Abstract
The present work is located in the area of psychology, starting from an interdisciplinary proposal of articulation between philosophy, cinema and communication; thought of as different ways of seeing the broader field of subjectivities. It proposes the discussion of the relationship between cinema and everyday life, through a method that articulates film analysis with the discussion of concepts. In this way, the reference to tours and dialogues is justified by this intention of a free circulation between films and concepts. As for the conceptual focus of the work, the notions of delicacy, becoming and possible will be developed here as aesthetic meanings. In fact, these three aesthetic meanings will be the operators of the article’s central hypothesis; namely, the idea of working the concept of everyday life from an aesthetic point of view. In this path, the work of author Gilles Deleuze stands out as a conceptual apparatus that helps both the debate around everyday life and the discussion about cinema. Regarding the latter, the notion of time-image – central in Deleuzian texts on cinema – brings to light some developments for this discussion around time. Finally, some comments will be made about possible research paths in light of what has been developed.
Keywords: Cinema, Everyday Life, Delicacy, Becoming, Possible.
Introdução
O presente trabalho baseia-se no artigo produzido como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação em Psicologia na Universidade Santa Úrsula, defendido por Leonardo Soutelo e orientado pela professora Débora Lomba. Nosso propósito foi, precisamente, articular as temáticas do cinema e do cotidiano, assim como elaborar seus entrecruzamentos, presentes tanto em uma estética do cotidiano quanto em um cotidiano subjetivado pelo cinema.
Foram várias as metamorfoses pelas quais essa pesquisa passou antes de chegar à sua versão final. No início, o foco eram os filmes do diretor japonês Yasujiro Ozu, cuja temática da família japonesa seria desdobrada a partir das lentes teóricas da psicanálise. Em seguida, decidimos mudar o destaque teórico para a obra do filósofo Gilles Deleuze – tanto alguns de seus textos escritos junto a Félix Guattari, quanto, em especial, seus dois livros dedicados inteiramente ao cinema.
Dessa forma, uma primeira metamorfose se concretizou no seguinte título: Nas encruzilhadas da memória: a imagem-tempo de Yasujiro Ozu e suas evocações. A referência ao conceito deleuzeano estaria aliada ao foco no documentário Tokyo-Ga (1985), dirigido por Wim Wenders como uma homenagem pessoal – permeada por memórias e afetos – a Yasujiro Ozu.
Por fim, após uma pontuação importante de Débora Lomba, escolhemos retomar a discussão sobre o cotidiano. Ozu é largamente conhecido como cineasta do cotidiano, o que é, de fato, perceptível em toda sua filmografia. Essa característica autoral, então, aliou-se à retomada de outra referência teórica importante (embora secundária frente a Deleuze) para debater o cotidiano: Michel de Certeau. Seu livro Invenção do cotidiano é literatura fundamental em qualquer pesquisa que decida pensar o cotidiano. No mais, decidimos incluir outros filmes além dos dirigidos por Ozu, muitos dos quais fazem eco com essa estética do cotidiano criada pelo diretor japonês.
Essa pesquisa norteia-se por um viés intencionalmente interdisciplinar, cujas áreas de destaque são o cinema, a filosofia e a comunicação. Na encruzilhada desses saberes, encontra-se a psicologia, que é não somente o lugar de onde enunciamos nosso discurso, mas um ponto privilegiado de imaginar e elaborar discursos aliados da multiplicidade. Não à toa, Gilles Deleuze – pensador do múltiplo e da diferença – é um intercessor cada vez mais comum nos departamentos de psicologia.
Nessa encruzilhada em que se localiza a psicologia, cabe salientar a dimensão do “entre” que constitui essa abordagem interdisciplinar de passeios e diálogos. Deleuze e Guattari (2022) falam sobre o “entre” por meio da noção de agenciamento, que se caracteriza por uma diluição de sujeito e objeto em prol de tudo que se passa no meio desses dois pólos.
Além disso, uma outra forma de definir a metodologia utilizada é por meio do conceito de produção de subjetividade (Guattari 2011). Em suma, seria uma tentativa de ressituar epistemologicamente discussões que, usualmente, ficam presas dentro de binarismos (causa/efeito, por exemplo). Em especial, a noção de produção de subjetividade parece-nos importante para repensar o estético e o psicológico enquanto categorias menos estáveis e estáticas. Portanto, urge pensar o cinema enquanto produtor de subjetividades (Luz 2002). Cinema esse que traz à tona um certo cotidiano, e subjetividades essas que o atravessam.
Na próxima secção, iremos desenvolver a discussão conceitual em torno do cotidiano, relacionando-o com certos filmes e estéticas cinematográficas. Também começaremos a indicar o lugar que as noções de devir, possível e delicadeza ocupam no presente trabalho.
Desenvolvimento
Na tentativa de abordar o tema do cotidiano em um trabalho acadêmico, o desafio de preenchê-lo de sentidos consiste na vivência repetitiva que esse tema nos suscita. O pensar, nesse caso, parece se deparar com algo inefável: “A palavra cotidiano fica boiando na minha frente. Ela brilha como uma ilusão. Como uma bolha de ar que pode ser desfeita a qualquer minuto.” (Chiara 2006, 49).
