Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Medea: myth itinerances in different enunciative contexts

Medeia: itinerâncias do mito em diferentes contextos enunciativos

Alex Beigui

Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil

Abstract

The research is part of one of the investigations carried out by DRAMATIC - Research Group in Dramaturgy: Theories, Intermediates and Cultural Scene, registered in the CNPq Group Directory, whose work is linked to CLE - Center de Langues et Littératures Européennes Comparées da Université from Lausanne. Since 2014, we have sought to investigate the unfolding of tragic myths and their different modes of discourse and performativity in contemporary times. After an exhaustive process of mapping the myth of Antigone, we intend to extend our field of analysis to the myth of Medea, based on the notion of “cultural dialogism” and “Differential Comparison”, proposed by Mikhail Bakthin (2003) and Ute Heidmann (2014) respectively. Also part of the theoretical scope of the proposed investigation is the dialogue with the conceptions of myth arising from Latin American and Afro-Amerindian epistemological decolonial currents. In this sense, authors such as (MAZAMA, 2019); (SODRÉ, 2017); (LOUSADA, 2016); (MBEMBE, 2014); (TAYLOR, 2013); SANTOS (2009); (DUSSEL, 2009); (VISVANATHAN, 2009); (MASOLO, 2009); (RAVETTI, 2002); (PRANDI, 2001); (MARTINS, 1997); (SAID, 1990), to name the most expressive ones regarding the borders and diasporas that involve cultural relations and appropriations.

Keywords: Medea, Myth, Rewriting, Textuality, Cinema.

Introdução

Acredita-se que o entendimento da adaptação e da apropriação de mitos clássicos surgem como forma interdiscursiva, de modo que sua sobrevivência e permanência obedecem a múltiplos mecanismos de reescritura, ancorados em novas questões e problemáticas interpretativas. A ação de escrita associa-se diretamente à ação de leitura e de estados de recepção, o que inclui o histórico e a transposição temporal sobre o extrato textual, a sua “geografia” cultural e política a partir de uma “comparação diferencial”, isto é, diferenças discursivas presentes entre linguagens distintas. Desse modo, além do registro textual (obra escrita), canonizada ou marginalizada, faz-se urgente pensar a reescritura e a apropriação não apenas a partir de uma abordagem comparada tradicional em que se pese, sobretudo, pensar os níveis de proximidade e de similitude entre o texto referente (de partida) e os textos recriados (de chegada), mas pensá-los através de uma comparação diferenciada.

A ideia de diferença, nesse contexto, diz respeito à vida do texto na linguagem e na cultura, envolvendo, para além dos aspectos de similitude e de continuidade, aspectos potenciais de desvio de sentido, das condições e dos intertextos relacionados ao texto referente, tradução, transcriação linguística, apropriação do mito por outras linguagens, configuração cultural do texto em outras línguas e em outros dispositivos discursivos e artísticos. Nessa perspectiva, o trágico é visto como Fênix que sustenta a proliferação do mito, acentuando sua representação estética, social, conceitual e política em diferentes contextos enunciativos (poemas, romances, contos, filmes, performances etc...). Sob esse prisma, Medeia, assim como Antígona, tornou-se um dos temas mais recorrentes dentro das artes, da filosofia e da história, fato que se deve, em muito, a capacidade migratória, regenerativa e apropriativa dos mitos.

Evitemos falar em “transformação” porque o termo pode colocar em dúvida a permanência do mito, isto é, o seu princípio de continuidade. Todavia, trata-se de perceber quais os elos de interrupção presentes nos filmes de Pier Paolo Pasolini (1969) e Lars Von Trier (1988). Para uma melhor compreensão do conceito de intermídia nos processos de reescritura do mito de Medeia, optamos por analisar os respectivos filmes, apontando os campos diferenciais de seus modos discursivos, postos em questionamento pelo movimento da reescrita. Assim como em Antígona, de Sófocles, percebe-se que o mito de “Medeia”, desde Eurípedes, adquire uma performatividade que atravessa o tempo e que dessa performance escritural resulta questões acerca do sentido do trágico em nossos dias; do lugar do texto na cena contemporânea, assim como o entendimento dos seus diversos níveis de tensão, sempre dependes do fluxo de sua dinastia e transitoriedade. O mito e o texto renascem, proliferam-se, redescobrem-se e se reinventam dentro e fora do gênero que o produziu. Tais desvios marcam a diferença ao mesmo tempo em que expõe e suplementa a obra referente, tornando-a movente. O mito literário e suas variantes (interdiscursividades) aparece não apenas como ponto de partida, mas como eixo de todo o processo criativo. Sobre este aspecto cabem algumas prévias considerações acerca do conceito de “signo”, “texto”, “adaptação”, “apropriação” e “reescritura”.

