Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

For whom the steps we take?

Para quem os passos que damos?

Cláudia Marisa

Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Instituto Politécnico do Porto
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

Abstract

In Pas Perdus (2008), a film by Saguenail, we find ourselves in a “labyrinthic-space” pursuing a woman, with a suitcase and an umbrella in hand. The woman (Leonor Keil) crosses a metaphorical night inhabited by beings who try to describe her or, at least, interpret her. As witnesses, we hold our breath with the footsteps of this Woman in a city she doesn’t know (or does she know?). This nameless woman is a character in abandonment, that doesn’t want to be saved. In fact, we are facing a character who accepts an irreconcilable fate that the spectator is unaware of, but which, intimately, he/she senses as his/her own. Actually, the solitary voyage implies, for this character, the vortex of fear that only the night seems to assuage. Has a happiness project failed, one wonder. We don’t know, just as we don’t know what the character is carrying in her suitcase. In Pas Perdus, the director poetically discusses the human need to relate to an otherness, almost as if, paradoxically, we, as humans, on one hand could not live alone but, on the other hand, do not know how to live together. With this paper, and grounded on the film Pas Perdus (Saguenail, 2008), we intend to analyze the dramaturgical design of the characters on film taking in account the following aspects: (i) characters constructed around a social body, where the archetype is decisive for the film’s narrative; (ii) characters created on a psychological and intrapersonal body; (iii) the role of the spectator in attributing meanings.

Keywords: Pas Perdus, Character, Dramaturgy of the body, Directing actors, Film analysis.

Introdução

Nas artes vivas, como na arte cinematográfica, o olhar do espectador é o primeiro elemento que inicia a contracena/diálogo. Com efeito, o espectador solicita da obra um significado, que esta seja vida. Nesse sentido, ser um espectador ativo será, essencialmente, entrar em cumplicidade com a obra e aceitar o que lhe está a ser proposto, participando com a imaginação nos jogos sugeridos. Isto sabendo que o espectador não tem obrigação (nem, talvez, o direito) de tomar parte diretamente na ação ocorrida no palco, no caso cénico, ou no ecrã, no caso cinematográfico. Neste contexto, a participação existe quando se adere condicional e provisoriamente ao que é proposto. Assim sendo, e partindo do pressuposto da arte enquanto processo dinâmico, será pertinente, quando se analisa uma obra artística, ter em atenção os esquemas subjetivos e ocultos de percepção e comunicação entre a esfera da criação e recepção. Por outras palavras, torna-se necessário, como refere Pinto (1991), ter em atenção a esfera de recepção de sentido, quebrando a noção de recepção que a associava à ideia da passividade inconsequente do público e remetida para uma espécie de vazio a que não se atribuía qualquer eficácia social. Assim, ainda de acordo com Pinto (1991), interessa analisar a reciprocidade de perspectivas da interação, tendo como pressuposto um modelo de recepção enquanto processo sócio semiótico ativo. Temos, então, de compreender que este processo engloba dois planos: (i) a criação assente numa elaboração intencional de sentido, de acordo com recursos e interesses do campo artístico; (ii) a recepção, processo menos percetível por ser invisível, não institucionalizado e não sistemático. É nesta linha que Certeau (1980a) desenvolve o seu raciocínio. Com efeito, Certeau, perante as cada vez mais variadas produções culturais, analisa o receptor como alguém que está preparado para manipular uma infinidade cultural, colocando a tónica num receptor ativo que se apropria da obra, recriando-a. Desta forma o sujeito receptor, através da sua atividade (re)criadora, não opera uma simples assimilação, mas antes uma manipulação. O receptor passa a ser percepcionado não só pelo que diz (retrato de si enquanto receptor), mas também pelos silêncios criados, passando-se de uma perspectiva centrada na produção de arte para uma perspectiva centrada nas práticas e nas relações humanas, assim como na transformação da vida social. Será, pois, no confronto entre a obra artística e os usos expressivos das práticas quotidianas que a noção de recepção ganha sentido. Assim entendido, não se justificará falar de uma recepção passiva ou ativa, uma vez que o que está em jogo será como afirma Certeau (1980a)

analyser comment l’opération culturelle se module sur les registres différents du répertoire social, et quelles sont les méthodes grâce auxquelles cette opération peut être favorisée” (p. 220)

