AVANCA | CINEMA

O faux raccord e a montagem discursiva: O que é faux raccord?

Mayara Fior Oliveira

IFSP – Campus Avançado São Paulo, Brasil

Abstract

This research aims to make an overview about the possibilities of perception and prehension of film editing, from a theoretical deepening and analysis of one of its intrinsic elements: the faux raccord.
This paper comes to postulate a precise definition for the term, as well as situate it in theoretical and audiovisual production throughout history, helping understanding the consequences of its use in the discursive construction, and Trying to deepen a reflection about the importance of the sensitive analysis of films and understand how the Faux raccord incurs as a cognitive thruster in reception of the films.
To get to a concrete definition of faux raccord, we bring a meticulous bibliographic research on discontinuous cuts and we deconstruct the concept of raccord. Based on this we were able to define what in fact comes to be the faux raccord and which cuts fit this definition.

Keywords: Faux Raccord, Montage, Film Editing, Raccord, Jump Cut

Introdução

A questão crucial a ser respondida por essa pesquisa é: O que é o faux raccord?

E dessa questão nascem outras: Como ele tem sido descrito e usado? Qual sua relação com o jump cut e outros tipos de corte?

Em muitos materiais bibliográficos o uso do termo jump cut remete ao significado do que na verdade seria o faux raccord; há também aqueles materiais que descrevem o faux raccord como mero erro, ao passo que outros falam apenas de montagem descontínua. Há muita generalização e pouca precisão ao se falar do faux raccord.

Tendo em vista as variações das definições, bem como o pouco material dedicado ao tema, faz-se relevante o estudo desse elemento da montagem, por sua relevância histórica e contemporânea na produção audiovisual.

Pouco se fala acerca do faux raccord na literatura, embora esse seja um elemento da montagem cinematográfica amplamente usado ao longo da história do cinema e do audiovisual, sobretudo nas produções contemporâneas.

Em exaustivo levantamento bibliográfico, essa pesquisa buscou por definições do termo faux raccord, tanto em livros e artigos, como em dicionários, enciclopédias e mesmo em artigos na internet. Alguns grandes autores fazem menção desse elemento (ou usando termos diferentes, mas que se caracterizam como faux raccord, como veremos adiante. Em seguida, traremos essas definições, com o início de uma análise reflexiva, a fim de se chegar a uma postulação conclusiva do que seria o faux raccord.

O que é faux raccord?

O cinema possui uma natureza essencialmente descontínua. Walter Murch ilustra bem a razão pela qual consideramos isso:

A verdade é que um filme está sendo efetivamente “cortado” 24 vezes por segundo. Cada quadro é um deslocamento do anterior. Acontece que num plano contínuo, o deslocamento espaço/tempo de um quadro para o outro é tão pequeno (20 milésimos de segundos) que o público o vê como uma continuidade dentro de um mesmo contexto, em vez de 24 contextos diferentes por segundo. Por outro lado, quando o deslocamento visual é suficientemente grande (como no momento do corte), somos forçados a reavaliar a nova imagem como um contexto diferente. Milagrosamente, na maioria das vezes, não temos dificuldade em fazê-lo. (MURCH, 2004, p.18).

Como o autor aponta, a troca de planos, ou seja, o corte, é naturalmente evidente. Entretanto a evolução da linguagem cinematográfica em busca de uma continuidade perfeita (o raccord clássico), e o costume do espectador ao longo dos anos com esse tipo de corte, faz com que consigamos reavaliar o novo plano de uma forma muito mais natural na maioria das vezes. Entretanto, historicamente existiram cortes que poderiam demandar uma maior análise, causar choque ou confusão. Um desses é o faux raccord.

A respeito da continuidade e descontinuidade na montagem dos planos, Aumont comenta:

O cinema, mídia temporal, está fadado ao contínuo; mas ele repousa, duplamente, na produção de uma descontinuidade (entre fotogramas sucessivos na película, entre planos na montagem). […] Podem-se opor, por exemplo, segundo essa pertinência, uma forma de passagem de plano a plano tendo em vista a continuidade – o raccord –, e uma forma, ao contrário, que visa à manutenção da descontinuidade – o intervalo. No interior de um mesmo plano, poderemos opor o regime do plano prolongado (insistindo na continuidade) a certos planos abruptos, visando produzir um efeito de descontínuo. (Aumont and Marie 2006, 61).

Desse modo, o faux raccord é uma forma, ou, uma técnica, de passagem de planos que visa a manutenção da descontinuidade e evidência do intervalo. É compreensível, portanto, que alguns autores associem o faux raccord com as elipses, uma associação totalmente coerente.

Assim como podemos fazer uma analogia entre a montagem audiovisual e a construção literária no nível do plano e da justaposição de palavras, também é possível trazer para o universo cinematográfico elementos de construção narrativa literária. Por exemplo, entendemos que o faux raccord, por vezes, é usado de modo a criar rupturas na linearidade narrativa, alterando seu ritmo, aproximando-se muito da anisocromia literária, que tem como característica a pausa, a elipse e o sumário1. No sumário, temos a redução do tempo da história, sintetizando os fatos ocorridos; na elipse ocorre a supressão de alguns trechos da história ou de algumas ações; e na pausa há uma interrupção da história para dar lugar a descrições ou divagações.

Uma vez que a montagem é feita através de registros em fatias de tempo e espaço, podemos dizer que ela está diretamente relacionada a representação e controle do tempo (o que diferencia, inclusive, o cinema da fotografia).

Para Marcel Martin (2005, 270–75) há quatro formas de representação do tempo real em tempo fílmico, que são descritas como: o tempo respeitado, o tempo condensado, o tempo abolido e o tempo desordenado. Tanto o tempo abolido quanto o tempo desordenado tratam de descontinuidades narrativas no nível de cenas e sequências, ou seja, a ordenação dos fatos e acontecimentos do filme. Entretanto, trataremos apenas do tempo condensado, mais pertinente para o foco desta pesquisa por ter uma relação direta com o faux raccord, uma vez que pode ser entendido no nível do plano.

