Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Cine-concert community project: Heróis do Mar (1949; 2022) by Fernando Garcia, revisited by Portovedo, Martins and Sampaio

Um Cine-concerto projeto de comunidade: Heróis do Mar (1949; 2022) de Fernando Garcia, revisitado por Portovedo, Martins e Sampaio

Helena Maria da Silva Santana

Inet-MD, Portugal

Maria do Rosário da Silva Santana

Inet-MD, Portugal

Abstract

If we attempt an investigation into national and international filmography, on themes linked to the sea, maritime activities, fishing and cod fishing, we perceive the existence of numerous records, namely “Heróis do mar” (1949) by Fernando Garcia. To establish a relevant museum collection, some actions were developed. The production of the Cine-Concerto “Heróis do Mar”, in partnership with the Orquestra Filarmónica Gafanhense and some actors of the community, under the artistic direction of Alexandre Sampaio, is an example. It highlights the audacity and commitment that lies behind the event. In order to recover a heritage of undeniable value, Hugo Pequeno and Nuno Miguel Costa have an important role in its recreation.

Thus, and in order to obtain a sound for the film, given that the original soundtrack was lost, the collaboration of Henrique Portovedo, João Martins and the Orquestra Filarmónica Gafanhense was requested. So, it is our intention to reflect on its creative process by describing its stages and analyzing its final product, especially regarding the creation of a new soundtrack and the entire sound process carried out within the scope of a community project, highlighting the importance of sound in the construction of a diegesis of the film image.

Keywords: Heróis do Mar, sound design, community project, Henrique Portovedo, João Martins, Alexandre Sampaio.

Introdução

O interesse das artes em elaborar representações estéticas sobre a aventura humana da pesca do bacalhau não deixou indiferente o cinema. Com propósitos meramente estéticos ou ostensivos fins de reprodução ideológica, quer o documentário, quer a ficção construíram as suas imagens sobre o tema (Garrido 2003, 3)1

No que à filmografia nacional diz respeito, esta encontrava-se, é certo, e até há bem pouco tempo, muito desmerecida por parte das entidades competentes, tanto do ponto de vista museológico, como ao nível da sua divulgação, valorização e restauro. Paralelamente, não havia nem o interesse, nem o cuidado de inventariar os registos encontrados, sistematizando informação de modo a dar continuidade ao desenvolvimento de uma pesquisa académica refletida e sustentada (Garrido 2003; Garrido & Cunha 2003; Pequeno 2022)2. Em Ílhavo, concelho de marítimos, cidade ligada ao mar, à pesca e à indústria do bacalhau, o interesse de alguns ilhavenses por estes temas, bem como pela divulgação de filmografia ligada a estas temáticas, ocorria de forma ocasional e dispersa (Garrido & Cunha 2003; Pequeno 2022). Os eventos esparsos levaram, contudo, a que alguns ilhavenses, aqueles com mais fortes ligações ao mar e/ou às instituições que o representam, sentissem a necessidade de os valorizar, bem como à pouca informação que, desde meados do século XX e início do século XXI, se encontrava disponível sobre o assunto.

Neste sentido, e de modo a constituir um acervo museológico que se exibisse de relevo, não só para a região, como, e em particular, para o Museu Marítimo de Ílhavo (MMI)3, desenvolveram-se, a partir desta instituição, algumas ações de recolha e identificação de documentos dispersos nas áreas relatadas, bem como de registos fílmicos de origens e procedências diversas4. No seguimento desta primeira ação, diligências foram feitas no sentido de perceber de que modo poderiam estes registos ser usados a nível não só museológico, como a nível social e comunitário na região. Tentando majorar a sua importância a nível académico, consubstanciaram-se diversas ações em que pudessem ser utilizados em atividades de cariz cultural e artístico, mas também formativo e educativo. Da sua natureza irrompeu a possibilidade de se realizarem mostras temporárias, bem como a concretização de diversos eventos culturais, de entre os quais festivais e ciclos de cinema, exposições fotográficas, ações de formação em diversas áreas, projetos de comunidade, edições de livros e de outros formatos, a criação de obras de arte em várias áreas sobre as temáticas do mar e da pesca do bacalhau, etc.5. Contudo, e malgrado a localização territorial que possuímos, no extremo oeste da Europa e da Península Ibérica, banhados pelo Oceano Atlântico em toda a nossa linha de costa6,

Não se conhecem estudos sobre a cultura marítima dos portugueses e são raras as instituições que procuram promovê-la. [Segundo Garrido,] depois da Exposição Universal de Lisboa, dedicada ao tema dos Oceanos, e após a extinção da Comissão dos Descobrimentos Portugueses, nada de vigoroso ficou neste imenso campo cultural e cívico. A única excepção fulgurante – mas, por trágica ironia, bem elucidativa dessa colectiva noção de perda de um passado marítimo recente – tem sido a do “comércio” de memórias marítimas, cujo consumo parece em curva ascendente. Na verdade, de forma desconcertada e ao ritmo de dinâmicas e interesses locais, o apetite cultural pelos patrimónios marítimos alimenta entre nós um incipiente turismo dos lugares de memória que amiúde se reivindica guardião de tradições autênticas. Num balanço de economia cultural, estaremos ainda [, segundo o autor,] perante dinâmicas culturais irrelevantes, mesmo à escala local. Mas a sua procura potencial é já superior à oferta e, por isso, receptiva a investimentos criativos e a alguma imaginação empresarial. Menos competitivas e culturalmente violentas serão sempre as iniciativas baseadas em retóricas patrimoniais e museológicas (Garrido 2013, 354).

Percebemos então que

Os apelos de crescimento do MMI colocados pela ampliação e renovação do edifício, em 2001, e pela abertura, no mesmo ano, do Pólo Navio-Museu Santo André, um antigo arrastão bacalhoeiro recuperado para fins patrimoniais, exigiram uma profunda revisão do projecto museológico, até então limitado às práticas reprodutoras de um museu etnográfico de cariz regional que nos anos noventa do século XX iniciara um tímido processo de maritimização (Garrido 2013, 358-59).

