Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

In Travessias with Sued Nunes and Safira Moreira: audiovisual metaphors, singing and talking aesthetic-political redistribution

Em Travessias com Sued Nunes e Safira Moreira: metáforas audiovisuais, cantos e contos de redistribuição estético-política

Scheilla Franca de Souza

PPGCOM/UFRB/CAPES, Brasil

Jorge Cardoso Filho

CAHL/PPGCOM/UFRB, Brasil

Abstract

This research discusses, in dialogue, in a comparative way, performances of bodies on stage/from the scene of the film “Travessia” (Safira Moreira 2019) and the music video “Travessia”, (Sued Nunes 2021), through the method of “montagem umbigada” (Bogado, Souza 2022). Both audiovisuals, made by black Brazilian artists, from Bahia, tell and sing aspects that were long made invisible by the colonial burden (Simas, Rufino 2019), such as the possibility of creating images of oneself with more autonomy, (by the oral tradition or the act of posing for the camera), the constitution of dialogic experiences between the personal/collective perspectives with the experiences of African Diaspora in Americas, here, more specifically in Brasil. Metaphors, such as the audiovisual as abode of crosses, “encruzilhada” (Rufino 2018), crossroads constructed through the bodies on stage (the perspectives around the agents who perform in the audiovisual experience, human and non-human) and the scene (aspects linked to visible/invisible resources that marks the art/life relationship in the audiovisual), so that the different audiovisual corporalities propose the insurgency of images that break with the erasures and silencing of colonial Brazil, proposing images of inversion, more propositional, promoting other forms of aesthetic- political redistribution, reconnected with the ancestry of the Amefrican legacy, matrices of images to come that allow temporal, belonging, aesthetic, political, territorial, affective crossings.

Keywords: Films, Music video, Bodies in/from the scene, Crossroads, African Diaspora.

Introdução ou Ainda à beira d’água

Ainda com os pés em terra, vemos a água alta. Hoje tem eclipse, lua cheia, as águas estão ainda mais altas. O que há de relação entre as águas eclipsadas em noite de lua cheia e essa proposta de trabalho? Transbordamentos. Travessias em transbordamento. Um texto, fruto de experiência de pesquisa/vida não é parido, não sai das águas uterinas, sem corpo em experiência. Essa experiência se dá entre o vivido e o inteligível, partindo sempre do vivido para o analisável, uma vez que nos propomos a seguir o método da montagem umbigada (Bogado, Souza 2022) e é este um dos seus pressupostos fundamentais. Voltaremos, tais como as ondas, a este procedimento de sensibilidade metodológica mais tarde. Somos corpos (compostos de água, vindos dela, como nossa primeira morada) em experiências com corporalidades audiovisuais (um videoclipe, um filme) feitos por outros corpos (de água também) em experiências que buscam travessias entre temporalidades e espacialidades da experiência afrodiáspórica nas Américas, que passa pelas águas densas do Atlântico, algumas narrativas na superfície outras mais profundas. São experiências que compõem imagens entre o visível/invisível das histórias pessoais/públicas, que uma vez postas em contato, podem dar a ver outras imagens, o que veremos na experiência de análise e do que brota entre os corpos da cena e em cena (Alves Junior, Bogado, Souza 2021; Bogado, Souza 2022).

À guisa de apresentação, talvez tenhamos ido à frente demais. Um passinho miudinho em direção à algumas questões se fazem necessárias. Que travessias audiovisuais são essas sobre as quais nos debruçamos o olhamos entre as águas e os horizontes? Estamos falando da experiência de memória e sensibilidade a partir do videoclipe “Travessia” (2021)1, de Sued Nunes e do filme “Travessia”, de Safira Moreira (2019)2. Ambas mulheres negras cujas performances remetem à nossa herança afrodiaspórica, essa grande encruzilhada na história das Américas e, no caso aqui, sobretudo, do Brasil. Encruzilhada no sentido dado por Luiz Rufino como uma grande tragédia, sendo ao mesmo tempo aquilo que constitui a nossa subjetividade brasileira. É preciso reencantar os saberes que vieram até aqui por uma das piores formas de habitar o mundo: os navios negreiros. Fazer essa travessia temporal não é fácil, exige fôlego para mergulhar e respirar ao mesmo tempo em águas profundas.