O tempo condensado é o que ocorre quando a representação do tempo fílmico é menor do que o tempo real. Para se alcançar esse resultado, em geral, suprimem-se partes sem relevância para a narrativa – as famosas elipses. Os gaps gerados por essa supressão de tempo fazem com que o espectador “preencha” as lacunas, sendo, portanto, suscetível às interpretações mais subjetivas.

Segundo Martin (2005, 270), a condensação do tempo tem primordialmente duas funções: “[…] primeiramente, a colocação em evidência de uma continuidade causal única e linear no cruzamento das séries múltiplas da realidade corrente, depois, a supressão dos tempos mortos da ação […]”.

Vale lembrar que a montagem é, em sua essência, supressão de tempo. Pouquíssimos filmes se dedicam à realização de produções que representam ipsis litteris o tempo de ação. Como aponta Nogueira, assim:

A montagem serve, portanto, neste caso, para selecionar e eliminar informação, estabelecendo uma relação entre a quantidade e a qualidade da mesma. A sequência de montage clássica é a forma institucional2 da elipse […] No entanto, a elipse pode ser igualmente utilizada como recurso discursivo em si mesma, procurando criar perturbação no espectador, obrigando este a um esforço redobrado na descodificação do filme e chamando a atenção para a sua própria existência. (2010, 157).

Essa supressão de tempo a que o autor se refere, nada mais é do que um faux raccord.

Cortes que aproximam planos com uma variação de ângulo muito pequena ou muito grande, são usualmente associados a uma quebra de continuidade, mas seriam nomeados da mesma maneira?

Há certa confusão ao definir o faux raccord, uma vez que há uma diversidade de pontos de vista a respeito dele. Com frequência, ele é descrito e encarado como erro de continuidade; em outras, está ligado à quebra das regras de raccord; e por vezes é definido apenas como um jump cut, como se fossem duas terminologias para a mesma coisa. Nenhuma dessas conjecturas está totalmente errada. Ora, se o raccord diz respeito à continuidade entre os planos, então um erro de continuidade pode ser descrito, naturalmente, como um faux raccord (falso raccord). Do mesmo modo que, se há uma quebra nas regras de raccord clássicas, também temos um faux raccord. E por fim também o jump cut é um faux raccord, embora não sejam estritamente a mesma coisa, como veremos adiante. Muitas das definições que se referem à montagem descontínua centram-se primordialmente no jump cut. Entretanto, apesar de o jump cut ser sim um faux raccord, e diga-se o mais conhecido, o faux raccord consiste em algo mais amplo.

Da mesma forma que o faux raccord é compreendido de diversas maneiras, também o jump cut enfrenta o mesmo problema. Para Bordwell há razões históricas para a utilização tão ampla desse termo, tema que ele explora em seu texto “Jump cut and blind spots”, ainda hoje uma das principais publicações sobre o assunto. Ele comenta: “Muitas vezes, qualquer edição disjuntiva ou descontínua é chamada de jump cut; o termo é até mesmo aplicado a transições abruptas entre cenas.” (Bordwell 1984, 4 tradução nossa). E adiante: “A produção de filmes mainstream generaliza o conceito de jump cut para cobrir uma descontinuidade de edição pouco ortodoxa” (Bordwell 1984, 10 tradução nossa).

Ironicamente, essas definições que Bordwell reclama para o jump cut, poderiam ser usadas sem o menor problema para o faux raccord. Talvez essa generalização do uso do termo jump cut se deva ao fato de que seja raro na literatura de língua inglesa o uso do termo faux raccord ou outro que o designe ou à montagem descontínua. Cada autor usa uma expressão que lhe convenha e muitas vezes o termo jump cut é usado para designar qualquer montagem descontínua.

Outra expressão da língua inglesa que pode se referir ao faux raccord é mismatch, que significa literalmente incompatibilidade ou falta de correspondência. Se o raccord é a correspondência entre os planos, então no faux raccord não há uma correspondência, ou uma ligação contínua entre dois planos; temos, portanto, um mismatch. Embora o termo apareça em algumas literaturas com o sentido de montagem descontínua ou faux raccord, na maior parte de suas aparições é usado com sentido de erro de continuidade.

Vale ressaltar que faux raccord e jump cut não são sinônimos: todo jump cut é um faux raccord, mas nem todo faux raccord é um jump cut. O faux raccord é um falso raccord, ou seja, é um raccord impreciso, é um corte que causa uma disjunção no tempo/espaço da narrativa. Portanto, todo corte que se encaixa nesse perfil é um faux raccord, seja uma justaposição, uma elipse, um graphic cut, ou um jump cut.

De modo a delimitar o espaço do jump cut dentro desse universo mais amplo do faux raccord, cabe iniciar essa discussão com excertos que compreendem definições do que é o jump cut.

Aumont & Marie explicam o jump cut de maneira sucinta:

Raccord entre dois planos quase idênticos, entre os quais a distância espaço-temporal é muito fraca. […] O efeito visual é tocante, sobretudo no caso frequente em que o objeto está centrado em uma ou várias personagens estáticas: tem-se a impressão de que a personagem ‘salta’ de repente, de maneira mais ou menos acentuada. (Aumont and Marie 2006, 265)

Bordwell descreve o jump cut, da seguinte maneira:

Embora este termo seja usado de várias maneiras, um significado primário é esse. Quando você corta dois planos do mesmo assunto, se os planos diferem apenas ligeiramente em ângulo ou composição, haverá um salto notável na tela. Em vez de aparecer como dois planos do assunto, o resultado parece que alguns quadros foram cortados de um único plano. Muitos cineastas acreditam que os jump cuts podem ser evitados deslocando a câmera pelo menos 30 graus do plano a plano (a chamada regra de 30°). (Bordwell & Thompson, K. 2013, 258 tradução nossa).