Enquanto algo que pensamos e deixamos de pensar a todo momento, o cotidiano nos aparece como um ponto de interrogação. A autora Ana Chiara formula essa questão de uma forma interessante:
Tento chegar bem próximo do moço dessa geração para entender o que pensa como pensa o cotidiano. Pergunto o que é o cotidiano? Posso ainda pensar o cotidiano como cotidiano? Lembro que para minha geração o cotidiano talvez fosse o contrário da esfera pública para onde muitos se bandearam pegando em armas, fazendo política, sexo e rock and roll. Talvez fosse o espaço rejeitado da mediania, o espaço tedioso da repetição, do mal-estar, do nada de extraordinário acontecendo. Lembro a canção de Chico Buarque: todo dia ela faz tudo igual me acorda às seis horas da manhã. Lembro que Caetano, ao gravá-la, deu um tom bêbado à interpretação como se a corroesse por dentro. Caetano lembrava o quanto de cachaça para suportar o todo dia, tudo igual... Lembro o cotidiano dos contos de Clarice quebrados ao meio pela irrupção de algo inesperado e perturbador. Lembro que fugíamos do cotidiano em busca de quê? Nem me lembro mais, talvez de aventura... (Chiara 2006, 47-48)
Entre o desejo de fugir do cotidiano e a tentativa de compreender essa palavra, um ponto importante é relembrar que nenhuma repetição se faz sem produção de diferença: “Talvez seja esse um ideal, diante do mesmo e da repetição, ser sutilmente diverso.” (Lopes 2007, 88). E como alcançar isso? Bom, nossa aposta aqui é que a arte possibilita esse cotidiano ressubjetivado. Dessa forma, vamos desenvolver o papel estético que o cinema desempenha nessa visada sobre o cotidiano.
É nesse sentido que decidimos fazer a discussão sobre o estético a partir de três vetores: a delicadeza (Lopes 2007), o devir (Deleuze e Guattari 2012) e o possível (Zourabichvili 2000). Cada um deles ajuda a compor esse quadro do que seria o cotidiano sob um ponto de vista estético. Um cotidiano delicado; um cotidiano atravessado e arrastado por devires – silenciosos porém transformadores –; e um cotidiano de possíveis, que não estão dados, mas podem ser criados.
Como dito na introdução, o livro Invenção do cotidiano, de Michel de Certeau, pode ser considerado uma obra cânone nessa discussão. Em suma, o cotidiano seria composto pelo que o autor chama de artes de fazer – as atividades corriqueiras do dia a dia das pessoas. Essas artes de fazer, por sua vez, seriam as antidisciplinas (Certeau 2014) no interior de uma sociedade disciplinar, as quais são responsáveis por criar possíveis e permitir uma vida menos domesticada. Poderíamos dizer, ainda, que essas artes de fazer se traduzem em antidisciplinas precisamente por sua delicadeza, e promovem mudanças justamente pelo devir que cada uma delas encerra. Nesse sentido, Certeau nos auxilia a pensar o estético no e com o cotidiano; e o papel do cinema nesse cenário será o destaque a ser desenvolvido ao longo do texto.
Nesse ponto da discussão, iremos enfim introduzir um tema que, embora secundário nesse trabalho, será importante para esclarecer diversos conceitos: o tempo. Faz-se importante desdobrar essa questão do tempo principalmente pelo percurso teórico de Gilles Deleuze. De forma geral, poderíamos dizer que sua obra é relevante tanto para pensar o cotidiano quanto o cinema. Nesse duplo registro, a noção de devir ganha destaque (e será melhor explicado adiante), mas, nesse momento, será interessante nos debruçarmos sobre os conceitos cinematográficos de imagem-movimento (Deleuze 2018) e imagem-tempo (Deleuze 2013a). O filósofo Peter Pál Pelbart faz um retrato panorâmico didático sobre essas duas categorias deleuzeanas fundamentais, e seus respectivos livros homônimos:
Tomemos a ideia mais enigmática que organiza esses livros, o tema da emancipação do tempo. ‘The time is out of joint’, exclama Hamlet. O tempo está fora dos gonzos! O que significa o tempo saído dos eixos, devolvido a si mesmo, o tempo puro e liberado? É um tempo liberado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno de seu eixo e encadeado e direcionado conforme a sucessão de seus presentes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania do presente que antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricas aventuras. Como diz Bruno Schulz em outro contexto, o tempo é um elemento desordenado que só se mantém em disciplina graças a um incessante cultivo, a um cuidado, a um controle, a uma correção dos seus excessos.
(Pelbart 2000, 88-89)
Esse tempo “indisciplinado” faz coro com a antidisciplina formulada por Certeau. Desse modo, o cotidiano pode ser aqui compreendido como esse tempo fora dos eixos. Não à toa, Deleuze (2013a) considera alguém como Yasujiro Ozu um pioneiro da imagem-tempo, por conta de seus filmes dos anos 40 e 50.
De forma geral, o terreno da estética é presente ao longo de toda a obra de Deleuze, e de diferentes formas. Pensador da imanência, ele deixa claro em diversos momentos como as artes, a ciência e a filosofia conversam entre si por meio de um dispositivo eminentemente estético: a criação.