Segundo este autor, numa obra artística/cultural estamos perante dois tipos de criatividade – uma explícita, de produção (artista/criador); e outra silenciosa (receptor) – que adquirem necessariamente efeitos de representação e transformação social. Em l’invention du quotidien, Certeau (1980b) concebe o ato da recepção cultural como algo de disperso e invisível, traduzido pela utilização dos produtos culturais “impostos”, espetacularmente, por uma ordem dominante. Para Certeau (1980b), interessa procurar o corte ou a similitude entre a produção inicial, criação explícita (arte produzida), e a produção secundária, que se “esconde” nos processos da sua utilização (arte utilizada). Para o efeito, é necessário analisar as manipulações operadas pelos praticantes no sentido de uma apropriação e recriação da obra cultural. Entendemos que a produção invisível do receptor é sempre criação a partir dos seus códigos sociais, a que não é alheia uma lógica de classes sociais, os quais fazem do receptor “poètes de leur affaires, inventeurs silencieux de sentiers propres dans les jungles de la rationalité fonctionnaliste” (Certeau, 1980b, p. 19).

Acreditamos, então, que semelhantemente ao que acontece no ato da recepção artística, a investigação em contexto artístico deverá evitar a tentação de analisar a obra de arte através de uma distância das práticas efetivas e quotidianas dos indivíduos. Nesse sentido, é capital ter em atenção não só as representações exteriores, assentes numa lógica de violência simbólica e de dominância, mas também os usos efetivos e as apropriações feitas pelos receptores, que remetem para uma lógica difusa e silenciosa. Entendemos que tanto os receptores (públicos) como os produtores (artistas) procuram construir as suas identidades em torno das próprias práticas artísticas, segundo um quadro comum de referências mediadas por convenções que, conjugando diferentes vontades coletivas, fazem da arte um fenómeno social. Daí a necessidade de se captar a relação íntima entre o mundo social e a produção cultural, procurando-se compreender a relação da arte com os outros sectores da vida social. Como refere Brook (1993), as artes performativas e, acrescentamos, cinematográficas não têm grandes segredos, elas são sobre a vida. Este é, para Brook (1993), um aspeto fundamental – arte é vida; só que é vida numa forma mais concentrada no espaço e no tempo. No entanto, há diferença entre a vida e a arte. Podemos defender que a representação artística está constantemente presente no quotidiano e à nossa volta. Enquanto atores sociais estamos em todos os momentos da nossa existência em contexto de representação, e, consequentemente as nossas interações são “teatro”.

Contudo, segundo Goffman (1993), não é bem assim; em palco, ou no ecrã, uma ideia representada deverá ser condensada, e emocionalmente verdade. Na criação artística apresentam-se e reinventam-se realidades emocionais por forma a inventar a vida como ela nos aparenta ser no real. Neste contexto, o privilégio de se ser espectador é poder vivenciar a experiência concreta da “dupla compreensão”, poder perder-se em si mesmo e depois reencontrar-se, através de um pensamento cosmogónico que questiona o mundo.

Independentemente da relação cénica instaurada pelo espaço, é o espectador que toma a iniciativa do jogo, que inicia a “tal” teatralidade. Relembremos que, etimologicamente, a palavra teatro surge de theatron, o sítio de onde alguém vê algo representado. Assim sendo, parece-nos legítimo assumir as artes performativas e a arte cinematográfica como um espaço de paradigmas que, no sentido brechtiano do termo, convida à transformação do mundo, ao funcionar como uma sorte de laboratório que permite ensaiar estratégias de transformação em direção a uma nova realidade. Assim entendido, defendemos que o objeto artístico será uma contestação simultaneamente mítica e real do espaço e tempo em que vivemos, uma vez que permite ao indivíduo, através da fruição da obra de arte, romper o tempo e espaço linear em que vive no real, e instaurar um outro tempo circular, igualmente real. Neste artigo, propomo-nos analisar o filme Pas Perdus (Saguenail, 2008) tendo em consideração a relação dialógica entre criação e recepção assumindo-se o olhar intrapessoal da investigadora no ato de percepção da obra. Para tal, e partindo deste filme, discorreremos sobre a identidade da obra cinematográfica na correlação com o discurso arquetípico e psicanalítico, através de uma escrita ensaística e, forçosamente, subjetiva.