Por exemplo, o jump cut pode ser um corte de um plano para outro momento do mesmo enquadramento, em que há uma mudança abrupta, ou seja, os dois planos possuem semelhanças visuais entre si, variando a ação, o objeto ou a mise-en-scène, com ângulos de câmera, distância ou composição muito semelhantes. Ou pode ser um corte brusco dentro de um plano, no qual se interrompe uma fala ou um movimento, pula de uma parte da ação para outra, deixa parte do plano de fora e leva diretamente a um momento posterior, ou seja, é uma elipse sem mudança de enquadramento, que gera uma síntese do tempo, com a descontinuidade visual evidente. Por haver uma diferença de tempo entre planos semelhantes justapostos, a imagem aparece para nós como um pulo entre um plano e outro, análogo ao salto de agulha num disco de vinil (Macdonald 1969 apud Bordwell 1984, 10). Ou seja, o jump cut é a supressão de tempo no mesmo espaço. Um pedaço do tempo é retirado e o fluxo do tempo é interrompido. Logo implica em uma elipse temporal.

Refletindo novamente sobre o caráter descontínuo do cinema, podemos pensar que cada troca de frame é um pequeno jump cut, uma vez que há um recorte temporal de milésimos de segundos entre um frame e outro, com o mesmo enquadramento. O jump cut apenas torna evidente essa característica intrínseca do cinema, mostrando-a através da supressão de largos espaços de tempo entre um plano e outro.

O jump cut caracteriza-se pelo corte dentro do mesmo plano, ou seja, há a supressão de frames dentro de um mesmo plano ou uma mudança de ação dentro do mesmo enquadramento, suprimindo o tempo entre uma ação e outra. O jump cut cria saltos espaciais e temporais que rompem a transparência de uma narrativa considerada “naturalista”, obtendo-se uma supressão de tempo-espaço.

Para Bordwell existem diversas maneiras de se produzir um jump cut – o que também é uma verdade quando pensamos no faux raccord.

O jump cut é mais fácil de definir em relação à produção do que à percepção. Na finalização e edição, você pode criar um jump cut de várias maneiras. Você pode parar a câmera e alterar algum elemento do evento filmado antes de retomar. Você pode cortar frames de um plano. Ou você pode unir duas tomadas da mesma ação de posições de câmera aparentemente similares. (Bordwell 1984, 5 tradução nossa).

Segundo ele o que define estritamente o jump cut, diferenciando-o de outros métodos de descontinuidade, é que ele pressupõe um universo diegético e nele há uma continuidade de ponto de vista com uma descontinuidade de tempo. No jump cut, os planos que são aproximados tem enquadramentos muito parecidos, ou seja, muitos elementos enquadrados permanecem iguais, ao passo que alguns mudam em posição, aspecto ou escala.

Junto com a estabilidade do ponto de vista, o jump cut cria uma elipse temporal. A mudança que observamos em alguns elementos do campo visual é produzida ao omitir algum tempo. Assim, o jump cut pode configurar uma disparidade entre a duração da história (quanto tempo demoraria para mudar a posição na diegese) e a duração da trama (a mudança instantânea na tela). (Bordwell 1984, 5 tradução nossa).

Então as trucagens ao estilo de Méliès, ou a supressão de tempo dentro de uma mesma ação ou uma pequena variação de ângulo – que se caracteriza como a quebra da regra dos 30 graus3 , são todos o que chamamos de jump cut.

Importa ressaltar que no jump cut há uma continuidade virtual dada pela nossa percepção da constante de um elemento visual no enquadramento. Há sempre algo que identifica que se trata do mesmo espaço diegético. Assim, os planos têm semelhanças entre eles, seja um objeto, uma personagem, ou o cenário. Isso é o que Bordwell chama de “Continuidade do ponto de vista”.

Figura 1: Brincadeira com imagem de Étienne-Jules Marey, para explicar o jump cut. Fonte: http://mediamateur.fr/le-jump-cut-a-la-cote/

Por vezes, o pulo gerado pelo jump cut faz com que o corte seja nítido, sendo percebido pelos espectadores mais facilmente do que um raccord comum. Por conta dessa característica ele pode ser usado para problematizar uma situação ou evidenciar um efeito psicológico que se queira passar ao espectador.

Ele pode ser usado de maneira estilística ou discursiva, possuindo um forte efeito poético. Algumas finalidades do jump cut podem ser: representar um imediatismo ou distensão do tempo; causar um senso de ritmo ou dinamicidade; indicar passagem de tempo, evidenciando melhor momentos pontuais de sequências longas; por conta do seu caráter elíptico, o jump cut pode dar ao espectador a sensação de perder algo, ou como se algo estivesse faltando, tivesse sido retirado, como se fosse um erro técnico. Seu caráter descontínuo também contribui para a percepção da instabilidade mental ou física do personagem. Ainda, pode ser usado para mostrar alternação entre personagens distintos no mesmo ambiente ou o mesmo personagem trocando de figurino ou pose; também com o uso investigativo: o personagem muda de posição no quadro, enquanto busca por algo.

Apesar das múltiplas possibilidades, o uso do jump cut foi amplamente difundido e aceito em dois usos convencionais: o fantástico, no qual se simula a metamorfose ou dissolução de um objetivo ou pessoa, ou para a passagem do tempo.

Outro tipo de jump cut (e consequentemente faux raccord) é um corte chamado axial cut. Nesse corte a câmera se aproxima ou se afasta do assunto no mesmo eixo. Enquanto o jump cut geralmente implica numa descontinuidade temporal, o corte axial busca uma continuidade temporal. Esse tipo de corte foi muito comum no cinema americano dos anos 1920, também adotado pelos soviéticos. Entretanto, por não estar de acordo com as normas de raccord clássico e deixar o pulo nítido, é pouco usado nos dias atuais, sendo comum apenas no primeiro cinema.