A filosofia se ocupa de conceitos: ela os produz, ela os cria. A pintura cria um certo tipo de imagens, linhas e cores. O cinema cria um outro tipo de imagens, imagens-movimento e imagens-tempo. Mas os próprios conceitos são imagens, são imagens de pensamento. Não é mais difícil, nem mais fácil, compreender um conceito do que olhar uma imagem. (...) Haveria, inclusive, pontos de indiscernibilidade onde a mesma coisa poderia se exprimir numa imagem pictural, num modelo científico, numa imagem cinematográfica, num conceito filosófico. E, no entanto, cada disciplina tem seu movimento próprio, seus meios, seus problemas. (Deleuze 2016, 223)
Em outras palavras, podemos dizer que Deleuze faz jus ao conceito de agenciamento que ele formulou junto a Guattari, pois se localiza – enquanto filósofo – entre as áreas; explorando suas zonas de indiscernibilidade. Quanto ao que nos interessa nessa pesquisa, o foco é no agenciamento Deleuze-cinema: um pensador entre a filosofia e o cinema; criando conceitos para lidar com a criação de imagens-movimento e imagens-tempo.
Essa importância do cinema e demais artes para o pensamento de Deleuze é uma boa oportunidade para esmiuçar seu conceito de devir, e é a psicanalista Monique David-Ménard quem nos ajuda nessa primeira empreitada:
Uma vez que a arte é esta cultura dos afetos que se torna capaz de aguçar o indiscernível das sensações, ao mesmo tempo em que cria materialmente blocos de percepções que asseguram a essas experiências infinitesimais que elas não serão abolidas quando abandonarem os recortes prontos das formas e das organizações macroscópicas, os devires desabrocham nas artes (como as pulsões nas sublimações, segundo Lacan). Devir é atravessar os gêneros como artista, permanecendo ao mesmo tempo no infinitesimal das pequenas percepções. (DAVID-MÉNARD 2014, 127)
Assim, vemos a profunda intimidade entre arte e devir. Por sua vez, uma arte como o cinema parece encontrar uma singular intimidade com o tempo, seja em sua forma indireta (imagem-movimento) ou de maneira direta (imagem-tempo). Pensando com Deleuze e Tarkovsky, podemos ainda dizer que certas imagens “esculpem o tempo” (Tarkovsky 1998). Ou seja, se o tempo também faz parte desse infinitesimal das pequenas percepções, poderíamos dizer que a arte, o cinema, é uma forma de “esculpir o devir”; fazer do devir matéria-prima e produto de uma criação artística.
Portanto, reiteramos que o olhar desenvolvido aqui acerca do cotidiano é um olhar estético. Entre todas as possibilidades de se encarar e conceituar o cotidiano, o foco será na direção de uma poética do cotidiano (Lopes 2007). Dito isso, na próxima secção, aprofundaremos as relações entre cinema e cotidiano.
O cinema pensa o cotidiano
Seguindo as pistas de Deleuze sobre diretores de cinema serem, igualmente, pensadores de cinema (Deleuze 2016), que pensam via imagens, gostaríamos de caracterizar como um certo cinema pensa o cotidiano. No entanto, por mais importante que seja o registro do pensamento – e um pensar empreendido pelas artes –, o nosso viés da psicologia gostaria de enfatizar a criação de sensibilidades; de sensibilidades cotidianas.
Nesse sentido, como forma de manter aberto esse caminho do pensar e do sensível, usaremos de inspiração um texto de Deleuze, cujo título é “A pintura inflama a escrita” (Deleuze 2016). De forma poética – sem, entretanto, deixar de ser filosófica –, o autor desenvolve como a pintura e o processo de escrita criam seu agenciamento:
A escrita tem seu calor próprio, mas é pensando na pintura que melhor se apreende a linha e a cor de uma frase, como se o quadro comunicasse alguma coisa às frases... (Deleuze 2016, 191).
Assim, propomos, agora, uma pequena subversão do título desta secção: o cinema inflama o cotidiano. Ou seja, cinema e cotidiano têm, cada uma, seu calor próprio – respectivamente, as imagens-movimento e imagens-tempo, e as artes de fazer (Certeau 2014). Mas é nesse encontro cotidiano entre as pessoas comuns e as imagens cinematográficas que algo fora do comum pode ocorrer, mesmo no interior da repetição do dia a dia.
Pensemos, então, em uma segunda subversão: o cotidiano inflama o cinema? Considerando o caráter antidisciplinar das artes de fazer, seus produtores – digamos, os espectadores – podem efetuar mudanças no pensar cinematográfico. E, de fato, é o tema, por excelência, que inspirou vários/várias cineastas a produzir filmes belos e sensíveis.
Porém, nessa inversão, talvez a palavra seja inadequada. Troquemos, então, pela seguinte frase: o cotidiano esvazia o cinema. Entre o inflamar e o esvaziar, o primeiro parece ser mais propício ao cinema, cuja histórica ambiguidade entre arte e indústria atesta para essa dimensão excessiva; enquanto o segundo identifica um potencial inesperado de produzir suavidades que desaceleram as velocidades cinematográficas. Além disso, esse esvaziar também carrega os aspectos de contemplação e lentidão que caracterizam bem as estéticas do cotidiano. Se pensarmos na história do cinema até os dias de hoje, isso seria um esforço importante de produzir “(...) um contraponto a uma arte que fala demais, produz imagens demais (...)” (Lopes 2007, 90).
Dito isso, agora iremos nos debruçar sobre um filme específico: Era uma vez em Tóquio (1953), o clássico de Yasujiro Ozu. Especificamente, a emblemática cena em que a protagonista Noriko diz, sorrindo, em um diálogo (voltando-se para a câmera), a seguinte frase: “Sim, a vida é decepcionante”. Trata-se de um grande estopim dessa narrativa centrada no tema do luto, e Noriko consegue exprimir em palavras um certo vazio que espreitava o filme desde o seu início.