Para quem os sinais que deixamos?

Uma obra cinematográfica contém em si mimese e catarse, no sentido aristotélico do termo. O espectador sente-se a “quase vítima” que foi sacrificada metaforicamente. Assim sendo, o discurso artístico situa-se entre o ritual e o mito, adquirindo o estatuto psicanalítico de sonho e imaginário. É assim uma construção do imaginário vivida pelo espectador em duplo sentido: por um lado, parte de um espaço real e formal (plateia); por outro lado, engloba um espaço do onírico e do irreal (ecrã ou palco). Arriscamos afirmar que um objeto fílmico é mimese, uma vez que mesmo sobre uma forma distorcida e abstrata parte do quotidiano e do humano (imitando as suas paixões, desejos e medos), desencadeando, assim, os mecanismos da catarse. A catarse cumpre a mesma função que o sonho, ou seja, colmata e exorciza os desejos e anseios do inconsciente ou as situações não resolvidas no real. Isto sem que algum dano ocorra para aquele “que se deixa sonhar”, porque tanto no sonho como face a um filme sabemos tratar-se de ilusão. Este fenómeno, no discurso psicanalítico, é denominado de denegação, no discurso artístico, é conhecido como distanciamento. Note-se que tanto o mecanismo de denegação, como o mecanismo de distanciamento são potenciadores de catarse. Neste sentido, podemos falar de uma ilusão artística a partir da vida de todos os dias, embora, possivelmente, ilusão artística não seja a terminologia mais adequada, uma vez que o ecrã não cumpre uma imitação perfeita do real. Ou seja, embora um discurso cénico e/ou cinematográfico seja verosímil, não retrata uma ilusão mimética, mas, antes, uma realidade paralela que segue outros códigos de funcionamento. Refira-se que quando falamos de mimese não falamos, nem de imitação ilusória, nem de uma relação naturalista, mas antes de uma relação interpessoal de subjetividade. A mimese faz-se dessa abstração que nos toca por ser génese da essência do humano. Este aspeto está particularmente evidente no filme Pas Perdus, onde o cineasta Saguenail nos coloca em viagem por uma cidade que sabemos real, mas que vamos recriando metaforicamente e subjetivamente. Em Pas Perdus e, recorrendo ao exemplo freudiano do sonho, sabemo-nos em estado onírico, mas nem por isso o sonho deixa de ser verdadeiro, com signos e códigos reais. Ou seja, mesmo que naturalisticamente o sonho não cumpra o real, não é por isso que ele deixa de ser mimético e verosímil. Este fenómeno está patente de forma vívida neste filme. Consequentemente, verificamos em Pas Perdus uma antinomia entre a imagem do humano/personagem e a sua representação. Com efeito, enquanto as imagens do humano são múltiplas, instáveis e incontroláveis, as suas representações são codificadas, culturalmente referenciadas e estáveis. Saguenail, em Pas Perdus, transforma as imagens do humano em representação, objetivando-as assim numa figuração atemporal. Nesse sentido, arriscamos afirmar que a materialidade do humano numa personagem ficcional é, sobretudo, a expressão soberana de uma alteridade criada pelo seu autor, num discurso metafórico de imortalidade, que não nasce de nenhuma estruturação mental, mas que surge de um trabalho sobre a sua própria estética. Este trabalho sobre a imagem do humano e quotidiano é o coração da relação entre o artista e a realidade. Efetivamente, o artista busca uma linguagem inédita que reformule a mitogénese. Na continuidade deste raciocínio, a personagem está diretamente relacionada com a tentativa de criação de uma linguagem ritual, que tem como princípio a invenção de um novo código. Ou seja, ao ser um fabricante de rituais, o artista tenta salvaguardar a sociedade do seu património simbólico. Cada ritual inventado faz do corpo/figuração humana um espaço de figuras possíveis, de uma metamorfose que se realiza sempre através da libertação de uma ordem social. O objetivo último é criar uma simbologia, assente em referenciais éticos, mas que rompa com a ordem moral estabelecida, regida por um sistema de valores que enferma o corpo num modo de representação coercitivo (esta noção é particularmente evidente na arte política e na arte social). Assim sendo, cada intérprete-criador é um mundo por si só, uma cartografia do corpo, em que cada gesto e cada movimento são vistos como únicos. O intérprete busca o seu corpo inédito sem frequentemente se aperceber que é produto de uma ordem social, e que é nesse sentido que ele se constrói. Note-se que esta proposta de interpretação está plenamente conseguida no trabalho de Leonor Keil em Pas Perdus. Obviamente que falar do trabalho do intérprete implica abordar uma sociedade e os poderes que a representam, assim como em dois sentidos de criação: (i) representação para si próprio (num registo idealista); (ii) fazer acreditar essa representação para um outro (criação de um imaginário coletivo). O trabalho do intérprete revela-se, deste modo, um trabalho de singularidade, que tem como objeto a representatividade de uma ideia. Nesta perspetiva, tanto o intérprete como o espectador são sonhadores da ideia a ser representada. Este sonhar não é meramente metafórico, mas também um encarnar. Freud (1981) afirmava que o intérprete poderia representar qualquer coisa, uma vez que o processo de interpretação se assemelha ao processo de histeria e de transfer terapêutico. Só que o intérprete, ao contrário do que acontece no discurso terapêutico, controla este processo; identificação e transfer não são sinónimos de inconsciente no processo de criação artística. Neste processo de interpretação e construção de personagem parece-nos que o movimento, como poder originário do corpo e marca de uma corporeidade intencional, está na origem da representação espetacular do corpo. Assim sendo, as palavras que proferimos e os gestos que fazemos são operados a partir da invisibilidade do nosso corpo, que os representa e os sentidos que lhes atribuímos. Entre a existência de diversos registos de corporeidade referimo-nos a: (i) uma corporeidade primária, situada antes de todas as outras, em que o corpo está consigo mesmo sem grande necessidade de referenciais exteriores; (ii) uma corporeidade intencional, alvo das experiências estéticas. Esta última forma de corporeidade estabelece uma rede de intenções, entre a subjetividade primária e a necessidade de uma objetividade das imagens do corpo. No entanto, a corporeidade, quer seja intencional ou inconsciente, será sempre uma representação objetiva, porque codificada. A codificação inerente ao corpo é um mecanismo intelectual que concilia um duplo corpo: subjetivo/flutuante e objetivo/intencional. É deste jogo que nascem as representações do corpo em construção espetacular, isto sabendo que as imagens do corpo são acidentais e independentes da nossa vontade; ou seja, não nos pertencem e participam de uma consciência imaginante que as recebe.