Esse é um corte que desloca o enquadramento direto ao longo do eixo da lente. Normalmente, o corte nos leva direto de um plano amplo para uma visão mais próxima, mas também pode cortar direto de volta de um detalhe. O que poderia ser mais simples? No entanto, um dispositivo quase primitivo abrange possibilidades expressivas intrigantes. (Bordwell & Thompson, K. 2013).

Figura 2: Axial cut em filme russo “Nelly Raintseva” de 1916. Fonte: http://www.davidbordwell.net/blog/2009/11/27/seed-beds-of-style/

Segundo Bordwell, esse é um corte que acentua a profundidade de campo, uma vez que ao se aproximar para o segundo plano, coloca em evidência algo que estava ao fundo. Também esse movimento pode dar destaque a figura do primeiro plano, enfatizando uma expressão ou um detalhe.

Essa explanação sobre o jump cut por si esclarece a diferença entre o faux raccord e o jump cut, sendo esse último um tipo de faux raccord. Pautamo-nos em autores estudados na revisão bibliográfica que também fazem essa distinção. Por exemplo, é notória a separação entre o jump cut e o faux raccord quando Burch aponta possibilidades narrativas através de “certos progressos no vocabulário (reabilitação do ‘jump cut’ – mudança de plano sem mudança apreciável de ângulo ou de tamanho – e certos falsos ‘raccords’)” (1973, p.187). Ou seja, há uma compreensão de ambos como recursos distintos.

Apesar disso, tantos outros renomados autores usam o termo jump cut de forma genérica, como é o caso de Ken Dancyger, que traz uma descrição generalista, podendo ser enquadrada facilmente também como uma descrição de faux raccord:

O jump-cut por si só não é nada mais do que juntar dois planos descontínuos. Se dois planos reconhecem a mudança de direção, focado em uma ação inesperada, ou simplesmente não mostra a ação em um plano que prepare o espectador para o conteúdo do próximo plano, o resultado do jump-cut é demonstrar a descontinuidade. (Dancyger 2003, 136).

Já Vincent Amiel categoriza o jump cut como sendo um tipo de faux raccord4 (falso raccord):

[…] trata-se de um “salto” entre dois planos, produzindo um falso raccord. Voluntário ou não, consiste em não deslocar suficientemente a câmara numa mudança de eixo ou de distância (é em particular uma violação à chamada regra dos 30 graus). O espectador pode então ter a impressão de que a imagem “salta”. Os jovens realizadores da Nouvelle Vague (Godard, Truffaut, Rozier) fizeram dele uma figura de estilo recorrente. Depois, o termo ganhou uma acepção mais ampla, designando todos os efeitos de “salto” produzidos, por exemplo, pela interrupção de um plano. (Amiel 2007, 122).

O faux raccord define um tipo de transição entre planos, ou seja, um corte específico na linguagem cinematográfica.

Segundo o “Dicionário teórico e crítico de cinema”, o faux raccord se trata “de uma mudança de plano que escapa à lógica da transparência que atua na articulação” (Aumont and Marie 2006, 116). Ele rompe com a ideia de uma narrativa considerada “naturalista”, evidenciando o aparato e ampliando as possibilidades interpretativas. Na prática, tratam-se, em geral, de cortes bruscos nas trocas de planos, gerando uma descontinuidade ou supressão de tempo e espaço. Este recurso, que evidencia a montagem, reflete e trabalha criativamente algo inerente à linguagem cinematográfica: a troca de planos e a manipulação do tempo.

Como ressalta Comolli em “Algumas notas em torno da montagem”, o raccord tem como objetivo não perturbar a ilusão de continuidade e realidade, impedindo que o corte seja visível à recepção imediata, ao passo que o faux raccord tem como intenção primeira tornar evidente a descontinuidade intrínseca à montagem, tornando nítida a artificialidade do encadeamento dos planos. Traz ao espectador a consciência do corte, da fragmentação, da descontinuidade dos planos e dos fotogramas, inerente ao audiovisual. A evidência do corte denuncia o mito de realidade, colocando o produto audiovisual em seu lugar de aparato discursivo.

Em sua primeira edição do livro “A técnica da montagem cinematográfica”, Karel Reisz & Gavir Milar, frequentemente referem-se às quebras de continuidade como erros que desrespeitam a necessidade de fluidez de um filme. Assim, para eles o faux raccord não passaria de um erro que deveria ser evitado.

Por sua vez, Vincent Amiel também traz sua definição para o faux raccord – uma vez que caracterizou o jump cut como falso raccord. Em sua descrição ele fala da possibilidade de um faux raccord acontecer pela inabilidade na produção do filme, mas ressalta seu uso majoritário com intencionalidade estética:

[…] designa-se assim a passagem de um plano a outro que não corresponde às convenções de continuidade da montagem clássica. Por exemplo, quando o espectador sente um “salto” espacial ou temporal, quando os planos ou as cenas não “fazem raccord” logicamente. O falso raccord pode resultar de uma inabilidade, mas hoje é frequentemente uma escolha estética, num cinema moderno que privilegia as rupturas. (Amiel 2007, 121).

Marie Thérèse Journot faz parte do grupo de autores que identificam e descrevem o faux raccord como sendo antes de tudo um defeito. Ao descrever o “salto”, que seria o jump cut, ela coloca da seguinte maneira:

Este termo designa qualquer faux raccord constituído por uma falha na continuidade visual, quer decorra de um defeito de montagem ou, na projeção […] Trata-se também de uma forma de raccord (jump cut) obtido pelo corte, quase imperceptível, de algumas imagens no meio de um plano. […] O salto tornou-se uma prática discursiva e ostensiva, uma assinatura estilística, com o “Acossado” […] os movimentos das personagens têm aqui um aspecto brusco, enquanto a passagem de um plano para outro perde a sua fluidez pela ação dos faux raccords. (Journot 2006, 106 tradução nossa).