Ciente da sua função enquanto diretor do MMI, da importância do seu espólio, e de modo a alargar o leque de atividades formativas, culturais e artísticas do Museu, Álvaro Garrido interpela Hugo Pequeno, à época na equipa do Museu, de modo a que o ajudasse a organizar um Ciclo de Cinema que incidisse sobre o tema da Faina Maior (Pequeno 2022). Para além do ciclo de cinema, concebeu, juntamente com Paulo Cunha, uma brochura onde apresentam, para além de uma abordagem investigativa e histórica da filmografia nacional e internacional sobre a pesca do bacalhau, uma filmografia de todos os filmes que tinham sido produzidos até então dentro desta área, de entre a componente ficcional e documental (Cunha 2003). No decorrer da investigação, encontram o registo de o filme “Heróis do mar” da autoria de Fernando Garcia, não ficando indiferentes à sua temática, mas também, e sobretudo, pelo facto de se inserir no espaço territorial e vivencial das gentes de Ílhavo (Pequeno 2022)7.

Cine-Concerto Heróis do Mar

No que concerne a produção do Cine-Concerto “Heróis do Mar”, em pareceria com a Orquestra Filarmónica Gafanhense e a Comunidade, sob a direção de Alexandre Sampaio, percebemos a audácia e o empenho que por detrás do evento se descobre, dado não só a dimensão da empreitada, como o contexto em que a divulgação do filme foi imaginado8. No que à sua projeção e divulgação diz respeito, a ideia original, da autoria de Hugo Pequeno e Nuno Miguel Costa, à qual Alexandre Sampaio de pronto correspondeu, percebemos que de imediato recolheu a aceitação por parte dos órgãos dirigentes da autarquia, nas instituições da Câmara Municipal de Ílhavo (CMI) e do MMI (Pequeno, 2022)9. O filme surge baseado no livro “Os Grandes Trabalhadores do Mar”, da autoria do jornalista Jorge Simões, o qual reúne um conjunto de crónicas e reportagens sobre uma campanha do bacalhau, as quais foram publicadas no Jornal Diário da Manhã, publicação onde Jorge Simões era colaborador (Cunha, 2003)10. Os textos, vencedores do prémio de jornalismo-reportagem do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), convertido em 1944, em Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), o prémio “Afonso de Bragança”, decorria o ano de 1941, mostram a relevância e a qualidade do registo enunciado11. São o mote para o desenvolvimento de uma produção cinematográfica em torno da epopeia da pesca do bacalhau que se intitulou, para glorificação dos homens do mar, e propaganda do regime político vigente, de “Heróis do Mar”, sendo a sua adaptação ao cinema iniciada ao longo do ano de 194412.

As exigências de uma produção que se quis megalómana e ambiciosa, prolongaram a sua rodagem por vários anos (Cunha 2003). O filme estreia somente a 15 de março de 1949, entrando para a história do cinema português como a primeira tentativa cinematográfica de explorar temas heroicos e populares da cultura portuguesa, e em particular a pesca do bacalhau (Torgal 1996). Publicitado como uma epopeia sobre

“os nossos humildes e simples pescadores”, Heróis do Mar conheceu uma impressionante campanha de divulgação, merecendo até honras de primeira página, algo muito raro para a produção portuguesa da época. Segundo a crítica mais empolgada, este “não é um filme como outro qualquer. É português. Trata de pescadores. Trata-se sem dúvida a circunstância de ser um filme sério. [...] É talentoso esboço de uma situação, de uma série de atitudes que bem demonstram o sentimento e o espírito da nossa boa gente do mar. (Cunha 2003, 14).

Se o tema se mostra adequado aos propósitos e objetivos traçados por Hugo Pequeno e Nuno Miguel Costa, bem como às atividades culturais promovidas pelo MMI, o acesso ao registo do filme colocou algumas questões que era necessário ultrapassar. O filme encontrava-se no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento – da Cinemateca Portuguesa, o ANIM, em formato de película, sendo necessário, logo à partida, recuperá-lo. Contactada a instituição, para realizar a divulgação da película no contexto do ciclo de cinema indicado, deslocou-se um projetor e um projecionista identificado pela Cinemateca Portuguesa a Ílhavo, de modo a que a mesma acontecesse (Pequeno 2022).

O filme, na sua versão de 1949, possuía uma componente sonora original cuja autoria se atribuiu a Jaime Mendes, bem como a interpretação de um Fado por João Aleixo e de uma canção, “A Canção dos Pescadores”, por Domingos Marques. Na pesquisa das fontes, percebeu-se que as cópias que existiam da banda sonora original se haviam perdido (Pequeno 2022). Diz-se que aquando de um incêndio na Tobis13. Verdadeira, ou não, a informação, o facto é que não existe uma cópia da banda sonora original do filme. A realidade não permitiu que, aquando da sua primeira projeção no MMI, o filme contemplasse quaisquer falas, diálogos, efeitos sonoros, interpretação musical, etc., tendo sido emitido como se de um filme mudo se tratasse (Pequeno 2022)14.