Tornar uma narrativa decifrável para o espectador não quer dizer que tenhamos de lhe dar um sentido único, pelo contrário devemos através da ação, proporcionar um espaço aberto de possibilidades, para que o espectador possa questionar diferentes significados até chegar ao seu sentido pessoal. Este aspeto é particularmente evidente em Pas Perdus onde, face à trajetória dos intérpretes/personagens, é impossível impedir o espectador de atribuir sentidos e de imaginar narrativas. Este jogo que o realizador Saguenail propõe ao espectador só é possível porque Pas Perdus busca a verdade da vida humana no seu interior, não uma verdade naturalística nem uma realidade do mundo natural, mas um registo emocional, de tal forma inenso que tanto o intérprete como o espectador acreditam magicamente nesse cenário interior. Para que tal suceda, o realizador busca uma verdade, que surge da observação do social e do quotidiano, e implica sinceridade por parte do intérprete, bem como uma osmose das emoções presentes no ecrã com situações passíveis de acontecerem na vida de todos os dias. Note-se, e relembrando Goffman (1974), que o mesmo processo acontece no quotidiano. Acreditamos no outro pela veracidade das suas emoções, mas essa veracidade vem da nossa própria fé e, obviamente, do nível de sinceridade que o outro investe no seu papel. Mesmo na nossa vida quotidiana, e num registo intrapessoal, cada gesto, cada ação, estão situados num plano de veracidade da emoção que a provoca. Voltando ao intérprete e à sua leitura, é no corpo que todos estes códigos e signos de veracidade têm lugar.