Apesar de dar ênfase à noção do faux raccord como uma falha, evidenciando um ponto de vista um pouco ortodoxo da linguagem cinematográfica clássica, Marie Thérèse Journot também reconhece seu uso como elemento discursivo na história do cinema:

O faux raccord é um raccord mal consolidado ou mal realizado. Mas também pode ser produzido deliberadamente e assim participar de uma estética que rompe com a lógica da transparência no trabalho da concepção do raccord. É frequente no cinema de Eisenstein, cuja edição é parcialmente baseada no conflito entre os planos e a ausência de continuidade. O cinema moderno, e Godard em particular, usará o faux raccord e o salto como distanciamento da ficção. (Journot 2006, 50 tradução nossa).

Bordwell também aborda a montagem descontínua sempre em contraponto às regras clássicas, entretanto, ele não trata esse tipo de corte como falha, mas como alternativa ao sistema clássico de construção narrativa, ou seja, escolhas dos autores. Essa postura é clara em todos seus textos que falam em algum ponto sobre o tema, como podemos ver nesta definição: “Qualquer sistema alternativo de juntar planos usando técnicas são inaceitáveis nos princípios de edição de continuidade. As possibilidades incluem mismatching das relações temporais e espaciais, violações do eixo de ação e concentração nas relações gráficas.” (2013, 500, tradução nossa)5. A montagem descontínua e o faux raccord são tidos para ele portanto como elemento discursivo.

Apesar desta definição ser pouco profunda, é possível também entender o faux raccord literalmente como raccord falso, ou seja, nessa definição o faux raccord aconteceria quando na junção entre os planos há em certos níveis alguma continuidade (seja de cenário, de ação etc), mas seria imperfeito por haver algum aspecto de erro na continuidade. Entretanto, é restrito caracterizá-lo desta maneira uma vez que as relações de cortes são mais complexas e, por vezes, intencionais.

Na narrativa clássica há uma tentativa intensa em esconder os cortes da audiência, uma vez que podem causar distrações. O raccord clássico objetiva através de um fluxo suave entre os planos reduzir a evidência de uma característica inerente ao cinema: a descontinuidade. Assim as relações entre os cortes são trabalhadas de modo que gere uma continuidade estética e simule uma fluidez e continuidade de ação.

Sabemos, portanto, que há uma tendência em definir o faux raccord, em contraponto às regras de montagem contínua, o que aqui classificamos como raccord. Levando isso em consideração temos aqui uma das definições para o faux raccord: este acontece quando há uma quebra das regras de continuidade clássica na junção entre os planos, uma quebra de raccord clássico. Ou seja, uma vez quebradas as regras fundamentais para um raccord perfeito, causando uma descontinuidade plástica, temos um faux raccord.

Por outro lado, Noël Burch diz o seguinte acerca do raccord:

Esta palavra rodeia-se de uma certa confusão pelo facto de ser usado correntemente para designar a mudança de plano. Mas de facto, ‘raccord’’ refere-se a qualquer elemento de continuidade entre dois ou vários planos. Pode existir ao nível dos objectos (num local de filmagem pode-se ouvir «esses óculos não estão ‘raccord’, o que significa que a personagem não trazia os mesmos óculos ou não usava mesmo óculos num plano designado a fazer ’raccord’ com o que está a ser filmado); pode existir ao nível do espaço (‘raccords’ de olhar, de direcção, de posição – seja de objectos, seja de pessoas); pode existir ao nível do espaço-tempo (no nosso exemplo da porta, a velocidade tem de «fazer ‘raccord’» de um plano para o outro, quer dizer tem de ser aparentemente a mesma). (Burch 1973, 17).

De modo que o raccord refere-se a todo e qualquer elemento de continuidade entre os planos (e não apenas às normas que surgiram com Griffith). Isso nos permite ter uma definição mais ampla e concreta do que viria a ser o faux raccord: o faux raccord acontece sempre que não há uma correspondência de elementos de raccord entre os planos. Assim, sempre que não há continuidade de um ou vários desses elementos de raccord, pode-se dizer que há um faux raccord.

Essa definição mais ampla se faz necessária para termos em conta que o faux raccord não precisa necessariamente estar vinculado à quebra das regras de continuidade clássica, podendo o termo ser usado para analisar outras obras descontínuas que nada tem a ver com esse padrão, como é o caso dos filmes de Méliès, ou do construtivismo russo, das vanguardas de 1920, do estilo MTV, dos documentários etc.

Em geral, no faux raccord os dois planos são conectados de forma que a mudança de plano fica evidente, o que pode ser descrito de forma genérica como um corte abrupto ou notável. Portanto, é uma violação acidental ou deliberada da continuidade, refletindo em uma recusa ao naturalismo e à linguagem clássica. O ponto de edição é claro pela quebra na fluidez da continuidade. A ruptura trazida por esse tipo de corte, traz à tona a natureza ambígua do espaço cinematográfico e evidencia a essência disjuntiva do cinema, e descontinuidade intrínseca da montagem, que as regras de raccord tentam ocultar.

No tocante ao faux raccord, Deleuze diz que escapando da lógica continuísta da narrativa clássica de conjuntos, ele se torna uma dimensão do aberto: “O falso raccord não é nem um raccord de continuidade nem uma ruptura ou uma descontinuidade no raccord. O falso raccord é por si só uma dimensão do Aberto, que escapa aos conjuntos e às suas partes” (Deleuze 1992, 52).

Esses cortes mais abertos podem criar novas conexões mentais, subjetivas a cada espectador, e gera, portanto, uma ambiguidade de interpretações.

