Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

A Cinematic Perspective on the Walk Immemorial - Steps in Captivity

Uma perspectiva cinematográfica sobre a caminhada Imemorial - Passos no Cativeiro

Rui Filipe Antunes

CICANT, Universidade Lusófona, Portugal

Carlos Nicolau Antunes

GEDH/LAMCI-CESEM, Universidade Nova de Lisboa
Escola Superior de Educação de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa

Abstract

The way light is captured on film emulates the physics of looking. An essential part of the cinematographic process is a derivation of the human act of being and looking at the world. And in fact, many shots and the language of cinema also inherit from the human body and its movement, that particular way of perceiving the world. If in cinema the spectator’s body is fixed and relatively static, scrutinizing the surface of the screen, and delegating the movement to the camera and subsequent editing, in the walk the spectator’s body participates in the movement, almost like a dolly camera in continuous recording. O flanêur de Paris is symptomatic in its peculiar way of observing and exploring the urban landscape.

In this paper we will analyze parallels between the walk and the cinematographic language, using for that the performative walk, Imemorial - Steps in captivity, which took place in Lisbon between March and July 2022. The spectators/participants went through the walk immersed in a soundscape, a mix of narration, ambient sound and music that they listened to through noise reduction headphones connected to mp3 players. A guide/performer, the cicerone, led the groups through Lisbon’s riverfront, guiding the participants’ gaze through gestures and small performative actions. Using as inspiration and starting point a work in progress version of the walk in video film, we will highlight these parallels through a fusion between the gaze of the walking spectator and the camera. Can we speak of an expanded walk?

Keywords: Walking arts, Performative audio walk, Memory, Performative arts, Expanded walk.

Introdução

Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um prazer imenso instalar-se no múltiplo, no sinuoso, no móvel, no fugaz e no infinito. Estar fora de casa e, no entanto, sentir-se em casa em todo o lado; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer escondido do mundo... O observador é um príncipe que goza do seu anonimato em todo o lado. O amante da vida faz do mundo a sua família (...) A multidão é o seu domínio, como o ar é o do pássaro, como a água é o do peixe. A sua paixão e profissão é casar com a multidão.

(Baudelaire, 2010/1863, p.22)

O conceito de flâneur foi popularizado por Charles Baudelaire no século XIX referindo-se ao passeante urbano, vagaroso e observador, que vagueia sem um rumo concreto pelas ruas da cidade, observando de passagem e contemplando a paisagem urbana e as suas pessoas, experienciando o seu entorno numa perspectiva sempre algo distanciada. Esta ideia de vaguear urbano foi posteriormente explorada por Walter Benjamin no seu ensaio “As passagens de Paris”, onde este autor se focou no conceito de flâneur no contexto de uma reflexão sobre a era moderna e o ambiente urbano (Benjamin 2019/1927). O flâneur seria então como a figura de referência da experiência moderna e urbana, calcorreando as arcadas parisienses, que eram passagens cobertas para peões com cafés, lojas e outros negócios. Para Benjamin, estas arcadas eram um microcosmo da cidade moderna, com as suas multidões agitadas, as mercadorias e o fluxo constante de vida. O flâneur, como um observador urbano, era capaz de capturar a essência dessa experiência urbana, estando tanto dentro como fora da cidade, fazendo parte da multidão, mas sendo também um seu observador destacado, absorvendo vistas e sons.

Talvez seja lícito ver algo inerentemente cinematográfico nesse captar dos momentos fugazes e das impressões fragmentárias da vida quando o flâneur percorre as ruas da cidade, observando e experimentando o seu ambiente. Uma forma de observar que é semelhante à forma como uma câmara de filmar captura imagens. Será então, a partir deste ponto de encontro, da coincidência entre o olhar do caminhante e da câmara que decidimos propor esta comunicação como uma reflexão sobre os paralelos entre a caminhada e a cinematografia.

Entre Março e Julho de 2023, a Associação Substantivo Mágico produziu uma série de caminhadas performativas na zona ribeirinha de Lisboa sob o título de Imemorial - Passos no Cativeiro. A caminhada teve como tema a identidade, um eixo no qual se elaborou sobre um Portugal miscigenado, construído a partir de fluxos e refluxos migrantes em complexos processos de integração social. A cidade é um texto, uma pauta que se oferece à leitura do caminhante. Imemorial leu a cidade como uma virtualidade resultante da mediação entre o que está visível e as camadas ocultas. Em cada uma destas caminhadas, os participantes - devidamente equipados com auriculares - iam escutando uma narração em leitores áudio portáteis. Um guia - o cicerone - conduzia o grupo, que percorria o percurso através de várias estações ou pontos de interesse históricos, lendo detalhes presentes ou ausentes no espaço urbano.