O mito na génese da arte

Quando um mito é formado e expresso em palavras torna-se verdade, e é criador de uma nova ordem irrefutável. O espírito do mito cumpre a explicação de eventos naturais, como o nascer do sol, o mar, as estações do ano, a vida, a morte. Para Jung (1997), os mitos vão ainda mais longe, e dão indicações ao humano de como devem experienciar todos estes fenómenos. Ou seja, a explicação do mito constitui-se como explicação física (por exemplo, o fenómeno do nascer do sol) mas acrescido de uma carga emocional, daí a vivência do quotidiano ser de participação mística constante, fazendo com que tudo que suceda fora (no mundo natural) também suceda dentro de nós. Vivemos interiormente, com o mesmo envolvimento emocional, o nascer do sol que assistimos e um outro que vamos desenhando dentro de nós. O mito é estruturador do ser humano e quando o sujeito psíquico perde contacto com a mitologia, perde imediatamente o contacto com as forças criadoras do seu ser. Note-se que a arte cumpre, segundo Jung (2003), a função de religar o homem com a mitologia; a arte será o mito em ação. Seguramente que a representação do mito nem sempre produz alterações no real, mas, por vezes, isso acontece. O concretizar destes arquétipos passa por um esforço pessoal de, através do desejo e de vontade, analisar e dar forma à fantasia e manifestações que, inconscientemente, surgem no relato do mito. Note-se que no processo de criação artística encontramos o mesmo mecanismo: o artista transporta em si o desejo da obra (inconsciente pessoal e coletivo) em direção ao plano da vontade (manifestação consciente através da materialização da mesma). Os mitos, como ensinamentos tribais primitivos, mais não são do que arquétipos transformados em formas conscientes transmitidas, segundo a tradição, geralmente de acordo com ensinamentos esotéricos. Outras formas de arquétipos do inconsciente coletivo estão presentes nos contos de fada e nas formas dramatúrgicas tradicionais. De qualquer forma, os arquétipos correspondem sempre a representações coletivas não totalmente manipuladas pelo consciente, embora nos mitos e contos de fada a intervenção do consciente seja bastante mais forte e atuante. A transmissão do mito é vivida de forma ritual e sagrada, uma vez que busca captar os ensinamentos invisíveis da humanidade. É nesse sentido que Jung (2003) afirma que o inconsciente nos coloca invariavelmente face à nossa interioridade. Com efeito, na perspetiva deste autor, o humano e o cosmos obedecem às mesmas leis, sendo o humano um microcosmo não separado do macrocosmo do qual faz parte. A psique humana e o cosmos estão, por isso, interligados, tal como o mundo interior e o mundo exterior. Daí que o humano esteja em constante processo de libertação e, nesse caminho, se torne individual sem deixar de pertencer e fazer sentido num todo. O inconsciente coletivo consiste, então, em motivos mitológicos e imagens primordiais comuns a muitas mitologias universais. O mito da morte e do renascimento do herói, por exemplo, é comum a muitas mitologias e culturas, e surge como parábola para fenómenos naturais (o nascer e o pôr-do-sol, as colheitas, as estações). Verificamos, deste modo, que a psique não regista os processos conscientes e, em seu lugar, estabelece fantasias sobre os aspetos psíquicos. Jung (1998) afirma que o que fica como imagem na mente são, exatamente, as imagens-fantasia que surgem após os fenómenos físicos terem ocorrido. Não é a tempestade que interessa e é recordada, mas as nuvens ameaçadoras, os câmbios de luz, a cor. Da mesma forma, os sentimentos que surgem durante os fenómenos (medo, perigo) são os importantes na criação de uma justificação para o fenómeno, os poderes supranaturais surgem entendidos neste contexto. É deste material que os mitos são feitos, constituindo a matéria do inconsciente coletivo, que é coletivo porque é dado a todos da mesma forma, sendo que o cérebro contém em si arquétipos e instintos. No mesmo seguimento, tudo o que surge e se manifesta no corpo humano, mesmo as singularidades, está carregado de um padrão emocional coletivo e instintivo. Note-se que toda a sensação que acontece no corpo é analisada por Jung (1997) como um fenómeno relacionado com os arquétipos e a sua natureza. Isto sabendo que um arquétipo é psicofísico, ou seja, a um tempo psicológico e físico e, nesta situação, é através do corpo que o inconsciente traz para a consciência uma imagem mental e, mesmo, um evento físico. O homem tem receio do inconsciente por não o dominar, daí a necessidade de controlar a “possessão” através de ritos que retomem o consciente; a arte também entrará neste processo. Nasce, assim, uma civilização assente no consciente, mas vinculada ao inconsciente. Desta feita a humanidade continua a acreditar que nada pode contra os deuses que lhe indicam os caminhos do destino.