Essa travessia não se faz só, nem de um mergulho só, é mais prudente fazê-lo em comunidade, em coletivo, em parceria. Principalmente por ser um mergulho multitemporal, guiado pela ancestralidade que nos habita, que acessamos, por meio de nossa família, família estendida (hooks 2021), sobretudo a partir do comum/próprio do comunitário ancestral amefricano (Gonzalez 1988). A ancestralidade é uma possibilidade, mais que isso, é uma bússola. Tanto Safira, quanto Sued, essas duas mulheres negras da Bahia, território mais negro fora do continente africando, por meio do audiovisual como encruzilhada entre o vivido/imaginado, fazem a travessia pelo encantamento dos nós que as constituem ontem/hoje/amanhã: as experiências familiares que se misturam às experiências do negro escravizado no Brasil. Ancestralidade, pois. Pelo comunitário ancestral, cantam, contam e narram, essas artistas negras com seus corpos em cena e da cena, sua gestualidade, sua voz, sua relação com o audiovisual e com aqueles a ele relacionados (inclusive o espectador) fabulações com base na transmissibilidade das experiências narradas em família.

Corpos da cena/em cena: travessias no audiovisual como morada de cruzos

A fim de fazer ver as performances dos corpos em cena e da cena, nos voltamos para a metolodologia da montagem umbigada (2022). A montagem umbigada é um método comparativo de imagens que surge da empiria, leitura e aplicação analítica com base nas constelações fílmicas (Souto 2019), mise-en-scène (Comolli 2008) e das leituras sobre encruzilhadas e cruzos (Rufino 2019, Rufino e Simas 2019). No entanto, vivendo no território do Recôncavo da Bahia e produzindo aqui as nossas experiências de vida e pesquisa, a ideia de corpos da cena/em cena que já vinha sendo trabalhada (Bogado, Alves Junior, Souza 2020; Bogado, Souza 2022) pisando no chão de água de Cachoeira dançou e vendo-o dançar na prática, observamos que havia uma movência de matriz estética amefricana, que estava em nossos corpos e subjetividades também. Inspirados no Samba de Roda do Recôncavo Baiano, sobretudo nos passinhos miudinhos e no convite à umbigada, gesto em que, uma vez formada a roda, e o samba tocando, um corpo ocupa o centro da roda, dança e após um tempo, por uma relação entre as pessoas, a música, os olhares, os movimentos, o ambiente, pelos passinhos miudinhos uma pessoa umbiga a outra, ou seja, com seu corpo, convida outra pessoa a ocupar o centro da experiência. Nesse sentido, a lógica do funcionamento da montagem umbigada segue os mesmos passinhos miudinhos deste gesto do samba de roda, que já fazíamos (porque está em nossos saberes corpóreos ancestrais, pela vivência no território). O dono do corpo que samba, Elegbara, como diz a canção de Luiz Antônio Simas e Moyseis Marques, deu o tom e nós seguimos, compreendendo, após a vivência, após a empiria, a potência do gesto metodológico corpóreo, vivido, como pedrinha miudinha encantada de memória ancestral que nos habita enquanto morada (Souza, Cardoso Filho 2022).

Nesse sentido, os corpos da cena/em cena se encontram a partir desta fabulação espectatorial para a qual a montagem umbigada convida o analista/espectador. Sua roda acontecerá de acordo com o seu propósito maior: aqui a investigação do audiovisual como morada, como espaço, para estas travessias de retorno histórico/mnemônico à contrapelo, para nos aproximarmos do gesto benjaminiano que também é caro a nós e a nossas leituras, nossas bases, e em múltiplas temporalidades. Além disso, desejamos ver o que salta dessas encontros, que imagens podem irromper nessas travessias atravessadas por nossa montagem umbigada e nossa presença enquanto analistas/espectadores.