Os aspectos evocativos da memória colectiva e as suas interlocuções com o espaço urbano que estão presentes nesta caminhada já foram discutidos noutro lado (Antunes 2023). Esta comunicação foca-se agora no olhar deste cicerone. Propomos aqui discutir paralelos entre a caminhada e a cinematografia através da ação que o guia exerce conduzindo o grupo usando o seu olhar e pequenos gestos. Para isso, iremos partir de um filme que fizemos documentando a caminhada Imemorial e que se foca nessa perspectiva subjectiva do cicerone e do seu movimento corporal, calcorreando as ruas no seu percurso. Acompanhamo-lo. O cicerone surge num figurino que induz alguma sensação de estranheza. Algo anacrónico, mas que não conseguimos situar no tempo. Remete-nos talvez para a ficção científica, mas é-nos permitido lê-lo como um ser fora de tempo, um visitante a-temporal. Move-se de forma lenta, observante. Nitidamente um visitante. Como um flâneur vindo de um outro mundo, de um outro tempo (Fig. 1).

Figura 1 – O Cicerone

Flânerie cinematográfica

O encontro entre duas disciplinas não acontece quando uma disciplina se apercebe de que tem de resolver, por si própria e pelos seus próprios meios, um problema semelhante ao que a outra enfrenta

(Deleuze, 1997 citado em Company, 2007 p.10)

O pensamento de Walter Benjamin sobre o flâneur e a sua sensibilidade pode ser visto como profundamente entrelaçado com o desenvolvimento da linguagem cinematográfica. A linguagem cinematográfica refere-se às técnicas de narração visual de histórias utilizadas na realização de filmes, incluindo os enquadramentos, movimentos de câmera, iluminação, edição, e som que são usados para criar significado e transmitir sensações e emoções no público. Através desses recursos, o cinema explora diferentes pontos de vista e perspectivas, mostra detalhes e aspectos da realidade, formando uma construção narrativa através da sequenciação de imagens. Paralelos entre caminhar, estar na cidade como um flâneur, e a linguagem cinematográfica demonstram como formas distintas de expressão artística se podem sobrepor e influenciar umas às outras. Muitos planos e a linguagem do cinema herdam do corpo humano e do seu movimento, dessa forma particular de perceber o mundo. Se no cinema o corpo do espectador está fixo e de olhar relativamente estático, perscrutando a superfície da tela e delegando o movimento à câmara e posterior montagem, já na caminhada o corpo do espectador participa do movimento, quase como uma câmera dolly em gravação contínua. Globalmente, o acto de vaguear e a observação do flâneur, bem como as técnicas e a estética da linguagem cinematográfica, podem ser vistos como partilhando um interesse comum em captar a essência da experiência urbana, com o seu dinamismo, transiência, e fluxo constantes. O filme, em particular, tem a capacidade de capturar a natureza fugaz e efémera da vida urbana de uma forma que remete para a experiência ambulante do flâneur. O cineasta, focando-se nos detalhes sensoriais do ambiente urbano, ao registar aspectos que normalmente não seriam percebidos pelo público, cria um retrato rico e imersivo da cidade, convidando o espectador a experimentá-lo de uma forma nova e inesperada e permitindo, eventualmente, uma compreensão mais profunda e complexa da experiência humana. Em última análise, o flâneur cinematográfico está menos preocupado em alcançar um destino específico do que em experimentar a viagem em si.

A flânerie no cinema

São vários os exemplos que podemos convocar sobre o uso do acto de caminhar ou passear enquanto dispositivos cinematográficos para a observação, o envolvimento e a reflexão sobre a paisagem urbana, permitindo conectar-mo-nos com as personagens e a memória. Por exemplo, em “La Dolce Vita” de Federico Fellini, um filme que acompanha um jornalista enquanto este vagueia por Roma, encontrando-se com várias pessoas e situações (Fellini 1960). Como um flâneur, Marcello, o jornalista, é simultaneamente um observador e um participante na vida da cidade, e a estrutura episódica do filme reflete a forma como um flâneur pode passar de uma cena ou encontro para a próxima situação. Outro exemplo é o de “A bout de souffle” de Jean-Luc Godard. O protagonista deste filme, Michel, é um criminoso que passa grande parte do filme a vaguear por Paris, tentando escapar à polícia (Godard 1960). Como um flâneur, Michel está constantemente em movimento, e o uso de corte seco (jump cut) e outras técnicas experimentais pode ser visto como um reflexo da sua natureza inquieta e impulsiva. Outro exemplo ainda é o de “Lost in Translation” de Sofia Coppola. Um filme que acompanha dois norte-americanos, um ator de meia-idade e uma jovem mulher, que se encontram em Tóquio e estabelecem uma relação de amizade (Coppola 2003). Eles vagueiam juntos pela cidade, experimentando as suas vistas e sons, ao mesmo tempo que procuram um sentido para as suas vidas. O filme é conhecido pela sua atmosfera de sonho e pela sua exploração de temas como a solidão, a desconexão e a diferença cultural.

Todos estes trabalhos utilizam o acto de caminhar ou passear como uma forma de explorar memórias pessoais e colectivas, para envolver as personagens com o mundo urbano. Em todos eles podemos encontrar o movimento subordinado à observação e à perspectiva. A cidade vista pelo flâneur pode ser encarada como idêntica à observação e registo efectuados pelo cinematógrafo. A perspectiva do flâneur é moldada pelas suas experiências e emoções. Já a perspectiva do cinematógrafo é caracterizada pela sua visão artística ou pela sua capacidade técnica. A flânerie integra um potencial narrativo, de poder contar uma história, com diferentes encontros e cenas contribuindo para um mosaico formando uma história maior; a ação pode funcionar como símbolo de uma viagem interior ou transição, utilizada como símbolo e metáfora.