Com o uso do faux raccord a continuidade espacial e temporal fica comprometida, de modo que cabe ao espectador completar esses espaços e criar conexões subjetivas sobre a ligação dos planos. A evidência do corte também pode corroborar para esse desenlace cognitivo, através do choque, da reflexão sobre a metalinguagem e da reflexão sobre a intencionalidade.

É que o cinema não opera apenas pela justaposição de fotogramas. A sequência de quadros, inicialmente “fechados”, leva, no momento da montagem (edição), a um salto qualitativo, a uma síntese, a uma “abertura”, caracterizada pela ideia do Todo. O Todo surge como algo que não estava sendo esperado. É uma espécie de falso raccord, quer dizer, espera-se uma continuidade lógica de cena para cena mas, o que se percebe, é um salto para algo diferente. Deleuze chama a isso de “Aberto”, uma fuga que este cinema propicia e que escapa à lógica continuísta dos conjuntos. (Filho 2013, 53).

Como já posto de maneira esparsa, o faux raccord pode ocorrer de maneira acidental; na composição não contínua dos planos; em decorrência da má execução das regras de raccord; ou pode ser reflexo de uma desobediência proposital às regras com propósitos expressivos e/ou dramáticos. Nas duas situações ele pode ocorrer ou ser pensado na etapa da decupagem, da filmagem ou da montagem, e pode ser realizado, portanto, pela intenção do diretor ou do montador.

Apesar de o faux raccord poder ser definido levando-se em consideração a ruptura das regras de continuidade clássica, ele não se faz inteligível, como coloca Aumont: “O falso-raccord é, entretanto, um raccord, pelo fato de ele assegurar uma continuidade mínima da narrativa: ele não impede a compreensão correta da história contada, e só é ‘falso’ na visão de uma ‘veracidade’ convencional, a de uma certa continuidade do visível.” (Aumont and Marie 2006, 116).

Em quase todo seu livro “Práxis do Cinema”, Noël Burch faz praticamente uma apologia ao faux raccord. Descreve inicialmente o que seria o raccord e os tipos de relação entre planos, para então falar das violações radicais dos princípios desse raccord e como essas violações se mostram importantes para a construção narrativa. Em sua concepção, o faux raccord é recebido sem maiores perturbações por parte do espectador quando ele é usado com um papel estrutural na narrativa, ou seja, quando é usado com um propósito discursivo ou estético.

Ao falar de um faux raccord de direção diz que “a beleza da sequência vem muito precisamente dessas «bifurcações», destas rupturas do trajecto aparente no ‘écran’ por oposição à continuidade do trajecto real” (Burch 1973, 58).

Para o autor, esse tipo de faux raccord se justifica esteticamente e é apreendido pelo público, pois “[…] o espírito reconstitui o movimento por si próprio […] que sente imediatamente o efeito de um movimento contínuo «dado» por um movimento descontínuo” (Burch 1973, 59). Visualmente os planos não tem conexões entre si, mas naturalmente ou em decorrência do estranhamento o espectador cria suas próprias conexões, conferindo continuidade ou associação entre os conteúdos.

Noël Burch acredita que o faux raccord construído dentro de um mesmo espaço diegético é mais forte do que a relação de planos de espaços diferentes (como é o caso da montagem intelectual de Eisenstein). Desse modo, pra ele, essa reconstituição mental da continuidade entre os planos é mais forte quando se trata de um jump cut, do que de outro tipo de faux raccord.

O efeito de movimentos contrariados, ou simplesmente divergentes, montados ‘cut-cut’ mas sobre objectos diferentes, mudanças de direcção que apenas se fazem em relação a uma direcção virtual, oferece também, evidentemente, possibilidades de estruturação, mas mais pobres porque não dialéticas, do que as oferecidas pelos planos com um objecto comum. (Burch 1973, 59-60).

O faux raccord, portanto, nada mais é do que um tipo de corte que designa a quebra de continuidade entre os planos. De modo que qualquer sucessão de planos que apresente uma descontinuidade pode ser descrita como um faux raccord. Entretanto há alguns tipos de corte, já nomeados e recorrentes, que podemos entender e englobar como faux raccords. Dentre eles estão os apresentados nos tópicos anteriores – jump cut, axial cut, graphic match – e as repetições (uma das relações temporais de Burch).

O faux raccord de repetição nada mais é do que a repetição de trecho da mesma ação em dois planos distintos. Há, portanto, um estiramento do tempo em relação ao tempo real da ação. Esse tipo de corte foi bastante usado em comédias, cenas de perseguição e ação, porém, também em filmes mais reflexivos ou poéticos. Por exemplo, “[…] em Week-end (1969), Godard mostra duas vezes o mesmo acontecimento de dois pontos de vista sucessivos, a 90°, e a duas distâncias diferentes, e ele acrescenta uma cartela com a inscrição irônica: ‘Falso-raccord’.” (Aumont and Marie 2006, 116).

Há quem diga que o faux raccord pode ser designado não apenas no corte, mas também no não corte: quer dizer, quando uma ação “pede” um corte e, no entanto, ele não acontece. Por exemplo, imagine uma cena em que uma pessoa caminha pela rua e se volta para outra direção, o natural – segundo as normas da montagem clássica – seria cortar para um plano com seu ponto de vista. Entretanto, quando se permanece no plano anterior, sem revelar o que chamou atenção da personagem, configura-se num faux raccord, uma vez que não obedece às regras de continuidade transparente.