Deixemos a margem, todos à bordo, atravessemos junto com as corporalidades audiovisuais propostas por Sued Nunes e Safira Moreira.

A imagem que abre esta roda, por ocasião das travessias, é a imagem de Sued, com seu nome em tela, e o áudio de sua mãe, explicando a origem desta escolha.

Figura 1 – Abrindo a roda para travessias.
Fonte: Travessia (Sued Nunes, 2021)

Há alguns aspectos que se repetem no videoclipe, elementos dos corpos da cena (aspectos estéticos, extremamente ligados ao vivido, geográfica e historicamente), que fazem desta uma imagem possível e potente para iniciar a roda da montagem umbigada. No campo do invisível, pelo sonoro, sua mãe se faz presente, e narra a história do nome de sua filha, Sued. Em uma transgressão resiliente (Rufino 2019) ela inverte a palavra DEUS, que aparece no clipe com todas as letras maiúsculas, em diálogo com um fundo terroso, e a cantora sentada em uma cadeira de madeira com um vestido e um turbante dourados, como as pontas de seus cabelos que caem sobre seu rosto, além do búzio, símbolo importante tanto para o Orixá da comunicação, Exu, como para Oxum (Sued está toda de dourado, cor associada à divindade das águas doces em diversas nações destas religiões, sendo na mitologia, a Yabá a comprar das mãos de Exu o poder de ler o futuro através do jogo de búzios). A oralidade para narrar histórias é um dos recursos mais importantes de diversos povos, inclusive da ancestralidade amefricana. Ao colocar todas as letras em maiúsculo, Sued se ampara em um dos símbolos do Orixá responsável pela comunicação em diversas religiões de matriz Africana: E de Exu, com seu tridente. Este gesto da criação não exclui a matriz cristã da cultura que constitui a subjetividade do nosso povo, mas a transborda para outras possibilidades.

A escrita em diálogo com performance vocal está presente desde o início da música neste audiovisual. Sua letra3 em primeira pessoa do singular, tem um Eu, que dialoga com o comunitário ancestral. A voz de sua mãe é uma das formas de desvelar que este “eu” é uma forma de demonstrar o quanto isso ainda é presente e afeta de forma direta as pessoas negras no Brasil recente, de modo que é preciso tomar medidas que apontem a questão, mas proponham outras trajetórias. “Cantar para retornar”, cantado por Sued, é uma dessas possibilidades. O canto porém vem encarnado aqui em um audiovisual em cruzo entre o eu/nós, o privado/comum, o pessoal/histórico, o áudio/verbo/visual, por corpos em cena nem sempre humanos (como o tecido da roupa, a cor dourada, a representação do turbante, o búzio, o berimbau tocado por seu parceiro de banda) e que também está presente em cena nesta sequência do nome de Sued. Não se faz uma Travessia a sós, é preciso elementos humanos e não-humanos é preciso fazem com e não sobre.

Figura 2 – Seguir a montagem umbigada em comunhão para travessias.
Fonte: Travessia (Sued Nunes, 2021) e Travessia (Safira Moreira, 2019).

As letras inclusive aparecem na toada no berimbau em diálogo com a voz da mãe de Sued, com a frontalidade do olhar da cantora, que depois se posiciona de lado, como que para ouvir o que sua mãe tem a dizer, com as mãos unidas.

Estas questões também atravessam o curta “Travessia” de Safira Moreira (2019). A oralidade da mãe, da ancestralidade viva e direta, narrando as histórias de família, em diálogo com o fotográfico, as legendas por trás das fotografias, que Safira exibe com sua frontalidade do olhar, além do diálogo com a música (“Juana”, de Mayra Andrade, uma mulher negra que exalta em seu trabalho as influências dos territórios e expressões afrodiaspóricas) e a literatura (de Conceição Evaristo, um expoente das autoras negras no Brasil, sobretudo no que tange à relação vivência/escrita), também falam da necessidade de não estar só para que seja possível a travessia com estas águas tão altas, densas, profundas, salgadas de mar e lágrimas na grande encruzilhada que é a diáspora africana nas Américas.