A caminhada Imemorial - Passos no cativeiro

A presença, naturalmente, é definida em termos de tempo e espaço. Estar “na presença de alguém” é reconhecê-lo como existindo contemporaneamente connosco e constatar que ele se encontra dentro do alcance real dos nossos sentidos - no caso do cinema, da nossa visão e, na rádio, da nossa audição. Antes da chegada da fotografia e, mais tarde, do cinema, as artes plásticas (especialmente o retrato) eram os únicos intermediários entre a presença e a ausência reais

(Bazin 1951, p.96)

Além dos eventos com o público, anteriormente referidos, a caminhada Imemorial foi adicionalmente capturada em vídeo. É a partir desse objecto que se estabelece o que está em jogo, um vídeo concebido em relação com a experiência original incorporada no espaço urbano. Neste projecto cinematográfico em que nos propusemos remediar (no sentido de Bolter and Grusin) a experiência caminhada do projecto Imemorial - Passos no Cativeiro, desafiamo-nos a alinhar o cicerone com o espectador. Isso permitiu-nos pensar o filme a partir do corpo na rua, tendo como ponto de partida o movimento. Fundamentámo-nos num dispositivo de representação que propõe uma mimesis do olhar. Combinámos o ponto de vista da primeira e da terceira pessoa, o olhar subjetivo e o olhar testemunha, permitindo-nos ser íntimos com as ações do cicerone e observadores dos seus actos (Fig. 2 e Fig. 3). A cidade é, nele, como um pano de fundo para explorar memórias colectivas, bem como questões sociais e históricas.

Figura 2. Fotograma de Imemorial - Plano no ponto de vista da primeira pessoa.
Figura 3. Fotograma de Imemorial - Plano no ponto de vista da terceira pessoa.

Sobre o olhar e o espaço diegético.

O som dos violoncelos marca o início da caminhada, inspira as primeiras imagens (sonsigns). Marcam e definem um tom. A música e o voice-over da narração harmonizam o conjunto. Entramos num tempo que é sobretudo o da história, o da memória. A essência do filme é determinada pelo plano visual e pelo áudio. Escutam-se factos, descrições de acontecimentos históricos, um texto que vai sendo costurado na nossa imaginação. A caminhada apresenta-nos uma sequência de quadros, gerando um campo narrativo que se expande com cada passo, a cada frase. O tempo é descongelado por um instante. Eventos do passado que são apresentados no presente do conjuntivo. Caminhando entramos na dobra, no cristal do tempo, percorrendo a sua aresta a-temporal. Os hiatos narrativos que separam as ações são preenchidos com after-effects afetivos que emanam da narratividade entretanto construída. Imagem após imagem, formamos um imaginário a partir de fragmentos.

À narração somam-se os olhares do cicerone transformados numa espécie de escrita que vamos lendo. Destaca-se o papel narrativo do movimento, da imobilidade, da presença e da ausência. A narrativa apresenta-se como uma mudança contínua. O Cicerone transporta-nos através do percurso. A sonoridade vai sobrepondo camadas de interpretação sobre o visível. A caminhada vai oscilando constantemente entre a legibilidade e a ocultação. A rua dá-se a contínuas descobertas de detalhes que oferecem espaços de possibilidades.

Camadas soterradas, tempos sobrepostos

Vamos lentamente entrando num tempo outro. Percorremos uma paisagem transformada pela narrativa, caminhando nas fronteiras entre mundos diferentes, desvendando as sombras da história. Somos, enquanto espectadores do filme e da caminhada original que está na génese do vídeo, colocados num passado e num presente-passado. A narrativa coloca-nos em múltiplos tempos passados. Cria uma mancha de sentidos, justapondo quadros e tempos que fazem um enquadramento do tema eixo da caminhada, a identidade.

Acompanhamos o visitante na sua visita. Mas que tempo é este, duplo, triplo? Confrontamo-nos com uma noção de tempo estendida. A linearidade do tempo caminhado contrasta com esta sobreposição de tempos históricos, o tempo cronológico do entorno e as imagens associativas que se vão formando. Como um cristal temporal, composto de tempos diversos. Referimo-nos a um então, a partir de um aqui, de um agora. Estamos aqui e lá, antes e já. O filme aumenta este deslocamento, capturando um momento indexante de um outro agora. Um jogo duplo de rememoração e lembrança.

Uma forma expandida de caminhar

Face à constelação de elementos narrativos que participam na construção de Imemorial é-nos permitido pensar nesta experiência como uma caminhada de alguma forma “expandida”. Na qual o caminhante clássico deixa de estar circunscrito ao seu corpo.

O termo “campo alargado” (expanded field) foi cunhado pela historiadora de arte Rosalind Krauss na década de 1970 para descrever um novo tipo de prática artística que surgiu na sequência do modernismo (Krauss 1979). O campo expandido referia-se ao esbatimento das fronteiras entre diferentes disciplinas artísticas, à medida que os artistas começaram a experimentar formas híbridas que combinavam elementos de escultura, pintura, performance e outros meios.