Figura 1 – Cena do filme Medeia (1969), de Pier Paolo Pasolini

Figura 2 – Cena do filme Medeia (1988), de Lars Von Trier

O signo traz em si uma ideia de dependência, uma vez que ele é sempre colocado em circulação através de outros signos. Desse modo, podemos dizer que o signo, em certa medida, compromete a autonomia da linguagem (sistema aberto) à medida que tenta manter a função do referente sempre ativada (código, registro, texto). Para Charles Pierce (1992), o ressurgimento do signo em uma determinada cadeia depende desse grau de substituição e permanência, segundo o qual o signo age, movimenta-se. Paralelo à noção de substituição, é importante atentar para a noção de presença conferida ao signo (GUMBRECHT, 2010). A relação presença/ausência é de fundamental importância quando estamos procurando entender a questão da performance escritural do mito em contextos de enunciação distintos, sua operacionalidade em outro tipo de escritura, gênero, bem como a sua organização em imagens (poéticas, narrativas, cênicas, fílmicas, pictóricas etc.). Na tensão “Ausência / Presença” encontra-se, pois, o espaço emergente de significação da imagem, o vazio provocado pelo texto, a partir do qual se insere o papel decisivo do leitor/escritor/encenador/diretor/espectador. Nesse sentido, podemos preliminarmente afirmar que a leitura e a produção de sentido são o motor que coloca o mito em movência e em errância.

Alguns pressupostos

Ao reconhecermos “Medeia” como signo em rotação, para usar termo caro a Otávio Paz, podemos pensar não apenas o mito e o texto referente, mas a obra como sistema, como um processo de comunicação, revestido e entrecortado por vários nichos e índices de performatividade, entre eles, podemos destacar na obra de Eurípedes: o feminino, o sangue, o corpo, o filicídio, a maternidade, a água, entre outros). Por um lado, trata-se de estruturas discursivas que carregam consigo imagens de intenso poder sugestivo e ideológico; por outro, trata-se de tessitura imaginária, apontando imagens recorrentes, símbolos criados na/pela linguagem que estruturam um certo modo de ver o mito como conceito operacional em diferentes tempos. Reconhecemos que apontar tais signos, ainda que importante, não é suficiente para compreendermos mais profundamente a potência que faz um determinado mito ressurgir em distintos contextos. A esse movimento errático, pode-se atribuir uma lógica de pergunta e resposta. Em outras palavras, o mito é acionado para responder a questões de uma época, nunca estando preso a ela completamente, podendo ressurgir das cinzas.

Cabe-nos pensar os intertextos teatrais elencados (obras dramatúrgicas) em sua configuração pré-cênica, espécie de pré-expressivo do texto cênico, isto é enquanto apelo direto a uma subjetividade que atua sobre o texto referente, reatualizando seus potenciais discursivos, conceituais e históricos. A noção de interpretante aqui pode ser substituída pela de “leitor modelo” (Humberto Eco, 1988) ou de “espectador emancipado” (Jacques Rancière, 2012) ou mesmo pela função estética do espectador no sentido de Jorge Dubatti (2020), pois verificamos uma intensa aproximação entre o leitor no sentido de escritor/co-criador e o espectador. Desse modo, passamos a lidar com um processo de escuta; a própria leitura como escuta do outro/texto; leitura e rescrita como partes indissociáveis do fenômeno da reescritura do mito. Tomemos o conceito de “adaptação” proposto por Doc Comparato no final do Século XX:

“/.../ a adaptação é uma transcriação de linguagem que altera o suporte linguístico utilizado para contar a história. Isto equivale transubstanciar, ou seja, transformar a substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem, Portanto, já que uma obra é uma unidade de conteúdo e forma, no momento em que fazemos nosso conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, forçosamente estamos dentro de um processo de recriação, de transubstanciação” (COMPARATO, 1995, p. 330).

A concepção levantada por Comparato parece não abarcar todo tipo de reescritura, porém especificamente a de textos literários para o cinema. Por outro lado, o autor tem razão quando se refere a toda forma de adequação como contendo, por mais próxima que se coloque frente ao referente, um nível de desvio. No caso da Medeia de Eurípedes, ela representa um bom exemplo dessa capacidade de se manter fiel ao mito e potencializar, paradoxalmente, desvios via o campo de enunciação ou dos efeitos de sentido. Evidencia-se desse modo que o processo de releitura se aproxima, em certa medida, do processo de tradução, isto é, a inexistência de um único modo de traduzir. Em outras palavras, a tradução como uma performance do original; como sendo um trabalho de criação e não de transposição. Tal consciência, exige-nos pensar paralelamente à pergunta “qual o propósito da tradução?”, “qual o propósito de reescritura do mito?”.