Após narrar as possibilidades do ecoar das vozes das avós, mães e filhas na performance vocal de Safira Moreira, porém em voz off, sua mãe comenta as dificuldades da família em ter fotos porque era muito caro para famílias negras, e assim, de forma resiliente e transgressora, como nos ensinamentos da pedagogia das Encruzilhadas (Rufino 2020), Safira, após a mãe dizer que elas não tinham um álbum de fotografias, começa por si, por ela mesma em cena, posando para a câmera. É como Sued, a fazer uso da corporalidade audiovisual (em seus corpos da cena/ em cena) enquanto filme, para performar poses fotográficas. Ela começa consigo, de corpo inteiro, em ambiente que traz para o corpo da cena, corporalidades da natureza, como o búzio de Sued, mas logo esse eu também se expande (é o momento da entrada da música de Mayra Andrade, que tem um nome de mulher, Juana). Sued e Safira aparecem em diversos momentos de corpo inteiro, na maioria das vezes com a frontalidade do olhar para a câmera (para o espectador?), mas convocam outras vozes e corporalidades para partilhar esta experiência. Safira, em sua pose, está descalça, se plantando em suas raízes ancestrais, para retornar ao ancestral (que não está ligado à linearidade temporal, mas à possibilidade de multitemporalidades). É a questão da encruzilhada das culturas negras revelada pelos gestos e sobretudo pelas performances do tempo espiralar, como propõe Leda Maria Martins (2020).

Insurgência de imagens de inversão e seu ecoar estético/político

É importante lembrarmos que estamos lidando com dois audiovisuais de gêneros e formatos distintos, o que cria, em termos de performance (Cardoso Filho, Gutmann 2019), aproximações e distanciamentos, além de formas de partilha do sensível (Rancière 2017) pela presença destes corpos-tela (Martins 2020), que fazem emergir, à flor d’água, durante a travessia atlântica mnemônica mas encarnada, em noite de águas altas que eclipsaram a história, mas não desencantaram os corpos, por causa dos saberes ancestrais que os constituem e constituem estes audiovisuais. Estes elementos, em comunhão, fazem emergir as imagens de inversão (Bogado, Souza, Alves Junior 2023), que para usar o termo tão caro à Sued e Safira, ecoam estética e politicamente, proposições de imagens outras, fora dos lugares já dados de sofrimento e denúncia, não excluindo-os, mas transbordando-os por seus cruzos.

São audiovisuais de corporalidades distintas, um filme e um videoclipe, feito por mulheres distintas, com equipes e orçamentos distintos, em lugares distintos, mas ainda assim apresentam semelhanças, parecenças. As diferenças, por sua vez, não os separam, mas os ampliam na potência e na necessidade do enfrentamento desta travessia por fazer as imagens por si mesmas, em comunhão, como pede a ancestralidade comunitária amefricana. Seus corpos-tela fazem ecoar essas imagens.

Seguimos agora a ideia trazida por Jorge Cardoso Filho e Juliana Guttmann, que tem em seu cerne a performance como operador analítico que permite observar essas reiterações e pluralidades nas duas formas audiovisuais aqui apresentadas: o videoclipe e o filme. Em termos de parecença, ambos têm a performance vocal, a oralidade, como essencial para construção de sua experiência estética e para o estabelecimento dos fluxos entre o vivido e a arte (Dewey 2010). O videoclipe é composto para uma música com poucos versos que se repete diversas vezes como um ponto cantado dos terreiros para encantamento do espectador, que tem a letra em tela, em feitio manuscrito, para acompanhar e, caso deseje, cantar junto, fortalecendo também na espectatorialidade o ideal de comunhão. A repetição ajuda a não esquecer esta história que não cessa de sofrer tentativas de silenciamentos e rasuras do colonial.