Na realidade, o luto em questão é de dupla natureza: tanto em referência às pessoas que se foram, quanto àquelas que ficam, mas em relação às quais os relacionamentos, de certa forma, morreram. Noriko é uma testemunha desses tempos lutuosos, situados historicamente em uma Tóquio reconstruída e modernizada do pós-Segunda Guerra, porém repleta de feridas abertas. Ela própria viúva de um soldado japonês que lutou na Segunda Guerra Mundial, tem suas dores e perdas, mas, ainda assim, conserva uma delicadeza, uma suavidade; em especial, com seus sogros, que são, aos poucos, esquecidos pelos próprios filhos. É nesse contexto que Noriko fala “Sim, a vida é decepcionante”. Não se trata de resignação melancólica; pelo contrário, é um reconhecimento – trágico, porém delicado – de que o mundo, como se supunha, também está se desfazendo.
Esse é um dos motivos pelos quais Era uma vez em Tóquio seria um exemplo de filme de imagem-tempo, visto que, nele,
(...) a relação orgânica entre os movimentos se desmancha, o encadeamento sensório-motor se desfaz, a crença na continuidade do mundo se perde, porque um certo mundo também desmoronou. (PELBART, 2000, p. 94)
Nesse desmoronamento de um mundo, Ozu parece observar que algo restou. Com todo o colapso dos sistemas sensório-motores (Deleuze 2013a), algo foi liberado das amarras sociais que determinavam a ação e reação das pessoas. Esse resto é o cotidiano.
O rosto e a fala de Noriko nos dão, de alguma forma essa pista. Quando ela enuncia, sorrindo, que a vida é decepcionante, parece nos dizer que existe, ao mesmo tempo, uma dimensão de possível. Esse possível é o cotidiano; mas, também, é criado no e pelo cotidiano.
Dada essa primeira aproximação com Ozu, vamos, de agora em diante, observar como as várias estéticas do cotidiano trabalham suas lentidões e seus vazios. Nesse trajeto, podemos citar alguns/algumas autores/autoras: Jim Jarmusch, Wong Kar-Wai, Wim Wenders, Sofia Coppola etc.
Esses nomes serão nossas companhias ao longo desses passeios e diálogos estéticos, ao passo que nossos intercessores serão os devires, as delicadezas e os possíveis. Se Ozu, com seu cinema do cotidiano, pode ser enxergado como autor de um anticinema (Yoshida 2003), é porque levou a imagem cinematográfica para um outro estatuto, que apela mais para a contemplação do que para o movimento. Dessa forma, Ozu abriu caminhos para outros anticinemas; e o objetivo, portanto, desses três sentidos estéticos será explorar esses caminhos e contemplar as encruzilhadas.
Devir, possível, delicadeza
Para introduzir de forma mais direta os três sentidos estéticos, vamos citar um dos monólogos do filme Paterson (2016), de Jim Jarmusch, que, de certa forma, condensa as ideias que serão aqui tratadas:
Quando se é criança, aprende-se que há três dimensões: altura, largura e profundidade. Como uma caixa de sapatos. Depois, descobre-se que há uma quarta dimensão: o tempo. Hmm. E então, alguns dizem que pode haver cinco, seis, sete... Eu saio do trabalho, bebo uma cerveja no bar. Olho para o copo e me sinto contente. (Paterson 2016).
Essa é uma das falas do protagonista Paterson (também o nome da cidade em que o filme se passa), que é motorista de ônibus e poeta. Nessa cena – como em várias outras –, Paterson está dirigindo o ônibus e pensando em poesias, que são reveladas pela narração em off dele próprio, ao passo que as imagens cotidianas se sucedem na tela. Escolhemos essa cena pois, em primeiro lugar, a delicadeza de toda a descrição parece que é um dos elementos da forma como Paterson concebe e entende o cotidiano ao seu redor – com beleza, singeleza, quase ingenuidade sobre o mundo. O devir se encontra em todo um não-dito que orbita os ditos de Paterson, em especial no tocante ao tema do tempo. Passado, presente e futuro parecem conversar entre si a todo momento, seja quando ele fala de uma caixa de sapatos, do copo de cerveja, ou, explicitamente, do conceito de tempo, que o ajuda a flutuar em meio às palavras. Por fim, o possível é o fazer poético de Paterson, sua criação cotidiana dentro do ônibus. É o que diz Deleuze, em um texto sobre Maio de 68: “É um fenômeno coletivo sob a seguinte forma: ‘Um pouco de possível, senão eu sufoco...’. O possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento” (Deleuze 2016, 246).
Acontecimento é outro conceito em Deleuze, que se aproxima bastante da noção de devir. Poderíamos pensar que nada é mais distante da discussão sobre o cotidiano do que um evento como Maio de 68, mas a presença de um devir mostra que existe um fundo comum a fenômenos os mais diversos: “As situações cotidianas e mesmo as situações-limite não se assinalam por algo raro ou extraordinário” (Deleuze 2013a, 31). Em outras palavras, acontecimento não é sinônimo de grandeza, e pode existir mesmo em algo pequeno como o fazer poético cotidiano de Paterson – cada devaneio de Paterson é um acontecimento, poderíamos dizer. Isso também implica pensar que, se “o cinema capta o acontecimento” (Deleuze 2013b, 204), ele capta algo que é da ordem de um devir e, portanto, atua no sentido da criação de possíveis.