A principal corrente de estudos acerca da Teoria Comparativa Diferencial encontra-se nos recentes estudos da pesquisadora Ute Heidmann, docente da Université de Lausanne (Suíça). A partir da pesquisa textual, da narração, da descrição, da argumentação e da análise do discurso literário, Heidmann propõe um método comparativo diferencial e discursivo dos gêneros, das (re) escritas dos mitos literários, dos contos e da tradução, além de partir de uma abordagem interdisciplinar acerca do texto literário e seus diversos contextos culturais de re(a)presentação.

Além da pertinência do projeto às linhas de atuação da pesquisadora colaboradora e da instituição parceira, enfatizamos a relevância da pesquisa dentro dos estudos entre a literatura e a cultura, assim como entre signo verbal e signo visual, apontando como um dos eixos da pesquisa contemporânea, o lugar do texto e seus desdobramentos híbridos na cena contemporânea (especialmente a teatral e a fílmica). Para tanto, será preciso entrar em contato com as referências bibliográficas da autora, em sua maioria, ainda não traduzida do francês, do inglês e do alemão, para o português.

A pesquisa nos permite contribuir para identificar os diferentes tipos de produção, paralelamente, às novas abordagens acerca da estética teatral, em sua tripla natureza texto escrito/cênico/fílmico. O estudo comparativo entre textos e extratos cênicos provindos de diferentes idiomas, regiões e nichos de intertextualidade discursiva facilitará o confronto entre as obras e o método proposto pela Teoria da Comparação Diferencial, além de propiciar um melhor entendimento das matrizes culturais e estéticas em jogo no mito de “Medeia”. Nesse sentido, é curioso observarmos que a peça Gota D´água de Chico Buarque e Paulo Pontes seja uma adaptação do caso especial “Medeia”, escrito em 1972 para televisão, pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. Nesse sentido, explica Fernanda Maddaluno: “a intertextualidade é a irrupção de um texto no outro. As relações existentes de texto para texto são de ordens diversas e estabelecem os limites da intertextualidade.” (MADDALUNO, 1991, p. 5).

Vale ressaltar que o sentido de apropriação se soma ao de “intertextualidade”. Sobre esse ponto de vista, a encenação, a remontagem, a filmagem se configuram como modos de intermidialidade, a partir dos quais o mito de “Medeia” ressurge, agregando valores e elementos não só paratextuais como culturais. Chamamos atenção para o fato de que um mito pode se tornar um conceito-chave para compreensão de alguns acontecimentos históricos. A pesquisa acerca da “apropriação” aponta para uma necessidade de atualização do texto referente (de partida) a partir de um estudo comparado minucioso da(s) obra(s) de base, no caso a Medeia de Eurípedes. Tendo em vista nossa trajetória de análise com o mito de “Antígona”, faz-se urgente e oportuno uma investigação mais apurada sobre as questões acima abordadas no que se refere ao mito de “Medeia”.

A pesquisa justifica-se por permitir ampliar o corpus com o qual vem se consolidando, ao longo dos anos, a investigação sobre a reescrita de mitos clássicos na contemporaneidade. Trata-se de dar continuidade ao horizonte teórico e metodológico, abrindo-o para possibilidades de integração entre as Linhas de Pesquisa, desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Letras e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Nesse sentido, a partir do estudo do mito de “Antígona”, foi possível o desenvolvimento de dois projetos de Iniciação Cientifica finalizados e um projeto de mestrado em andamento. Acredita-se que com o novo projeto de estudo do mito de “Medeia” será possível consolidar a aplicabilidade do Método da Comparação Diferencial. A continuidade do projeto implica também o confronto entre o método, proposto por Ute Heidmann e as tensões que operam as epistemologias do sul e os estudos decoloniais, a partir das obras previamente selecionadas.

Um dos problemas dentro dos estudos que envolvem a comparação entre mitos, fábulas, textos de diferentes culturas, encontra-se na abordagem da analogia por semelhança, ou seja, procedimento clássico a partir do qual a comparação ocorre sem considerar as marcas diferenciais e culturais que tornam a reescritura de um mito, ou a transposição de um texto para outro gênero possível. Uma das questões levantadas por Ítalo Calvino em seu livro Por que ler os clássicos refere-se ao modo como cada obra clássica possibilita a leitura de um tempo, época, sociedade. Nesse sentido, o clássico não se refere ao passado, mas a uma consciência, uma voz que atravessa o tempo, pondo-se como instrumento de observação de aspectos pontuais da realidade. Nesse sentido, o mito oferece uma espécie de hermenêutica para o seu tempo, descolando-se de seu sentido de origem e dissipando-se na malha infinita de releituras. Trata-se, pois, de pesquisa qualitativa a partir do método da Comparação Diferencial, com corpus definido.