Nesse sentido, a reiteração acontece também nos gestos, na performance de Safira, em seu curta- metragem, tanto no ato de mostrar as fotos enquanto sua mãe fala, quanto no convite para que pessoas negras posem, ao feitio de uma fotografia, frontalmente, na maioria das vezes, sorrindo, para a câmera de seu filme, que registra o arrumar dos corpos antes do que seria a performance do registro fotográfico, revelando os enlaces de afeto pelos gestos de carinho e cuidado que as pessoas, casais, famílias, crianças, têm uns para com os outros, bem com a parceria que estabelecem com a realizadora, uma vez que performam com bastante teor de intimidade no gestual e no que transparece em suas feições, revelando e- moções (Didi-Huberman 2020) que transbordam e se revelam em seus olhares, gestos, sorrisos, de modo que, nós, analistas/espectadores, conseguimos reconhecer, como comportamento restaurado, como de felicidade e partilha afetiva, contentamento em participar da experiência de filmagem. Apesar da presença da câmera, o que é cada dia menos intimidador, tendo em vista a portabilidade das tecnologias digitais, mas também os enlaces de pertencimento que também os engajam a posar, é possível reconhecer a naturalidade das poses da foto com afeto que soa genuíno ao espectador.

Safira e Sued, trazem em seus corpos da cena, nas suas performances, o turbante e o vestido. Um dourado, ligado ao búzio, à Oxum, à realeza dos povos que foram tirados de casa (de suas realidades) pelo processo de escravização que os desumaniza. O turbante de Safira, assim como sua roupa, é azul, de tecido fosco, ligado a Ogum/Oxossi, como diz a canção de Roque Ferreira, que em muitas nações pode estar relacionado ao caçador das matas ou ao que vence as demandas dos caminhos por conhecer o ofício da construção de ferramentas pelos domínio do metal. Safira, trazendo o ambiente da natureza, de posse da ferramenta ancestral da voz, e do diálogo entre às formas de registro (ferramentas), vence demandas do caminho da travessia para não apenas denunciar, mas propor outras imagens com estas mesmas ferramentas ao longo do caminho (experiência, narrativa) audiovisual.

Em ambos os casos as imagens que saltam das travessias, pelas performances dos corpos em cena/da cena do videoclipe (guardando a importância de apresentar a canção, mas de maneira encarnada, com pessoas e suas formas de ecoar nos corpos da cena suas subjetividades) e do filme (sendo o cinema, hierarquicamente muitas vezes ainda considerada uma arte audiovisual de elite, de difícil circulação, restrita historicamente no Brasil, tanto em termos de representação como de representatividade, às elites brancas, o que refletia no raro protagonismo negro em cena, além de pouca representatividade negra por trás das cameras). Safira Moreira dentro dessa relação com o cinema, fortalece e é fortalecida, em comunhão, por um movimento de maior amplitude de realização negra no cinema, ainda que precise de muito mais, de realizadoras negras no audiovisual, aqui mais especificamente no cinema.

Figura 3 – Travessias ancestrais.
Fonte: Travessia (Sued Nunes 2021) e Travessia (Safira Moreira 2019).

O ecoar estético/político atravessa as obras, tendo-as como moradas para abrigar estas possibilidades de criação e circulação dessas imagens de inversão (Bogado, Souza, Alves Junior, 2023; Alves Junior; Bogado; Souza, 2021) que rompem o lugar de denúncia, transbordando-as com outras imagens desejadas pelas realizadoras. Isso tem a ver com uma pergunta feita pela filósofa das imagens Marie-José Mondzain (2013), quando ela questiona quem é capaz de produzir as imagens, quem faz as imagens? Aqui, duas mulheres pretas, jovens, advindas de um território negro, e por isso também é possível que haja a insurgência de imagens de inversão que fazem novas partilhas estético/políticas e o rompimento do binarismo das imagens (próprio/comum; vivido/imaginado; pessoal/histórico, por exemplo), além da questão das linhas retas temporais, que tomam formas multitemporais e multiespaciais, espiralares (Martins 2020) como propostas de travessias ancestrais.

Travessias Ancestrais

Travessias ancestrais não se encerram, seguem nas performances do tempo espiralar (Martins 2020), em um continuum, como é um continuum a escravidão e a luta por outras possibilidades de vida para as territorialidades e subjetividades periféricas no Brasil, para a questão do negro e a negra no Brasil atual, sobretudo com os ataques sofridos pela emergência da extrema direita.