A clássica cena do vaso no filme Pai e Filha (1949) é interessante para encaminhar essa discussão. A história gira em torno de uma jovem, Noriko, e das mudanças que ocorrem na relação com seu pai. É um drama familiar típico de Ozu, um de seus conhecidos dramas “desdramatizados” (Lopes 2012), visto que trabalham uma estética do cotidiano. Noriko não quer se casar, e gostaria de continuar cuidando de seu pai viúvo. No entanto, pela insistência de várias pessoas – em especial, seu pai –, ela concorda em se casar. É no contexto dessa decisão que a cena do vaso ocorre; um vaso que aparece no meio do diálogo de Noriko com seu pai. O vaso como um acontecimento – com sua beleza e delicadeza, ele compõe a cena junto aos personagens, pois ele próprio também parece observar e dirigir um olhar aos demais. Deleuze também ficou especialmente tocado com esse momento do filme, e fez algumas preciosas observações em torno da discussão sobre o tempo.
O vaso de Pai e filha se intercala entre o leve sorriso da moça e as lágrimas que surgem. Há devir, mudança, passagem. Mas a forma do que muda não muda, não passa. É o tempo, o tempo em pessoa, ‘um pouco de tempo em estado puro’: uma imagem-tempo direta, que dá ao que muda a forma imutável na qual se produz a mudança. (...) A natureza morta é o tempo, pois tudo o que muda está no tempo, mas o próprio tempo não muda, não poderia mudar senão num outro tempo, ao infinito. No momento em que a imagem cinematográfica confronta-se mais estreitamente com a fotografia, também se distingue dela mais radicalmente. As naturezas mortas de Ozu duram, têm uma duração, os dez segundos de um vaso: esta duração é precisamente a representação daquilo que permanece, através da sucessão dos estados mutantes. (Deleuze 2013a, 27-28)
Entre Pai e Filha (1949) e Paterson (2016), algumas décadas de cinema se passaram, mas parece restar a herança de um olhar idiossincrático sobre o tempo. O cotidiano de Paterson, embora permeado pela repetição, nos sugere que cada um de seus elementos, suas artes de fazer (como a poesia), estão dispostos enquanto variações sobre um fundo invariável e constante – o tempo.
O filme de Jim Jarmusch, que poderíamos chamar de imagem-tempo contemporânea, fica mais claro em suas intenções quando o contrastamos a, por exemplo, Veludo Azul (1986), de David Lynch. Sem esgotar as possibilidades dessa comparação, foquemos no tratamento ao tempo, ao cotidiano. Veludo Azul (1986) faz questão de demarcar que há um antagonismo entre dia e noite, os quais se constroem enquanto, por um lado, a pretensa felicidade da vida nos subúrbios estadunidenses – durante o dia –, e a revelação de toda a violência, mantida em segredo – nas cenas noturnas. Paterson (2016), como vimos, se constrói de outra maneira: dia e noite não se chocam entre si, posto que são diferenças, singularidades.
Trata-se de estéticas cinematográficas distintas, e o contraste serve, aqui, para mostrar o que é uma estética do cotidiano. Delicadezas, devires e possíveis desempenham um papel mais importante nesse segundo caso, visto que sua própria natureza é um tanto quanto etérea, cuja intimidade com o tema do tempo atesta para esse fato. Lopes define bem o que caracteriza esse contraste de cinemas do cotidiano frente a outras estéticas cinematográficas:
Ao invés da estética do efeito, implícita nas técnicas expositivas do choque, do grotesco e do escândalo; o desafio artístico se colocaria em termos de uma estética do afeto (...) (Lopes 2007, 90).
Nos termos do autor, portanto, cabe agora aprofundar essa estética do afeto na desmontagem dos três sentidos estéticos, tratados separadamente a partir do que os caracterizaria.
Devir
Até agora, várias descrições foram dadas acerca do conceito de devir, mas falta um desdobramento importante, que Deleuze fez juntamente a Guattari no livro Mil Platôs: “todo devir é um devir-minoritário” (Deleuze e Guattari 2012, 92). Em suma, eles formulam os conceitos de minoria e devir-minoritário para dizer como o devir funciona no sentido de “tornar-se minoria”, ou “tornando-se minoria” (se tivermos em mente a tradução para o inglês becoming). Esse “tornar-se”, no entanto, nunca se efetua de fato na direção daquilo para o que algo devém; ou, em outras palavras, devir-minoritário não significa fazer parte de uma minoria de forma sociológica. E é aqui que reside o fundamental sobre devires: eles atuam por vizinhanças, zonas de indiscernibilidade, e de maneira molecular (Deleuze e Guattari 2012), em oposição à molar.
No trabalho anterior, Kafka, por uma literatura menor, eles havia formulado a noção de devir-menor (Deleuze e Guattari 2022), para pensar o que seria a literatura menor de Kafka. No contexto de nossa pesquisa, podemos pensar na estética do cotidiano como um cinema menor, que extrai da indústria cinematográfica seus devires-menores e devires-minoritários. Pensando em Paterson (2016), o protagonista é atravessado por um devir-poeta, que o arrasta de sua profissão de motorista de ônibus (molar) para outras direções, artísticas e lúdicas (moleculares). Entretanto, assistindo ao filme, vemos como Paterson faz vizinhança e se mescla com inúmeros aspectos de seu cotidiano, de forma que outros devires-minoritários podem ser notados, como devir-negro, devir-criança, devir cachorro etc. Um filme como Paterson (2016) faz circular os devires como algo fundamental de seu universo.