Há também o faux raccord literal, que se dá quando existe literalmente uma falsa continuidade entre os planos. Por exemplo, há uma mudança de planos usando como referência a linha do olhar, porém, o plano seguinte não corresponde de fato ao que a personagem está olhando, mas sim a um outro plano desconexo. O mesmo pode ocorrer na mudança de planos por movimento. Nesse caso podemos dizer que temos então o faux raccord de olhar e de movimento. Noël Burch, ao analisar os níveis de desorientação de determinados faux raccords, define esse tipo de corte chamando-o de “raccord de apreensão retardada”: “O mal-estar da desorientação em particular («falsos» ‘raccords’ de olhar, de posição, de direcção), cujos vectores são evidentemente «reguláveis», pode resolver-se numa nova orientação suscitando um tipo de estrutura que chamamos «‘raccord’ de apreensão retardada».” (Burch 1973, 147).

Figura 3: Exemplo de impossible match on action no filme “The Graduate” (1967). Fonte: retirado de frames do filme.

Outra forma de faux raccord é o corte que representa uma correspondência impossível na ação, conhecido em inglês como impossible match on action ou impossible continuous action. Nessa justaposição a ação parece fluida e contínua, mas o fundo se altera repentinamente de um plano para outro. A relação entre os planos é dada pelo movimento do assunto, que perpassa de um plano a outro, continuando a mesma ação. Usualmente esse corte é empregado como transição entre cenas, em locais e situações diferentes, mas que tem como centro o mesmo assunto.

Por sua vez, o graphic match, em vez de ter o mesmo assunto como ligação entre os planos, utiliza-se de semelhanças visuais entre assuntos distintos para compor essa pretensa continuidade. A relação é posta pelas semelhanças visuais de um plano a outro, não precisando ter necessariamente o mesmo formato ou ser o mesmo objeto: a relação gráfica pode ser dada pela cor, forma, tom, etc.

Mencionamos anteriormente que o graphic match é chamado recorrentemente de match cut. Entretanto, para os criadores do termo graphic match David Bordwell e Kristin Thompson, isso não passa de um equívoco.

Figura 4: Exemplo de graphic match no filme “Grease” (1978). Fonte: retirado de frames do filme.

De acordo com thompson, “[…] graphic matches não são sinônimo de ‘match cuts’ nem a base para a edição contínua” (Thompson 2011, tradução nossa). O uso da expressão “match” nas terminologias de certos tipos de corte não implica necessariamente que seja um corte transparente. A maior parte dos cortes que obedecem às regras de continuidade são descritos usualmente como match cuts. Porém, por conta dessa associação entre correspondência6e continuidade, criou-se a ideia errônea de que sempre que existe uma correspondência de assunto entre os planos, há continuidade entre os planos, o que evidentemente é uma concepção supérflua. Vide, por exemplo, o jump cut e o graphic match que buscamos explanar agora, nos quais há a correspondência de assuntos entre os planos, sem, no entanto, obedecer à fluidez do raccord perfeito.

Thompson explica: “Em geral, ‘continuidade’ significa que um espaço e tempo coerentes continuam através do corte, de modo que a compreensão do espectador de uma história não é perturbada pela sensação de que os períodos de tempo foram deixados de fora ou que os personagens mudaram de posição” Thompson 2011, tradução nossa), ao passo que “‘Match’, como aplicado à edição, significa simplesmente que algum elemento é transferido de um plano para o próximo. Isso não significa necessariamente que esse elemento crie uma sensação de continuidade.” (idem).

Posto isso, sabemos, portanto, que o graphic match não entra no grupo dos convencionais match cuts ou regras de raccord. Mas então o que seria?

Em certos níveis é possível enquadrar o graphic match como um faux raccord, uma vez que consiste em dois planos de espaços e tempos em sua maioria das vezes distintos. Não há raccord no sentido estrito, uma vez que a aclamada “continuidade”, nesse caso, se dá apenas por associação gráfica. Há um pulo na imagem quando colocadas duas imagens semelhantes, porém distintas: “a justaposição de dois planos similares significa um efeito perturbador, um salto, na percepção” (Nogueira 2010, 145). A mudança de planos fica evidente, não mais transparente; a única continuidade é visual.

Graphic matches precisos o suficiente para serem notados, tendem a sacudir-nos um pouco da nossa concentração suave na ação da história. Eles não são o básico da continuidade, como afirma a Wikipédia. Pelo contrário, muitas vezes aparecem em filmes fora da tradição de continuidade. Filmes abstratos frequentemente brincam com as semelhanças gráficas (matches) ou contrastes (mismatches) entre formas de plano a plano. Tal jogo abstrato é, de fato, seu assunto, e nós prestamos atenção ao fluxo pictórico, assim como devemos prestar atenção à história em um filme narrativo convencional. (Thompson, 2011, tradução nossa).

Assim como em qualquer tipo de faux raccord, o graphic match não precisa necessariamente ser usado como parte da construção narrativa, podendo ser usado unicamente de maneira estética. Entretanto, um de seus exemplos mais famosos é uma aplicação narrativa e discursiva no filme “2001: A Odisseia do Espaço” (1968), como bem pontua Monaco:

Possivelmente, o dispositivo dialético mais comum é o match cut, que liga duas cenas díspares pela repetição de uma ação ou uma forma, ou a duplicação da mise-en-scène. O match cut de Stanley Kubrick em 2001: A Odisseia do Espaço (1968), entre um osso pré-histórico girando no ar e uma estação espacial do século XXI rotativa no espaço, possivelmente é o match cut mais ambicioso da história, uma vez que tenta unir a pré-história com o futuro antropológico ao mesmo tempo, pois cria um significado especial dentro do corte, enfatizando as funções do osso e da estação espacial como ferramentas, extensões das capacidades humanas. (Monaco 2000, 219 tradução nossa).

E, mais uma vez reforçando a ideia de que graphic matches não são fluidos e não compõem o arcabouço de cortes contínuos, Thompson diz que “[…] aqui, o graphic match tem uma função narrativa, embora não crie o movimento suave de uma cena para outra que os filmes clássicos tendem a ter. É mais como o que às vezes é chamado de ‘corte que choca’7, que surpreende o espectador.” (Thompson 2011, tradução nossa).