O “cinema expandido” pode ser visto como parte deste campo alargado ou expandido. Surgiu nas décadas de 1960 e 1970 como uma resposta às limitações do cinema tradicional quando cineastas e artistas começaram a experimentar novas formas de tecnologia, como projetores múltiplos, sintetizadores de vídeo e outros dispositivos, para criar experiências cinematográficas imersivas e interativas. (Youngblood 1970). A ênfase foi colocada na utilização da tecnologia para expandir as possibilidades do cinema e criar novas formas de experiência sensorial para o espectador, desafiando as noções tradicionais de cinema e expandindo as possibilidades criativas do meio.

Do mesmo modo, aquilo que designamos como “artes da caminhada” (walking arts) pode ser entendido como uma forma de campo expandido, uma vez que esta “caminhada expandida” esbate as fronteiras entre o andar como actividade funcional ou recreativa e o andar como forma de expressão artística. Olhando em particular para o caso de Imemorial - Passos no Cativeiro, podemos ver que envolve elementos de performance, instalação e outras formas de arte do domínio sonoro que transformam o ato de caminhar numa experiência discutivelmente mais imersiva e interativa. Esta é uma experiência que opera num território de hibridizações situado entre áudio-walk, instalação site-specific e performance. Imemorial- Passos no Cativeiro expande as possibilidades da experiência de caminhar clássica, caracterizando-se primeiramente por ser site-specific, uma obra de arte concebida para ser experimentada no local específico e urbano da zona ribeirinha de Lisboa, transformado numa tela para a expressão criativa através de um profundo envolvimento com a história, a cultura e as características físicas do local. O público é um participante ativo na experiência, utilizando auscultadores ou auriculares que lhes permitem ouvir faixas de áudio pré-gravadas com efeitos sonoros, música e narração. Durante a caminhada, encontram-se instalações específicas do local, com elementos cenográficos que se camuflam na paisagem e instalações visuais concebidas para acrescentar leituras ao espaço experienciado. É também um tipo de caminhada que envolve a performatividade do Cicerone, um artista ao vivo que guia o grupo, interage com o ambiente e com os próprios caminhantes. Os espectadores participantes caminham, lendo uma combinação de diferentes elementos, entrelaçando os diferentes agentes que determinam a relação da perceção com o tempo, os níveis narrativos, os códigos linguísticos e visuais, formando assim um campo de significação. Em essência, uma caminhada expandida é um dispositivo para experimentar o mundo que nos rodeia de forma mais lúdica, criativa e experimental, desafiando-nos a reconsiderar a nossa relação com o que nos cerca, a percebermos pormenores que poderíamos ignorar de outra forma e a envolvermo-nos com o nosso ambiente de forma mais interessada. Alargando os limites do que pode ser uma caminhada, podemos descobrir novas formas de interagir com o mundo e aprofundar a nossa ligação aos ambientes em que vivemos.

Será a narrativa (áudio) um texto e o filme um meta-texto?

Partimos do cicerone como um flanêur. Partimos agora do filme como uma flânerie cinematográfica, onde a câmara capta a experiência de caminhar de uma forma que enfatiza os detalhes sensoriais do ambiente - as vistas, e as texturas que compõem o tecido da cidade. O espectador é convidado a juntar-se ao cicerone, a segui-lo na sua viagem e a ver o mundo através dos seus olhos. Podemos falar de uma viagem no tempo, ou do cicerone como uma representação de si próprio, ou até mesmo de uma câmara virtual. A câmara segue o cicerone na sua descoberta enquanto este navega através da multidão, atravessa as praças, e explora becos e ruas secundárias escondidas. A câmara move-se recolhendo pequenos sintagmas, pequenos fragmentos, acontecimentos no espaço. Estímulos que vibram simultaneamente. Por um lado, os elementos diegéticos da narração acrescentados aos locais e os objetos que o Cicerone vai revelando na paisagem (Fig. 4). Por outro lado, as ações individuais na multidão, onde percecionamos partes de gestos, partes de ações, expressões faciais libertas da estrutura narrativa “pequenos sintagmas, finais de fórmulas onde nenhuma frase se forma” como nos diz Victor Burgin (Burgin 2006, p.200, nossa tradução). Neste modo de fazer cinema, o acto de caminhar torna-se uma forma de exploração, à medida que o cicerone se desloca pela cidade sem um destino claro, deixando-se guiar por encontros (aparentemente) ocasionais e descobertas (aparentemente) inesperadas.

Figura 4. Adereço cenográfico camuflado na paisagem urbana

O cicerone tem uma presença contínua. Ora nos fundimos no [seu] olhar, ora o seguimos, como um fantasma mudo e incapaz de agir, observando-o. Representa-se a si próprio, numa ontologia ambígua e dual. Quase como um duplo de si mesmo. Surge tanto como o líder dos grupos durante as apresentações públicas da performance, como um personagem fílmico, diegético, um ser fora de tempo que nos visita na contemporaneidade e que seguimos agora, acompanhando-o. Esta justaposição semântica acontece em filme, num presente que é passado, numa tensão constitutiva. Nesta hesitação entre pólos, nestas múltiplas recorrências, o espectador vai-se gradualmente submetendo ao ponto de vista representado. Entre o olhar-subjetivo da primeira pessoa e o olhar-testemunha da terceira pessoa, o Cicerone seduz-nos gradualmente para a sua forma de ver e de olhar, de estar, transformando-nos em suas testemunhas, seus cúmplices, quase duplos seus. Esta abordagem cria uma sensação de imersão, o espectador cai na armadilha do plano, é engolido pela câmara na narrativização.

