de se deslocar por predefinição. No hiato de lá chegarmos ou de voltarmos a casa, o referido combo estético possibilita e imagina este individualismo despossessivo, uma ausência de rima por, de passagem, não nos agarrarmos à linha semântica e normativa que vinha de trás. Com múltiplos narradores silentes em modo solidão em conjunto, há, enfim, um (“eu”) corpo entre corpos interdependentes (a preencher um vazio interno específico) mais do que corpos dentro de um corpo inflado a dizer-se coletivo quando faz depender... Tudo isto ainda que, óbvio, numa aceção política mais direta, estes transportes e estas bolhas mediáticas não escapem a uma ordenação comercial vertical e geometrizadora (disciplinada por um motorista, pela própria distribuição em classes dos lugares no espaço ou pelo design de software de dado leitor MP4, por exemplo). Embora muitos pontos fiquem por perscrutar deste estudo preliminar, o fundamental é isto: todos os dias alguns de nós se sentam num banco de autocarro com fones de ouvido postos. Estranha forma de hemodiálise esta em que, cacos humanos, na esteira protésica do romance e do filme Crash (J. G. Ballard, 1973, David Cronenberg, 1996), encontrámos uma forma alternativa de fazer amor com carros... No cinema, na literatura, na realidade, para Epicuro, “o acidente dos acidentes é o tempo”. O espaço-tempo. Neste trabalho e para quem passa, um acidente estético-afetivo do espaço-tempo para quem passa uma existência a comportar-se como o resultado de um...

Notas Finais

1Tradução minha a partir de uma versão inglesa em contraponto com o francês original disponível em: https://www.markertext.com/sans_soleil.htm. Acedido em 10 de maio de 2023. Doravante, o mesmo se aplica a todos os excertos de Sans Soleil citados.

2A letra pode ser consultada em: https://genius.com/Death-cab-for-cutie-a-movie-script-ending-lyrics. Acedido em 10 de maio de 2023.

3A letra pode ser consultada em: https://genius.com/The-wonder-years-we-look-like-lightning-lyrics. Acedido em 10 de maio de 2023.

4Não quer dizer que narrativas longas, conforme a literatura de viagens canónica, não possam também ser impressionistas ou intimistas, tratar do instantâneo referente à apreensão das imagens pelo olhar. Todavia, esses instantes de intensidade costumam estar rodeados por um texto (de descrição e ação) mais lato, no qual até momentos em que não existe deslocação per se abundam.

5Estas palavras estão disponíveis no canal oficial da banda no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=hSvR5gFPQVE. Acedido em 10 de maio de 2023.

6Post na página oficial do grupo no Twitter: https://twitter.com/thewonderyears/status/961645981816250368. Acedido em 10 de maio de 2023.

7Este pode ser visualizado no canal oficial da banda no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=DmsEAWQwHY4. Acedido em 10 de maio de 2023.

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