Percebendo a importância do filme no contexto não só nacional, como para a região de Ílhavo em particular, e de modo a concretizar uma sua versão sonora, Hugo Pequeno propôs uma outra apresentação, mas, desta feita, englobando uma componente sonora, de modo a tornar o processo de fruição do filme mais aprazível e, sobretudo, mais entusiasmante e completo. Transmitindo esta sua intenção ao então Diretor do Museu, Prof. Álvaro Garrido, recolheu da sua parte uma forte aceitação. Entusiasmado, e de modo a desenvolver o seu projeto, contactou novamente a Cinemateca Portuguesa, desta vez de maneira a perceber se seria possível avançar com a ideia. Foi informado de que existiam em arquivo, não só a película, como o argumento do filme e a partitura da música original da autoria de Jaime Mendes. Surpreendido com o facto, procedeu aos contactos necessários de modo a conseguir os registos, e a realizar, não somente um espetáculo ao vivo em condições diferentes da primeira emissão da película, como uma gravação do filme “Heróis do Mar” em Disco Digital Versátil (DVD), suporte em voga na altura (início do século XXI)15. Dado o conjunto dos elementos propostos, o projeto revelou-se poder vir a ser bastante dispendioso, tendo ficado, por isso, parado até se conseguir financiamento (Pequeno 2022)16. Depois de conseguir os meios financeiros necessário à prossecução da empreitada, foram, progressivamente, realizados a recuperação, digitalização e masterização da película, desenvolvidos esforços para conseguir o guião, a partitura original, bem como a componente sonora do filme. O processo de digitalização da película foi moroso, sendo que o seu resultado somente chegou às entidades Ilhavenses decorria já o ano de 2019 (Pequeno 2022)17. Apesar disso, o facto não impossibilitou o cumprimento dos objetivos previamente traçados pelos dinamizadores do projeto, Hugo Pequeno e Nuno Miguel Costa, bem como de Álvaro Garrido e Paulo Costa: apresentar o projeto no aniversário dos 70 anos da estreia do filme “Heróis do Mar”, ou seja, durante o ano de 201918.

Heróis do Mar: um projeto de comunidade

Assomando no, e do seio da comunidade, assumiu-se, por se revelar eficaz no contexto de criação do projeto de comunidade - Cine-Concerto “Heróis do Mar”, o conceito de comunidade proposto por Jorge Prendas. No seu entender,

A definição do que é uma comunidade é muito larga. [...]. [Fica-se, contudo, pela ideia], ainda que vaga, de que uma comunidade é um conjunto de pessoas unidas por uma ou várias características e que juntas perseguem um fim comum. Essas pessoas podem estar já agrupadas há muito, ou podem, como consequência de um determinado projeto, juntar-se a partir dessa altura (Prendas 2015, 278)19.

Trabalhando juntas, conciliando aptidões, destrezas e vontades, gerindo espectativas, ultrapassando dificuldades, os participantes num projeto desta natureza desenvolvem esforços de modo a que a obra se manifeste. Contudo, nem tudo se mostrou fácil. O começo de qualquer projeto é marcado, normalmente, pela desconfiança. Ela surge e é, geralmente, diretamente proporcional à insegurança dos intervenientes20. Apelar, conseguindo a plena participação de todos, é o grande desafio que do diretor artístico. Independentemente do grupo que se forma, da comunidade que se encontra implicada, o medo de falhar, o medo do desconhecido, a resistência ao novo (e, consequentemente, ao risco), a desconfiança que por vezes pode acompanhar os primeiros momentos de contacto com aquele que dirige, sobrevoa. A constituição do grupo, quando os elementos não se conhecem na totalidade, ou quando são integrados elementos a eles desconhecidos, pode acarretar desconfiança. Porém,

Um projeto artístico pode ser ele agregador de pessoas bem diferentes, mas que se encontram à volta de um desafio artístico e em comunidade trabalham juntas (Prendas 2015, 278).

Numa primeira fase é necessário ultrapassar os constrangimentos do grupo e em seguida, os constrangimentos do projeto21. No caso de “Heróis do Mar” sabemos que a realização da sua dobragem interpretativa constituiu uma primeira experiência para quase todos. Nas palavras de Nuno Sobral, um dos intervenientes no projeto, na personagem de o Melrinho, percebemos as suas inquietações:

Jamais tinha feito algo do género e estava um bocado apreensivo devido ao facto de dobrarmos em português as falas de personagens que estavam a falar a mesma língua, ou seja, estava um pouco receoso da necessidade de proferirmos as mesmas palavras em simultâneo com as falas que aparecem no filme. Quanto a dobragens, a única experiência que eu tinha era uma curta-metragem de animação intitulada Branco (de Raquel Felgueiras, distinguida no Cinanima de Espinho), um trabalho isolado e completamente diferente do que costumo fazer” (Sobral 2022, s.p.).

Acresce a exposição pública que se adivinhava no final. Neste sentido, a exposição pública que se efetivou no final de todo o processo, o facto tanto se mostrou um fator de constrangimento como, nalguns casos, de motivação. Do ponto de vista da criação, não podemos ficar indiferentes à questão de que, e mais uma vez, estarem em jogo premissas referentes à edificação de um projeto de comunidade. Segundo Cruz (2015, 47-48),

Um contributo teórico relevante para a análise do que implica a participação [num projeto de comunidade] é o Modelo Clear (Vivien, Lawrence & Gerry 2006) que congrega cinco aspetos fundamentais para que se desenvolva um processo participativo: Can (Capacidade - associada ao diálogo, às competências verbais, à existência de limitações físicas e/ou doença mental, entre outras); Like (Interesse - dimensão que remete para o facto das pessoas se sentirem bem no grupo em que estão integradas e relacionadas com as ideias pré-concebidas que têm da música, dança ou teatro); Enabled (Possibilidade - ponto que remete para questões instrumentais como o acesso a transporte para que possa participar ou a conciliação com a vida familiar); Asked (Motivação - o porquê de querer participar num projeto artístico; quem, porquê e como se mobiliza para um projeto desta natureza?) e Responded (Impacto - remete para dimensões de percepção e sentido atribuído, ou seja, para que serve ou participar numa criação artística? Será que as pessoas olham para mim de maneira diferente? É um espaço onde tenho oportunidade de mudar percepções ou não?). Em síntese, as pessoas participam quando têm os recursos apropriados (Can); têm sentido de pertença a uma determinada comunidade (Like); têm as condições necessárias (Enabled); são mobilizadas e encorajadas (Asked); e acreditam que a sua participação pode fazer a diferença (Responded). Estas são, como é óbvio, condições centrais num processo de construção colaborativa no âmbito de Arte e Comunidade, e que, no nosso entender, sobressaem em todos os que participam na concretização do Cine-concerto “Heróis do Mar”. Da dimensão da empreitada não podemos inferir outra realidade.