A suspensão da descrença

Mas até que ponto a experiência do corpo no mundo é emulada no filme? Que tipo de visualidade é esta? Durante uma caminhada física, o caminhante está imerso no momento presente e experimenta o tempo como um fluxo fluido e subjetivo. Na experiência cinematográfica, por outro lado, o tempo é transformado numa estrutura narrativa tipicamente concebida para envolver e cativar o espectador. Os pioneiros deixavam a câmara rolar e bastava, havia um fascínio com gravar e replicar uma cena em movimento. A montagem dá um falso naturalismo ao tempo, cria a ilusão de um espaço-tempo contínuo. Sequenciamos os planos numa linearidade espaço-temporal. O Cicerone percorre o espaço alinhado com o tempo. Uma hora de filme, uma hora caminhada percorrendo o percurso. “É muito importante que o filme seja sequencial” diz-nos Wim Wenders (Wenders 1971, p. 89, nossa tradução). “A continuidade do movimento e ação devem ser verdadeiras, não deve haver sobressalto no tempo mostrado” (...) (idem) “deve manter-se fiel à passagem do tempo” (ibidem), continua ele.

Os esforços devem ser dirigidos para pessoas e personagens sobrenaturais, ou pelo menos românticos, mas de forma a transferir da nossa natureza interior um interesse humano e uma aparência de verdade que seja suficiente para obter para estas sombras da imaginação uma suspensão voluntária da descrença momentânea que constitui uma fé poética

(Coleriddge 1997/1817, nossa tradução)

Ao questionarmos a questão da linearidade temporal da ação sensório-motora, surge a reflexão sobre a natureza da caminhada quando filmada. Será que ainda se mantém a identificação com a experiência corporal? Como mencionámos antes, há uma sensação do espectador ser “engolido” pelo plano. A câmara foca, desfoca, treme. Aqui surge o termo, “suspensão da descrença”, que se refere à disposição do público em aceitar temporariamente como verdadeiros elementos ou acontecimentos fictícios ou imaginários de uma obra de arte, literatura ou entretenimento, mesmo sabendo que não são reais ou não estão de acordo com a realidade. O termo foi cunhado pelo poeta e filósofo Samuel Taylor Coleridge no início do século XIX, quando defendia que, para desfrutar plenamente de obras de arte, o público deve estar disposto a deixar temporariamente de lado o seu cepticismo e acreditar na história ou nas personagens apresentadas (Coleriddge 1997/1817, ch xiv). A natureza de uma caminhada, quando registada cinematograficamente, é uma experiência mediada e com curadoria, que oferece um tipo de envolvimento com o ambiente que será sempre diferente de uma caminhada física. Filtrada através da lente da câmara é apresentada ao espectador como uma representação visual, uma experiência mediada, portanto. Isto altera a forma como este último a experimenta e percebe. Ao não estar fisicamente presente no ambiente, totalmente imerso na vivência sensorial e corporal de caminhar, a experiência pode criar uma sensação de distância, desconexão, ou alienação.

Para melhor compreendermos o que está em causa, invocamos Bergson quando este enfatiza uma tactilidade na perceção do mundo. Em “Matéria e Memória” o autor argumenta o papel da memória na leitura espacial necessária para perceber as affordances (numa perspectiva Gibsoniana) que o mundo oferece (Bergson 2011/1896). A memória informa-nos sobre as possibilidades de interação. De acordo com Deleuze.“ A mão duplica a sua função preênsil (de objecto) por uma função conectiva (de espaço) mas, a partir desse momento, é o olho que duplica a sua situação óptica por uma situação específica de “ agarrar “ [haptique].” (…) “Em Bergson opsigns e sonsigns não podem ser separados de genuínos tactisigns” (Deleuze 1994/1989, p.13). Cada nova imagem interage com as memórias profundas procurando uma função, uma utilidade, uma significação motora, e torna-se ela própria uma memória. Torna-se um momento presente capturado na sua associação com o afecto e o significado. Um momento que potencializa e permite a ação. A fenomenologia de Merleau-Ponty coloca-nos em fusão com o mundo, tornando-nos parte integrante da paisagem (Merleau-Ponty 2022/1945). Fenomenologicamente, interior e exterior formam um continuum no qual as percepções, as memórias (e as fantasias) combinam. O mundo é definido a partir do nosso corpo. Um ponto de partida centrado e em relação. Um sistema composto de movimentos possíveis, motores, que irradiam do corpo do observador. Assim como uma câmara, o olhar vagueia, faz uma pausa, identifica um objeto, percorre a sua forma e desvia-se. Ele mapeia e rastreia, consciente do entorno, concorrente com os pensamentos, num auto-focus mais ou menos distinto. O olhar prende, serve de âncora, o pensamento foge, regressa, atenta a um pormenor, para logo passar. É no corpo do caminhante que o mundo se centra. O olhar e a audição mantêm o espectáculo vivo. O olhar rastreia, o caminhante mapeia, vai transformando os olhares numa espécie de escrita. As perceções ganham consistência, concatenando impulsos e estruturando a sequência dos eventos visíveis numa forma tátil conforme Bergson nos propõe. Por vezes o olhar focaliza, encontrando uma presença. É este processo que determina que as várias imagens de vários ângulos, diferentes pontos de vista, são de um mesmo objeto, criando uma fisicalidade integrada. Momentos de atenção sobre objetos cristais, objetos congregadores de dimensões múltiplas. Logo passa. Prossegue.