Além de todo devir ser um devir-minoritário, todo devir também é impessoal (Deleuze e Guattari 2012). Em relação a isso, voltemos ao filme Pai e Filha (1949). A cena analisada anteriormente, com o vaso, já trazia um forte caráter impessoal, dado o efeito da natureza morta em quadro. Agora, no entanto, vamos focar na cena final, com a praia.
Após a filha se casar, nessa cena final, o pai parece sentir com mais intensidade a ausência de Noriko. É no momento em que ele está sentado, descascando uma laranja, que, subitamente, deixa a casca cair no chão. Ele aparenta estar solitário, e abaixa a cabeça após cair a casca. A trilha sonora é suave ao longo de toda a cena, “desdramatizada” (Lopes 2012). Então, eis que a cena corta para a imagem de uma praia. O filme termina nesse plano da praia.
Na linha da interpretação de Deleuze, podemos pensar no vaso e na praia como representações do tempo. São elementos impessoais que aparecem em quadro como parte integrante da cena; como composição junto aos personagens. Além disso – enquanto tempo –, a praia e o vaso observam os humanos de um ponto de vista não-humano e imutável: “Possivelmente, os filmes de Ozu, mediante objetos como o travesseiro inflável, tomam o ponto de vista das coisas que contemplam a nós, humanos.” (Yoshida 2003, 21). Mas, além do aspecto contemplativo das coisas em nossa direção, essas próprias coisas nos arrastam por meio de devires-minoritários. Um devir-praia está em jogo nesse filme, nessa cena final. O personagem e a praia formam um estranho agenciamento naquele exato momento em que o mundo do pai sofria um abalo:
É nesse sentido que devir todo mundo, fazer do mundo um devir, é fazer mundo, é fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas de indiscernibilidade. (Deleuze e Guattari 2012, 77).
Devir-praia, nesse contexto, é afirmar a seguinte frase: “Um pouco de possível, senão eu sufoco...” (Deleuze 2016, 246). Afirmar a própria impessoalidade que nos atravessa significa criar um campo de possíveis; ou, ao menos, um pouco de possível.
Como uma maneira de pensar os desdobramentos da estética de Ozu no cinema contemporâneo – o que já fizemos, um pouco, com Paterson (2016) –, pode ser interessante dialogar com um ensaio de Lopes intitulado Efeito-Ozu:
O que chamo de efeito-Ozu pode ser uma possibilidade de manter ainda um cinema narrativo, clássico, que não se dissolve nas experiências radicais dos cinemas novos dos anos 1960, base para a proposta conciliatória do cinema pós-moderno que emerge com a crise da noção de vanguarda nos anos 1970. (LOPES, 2012, p. 102)
Um filme tipicamente herdeiro desse Efeito-Ozu seria Café Lumière (2003), do diretor taiwanês Hou Hsiao-Hsien. Nessa narrativa, acompanhamos o relacionamento delicado de Yoko e Hajime em meio aos trens de Tóquio; uma Tóquio bem diferente da cidade vista por Ozu nos anos 40 e 50. Mas essa diferença é porque a urbanização que Ozu começava a observar já está concretizada no início do século XXI; e, portanto, a dimensão de velocidade já está internalizada na subjetividade de seus habitantes. Esse é, inclusive, um dos aspectos mais belos do filme: o contraste entre as velocidades da cidade e as lentidões das vidas cotidianas das pessoas.
A sequência final do filme é uma bonita conclusão dessa relação entre a impessoalidade da cidade e o cotidiano de seus personagens. Hajime tinha o costume de gravar os sons das estações de trem, e, nesse momento, ele encontra por coincidência Yoko dentro do vagão. Ela dormia, e ele se aproxima vagarosamente e coloca o gravador próximo a ela, sem acordá-la. O contraste das velocidades e das lentidões toma a forma, nesse caso, dos sons e dos silêncios. Na realidade, o relacionamento de Yoko e Hajime foi permeado o tempo todo por esses dois pares de contrastes. Pouco após essa cena, Hajime grava os sons da plataforma, e Yoko só observa; ao que se segue uma imagem panorâmica da cidade, com seus trens; e o filme acaba nesse misto de afeto e impessoalidade urbana.
Possíveis
Podemos tomar essa frase como a síntese do texto do autor deleuzeano Zourabichvili (2000), em que ele aborda o tema da política a partir de textos estéticos de Deleuze. Dessa forma, podemos concluir de sua argumentação que o possível a ser criado é pela via das artes; ou seja, o estético como recurso para a criação de possíveis no cotidiano.
A metáfora da qual é feita essa frase encontra um eco interessante no filme Medianeras (2011). O título refere-se às laterais dos prédios de Buenos Aires, onde são comumente abertas janelas ilegais. É um desejo por respirar, por abertura de possíveis, contra todo sufocamento urbano. No caso, os dois personagens principais, Martín e Mariana, abrem as janelas em suas medianeras, mas esse é só um exemplo entre as criações de possíveis que eles mostram ao longo do filme em seus cotidianos. O acaso do encontro que viria a ocorrer entre os dois é uma bonita maneira de o filme sublinhar que esse pouco de possível que ambos buscaram resultou em aberturas significativas de horizontes.