Figura 5: Famoso Graphic Match no filme “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). Fonte: http://nofilmschool.com/2017/02/watch-4-things-all-great-edits-have-common

Embora, como vimos, tipos específicos de cortes (como o jump cut e o graphic match) possam ser considerados faux raccords, há certas combinações de planos que não se enquadram precisamente em nenhuma dessas definições, mas que podem ser tidos como faux raccords. Esse é o caso do famoso corte do fósforo para o pôr do sol no deserto, no filme “Lawrence da Arábia” (1962). Existe uma certa polêmica com relação a esse corte, uma vez que por vezes ele é descrito como um jump cut e, tantas outras, como match cut ou graphic match. Thompson resolve esse enigma da seguinte forma:

O corte do fósforo para o horizonte do deserto da Jordânia em Lawrence da Arábia é um caso mais complicado. O fósforo é colocado na metade esquerda do quadro panorâmico anamórfico, enquanto o sol nasce na metade direita. Além disso, o plano do fósforo é muito brilhante, enquanto a cena do deserto é bastante escura, com o sol apenas começando a brilhar acima do horizonte um pouco depois. Graficamente, não há muito para ligá-los, embora eu pense que o espectador tenha um forte senso de uma conexão entre o fósforo e o sol. Eu diria que é um link conceitual, não gráfico. É um link que fazemos com base em dois objetos brilhantes que não são compatíveis com composição ou espacial, mas simplesmente justapostos. (Thompson 2011, tradução nossa).

Noël Burch, ao iniciar sua reflexão acerca do uso do “falso raccord”, fala de um tipo de relação entre os planos que chama de “fundido encadeado”8, que seria o que Bordwell classifica como graphic match. A respeito desse corte, aponta que: “[…] através do «corte nítido», em que é a memória do olho que efectua a aproximação entre o plano A e o plano B estabelecendo as comparações donde nascem as tensões estruturais que são a razão de ser deste tipo de montagem.” (Burch 1973, 55).

No mesmo trecho o autor antevê o uso excessivo desse tipo de corte como passagem do tempo, sendo hoje, inclusive, parte do léxico da construção cinematográfica. Entretanto, ressalta seus usos anteriores e seu potencial plástico, rítmico e poético.

Figura 6: Famoso corte do filme Lawrence da Arábia (1962). Fonte: http://www.unsungfilms.com/11096/on-the-essence-of-cinema-part-06/

Mais um tipo de corte que pode ser considerado faux raccord é o chamado smash cut, que consiste em mudar abruptamente o plano, em geral num momento em que o corte não era esperado. Por vezes os planos não se conectam, havendo uma diferença evidente das ações em um e outro plano. Por exemplo fazendo a mudança de um plano sem muita movimentação interna e silencioso, para um outro agitado.

A priori, qualquer montagem que não faça raccord ou desobedeça às regras fundamentais de continuidade clássica podem ser chamadas de faux raccord. Desse modo, quando temos em sequência dois planos com angulações distintas, a continuidade se dá nesses planos pela própria narrativa, continuidade da ação e do diálogo. No entanto, não é usual e nem convencional que se use dois pontos de vista (dois planos subjetivos) em uma sequência, menos ainda como na angulação utilizada no exemplo citado.

E, por fim, a utilização do faux raccord também pode ser motivada em função do som, ao invés da descontinuidade pela quebra do tempo diegético. Nesses casos, som e imagem não correspondem a algo factível ou são organizados propositalmente em dessincronia. Mais uma vez “Acossado” (1960) de Godard carrega diversos exemplos clássicos desse tipo de faux raccord.

Conclusão

Como pudemos ver, há diversos tipos de corte que podem ser enquadrados como faux raccord e, além das possibilidades descritas aqui, sabemos que existem inúmeras outras formas de realizá-lo. Concluímos que o ponto em comum em todos esses cortes e possibilidades é a quebra de continuidade ou das regras de raccord clássicos, uma vez que o faux raccord nada mais é que a ausência do raccord, o falso raccord, anti-raccord, o não raccord.

A partir da análise de diversas definições, pudemos postular o que é o faux raccord, compreendendo suas nuances e características. Com isso conseguimos ter uma noção mais ampla de seu significado e possibilidades de uso, enquadrando-o dentro das ferramentas da linguagem cinematográfica. A partir de sua definição pudemos também depreender exemplos de cortes e montagens que podem corresponder a ele.

Com esse artigo damos as bases teóricas que permitiram compreender e definir o faux raccord como elemento de montagem, analisá-lo no contexto histórico e compreendê-lo da perspectiva comunicativa.

Notas finais

1 Conforme visto no e-dicionário de termos literários. Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6615/anisocronia/

2 Grifo nosso

3 A regra exige que não se deve juntar dois planos cujos pontos de vista da câmera estão a menos de 30 graus entre si.

4 Optamos pela utilização, nessa pesquisa, do termo integralmente em língua estrangeira por entender que a tradução de apenas parte do termo não facilita a compreensão do mesmo, tornando-o restrito nas buscas apenas para textos da língua portuguesa.

5 Grifo nosso

6 Tradução livre para o termo Match.

7 Tradução de “shock cut”.

8 Livro traduzido para o português de Portugal.

Referências Bibliográficas

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Filmografia

Nelly Raintseva. 1916. De Yevgeni Bauer. Rússia.

Week-end.1969. De Jean-Luc Godard. França.

The Graduate. 1967. De Mike Nichols. Estados Unidos.

Grease. 1978. De Randal Kleiser. Estados Unidos.

2001: A Space Odyssey. 1968. De Stanley Kubrick. Estados Unidos.

Lawrence of Arabia. 1962. De David Lean. Reino Unido e Estados Unidos.

À bout de souffle.1960. De Jean-Luc Godard. França.