O plano subjectivo - ponto de vista da primeira pessoa

Estamos a debater a natureza do filme durante uma caminhada e a caminhada enquanto filmada. Um dos fatores que contribui significativamente para a identificação com o Cicerone e para a criação de uma suspensão relativamente convincente da descrença é o plano subjetivo.

Foi sobretudo depois da afirmação do vídeo e das câmaras portáteis que o plano subjetivo da perspetiva da primeira pessoa passou a fazer parte da paleta cinematográfica e a ser usada profusamente, embora esta técnica já fizesse parte do leque de ferramentas disponíveis. Um exemplo é a câmara-protagonista de Vertov em Man with a Camera (Vertov 1929), no advento do cinema como expressão artística. Com diferentes estilos e géneros, filmes como Lady in the Lake (Montgomery 1947), The Blair Witch Project (1999), ou The Hollow Point (López-Gallego 2016) integram o plano subjectivo da primeira pessoa para criar uma conexão mais forte entre espectador e protagonista, através de uma sensação de imersão e envolvimento com o personagem principal. Alguns usam-na durante todo o filme, enquanto outros apenas nalgumas cenas específicas. A “Subjetividade é como tal o limite máximo concebível de qualquer técnica áudio-visual“ afirma Pasolini (Pasolini 1967, p.84, nossa tradução).

No entanto, a nossa caminhada filmada não se limita ao plano subjetivo. Usamos convenções cinematográficas que incluem planos subjetivos na primeira pessoa, planos médios das expressões faciais e gestos do Cicerone, planos gerais na perspetiva da terceira pessoa e grandes planos focados nos seus objetos de atenção. A perspetiva em primeira pessoa enfatiza a subjetividade do Cicerone, enquanto a perspetiva mais distante destaca a sua observação externa e a sensação de integração no ambiente urbano coletivo. É uma perspetiva subjetiva que revela o contexto em que o Cicerone está inserido, a rua em toda a sua multiplicidade, diversidade e contingência.

Outras pistas para um paralelo entre a subjetividade da flânerie e a linguagem cinematográfica, podem ser encontradas na literatura moderna. À luz da teoria literária, a narração que acompanha o Cicerone na sua deambulação faz eco da figura do narrador na primeira pessoa característica da corrente de consciência. Este é um estilo literário moderno que pode ser visto aqui como uma técnica cinematográfica, já que permite ao leitor experimentar os pensamentos e perceções da personagem de uma forma semelhante a como um filme pode transmitir a interioridade de uma personagem. Ulisses de James Joyce ou Sra. Dalloway de Virginia Woolf, são dois exemplos de trabalho em que estes autores, conotados com a corrente de consciência, tentam reproduzir o fluxo de pensamentos, sensações e emoções de um personagem em tempo real, sem interrupções ou interferências externas. Por outras palavras, procuram imitar o fluir dos pensamentos e sentimentos que ocorrem na mente da personagem, sem seguir uma estrutura narrativa tradicional. Essa técnica é usada para criar uma sensação de imersão profunda na psicologia da personagem, permitindo que o leitor se sinta intimamente conectado com seus pensamentos e experiências. A corrente de consciência apresenta muitas vezes uma escrita densa, fragmentada e com pouca ou nenhuma pontuação, refletindo a natureza caótica e não linear dos pensamentos.

Mas apesar de se pressentir a influência estilística da corrente de consciência ao visualizar o vídeo e entrar na intimidade do Cicerone, não são os seus pensamentos o que escutamos, mas sim aquilo que o assombra. Ouvimos o que ele escuta. Ele próprio traz consigo auriculares. Espelhamos a sua escuta. Ele visita. Ecoamos a sua visitação. Também os participantes nas caminhadas originais transportavam auriculares, sincronizados com o Cicerone, unidos pelo som e pela narrativa. Assim, ao assistir ao filme ora espelhamos o Cicerone na perspetiva da primeira pessoa, ora espelhamos os participantes das caminhadas originais quando na perspetiva da terceira pessoa. É um equilíbrio de perspectivas.