O mito trágico de Medeia, dentro dessa perspectiva, exemplifica essa dupla natureza temporal: o passado no presente e o presente através da ótica do passado. Em outras palavras, o clássico se reconfigura a partir dos elementos culturais em jogo, servindo como mediação de alteridades. Para Ute Heidmann, é na diferença que o comparatista encontra pontes de analogia entre as obras e não em sua semelhança. Logo, o problema do mito contempla inevitavelmente uma abordagem cultural. Tendo em vista a atualidade e urgência de pensar a problemática do texto, sua função e crise frente às múltiplas abordagens que compreende o discurso e a discursividade (teatral, plástica, performática, fílmica), partiremos dos recentes estudos pautados no método da Teoria da Comparação Diferencial, proposto por Heidmann (2008, 2013, 2014) e na vasta obra da teoria do discurso apresentada por Dominique Maingueneau (2008, 2014), que consiste na relação enfática entre a tradução e a intertextualidade: “os estudos que aqui seguem esclarecem a vantagem heurística de levar em conta as diferenças tão comumente negligenciadas em favor das semelhanças e de pretensos universais na análise das línguas, das literaturas e das culturas”. (HEIDMANN; ADAM, 20011, p. 16).

O método investigativo que propomos partirá da Teoria da Comparação Diferencial das obras que envolvem o mito de Medeia, tomando como ponto de partida a reescritura do mito. O resultado esperado da pesquisa é demonstrar a pertinência da Comparação Diferencial como método para a abordagem da reescritura cênica de mitos, em especial o de Medeia, assim como organizar em forma de artigos ou de livro, os elementos que expliquem a recorrência do mito de Medeia em diferentes contextos enunciativos e em sua abertura enquanto dispositivo conceitual para entender aspectos da realidade.

Entre duas leituras

Uma das principais diferenças entre os discursos fílmicos, por nós selecionados, é o modo como o mito é lido pela ótica dos dois diretores. Em Pasolini, o mito Medeia assume um intertexto diretamente ligado à cultura, ele encarna não apenas a mulher traída, mas a estrangeira, a outra em sua alteridade, ou melhor, em sua outridade. Sendo a estrangeira, fora de sua pátria, Medeia encarna em si mesma toda simbologia do exílio e do banimento. Nessa perspectiva, podemos relacionar o mito com a própria cisão oriente e ocidente, barbárie e civilização. A personagem assume todos os estereótipos de uma imagem construída sobre o outro. Suas ações acabam confirmando essa ligação com as forças primitivas e instintivas de um inconsciente, instintivo, passional e violento. Para Edward Said:

O valor, a eficácia, a forca e a aparente veracidade de uma declaração escrita sobre o Oriente, portanto, baseiam-se muito pouco no próprio Oriente, e não podem instrumentalmente depender dele como tal. Ao contrário, a declaração escrita é urna presença para o leitor em virtude de ter excluído, deslocado e tornado supérfluo qualquer tipo de “coisa autentica” como “o Oriente”. Desse modo, todo o orientalismo está fora do Oriente, e afastado dele: que o orientalismo tenha qualquer sentido depende mais do Ocidente que do Oriente, e esse sentido é diretamente tributário das várias técnicas ocidentais de representação que tornam o Oriente visível, claro e “lá” no discurso sobre ele. E essas representações utilizam-se, para os seus eleitos, de instituições, tradições, convenções e códigos consentidos, e não de um distante e amorfo Oriente (SAID, 1990, p. 33.).

Pasolini parece replicar uma visão do oriente estereotipada, inserindo o mito de Medeia dentro de uma perspectiva exótica e bárbara, reforçando suas características de fêmea lunar, noturna, ligada às forças da natureza indomável. Nesse sentido, o crime (transgressão) de Medeia, no filme, passa a ter um lugar secundário, uma vez que o mito no filme está localizado não a partir do erro trágico, mas dentro de uma cartografia mais ampla, fora mesmo do centro em que a tragédia de Eurípedes se desenvolve. O ritual de canibalismo, no início do filme, é uma dentre as inúmeras cenas que exemplificam esse olhar cartográfico/antropológico mais amplo sobre o mito. O filme do diretor italiano consolida uma (des)leitura do mito, ainda que reforce os estereótipos inerentes ao seu olhar europeu sobre o oriente. A invenção do oriente, aliás, implica a construção de discursos advindos da premissa de que o oriente não pode dizer a si mesmo. Nisso se funda, segundo Edward Said, todas as bases do orientalismo erguido, alimentado e perpetrado ao longo do tempo.