O diretor Wong Kar-Wai, por sua vez, tem o tema recorrente, ao longo de sua obra, do par de opostos abertura e fechamento de possíveis. Essa repetição temática se desdobra em outras tensões: o encontro e o desencontro; o desejo de se comunicar e a incomunicabilidade. Curiosamente, o próprio Wong Kar-Wai fala sobre isso em sua trajetória no cinema:
O que me atraiu para o cinema foi acima de tudo um problema de comunicação. Nasci em Xangai, mas meus pais imigraram para Hong Kong quando eu tinha cinco anos. Em Hong Kong se fala cantonês, que é realmente muito diferente do chinês falado em Xangai. Por isso eu não tinha com quem falar, não conseguia fazer amigos, eu me entediava intensamente. Então minha mãe começou a me levar ao cinema porque era algo que eu podia entender para além das palavras, apenas olhando as imagens. Logo fiquei viciado. (Tirard 2006, 183)
De fato, as imagens de Wong Kar-Wai sempre apontam para o problema de comunicação entre seus personsagens. Mas, apesar de todo desencontro e incomunicabilidade, essas imagens também carregam a sensibilidade de olhar com carinho para os encontros ligados ao acaso, que frequentemente são acontecimentos na vida dessas pessoas. Vamos observar dois de seus filmes: Amores Expressos (1994) e Amor à Flor da Pele (2000). O estilo de Wong Kar-Wai, mais próximo do melodrama, certamente é diferente dos dramas de Ozu, mas, ainda assim, há uma proposta de encontrar beleza e poesia no cotidiano.
O filme Amores Expressos (1994) é composto por duas histórias românticas, que se unem por alguns personagens e espaços em comum, como a lanchonete que dá o título inglês do filme (Chungking Express). Quando se encerra a primeira história, há uma curta cena em que a imagem congela por alguns segundos e o protagonista quase esbarra em Faye, a personagem feminina da segunda história. Nesse curto instante, o narrador comenta que algo poderia surgir ali, mas Faye estaria, em pouco tempo, apaixonada por outro homem. A tensão de abertura e fechamento de possíveis ficou clara em poucos segundos, quando uma história se encerra e outra começa. Por fim, em meio às desilusões amorosas dos vários personagens, há um constante desejo de criar possíveis.
Amor à Flor da Pele (2000) gira em torno de dois personagens que são vizinhos, e logo descobrem a traição de seus cônjuges, que estão se relacionando entre si. A partir daí, ambos se aproximam, flertam entre si, e algum relacionamento amoroso acontece, embora nunca consolidado. A fragilidade e intensidade dão o tom desse relacionamento, permeado pela beleza do acaso. Uma cena, em particular, é emblemática: ao se encontrarem na habitual caminhada entre o refeitório e a escada, eles trocam olhares como sempre; mas, dessa vez, a chuva faz com que retornem para dentro, e, desse acontecimento, o tempo a mais que passam juntos promove um desdobramento inesperado para essa relação. A trilha sonora da cena é de uma suavidade diferente da que vemos em Ozu – a valsa tocada pelo violino evoca todo um lirismo trágico desse relacionamento que estaria fadado a permanecer no descontínuo e na impermanência. O pouco de possível que os personagens criam é tão belo quanto inconstante.
As velocidades e lentidões são sutilmente trabalhadas por Wong Kar-Wai nos dois filmes. Na cena da escada, os amantes passam em câmera lenta; na cena de transição de Amores Expressos (1994), a imagem congela. Em contraste com isso, seus filmes apresentam muitas cenas de ação, filmadas de maneira idiossincrática, com as luzes de neon borrando as imagens em movimento. Aliás, parece uma subversão que o diretor faz às imagens-movimento tipicamente presentes nos filmes de ação de Hong Kong.
Sobre o delicado
A delicadeza, diferente dos outros dois sentidos estéticos propostos, escapa ao registro do conceitual. Nossa inspiração, aqui, é no livro de Lopes (2007) chamado, justamente, A delicadeza. O autor define a própria escolha pelo título, de uma forma que nos ajuda a desenvolver nossa argumentação: “Os ensaios têm um fio condutor na delicadeza, embora ela nunca se explicite de todo” (Lopes 2007, 17). Nesse sentido, a delicadeza é um termo que passa mais pelo sensível que pelo conceitual. Ainda nas palavras do autor:
A delicadeza não é, portanto, só um tema, uma forma, mas uma opção ética e política, traduzida em recolhimento e desejo de discrição em meio à saturação de informações. (Lopes 2007, 18).
O filme Encontros e Desencontros (2003) trata do tema da solidão de forma particularmente delicada. Os personagens Bob e Charlotte são solitários tanto em seus lugares de origem quanto na Tóquio em que se encontraram. Sobre a delicadeza na representação dessa solidão: “Há uma certa melancolia, enfatizada pela bem escolhida música climática, mas nada dilacerante, nem no encontro nem no desencontro (...)” (Lopes 2012, 105).
Isso encontra um paralelo com o documentário de Wim Wenders, Tokyo-Ga (1985). No caso, o tema central são as memórias, especialmente relacionadas com a obra de Yasujiro Ozu, e a relação afetiva que Wenders tem com ela. Wenders busca reencontrar uma Tóquio idílica de Ozu, mas encontra a confusão urbana de uma nova época. Logo nos primeiros momentos, o diretor fala que, após essa viagem em que fez o documentário, esqueceu de boa parte do que acontecera lá – as imagens filmadas tornaram-se suas memórias. A delicadeza desse filme se faz presente em uma narração cuidadosa e repleta de lirismo, junto ao caráter pessoal imprimido por Wenders. Além disso, a trilha sonora de um sintetizador constrói melodias e harmonias que fazem dialogar o tradicional e o contemporâneo.