De modo a integrar os participantes no processo de modo a que mais rapidamente se sentissem parte do mesmo, Alexandre Sampaio teve como princípio orientador fomentar a colaboração de todos na identificação, criação e análise de alguns dos elementos integrantes do projeto, mormente falas, efeitos sonoros, técnicas de interpretação, materiais e objetos produtores de som e ruído, possibilidades sonoras e interpretativas de cada um, tanto de modo individual, como enquanto grupo, integrando todas as valências no resultado final22. Em outro, era necessário gerir as expectativas individuais em função do coletivo, dando espaço ao indivíduo para se integrar e desenvolver, sem permitir, contudo, que neste fazer, ofuscasse o resultado de outros, ou mesmo do todo. Teve como princípio base não promover, ainda que de forma involuntária, a sobreposição de uns face a outros, de modo a que ninguém se sentisse inferiorizado ou excluído do processo23. Da análise das sessões de ensaio realizadas no âmbito da dobragem interpretativa e de composição dos efeitos sonoros, percebemos que a promoção da participação e a reflexão sobre o conjunto dos elementos sonoros e falas construídos, bem como das sugestões feitas e dos procedimentos interpretativos sugeridos por parte do seu diretor artístico ao longo de todo o processo, bem como das sugestões realizadas por parte dos intervenientes no projeto se mostrou essencial, tanto para a manutenção de uma participação ativa e motivada de todos, como para a boa disposição e consequente regular permanência, por parte de todos, nos ensaios (Sampaio 2022). Nas palavras de Prendas, (2015, 279) :

Um processo participado é a melhor forma de garantir a mobilização do grupo todo. O sentido de pertença é uma a excelente forma de envolver os participantes activamente na construção de um projeto, sendo este, no nosso ver, o princípio base de toda a ação de Alexandre Sampaio.

O processo de sonorização

O Projeto de sonorização e produção do Cine-Concerto - “Heróis do Mar”, sendo financiado por fundos europeus, tinha um prazo para se realizar, o ano de 2019. Acrescem, um conjunto de evidências a produzir, nomeadamente a apresentação ao vivo em formato de Cine-Concerto, e a gravação de um Disco Digital Versátil (DVD) ou de um Blu-ray, um registo vídeo, desta nova edição do filme. A coincidência temporal foi um elemento importante no que concerne o reunir de intenções, motivações e vontades. Em 2019, cumpria-se a efeméride dos 70 anos da primeira apresentação do filme. A sua apresentação pública em contexto de Cine-Concerto, permitiria um primeiro contato com o público, de modo a perceber o impacto da realização proposta. A apresentação ao vivo nesta data, englobou a narração, elementos de sonoplastia e a interpretação ao vivo da banda sonora, realizadas por atores e autores da região. Apresentado no âmbito da programação do Milhas, foi o espetáculo de abertura da Milha – Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo, em 201924. O espetáculo, completamente esgotado, teve grande impacto na comunidade e um enorme sucesso junto do público. O tema do filme, os intervenientes, a direção musical, a direção de atores, e todos os componentes que suportaram a sua criação, não foram indiferentes à comunidade ilhavense25.

O projeto, sendo de comunidade, e para a comunidade, potenciou uma forte reação do público, desenvolvendo o ensejo de uma nova criação, desta vez completa, dado que a primeira versão do filme se concretizou de forma incompleta. Diversos fatores concorreram para isso, desde logo o tempo dado aos seus criadores para elaborarem e ensaiarem duas das componentes base do espetáculo, o novo guião da responsabilidade de Alexandre Sampaio, e a nova banda sonora, da responsabilidade de Henrique Portovedo e João Martins26. No dizer de Martins (2022, s.p.):

Cada projeto artístico exige de [si] uma abordagem personalizada que vá ao encontro dos desígnios do mesmo, sempre alicerçada em toda a [sua] experiência enquanto músico (compositor, arranjador, produtor, etc.), e sobretudo, enquanto fruidor de música. No caso específico deste projeto, “Heróis do Mar”, foi criado um imaginário sonoro colaborativamente com o Henrique Portovedo.

O processo colaborativo impõe-se em várias áreas e momentos. No que toca à organização e dinâmica entre as diferentes partes envolvidas, o Henrique Portovedo assumiu a direção musical do projeto, tendo ficado como mediador, nomeadamente no que concerne ao contacto com o Alexandre Sampaio e diferentes intervenientes. Do ponto de vista musical, [...] este projeto assentou num trabalho colaborativo entre mim e o Henrique Portovedo, onde ficou definido, desde o início, que eu faria a criação acústica e o Henrique ficaria responsável pela criação eletrónica. À medida que o processo criativo foi avançando, percebemos que a componente eletrónica serviria, a grosso modo, como extensão da componente acústica, por forma a funcionar quase como um “novo naipe” dentro da Orquestra Filarmónica, ampliando e complementando harmonias, melodias e timbres. No entanto, também ficou claro que, ao longo da narrativa, haveria alguns momentos em que a componente eletrónica iria assumir um papel de destaque, nomeadamente em secções de transição entre cenas.

Assumindo componentes distintas do sonoro proposto, tanto Martins, como Portovedo, concorrem para a edificação da nova proposta fílmica. O sonoro participa eficazmente no delinear dos conteúdos imagéticos projetados pela imagem. No que a “Heróis do Mar” diz respeito, Martins afirma que existem

elementos que são transversais, dependendo do momento da narrativa e da forma como se pretende que a música se envolva com ela, grande parte das vezes determinadas pelo respetivo produtor. Como tal, há momentos em que a componente sonora deve estar num plano secundário relativamente às imagens/falas, ou, por outro lado, momentos em que dá contorno à narrativa, envolvendo-se mais diretamente com a ação e/ou emoções latentes (Martins 2022, s.p.).