As parecenças e diferenças das travessias de Sued Nunes e Safira Moreira, dizem da importância da comunhão ancestral e do domínio dos caminhos e encruzilhadas, das ferramentas que constituem as corporalidades audiovisuais para realização das travessias, fazendo, por meio dos recursos áudio/verbo/visuais, das performances em cena/da cena, por meio destes corpos-tela, o atravessar das águas altas desta história eclipsada. Para isso, entendendo o audiovisual como morada, ferramenta e forma de narrar o mundo, manejam o transbordamento das águas de seus territórios, fazendo emergir, ecoar, imagens de inversão que dizem de um desejo de ocupar outros espaços/tempo estético/políticos, de contar e cantar suas narrativas com suas próprias vozes e as vozes dos seus, nos territórios que escolheram viver/filmar, construindo ativamente os corpos da cena e os corpos em cena de acordo com sua cosmovisão e ancestralidade entre o familiar/espiritual que habita estas experiências, entre o visível/invisível das imagens.

Nesse sentido o saber dos cruzos (Rufino 2019, Simas, Rufino 2019) são fundamentais para a experiência destas audiovisualidades entre vida e arte, entre família e história do Brasil, entre territórios e subjetividades, entre temporalidades, espacialidades, entre sujeitos e dispositivos, com performances que os aproximam e distanciam, anunciando e fortalecendo a pluralidade das corporalidades audiovisuais.

A montagem umbigada é uma metodologia que se constitui do vivido para o inteligível, como já anunciamos na introdução e isso é importante inclusive para reconhecer as diferenças entre os corpos da cena/em cena, ao realizar a roda da montagem umbigada, inspirada no samba de roda do Recôncavo Baiano.

Sued, dançando com o audiovisual-travessia de Safira, pode aparentar pouca aproximação física entre os corpos em cena, a aproximação se dá pela linguagem audiovisual. Podemos entender a importância da arte na pandemia, e seus desafios criativos, tendo em vista que o videoclipe é de 2021, ou seja, filmado e lançado em plena pandemia, como desejo realizado pela comunhão, ainda que esta comunhão passe pelas medidas protetivas de contágio pandêmico. Ontem4, hoje na leitura de quem está com os olhos sobre estas linhas, Sued cantou Travessia, abriu o show atravessando o palco e chegando ao mar do público, ao lado do músico que a acompanha no videoclipe e dos demais componentes de sua banda, em uma comunhão física muito mais proeminente. São as formas do tempo espiralar da travessia que nunca se encerra, visto que ocorre na experiência.

Assim é com as duas travessias, que dançam uma com a outra e encantam a nossa fabulação espectatorial, em suas diversidades de criação/leitura. A montagem umbigada não tem pretensão de encerrar a roda, mas de abrí-la para outras imagens pela fabulação espectatorial não apenas nossa, dos analistas/espectadores que aqui escrevemos impressões e percepções, mas também do espectador em geral, ou seja, a todos que tiverem acesso à estes audiovisuais e a sua circulação de imagens de inversão cujos ecos estético e políticos foram descritos aqui, segundo nossa percepção neste momento histórico e geograficamente situados, mas que, por se entender como experiência em fluxo, é um convite à seguir a gira das imagens pela fabulação de quem nos lê nas travessia do amanhã-ontem-hoje que a publicação deste texto, e sua circulação, permitem.

Notas Finais

1Cf. https://www.youtube.com/watch?v=9CePRp0wvCw&t= 234s

2Cf. https://www.youtube.com/watch?v=a0P_4wmLXlw

3Tem quem dê a bença, tem quem bata cabeça/ Tem quem se descalce para se plantar... Eu vim de lá, eu vim de lá/ Me tiraram de casa/ Eu vou cantar, eu vou cantar pra retornar.

405 de maio de 2023 Sued Nunes participou de um festival chamado II Conexão Musical na cidade de Cachoeira-BA, cidade de onde também escrevemos estas linhas, na UFRB.

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