Da subjectividade e da espacialidade

Anteriormente, discutimos alguns dos mecanismos pelos quais a tactilidade e interatividade contribuem para a compreensão da espacialidade, evocando a sensação corporal e a experiência acumulada do movimento realizado. Nesse sentido, essa é também uma experiência afetiva. A visão necessita de ser complementada com o tato para organizar o espaço, integrando-se com os outros sentidos e a propriocepção. A imaterialidade da imagem, e o fato desta não ter substancialidade física e existência objetiva, impede-nos de pensar a caminhada a partir do filme. Seguindo uma perspectiva Heideggeriana, o espaço é um fenómeno ontológico que emerge da nossa própria existência e da forma como nos relacionamos com o mundo. O espaço é indissociável da existência humana, pois o nosso modo de existir no mundo é sempre um modo de ser-no-mundo, ou seja, sempre uma forma de estar num espaço específico. É construído na espacialidade da nossa existência. Não existe, portanto, um espaço absoluto, externo e independente da nossa existência, mas apenas espaços relativos, que são construídos através da nossa relação com o mundo. Sem a experiência do corpo, estaríamos condenados a nunca alcançar os níveis de imersão, presença, fluidez e distância racional - o que nos forçaria a pensar em termos de mecanismos psicóticos para distinguir entre o real e o virtual.

No entanto, é importante não nos concentrarmos completamente na perspetiva do sucesso imersivo da ação de trazer a caminhada para o ecrã, mas também na observação de como a cultura cinematográfica está radicada no ato de caminhar como forma de experimentar o mundo. A caminhada assume a forma de uma “trip/ballad” [bal(l)ade] (Deleuze) e articula uma sequência de processos corporais e eventos narrativos, num modo cinemático de ver o mundo. Liga experiências, estrutura o tempo, constrói uma história. No caso de Imemorial - Passos no Cativeiro, o olhar do Cicerone é direcionado como uma câmera virtual. Define um modo de ver. Produz uma montagem de “planos”, de enquadramentos produzidos através da condução de olhares. A linearidade narrativa da caminhada aproxima-se da ideia de cinema puro de Pasolini: “A substância do filme é, portanto, uma tomada sem fim... assim que a montagem intervém, passamos do cinema para o filme”... “o presente torna-se passado” (Pasolini, 1967/2007. p. 86, nossa tradução).

Será que o cinema é uma forma de ver o mundo como se estivéssemos a caminhar? No caso do vídeo mimesis da caminhada original, trouxemos a câmara para nos dar um testemunho daquilo que o olho vê durante a caminhada. É uma forma cinemática de ver que substitui a ação, em que as descrições visuais e sonoras substituem a ação motora. Os movimentos de câmara são reduzidos a um mínimo e a câmara é frontal, com cortes simples e sem efeitos entre os planos. Conjuga-se a câmara que se funde com o espectador com a câmara que vê uma personagem observando, numa perceção da perceção. No entanto, a ilusão e a imersão nunca são totais ao ponto de gerar um total abandono ou uma desarticulação da consciência crítica. O conceito da pura suspensão da descrença surge contestado. Como Hansen sugere, o sucesso na criação de uma experiência virtual passará sempre por simular as modalidades sensoriais da motricidade, táteis e perceptíveis. Este vídeo não pode ser lido como uma crítica ao ocularcentrismo e ao audiovisual do cinema, mas antes como um trabalho artístico, um objeto virtual que cria o seu próprio espaço-tempo.

Conclusão

Decidimos desafiar a dicotomia entre a arte da caminhada e a cinematografia, examinando as suas semelhanças e funções partilhadas, e dissolvendo a relação entre elas. Para isso, utilizamos como estudo de caso a caminhada Imemorial - Passos no Cativeiro, que propusemos como uma instância de caminhada expandida. Verificámos que tanto o cinema expandido como a caminhada expandida são exemplos de práticas artísticas que desafiam os limites tradicionais e ampliam as possibilidades dos respetivos meios. As ligações são multifacetadas e complexas, mas ambos têm um enfoque na experiência sensorial, na utilização da tecnologia, na participação ativa do público ou do participante e num profundo envolvimento com o ambiente em que ocorrem. Dão prioridade à experiência física e frequentemente incluem elementos específicos do local que envolvem o participante de uma forma mais profunda e imersiva.

A caminhada expandida, Imemorial - Passos no Cativeiro, começa por convocar e transportar lentamente os espectadores para um espaço diegético. Depois, esta dimensão narrativa e de memória é gradualmente confrontada com o real e atual. A caminhada contém em si a contingência de se realizar em plena rua, na urbe, com os transeuntes. Essa contingência é a sua substância e ponto de partida. Tal como as artes da performance, a caminhada partilha uma ontologia de acontecer “ao vivo”, o que a enriquece com sincronicidades e simultaneamente a torna arriscada. É um encontro com o imponderável este cruzamento entre memórias e o momento atual. Em contraste com a experiência fílmica, que é temporalmente cristalizada, há momentos ou encontros em que se funde a relação entre o que é a realidade e a representação. Há outros momentos em que esta relação se quebra. Mas está sempre presente uma redefinição dos limites do processo artístico. Na origem etimológica da palavra indeterminação está ‘Determinare’. ‘Terminare’ deriva de ‘terminus’, limite ou fronteira, significa impor limites ou fechar. Indeterminação relaciona-se com aquilo que não é verificável, definido, com limites específicos. A indeteminação neste caso aplica-se ao sentido aberto do processo criativo e da receção artística que é contingente do ambiente da rua. A caminhada expandida opera numa linguagem de inspirações cinematográficas, mas tem uma natureza claramente aberta porque co-existe com a vida urbana. É desenhada como uma montagem de planos. Jogos de tempos, ritmos, espaços e movimentos pré-definidos, pré-enquadrados. Mas depois, cada execução dessa caminhada será sempre necessariamente diferente. Não há uma interpretação única. Cada começo é um estado de suspensão e (re)significado do objecto artístico.