De modo a que as escolhas criativas fossem aceites pelos dois, ao longo de todo o processo criativo, João Martins e Henrique Portovedo, mantiveram

um diálogo permanente, que permitiu criar soluções artísticas que contemplassem ambas as componentes —acústica e eletrónica — e que, acima de tudo, fossem ao encontro dos desígnios do projeto (Martins 2022, s.p.).

No processo de dobragem interpretativa, diversos desafios e dificuldades surgiram. Tanto na preparação da primeira das versões, como da segunda, Alexandre Sampaio percebeu alguns constrangimentos saídos do suporte veiculado pela cinemateca, como provenientes das capacidades e personalidades dos envolvidos. Claramente diferentes, os intervenientes passam para a sua interpretação possibilidades e constrangimentos que o encenador deve gerir. Neste sentido, Alexandre Sampaio refere que:

Ao longo das sessões, encontramos várias dificuldades. De entre elas, o choque da velocidade do filme e sua inerente apreciação estética. Quanto dobramos verso quanto interpretamos? Em outro, a estaticidade do trabalho (pouca dinâmica corporal), e a minha perceção da existência de vozes mais próximas, ou mais longínquas, das dos reais intérpretes, e que por isso, se tornariam mais difíceis de enformar e, consequentemente, um processo mais lento de agilizar. Foi por isso um processo lento, planeado, metódico, em que o trabalho de ensaio se fez a cada cena, “frase a frase”, a cada seção de modo mais geral, e por partes de modo a termos uma noção mais completa do resultado verificado em relação aos objetivos por nós traçados (Sampaio 2022, s.p.).

O facto permitiu a Sampaio moldar toda a sua planificação de trabalho, de modo a satisfazer as necessidades de cada um e do grupo, mas também moldar de modo mais satisfatório os elementos da dramaturgia interpretativa e dos efeitos sonoros do seu foley. O trabalho foi-se revelando

muito satisfatório, e, sem muita pressão, de forma gradual, passo a passo, pequenas cenas iam ficando maiores em termos de ensaio corrido e com uma dobragem satisfatória (Sampaio 2022, s.p.).

Gradualmente, o foley também foi ganhando corpo e vida, num conjunto de decisões interpretativas discutidas pelo grupo e aprovadas pelo encenador.

Sendo um projeto de comunidade, percebemos o empenho daqueles que o integram, a cumplicidade que se gera, o apoio e a entrega. Em outro, a temática, com forte impacto nas gentes da região, torna-se gatilho de identificação e consequente participação. Para Leopoldo Oliveira (as cited in Lau, 2019, s.p.).

o mais importante de toda esta aventura é a possibilidade de “recuperar uma obra que é dos poucos filmes que existem sobre a pesca do bacalhau de antigamente” e, apesar de ser uma obra de ficção, “consegue contar uma história e, ao mesmo tempo, mostrar aos espetadores como era a vida na pesca do bacalhau (Oliveira as cited in Lau, 2019, s.p.).

Conclusão

A realização do Cine-Concerto Heróis do Mar, com a participação da Orquestra Filarmónica Gafanhense e a comunidade, constituiu, sem dúvida, uma experiência estética de valor, tanto para quem participou, como para quem assistiu ao espetáculo, possuindo ainda, e no nosso entender, mas também de Cruz (2015, p. 41):

um papel potenciador na criação e formação de públicos. [Experiências desta natureza] Podem ser lidas, ainda, como experiências que correspondem a níveis de participação menos aprofundados constituindo-se como primeiros passos para processos de maior grau participativo,

ao nível das associações culturais do município e da comunidade.

O espaço de criação que potencia a participação da comunidade é, para Erven (as cited in Cruz 2015, 43),

uma forma alternativa de criação em que as pessoas de uma comunidade são capacitadas através do próprio processo em que participam, reunindo-se com o propósito de criar objetos artísticos. Estes processos seguem uma lógica de criação coletiva com base nas histórias das pessoas e dos locais, [...]. Assumem-se aqui alguns aspetos relevantes e centrados acima de tudo no processo de criação mais do que propriamente no seu resultado final. Sendo que a este respeito é importante ressalvar que o espetáculo, [e no caso do Cine-Concerto “Heróis do Mar”], como um dos resultados do processo, entre outros (ex.: os impactos ao nível da dinâmica comunitária), é mais um dos momentos do processo e como tal deve ser valorizado porque se assume como um momento de confronto com o público, da própria comunidade ou de fora dela e que por isso coloca a conceptualização do mesmo noutro lugar.

Em outro:

Os movimentos grupais podem ser vivos, rápidos e carregados de uma ameaça de agressividade, ou suaves e sinuosos como o movimento da água num lago sereno. As pessoas podem agrupar-se à semelhança das rochas das montanhas, ásperas e esparsas, ou como um riacho que flui lentamente na planície. As nuvens frequentemente agrupam-se com formas bastante interessantes. Os movimentos grupais no palco lembram, de certo modo, as mutáveis nuvens, das quais tanto se pode formar uma tempestade como irromper o sol (Laban 1978, 21-22).

Do mar de heróis que possibilitou o surgimento, a recriação e provir de “Heróis do Mar”, irrompeu também o sol, conquistando-se um pouco mais de azul.

Notas Finais

1Se intentarmos uma investigação sobre a filmografia nacional e internacional, de temática ligada ao mar, às atividades marítimas, à faina piscatória e à pesca do bacalhau, percebemos a existência de um elevado número de registos fílmicos. Neste sentido podemos consultar o Inventário de Filmografia sobre a Pesca do Bacalhau incluído no documento relativo ao Ciclo de Cinema sobre a Pesca do Bacalhau, que decorreu nos dias 12,13 e 14 de Dezembro de 2003, no Museu Marítimo de Ílhavo (Garrido & Cunha, 2003).