Mais uma vez – como em Café Lumière (2003) –, a Tóquio moderna funciona, nesses dois filmes, como um intercessor narrativo importante, quase uma personagem, que contrasta as velocidades urbanas e caóticas com as lentidões cotidianas dos personagens. Ademais, o tema do estrangeiro é claro nesses dois filmes: Bob e Charlotte estão fora de casa no Japão, mas, ao mesmo tempo, suas respectivas casas, nos EUA, nunca lhes foram exatamente familiares. É dessa forma curiosa que eles encontram, um no outro, um certo conforto para suas solidões: “Fica talvez ainda o desejo de reconstruir, reconquistar uma sensação de estar em casa no mundo (...)” (Lopes 2012, 107).
Conclusão
Por fim, como indicado no resumo, iremos aproveitar esse espaço de conclusão para não somente retomar alguns pontos principais trabalhados, como indicar possíveis caminhos de pesquisa frente ao que propusemos.
O conceito de produção de subjetividade atravessou esse texto de forma silenciosa, visto que se trata da metodologia utilizada, que encara cinema e cotidiano como duas instâncias que são reciprocamente determinadas e, por consequência, são igualmente responsáveis por produzir subjetividades.
Dito isso, gostaríamos de fazer uma última citação que, ao retomar o conceito de devir, indica uma outra forma de encarar os temas da estética e da subjetividade, mas agora também situadas frente à política:
(...) não terá Deleuze dado voz àqueles que, como diz ele num eco benjaminiano, ‘a História não leva em conta’? Não se trata, evidentemente, só dos oprimidos ou das minorias, embora sempre se trate deles também, mas dos devires-minoritários de todos e de cada um: não exatamente o povo, mas o ‘povo que falta’, o povo por vir. (Pelbart 2000, 97)
Ou seja, se a produção de subjetividades, engendrada mutuamente entre o fazer cinematográfico e as artes de fazer, já constitui uma importante forma de encarar as relações entre arte e vida, agora Pelbart nos sugere que a arte também tem uma função criadora de coletividades ainda não existentes. Se o povo falta, é por isso que existem Norikos, Bobs, Charlottes, Fayes e Patersons. São criações estéticas, criações de possíveis, que dão conta de uma coletividade inventada para fazer jus aos devires – imponderáveis –, os quais não se traduzem tão facilmente para a esfera coletiva: “Não é todo mundo que devém como todo mundo, que faz de todo mundo um devir. É preciso para isso muita ascese, sobriedade, involução criadora (...)” (Deleuze e Guattari 2012, 76). Dessa forma, poderíamos completar: é preciso muita suavidade, delicadeza.
Bibliografia
Certeau, Michel de. 2014. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Traduzido do francês por Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes.
Chiara, Ana. 2006. Ensaios de possessão (irrespiráveis). Rio de Janeiro: Caetés.
Deleuze, Gilles. 2013a. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense.
Deleuze, Gilles. 2018. Cinema 1 – A imagem-movimento. Traduzido do francês por Stella Senra. São Paulo: Editora 34.
Deleuze, Gilles. 2013b. Conversações. São Paulo: Editora 34.
Deleuze, Gilles. 2016. Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-1995). São Paulo: Editora 34.
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. 2022. Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. 2012. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Traduzido do francês por Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34.
Guattari, Félix. 2011. “Da produção de subjetividade”. In Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Organizado por André Parente, 177-191. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Lopes, Denilson. 2007. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: EdUnB.
Lopes, Denilson. 2012. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco.
Luz, Rogerio. 2002. Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
Pelbart, Peter Pál. 2000. “O tempo não-reconciliado”. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Organizado por Éric Alliez, 85-97. São Paulo: Ed. 34.
Tarkovski, Andrei. 1998. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes.
Tirard, Laurent. 2006. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Yoshida, Kiju. 2003. O anticinema de Yasujiro Ozu. São Paulo: Cosac & Naify.
Zourabichvili, François. 2000. “Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política)”. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Organizado por Éric Alliez, 333-355. São Paulo: Ed. 34.
Filmografia
Amor À Flor Da Pele. 2000. De Wong Kar-Wai. Hong Kong; França. DVD.
Amores Expressos. 1994. De Wong Kar-Wai. Hong Kong. DVD.
Café Lumière. 2003. De Hou Hsiao-Hsien. Japão; Taiwan. DVD.
Encontros e Desencontros. 2003. De Sofia Coppola. Estados Unidos da América; Japão. DVD.
Era Uma Vez Em Tóquio. 1953. De Yasujiro Ozu. Japão. DVD.
Medianeras: Buenos Aires Da Era Do Amor Virtual. 2011. De Gustavo Taretto. Argentina; Espanha; Alemanha. DVD.
Pai e Filha. 1949. De Yasujiro Ozu. Japão. DVD.
Paterson. 2016. De Jim Jarmusch. França; Alemanha; Estados Unidos da América. DVD.
Tokyo-Ga. 1985. De Wim Wenders. Estados Unidos da América; Alemanha Ocidental. DVD.
Veludo Azul. 1986. De David Lynch. Estados Unidos da América. DVD.