PAS PERDUS: Para quem os passos que damos?

No Mito, Ariadna, filha de Minos, Rei de Creta, e de Pasífae (a infeliz progenitora do Minotauro) ajuda o ateniense Teseu a escapar do labirinto do Palácio de Cnossos. Nesse processo, Ariadna (meia-irmã do Minotauro) apaixona-se por Teseu, admirando a sua coragem em enfrentar o Minotauro, esse ser - meio homem, meio touro - que era alimentado através do sacrifício anual de sete rapazes e de sete raparigas. A estrutura labiríntica, criada por Dédalo, com vários trajetos intercruzados, inviabilizava a saída de quem tinha, voluntaria ou involuntariamente, entrado no labirinto. Ariadna oferece a Teseu uma espada para matar a besta, e um novelo de linha que, por sua vez, lhe fora ofertado por Dédalo. Aconselha Teseu a desenrolar o novelo à medida que avança no labirinto com a finalidade de marcar o caminho de regresso. Teseu sai ileso do labirinto e consagra-se herói ao matar o Minotauro. Promete casar com Ariadna e, a partir deste momento, temos diversas versões do Mito. A narrativa dominante relata que Teseu abandona Ariadna na ilha de Día (posteriormente conhecida como Naxos), cumprindo uma determinação de Atena. A Deusa Afrodite, comovida com a solidão de Ariadna, oferece-lhe Dioniso em casamento. Dioniso presenteou Ariadna com uma coroa de ouro e de pedras preciosas. Após a morte desta, Dioniso lança a joia na direção do céu, e Ariadna converte-se numa constelação estelar em forma de coroa (Coroa Boreal), situada entre a constelação de Hércules e a Constelação da Serpente. Note-se que o mito de Ariadna, mais do que uma história de amores e desamores, fala de independência e da individuação do sujeito. Sabemos que o novelo e o labirinto são metáforas para o autoconhecimento, ritual indispensável na jornada do herói e da heroína. O fio de Ariadna, as migalhas de pão do conto Hänsel und Gretel, ou mesmo a teia de Penélope ajudam-nos a apreender o trilho labiríntico da vida de todos os dias. Assim entendido, este mito é uma narrativa promissora ao demonstrar a capacidade humana de reinvenção da existência no que esta tem de expectativa, desalento, solidão e felicidade.

Em Pas Perdus, a cidade surge-nos como ilha onde se desfiam histórias de vida num mapa desenhado em sombras e coreografado no corpo da personagem Mulher (Leonor Keil). Este filme convida-nos a desenhar a nossa cartografia íntima através do labirinto das ruas que vamos percorrendo com o realizador (Saguenail). Ruas que se traduzem em casas e em espaços. Casas que remetem para memórias que o movimento da personagem perpetua. Este filme está imbuído de uma condição universal: A cidade e, consequentemente, as ruas dessa cidade, como ligação a um outro. O trajeto na noite dessa cidade é, também, uma forma de cortar um cordão umbilical e de largar as amarras que nos ligam a um lugar, a uma cronologia, a um corpo.

Neste processo, somos confrontados, a um tempo, com a ausência e o afeto. Como se a cada linha no mapa desenhado na noite de uma qualquer cidade, a cada pessoa com a qual nos cruzamos, correspondesse uma nova realidade e, sobretudo, a afirmação de uma identidade. Este filme deixa no espectador/testemunha um sabor agridoce. Na medida em a Personagem Mulher nos convida a viajar pelas casas/ruas aventuramo-nos, forçosamente, no nosso próprio labirinto. Felizmente, o realizador, à semelhança de Ariadna, deu-nos como recurso, não um novelo, mas uma mala com a qual nos foi possível traçar o caminho de regresso.