A caminhada Imemorial - Passos no Cativeiro foi posteriormente transformada em vídeo. Com este filme, quisemos questionar a transparência da quarta parede no contexto de uma caminhada filmada. O filme coloca o espectador em relação com o caminhante/Cicerone, alternando planos entre a primeira e a terceira pessoa, permitindo enquadrar, situar e perceber o seu olhar. Esta personagem tem uma natureza dúbia, emulando o caminhante original, mas podendo também ser vista como um avatar da câmara.

Estabelecemos um diálogo entre a natureza da experiência caminhada original e a filmada, sobrepondo impressões. Discutimos, portanto, o espectador na dupla condição de observação: como participante na caminhada e como espectador do filme, numa tentativa de imersão na experiência original.

Observamos que a filmagem de uma caminhada é incapaz de reproduzir na plenitude a experiência de caminhar na rua. Durante a caminhada física, o tempo é experimentado como um fluxo contínuo e subjetivo, em que o caminhante se move no espaço ao seu próprio ritmo e o tempo é percebido como uma série de momentos em constante mudança e evolução. Embora a duração da caminhada possa variar dependendo da distância percorrida e da velocidade do caminhante, ela é sempre uma experiência sensorial direta e imediata.

Por contraste, uma caminhada cinematográfica é suscetível de ser transformada pelo cineasta ou artista, oferecendo uma forma diferente de envolvimento mais seletivo e deliberado. O uso criativo de técnicas como ângulos de câmera, enquadramento, design de som e edição pode transmitir um estado de espírito ou atmosfera específica, destacar aspectos do ambiente ou da caminhada e transmitir ideias. O tempo pode ser manipulado e mediado, e a duração pode ser condensada e editada para criar uma narrativa ou história específica. Além disso, técnicas de edição, como cortes e transições, podem criar um sentido de ritmo ou destacar momentos específicos da caminhada, enquanto a música ou os efeitos sonoros podem ser usados para criar um estado de espírito específico ou destacar certos aspectos do ambiente, como o som da água correndo no rio ou o galope de um cavalo. A relação entre o caminhante e o ambiente também pode ser manipulada por meio do uso de ângulos de câmera e enquadramentos, resultando numa narrativa construída e moldada por escolhas criativas.

Grande número destas opções criativas estão também disponíveis naquilo que definimos como caminhada expandida, permitindo envolver o espectador a um nível mais profundo.

A caminhada, por si só, já contém elementos cinematográficos, representando uma forma cinemática de ver o mundo por meio de uma sequência de processos corporais e eventos narrativos que a figura do flâneur nos ajudou a entender. Na sua forma expandida, utiliza uma linguagem inspirada no cinema, sendo estruturada como uma sequência de planos cuidadosamente planejados e enquadrados, com jogos de tempo, ritmo, espaço e movimentos. No entanto, por ser contingente do espaço de ação, cada execução é única e não há uma interpretação predefinida da experiência. Ao explorarmos as diferentes interlocuções entre caminhada expandida e cinema expandido resulta então uma questão fundamental para a reflexão futura: será possível considerar-se a caminhada como uma forma de cinema expandido?

Contribuições/Agradecimentos

A caminhada Imemorial: Passos no Cativeiro teve a participação de Carlos Nicolau Antunes como cicerone, na dramaturgia, na voz off, e no registo áudio; de Ricardo Fonseca Mota como guionista e autor dos poemas; de Rui Filipe Antunes no desenho sonoro, elementos cenográficos, e produção; de Ainhoa Vidal no figurino; de Otaviano Rodrigues na pós-produção áudio; de Tânia Antunes na Voz off; de David Pereira Bastos no djembé, e de Marta Fadiño como assistente de cena. Foi uma produção Substantivo Mágico com apoios do programa Garantir Cultura, República Portuguesa, Escola de Mulheres, TEPe (PTDC/ART-PER/31263/2017) e Paróquia de São Nicolau, em Lisboa.

O vídeo teve conceção dos irmãos Antunes, realização de Afonso Ribeiro Sousa, que também filmou e editou e foi uma produção da Associação Substantivo Mágico.

Este artigo foi realizado no contexto de um CEEC institucional da FCT e de FilmEU - European Universities Alliance for Film and Media Arts e suportado em parte por financiamento de FILMEU_RIT - Research | Innovation | Transformation project, European Union GRANT_NUMBER: H2020-IBA-SwafS Support-2-2020, Ref: 101035820, de FilmEU - The European University for Film and Media Arts project, European Union GRANT_NUMBER: 101004047, EPP-EUR-UNIV-2020; do projecto exploratório GhostDance FCT:EXPL/ART-PER/1238/2021; e da Associação Substantivo Mágico.

Bibliografia

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Na ponta da bala (The Hollow Point). 2016. De Gonzalo López-Gallego. EUA.