Por outro lado, na perspectiva de Lars Von Trier, observamos o mito mais próximo da estrutura da tragédia euripidiana, ainda que fortemente ligado ao imaginário da água e, consequentemente, da maternidade. Através desse elemento, a poética do mito se desenha na película como espécie de útero maternal. O olhar de Lars Von Trier detém-se em explorar os aspectos poéticos da tragédia, ou seja, o mito de Medeia é traduzido por imagens. Poderíamos mesmo afirmar que assim como a versão de Pasolini está para a prosa, a versão de Von Trier está para a poesia. No primeiro, a ênfase encontra-se na figura e protagonismo de Medeia; no segundo, a imagem da maternidade opera como sintagma. É inevitável, nesse contexto, não pensar como a obra de Pasolini dialoga com Dogville (2003), sobretudo no que diz respeito à relação entre a Polis e ao estrangeiro, assim como o tema do banimento. A relação de outridade, presente no mito de Medeia, assegura o caráter multifacetado e dinâmico do mito, sobretudo em seu dialogismo cultural, ou seja, jogo infinito de pergunta e resposta, provocado por um determinado texto. A polis moderna como um lugar de conflito entre o consciente e o inconsciente, o racional e o irracional, entre o oriente (essência) e o ocidente (aparência). A própria experiência trágica como superior ao conhecimento racional evoca a possibilidade de cruzamento entre a natureza errante de Dioniso e a máscara da aparência apolínea. Não é a toa que Lars Von Trier retoma o mito em Dogville (2003), sendo justamente essa verdade visceral, mostrada através da aparência, que faz com que as cidades Dogville/Corinto revistam-se de uma ilusão protetora e acolhedora por trás da qual se encontram o caótico, o informe e o monstruoso. Medeia é a estrangeira, a expatriada, aquela cuja própria presença é uma ameaça. É importante observar como por trás de uma tragédia tão irregular, do ponto de vista aristotélico, quanto é Media de Eurípedes, atravessam temas nacionais, culturais e interculturais. Nesse sentido, a apropriação fílmica aparece como ato ilícito, como nos lembra Ana Pais, ao se referir à dramaturgia, ou seja potencializadora de novas relações de sentido, estabelecendo uma aliança clandestina com o mito literário; uma espécie de transgressão. A reescrita dos clássicos equivale a uma ação criminosa, atestada por um processo de clivagem e segmentação, semelhante ao processo ocorrido entre os mitos e os mitemas gerados a partir deles, gerando um permanente processo de negociação. Para a autora: “No teatro, a reescrita dos clássicos - encenações que revêem o texto, evidenciando nele uma perspectiva diferente - é talvez o exemplo mais declarado de acções criminosas, pois reflectem leituras feitas a partir da periferia do texto canónico” (PAIS, 204, p.78). Arriscamos afirmar que o mesmo se aplica ao processo de recriação dos clássicos para o discurso fílmico.

É importante reafirmar, nesse contexto, que não há um sentido estático do mito, ainda que todo mito herde os rastros de seu “primeiro” sentido; aliás mais escombros do que rastros, pois não há sentido fixo do mito, mas um processo de desmontagem das operações discursivas que o sustentam. Nesse sentido, o mito é uma fala, mas não uma fala qualquer; compreende um sistema complexo de comunicação, atuando muitas vezes na dobra do discurso, isto é, na forma como se deixa ler em diferentes contextos enunciativos. Assim, os mitos podem ser tomados como estruturas, alimentadas por acontecimentos, reveladores dos modos de pensar de uma determinada sociedade e cultura, nunca passível de categorias supostamente universais, o que prescreveria uma mesma história e experiência entre os povos, base do processo de colonização, deflagrado por Edward Said em relação ao oriente, mas não só em relação ao oriente. O mito, como a ficção, não está avesso ao real, mas revela uma outra forma de captura-lo e de dizê-lo. Logo, o mito é um outro tipo de evidência suplementar à evidência histórica. Mais do que entender o que é o mito de Medeia, faz-se necessário compreender o processo de clivagem realizado tanto por Pasolini quanto por Lars Von Trier e identificar as estruturas sociais que engendram suas respectivas proposições e leituras através de suas Medeia(s).

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