2O trabalho, da competência da Cinemateca Portuguesa, bem como do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, o ANIM, permitiria, quando feito, o seu uso por parte da comunidade científica, mas também por aquela que, com responsabilidades no âmbito da sua divulgação, a quisesse requisitar.

3O Museu Marítimo de Ílhavo nasce a 8 agosto de 1937. Enquanto espaço e tempo de cultura, constitui um lugar de memória para os ilhavenses, mas também dos ilhavenses que o criaram. Desde a sua fundação que assume uma vocação maioritariamente etnográfica e regional. No entanto, uma instituição da sua importância e natureza, carecia de instalações compatíveis com a sua função e desempenho. É assim que em 2001 sofre uma enorme transformação, quando muda de instalações e pode ampliar as suas áreas expositivas. Passando para um edifício amplo e de arquitetura moderna, agrega ainda o núcleo de o navio-museu Santo André. Porque as instituições crescem, e as oportunidades surgem, em 2012, foi criada a unidade de investigação e empreendedorismo denominada de CIEMar-Ílhavo. Em 2013 passa a incluir, igualmente, e no seu espaço, um Aquário de bacalhaus (Carvalho, 2011).

4Estes elementos, documentos e registos, depois de recolhidos e analisados, permitiram a identificação dos elementos mais relevantes neles contidos, de modo a perceber de que modo poderiam ser inseridos no contexto de uma sua utilização em alguns espaços e salas, assim como da realização de algumas ações e eventos, aqueles que devidamente sinalizados, permitem o seu usufruto pela comunidade.

5O número e a variedade dos eventos produzidos decorrem da quantidade e variedade dos registos encontrados, inventariados e recuperados. Neste contexto, algumas ações foram surgindo no concelho integrando a agenda de alguns eventos culturais do Município de Ílhavo como são o 23 Milhas, a Milha: Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo, o Mar Film Festival, o Rádio Faneca, e os diferentes espaços das instituições culturais do concelho, nomeadamente o Museu Marítimo de Ílhavo, a Casa da Cultura de Ílhavo, o Cais Criativo da Costa Nova, a Câmara Municipal de Ílhavo, entre muitos outros, de acordo com as possibilidades e as necessidades de cada proposta que se identificou e projetou (Pequeno 2022).

6Portugal possui uma linha de costa de 2.830 quilómetros. De entre eles, 942 quilómetros constituem a dimensão da linha de costa correspondente ao território continental, 667 da costa pertencente a todas as ilhas que compõem o arquipélago dos Açores, 250 quilómetros são relativos à ilha da Madeira, onde se incluem também as Ilhas Desertas, as Ilhas Selvagens e a Ilha de Porto Santo.

7O Ciclo de Cinema idealizado aconteceu, sendo que um dos seus principais objetivos era o de mostrar o maior número de filmes possível sobre a temática (Pequeno 2022). Muitos dos filmes nele apresentados encontravam-se no arquivo do Arquivo do MMI, constituindo-se, essencialmente, de registos captados durante a Faina e a pesca do bacalhau, cedidos por diversos homens do mar de Ílhavo, Capitães dos Lugres e dos navios bacalhoeiros, ou por pessoas que de alguma forma se encontram, ou encontraram ligadas ao mar, à faina e à pesca do bacalhau. Outras fontes pertenciam aos arquivos da Rádio Televisão Portuguesa (RTP), tendo sido por ela gravadas, e cedidas, de modo a incorporarem a programação (Pequeno 2022).

8Percebemos a submissão aos ideais salazaristas da época. “Apesar do apoio financeiro do Estado e de ter vencido o Grande Prémio de Cinema do SNI, o filme de Fernando Garcia constitui uma iniciativa privada que nasceu no seio do Diário da Manhã, um jornal muitíssimo conotado com o regime e mesmo com algumas franjas da direita radical. Contudo, esta longa-metragem, exceptuando os filmes de propaganda directa, foi uma das obras cinematográficas que maior contributo prestou aos ideais salazaristas de trabalho e de amor à Pátria” (Cunha 2003, 11).

9Sabemos da forte ligação de Ílhavo e das suas gentes ao mar, bem como da importância desta temática enquanto gatilho para a génese de diversas ações culturais, em diferentes áreas artísticas, seja o filme, a pintura, a escultura, a música, a escrita, ou outros projetos onde interajam distintas áreas do conhecimento científico e artístico. Posto isto, e dado terem percebido a importância e relevância da proposta realizada, tanto a Câmara Municipal de Ílhavo como o seu Museu Marítimo, de pronto encetaram esforços de modo a conseguir os recursos necessários ao desenvolvimento do projeto por parte dos seus proponentes: Hugo Pequeno e Nuno Miguel Costa.

10“Os Grandes Trabalhadores do Mar” da autoria de Jorge Simões e editado pelas Oficinas Gráficas da Gazeta dos Caminhos de Ferro em Lisboa, foi escrito aquando de uma viagem realizada a bordo do Lugre Groenlândia, bem como do navio hospital Gil Eanes. A viagem teve a duração de 182 dias, tendo sido patrocinada pelo Grémio dos Armadores dos Navios de Pesca do Bacalhau.

11Os Prémios Literários seriam, pois, distribuídos a obras e escritores que se integrassem no regime, ou seja, que estivessem de acordo com a consciência corporativista da conciliação de classes, com o nacionalismo, com o imperialismo colonial, com a divisa “Deus, Pátria, Família”... (Torgal 1999, 408). O livro foi editado pela primeira vez pela Imprensa Tipográfica dos Caminhos de Ferro em 1942.