Haverá sempre alguém que parte de cada vez que regressamos a casa, parece querer dizer Saguenail. Então, arriscamos afirmar, regressar é tudo o que nos resta e partir será sempre uma inevitabilidade. Note-se que em Pas Perdus estamos, a um tempo, dentro do labirinto, e na ilha de Naxos, com Ariadna em plena viagem, mala na mão em lugar de novelo, e guarda-chuva em jeito de espada, atravessando uma noite metafórica povoada de seres que a tentam interpelar e descrever. Com uma interpretação sublime de Leonor Keil suspendemos a respiração com os passos desta Mulher numa cidade que desconhece (será que desconhece?). Esta é uma personagem em abandono, mas que não deseja ser salva: aliás, não precisa de quem a salve. Como Ariadna, aceita um qualquer destino inconciliável que o espectador desconhece, mas que, intimamente, pressente como seu. Isto porque, a um dado momento da vida, todos nós já vagueámos por cidades simbólicas, protagonizando personagens ambivalentes.

Dir-se-ia que tem medo. Não se sabe se persegue, se é perseguida. É essa a ambivalência da viagem. Partir em busca de alguma coisa e ao mesmo tempo ter medo daquilo que se vai encontrar.

(Pas Perdus, 2008, 20:11)

A travessia solitária pela cidade implica, para esta personagem, o vórtice da fuga que só a entrega à noite parece aquietar. Terá falhado algum projeto de felicidade? Não o sabemos, assim como não sabemos o que esta navegadora da noite transporta na mala. Acreditemos que o Homem (interpretado por Sérgio Marques) que a reencontra e/ou descobre seja, como Dioniso, capaz de reacender na Mulher a capacidade de sonhar e, quem sabe, de a fazer sucumbir a um novo amor. Pas Perdus dá-nos a possibilidade de entrar no labirinto através dos trajetos que escolhemos. Mesmo sabendo que os trajetos que escolhemos entrelaçam-se irremediavelmente, gerando múltiplas possibilidades de viagens.

Na noite da cidade, quem nos ensina a bater à porta?

Estará alguém à nossa espera na saída do labirinto?

Será que devemos curvarmo-nos face às adversidades da vida em lugar de tentarmos de novo?

Viajo pelo e com o filme Pas Perdus e regresso à mitologia. Penso em Ariadne e como esta descobre, da pior forma possível, que não há corretores para a vida, apenas breves análises das minudências da condição humana. Há algo que une a Personagem Mulher e Ariadna: são arquétipos de solidão. Todavia, algo as distingue: Ariadna foi recompensada com a felicidade divina e perpetuada em constelação estelar; a Personagem Mulher, do seu lado, compreendeu que era uma solidão anónima, como outras tantas que habitam a cidade, e de quem todos se envergonham. Como já afirmámos, o Mito de Ariadna é uma metáfora para a metamorfose do humano, sendo que essa metamorfose implica, frequentemente, uma intervenção (divina ou humana). A personagem Mulher tem, como único auxílio, a sua própria vertigem de desejo. Face a Pas Perdus quero manter-me neste diálogo com Ariadne. Mas a sensação de desejo desfeito que me despoleta esta obra leva-me até uma outra personagem. É então que Penélope entra em cena. Sabemos que o mito de Penélope é sobre a imagem da feminilidade, da espera e da resiliência. No entanto, é a trama de fios com que se borda e tece que convoco. O desencontro dos fios do Mito de Penélope está, no filme de Saguenail, vertido na impossibilidade de conhecer outros caminhos para além daqueles que um acaso, quase quântico, nos destinou. Penélope, destituída de afeto, tece para salvaguardar a sua existência e para afastar a solidão. A personagem Mulher, na sua travessia pela noite da cidade, não tem forma de tecer, porém, combate silenciosamente o seu sentimento de solidão, abandono e rejeição. Em ambos os casos, a espera é sempre uma espera de si própria, uma contagem regressiva de esperança. Pas Perdus de Saguenail representa, exemplarmente, a singularidade do artista. Não obstante, encontramos uma imagética similar à narrativa mitológica: os passos que desenham mapas e trajetos, os novelos (ou mala) que guardam afetos e os imprescindíveis labirintos que nos fazem continuar e persistir. Com efeito, o fio que traçamos quer seja em mapas imaginários, em passos noturnos pela cidade, ou em novelos deixados à sua sorte, são laços que nos ligam a um outro. Neste filme, o Eu e o Outro está sempre presente sobre a forma de encontros, descoincidências e ausências. Sabemos que é da natureza humana a contraditória necessidade de nos relacionarmos com uma alteridade, quase como se não conseguíssemos viver sozinhos e não soubéssemos viver juntos, e este espanto existencial atravessa este filme. A personagem adquire, nesta obra, um lugar central surgindo ampliada pela própria figuração humana. Estamos perante um corpo singular e biográfico numa ânsia de arquivo através de uma narrativa de memória. Com efeito, Leonor Keil organiza a sua interpretação em torno de uma cartografia alicerçada num corpo biográfico que deseja arquivo. O percurso que inscreve no movimento coreografado é tomado como um espelho, implicando mecanismos reflexivos sustentados em imagens que transmitem ao espectador/testemunha materialidade e verosimilhança.