12Ao longo do filme identificamos os territórios, os espaços, as lides, as festas e as tradições de Ílhavo. São apresentadas diversas cenas representativas das atividades piscatórias, das atividades de produção do sal e da seca do bacalhau, bem como das festividades e das festas da região, mormente aquela do Senhor Jesus dos Navegantes, assim como os portos, as embarcações e as praias da região. A frota bacalhoeira, e os seus Capitães, Capitães de Ílhavo, também se identificam.

13Esta informação, largamente difundida, não se encontra, contudo, confirmada, como refere Hugo Pequeno (2022). A Tobis, acrónimo de Tonbild-Syndikat (Sindicato do Som e Imagem), designa a Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm, companhia criada decorria o ano de 1932, com o intuito de apoiar e fomentar o desenvolvimento do cinema português. Pretendia igualmente criar na Europa uma uniformização ao nível dos processos de criação do som e imagem, de forma a combater o poderio das companhias cinematográficas norte-americanas, poderio esse que se verificou, e de algum modo, se verifica, ainda, nos nossos dias.

14Mesmo tendo consciência das fragilidades de uma projeção nestas condições, Álvaro Garrido, Hugo Pequeno e Nuno Miguel Costa decidiram pela sua difusão. Dada a dimensão do filme, e as suas condições de projeção à época, o filme não produziu o impacto que se ambicionava, sendo até constrangedor nalguns aspetos.
Nos arquivos da Cinemateca Portuguesa apenas subsistia material incompleto da banda de imagem com 2982 metros. Foi esse material que foi projetado no âmbito do evento narrado. Enquanto membro da equipa do Museu Marítimo de Ílhavo, foi Hugo Pequeno que encetou os primeiros contactos com a Cinemateca tratando de todo o processo conducente à projeção do filme no Auditório do Museu Marítimo de Ílhavo, uma projeção realizada ainda em película, sem qualquer elemento sonoro, pois a sonorização original encontrava-se perdida. Como afirma em entrevista a nós concedida “lembro-me que tratei desse processo, fui buscar o filme, e ele teve que ser projetado em película. Foi projetado no Auditório do Museu, e na altura, lembro-me, foi muito aborrecido. Lembro-me que passámos o filme e foi extremamente aborrecido, para mim, e para todas as pessoas que o estavam a ver” (Pequeno 2022, s.p.). O facto deveu-se certamente ao facto de o filme ser bastante longo, 118 minutos, e de na sua apresentação não ser possível disseminar qualquer registo sonoro, seja das falas, seja a nível musical, e não da temática e qualidade do filme. Na sua projeção, o público somente ouviu o barulho característico de um projetor de película de 35mm. Acresce o seu formato a preto e branco. Em outro, “Heróis do Mar” não nasceu para ser um filme mudo. Para além de extenso, o filme revelou-se um registo muito denso ao nível do argumento e, nas palavras de Hugo Pequeno, aquando da sua projeção em película, sem qualquer registo sonoro associado, isso notava-se bastante, tornando-se constrangedor (Pequeno 2022). Da sua visualização nestas condições, percebeu-se que possuía uma história plausível e identificável, mas que não tinha pantomina, um elemento fundamental para que um registo mudo funcione. “Heróis do Mar” não tinha sido criado para ser um filme mudo, faltando-lhe um elemento essencial, a componente sonora.

15Mais recentemente, surge a recuperação de temáticas ligadas ao mar num conjunto de obras fílmicas e documentais, mas também de natureza investigativa e documental que interessa referir. O filme “Terra Nova” (2020), por exemplo, mostra a dureza da faina da pesca do bacalhau, surgindo como exemplo deste interesse e capacitação. A rodagem foi feita a bordo do Lugre Santa Maria Manuela. O realizador, Artur Ribeiro, aproveitou uma deslocação do barco à Noruega para realizar a sua obra. O filme, sobre guião da sua autoria, redigido a partir da obra O Lugre da autoria de Bernardo Santareno, surge a partir de uma ideia original de Nicolau Breyner, decorria o ano de 2015. A componente musical, da autoria de Nuno Corte-Real, revela uma coincidência interessante. O compositor é bisneto de capitão de Lugres que andaram na Faina Maior, Bernardo Santareno escreve sobre ele. Foi o primeiro capitão do Lugre Santa Maria Manuela e o primeiro a remar à Gronelândia. “Terra Nova” descreve a dureza da vida do mar e a coragem dos homens que dela viviam.

16O financiamento, acontece, anos mais tarde, no âmbito de um programa de cultura em rede, dinamizado pelos Municípios de Ílhavo, Peniche e Murtosa, e que toma a designação de “Territórios com História: o Mar, as pescas e as comunidades”. Percebendo a possibilidade que deste programa emergia, Hugo Pequeno retoma a sua intenção desenvolvendo esforços de modo a obter o seu financiamento (Pequeno 2022). Apresenta o projeto ao então Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Ílhavo, o Engenheiro Paulo Costa, que, de pronto, e à semelhança de Álvaro Garrido, acolheu a ideia, possibilitando, através da sua inclusão no programa referido. Com o apoio das diferentes áreas e pelouros da Câmara Municipal de Ílhavo, a sua concretização e financiamento foi aprovada, sendo que, a partir daí, em 2017-18, estabeleceu-se uma pareceria com a Cinemateca Portuguesa oficializando-se um acordo, e os moldes em que o patrocínio da entidade ilhavense se concretizaria (Pequeno 2022). O programa é cofinanciado pelo CENTRO2020, Portugal 2020 e União Europeia, através do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.

17A qualidade do processo de digitalização encetado por parte da Cinemateca Portuguesa é inquestionável. A digitalização enviada possui melhor qualidade que muitos dos registos disponíveis ao público em formato DVD. De entre eles podemos nomear “O Pai Tirano” ou “A Canção de Lisboa”, por exemplo.

18 O ano de 2019, tendo o filme sido estreado em 1949, constituiu-se automaticamente numa data onde se poderia homenagear a efeméride.