Em Pas Perdus há um apuro cuidadoso no desenho dramatúrgico das personagens, bem como na direção de atores que é de valorizar. Encontramos, nesta obra, dois níveis de personagens marcadas por corporeidades diferentes: (i) personagens construídas em torno de um corpo social, onde o estereótipo e o arquétipo são determinantes para a narrativa do filme; (ii) personagens construídas sobre um corpo psicológico e intrapessoal. Nesta última categoria enquadramos a personagem da Mulher que, de forma belíssima, é uma personagem que vive da sombra e de um corpo de ausência. Apesar do filme ser narrado, e com uma riqueza sonora ao detalhe (som da responsabilidade de Rui Coelho) as personagens vivem do silêncio e o corpo suprime a ausência de palavras. Estes silêncios têm um valor psicológico, e encarregam-se de exprimir o “não dito”. Em Pas Perdus, o silêncio corresponde à constatação de um vazio: se nada é dito, é porque não há nada para dizer. O silêncio revela um abismo, é um silêncio que se alicerça no corpo e que encontra a sua razão de ser no gesto e no movimento. Neste sentido, a personagem surge, indelevelmente, através do território simbólico do espaço imersivo. Vislumbramos em Pas Perdus habitantes/personagens que vagueiam pelo espaço num duplo movimento: por um lado, habitam o mundo, aceitando o aleatório e o acaso; por outro lado acreditam numa força superior, uma espécie de mediador(a) entre um corpo comunicante e o mundo.

Neste filme, com um forte pendor cenográfico e teatral, o espaço cénico apesar de ter uma existência autónoma, é, igualmente, um corpus onde se investem inúmeras referências simbólicas que adquirem uma robusta gramática singular.

Em jeito de Fim

Pas Perdus, dada a sua possibilidade polissémica, entre a semiologia clássica e a economia gestual pós-dramática, coloca-nos no coração de todas as questões transcendentes, sociais e políticas. A sua narrativa recorre a signos como qualquer coisa que substitui uma outra, tida como verdadeira. Reconhecemos que o discurso artístico assenta num sistema de signos que o criador/intérprete reconhece e cumpre na íntegra, e que lhe atribui uma identidade em presença. Do seu lado, a obra de arte, independentemente da linguagem artística, revela-se um dispositivo representativo aberto a múltiplas interpretações. Nesse sentido, quer do lado da criação, como do lado da recepção, a fruição artística é uma “contracena” entre artista e espectador. Uma contracena feita de duas vozes, dois corpos, dois limites, duas barragens, filtrando energias que entram e saem. Há sempre um limite que determina o que é exterior à obra, a realidade, e o que lhe é interior, a ficção. Felizmente que, quer para artistas, quer para espectadores, esse limite é aberto e argumentativo. Não esqueçamos que o jogo de esconder e mostrar é a essência da prática artística e o nosso grande reduto de liberdade e de cidadania.

Bibliografia

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Freud, Sigmund. 1981. Essais de psychanalyse. Paris : Payot Éditeur

Goffman, Erving.1974. Les rites d’interaction. Paris: Minuit.

Goffman, Erving. 1993. A apresentação do eu na vida de todos os dia. Lisboa: Relógio d’Água.

Jung, Carl Gustav. 1997. Mysterium Coniunctions. Petrópolis: Vozes.

Jung, Carl Gustav. 1998. AION. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes.

Jung, Carl Gustav. 2003. Estudos alquímicos. Petrópolis: Vozes.

Pinto, José Madureira.1991. Considerações sobre a Produção Social de Identidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. I, 32, 224-225.

Filmografia

Pas Perdus. 2008. Saguenail. Portugal: Hélastre