19O exposto pelo autor desmistifica um facto que perdura ainda hoje e que afirma que o trabalho quando realizado em comunidade, ou mesmo a palavra comunidade, indica uma certa franja da sociedade diretamente relacionada com pessoas em situação de risco, excluídas ou que, de algum modo, se encontram fragilizadas (Prendas 2015).

20Da informação recolhida junto de alguns dos participantes percebemos que nem todos têm uma formação na área da representação ou do teatro. Percebemos, contudo, que todos se interessam e/ou já participaram, em projetos de comunidade que englobaram a representação ou uma qualquer outra atividade da área. Em exemplo António Morais, Dulce Ferreira, Francisco Evangelista, Herlander Loureiro, Mário Maio, Nuno Sobral ou Susana Neves, cujos testemunhos nos permitem a sua nomeação.

21Mesmo no caso de elementos com a formação adequada, cada projeto revela-se um desafio. Queremos ainda salientar o facto de que qualquer projeto realizado com elementos da comunidade, elementos esses que, muitas das vezes, não possuem formação na área para a qual se propõem intervir, acarreta sempre um período de aprendizagem e desenvolvimento por parte de todos os intervenientes.

22O facto decorre da necessidade de Sampaio em perceber as mais-valias de cada um dos elementos do grupo, tentando integrar essas capacidades individuais no seio da prática interpretativa. Sabemos que isso foi tido em conta aquando da seleção e convite aos participantes. Não esquecer que muitos deles haviam já trabalhado com Alexandre Sampaio, não sendo a primeira vez que integraram projetos de comunidade.

23O processo implicará sempre um processo de integração constante dos pares, não excluindo, mas integrando sempre.

24A Milha, e a Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo, é um projeto que acontece na cidade de Ílhavo, onde só se criam e recriam obras de compositores do território de Ílhavo, por músicos e agrupamentos musicais deste mesmo território, de modo a apoiar a cultura local. É uma plataforma que une músicos profissionais, amadores e estudantes de música em torno da música dita ilhavense. Todos os anos, a partir de um tema base, agregador de todos os projetos, surgem diversas propostas e consequentes concretizações artísticas. Tomam forma em contexto de projetos de Música e Comunidade, de modo a desenvolver e incrementar a produção artística e cultural por parte da sociedade e dos artistas ilhavenses. As ações, concebidas sempre a partir dos recursos do território e da comunidade ilhavense, refletem um modo de ser e de viver da Cidade e Concelho de Ílhavo.

25““Heróis do Mar”, de 1949, é o filme de estreia de Fernando Garcia enquanto realizador, mas o cineasta já tinha colaborado como assistente de realização em “O Pai Tirano”, “O Pátio das Cantigas” ou “Aniki Bóbó”, para além do seu trabalho como crítico cinematográfico no Diário da Manhã. Fernando Garcia faleceu em 2008, mas Ana Maria Garcia, sua filha, esteve em Ílhavo a convite do 23 Milhas para assistir à apresentação desta primeira parte do recuperado “Heróis do Mar”. “Não sei como agradecer este trabalho magnífico que honra e divulga a história de um povo e de um território”. Ana Maria Garcia saúda o “trabalho fantástico” e a “homenagem maravilhosa” que este projeto representa para a memória seu pai” (Lau 2019, s.p.).

26Henrique Portovedo, maestro da Orquestra Filarmónica Gafanhense, já tinha desenvolvido outros projetos de realização da componente sonora para filmes, seja a banda sonora, seja a componente de sonoplastia (Portovedo 2022). Contudo, esta é a primeira experiência de recuperação histórica de um filme em que a banda sonora e a partitura original se encontram perdidas. Em entrevista que concedeu a Afonso Ré Lau, aquando da primeira apresentação da sua obra em 2019, refere que “este é um projeto muitíssimo importante porque reaviva uma memória coletiva ligada à faina, ao mar e às tradições desta gente” (Lau 2019, s.p.). Para além disso, refere que, “há o fator artístico extra de transpor tudo para um espetáculo visionado”. É, na opinião do maestro, “um dois em um muito interessante”” (Lau 2019, s.p.).

Bibliografia

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Cruz, Hugo (coord.) 2015. Arte e comunidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

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Garrido, Álvaro e Cunha, Paulo. 2003. Inventário de Filmografia sobre a Pesca do Bacalhau. Ciclo de Cinema sobre a Pesca do Bacalhau – Estética e Ideologia da Faina Maior. Ílhavo: Museu Marítimo de Ílhavo.17-18. https://www.e-cultura.pt/artigo/19998

Laban, R. 1978. O Domínio do Movimento. São Paulo: Summus Editorial.

Lau, Afonso Ré. 2019. Município de Ílhavo recupera filme esquecido no tempo. O Ilhavense. https://oilhavense.com/2019/11/15/municipio-de-ilhavo-recupera-filme-esquecido-no-tempo/

Martins, João. 2022. Entrevista com o compositor. 17 de Julho de 2022.

Pequeno, Hugo. 2022. Entrevista. 12 de junho de 2022.

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Prendas, Jorge. 2015. Música e Comunidade: uma relação possível? In: Arte e comunidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Sampaio, Alexandre. 2022. Entrevista. 6 de junho de 2022.

Sobral, Nuno. 2022. Entrevista. 14 de junho de 2022.

Torgal, Luís Reis. 1996. Cinema e propaganda no estado novo - A “conversão dos descrentes”. Revista de História da Ideias, vol. 18, 277-337.

Torgal, Luís Reis. 1999. Literatura Oficial no Estado Novo. Os Prémios Literários do SPN/SNI. Revista de História da Ideias, vol. 20, 401-420.

Filmografia

Heróis do Mar. 1949. De Fernando Garcia. Portugal: Cinemateca -ANIM. DVD. (película restaurada)