AVANCA | CINEMA

O cristal em decomposição em Morte em Veneza de Luchino Visconti

Veronica Miranda Damasceno

Escola de Belas Artes Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Abstract

The constitution of the crystal image corresponds to the most fundamental operation of time. In order to do so, it is necessary for time to separate, arise or happen, in two decimetric spurts, of which one of them makes pass the whole present and the other conserves all the past. Time consists precisely in this split, it is the one we see in a crystal. Crystal is the perpetual foundation of time. According to the perspective of the French thinker Gilles Deleuze, in Death in Venice, Luchino Visconti gives us to see the crystalline images according to their own decomposition. This is present throughout his work. In this film, we can see this decomposition, for example, through the plague that devastates Venice or even through the revelation that something arrived too late. When the character of the musician sees the young Tadzio, he has the vision of what lacked in his work: sensual beauty. The too late conditions the work of art and conditions its success, for the sensuous and sensual unity of nature with man is the essence of art par excellence, inasmuch as it is of its nature to occur too late!

Keywords: Time, Image, Crystal, Decomposition, Beauty

Introdução

Em A imagem-tempo, segundo livro de Deleuze sobre o cinema, o autor introduz os cristais de tempo. Nesse sentido, afirma ele:

O cinema não apresenta somente imagens, ele as cerca com um mundo. Por isso, bem cedo procurou circuitos cada vez maiores que unissem uma imagem atual a imagens-lembrança, imagens-sonho, imagens-mundo. (Deleuze, 1985, 92)

Assim Deleuze introduz os cristais de tempo em seu segundo livro dedicado ao cinema. A imagem atual, prossegue ele, no entanto, tem uma imagem virtual que a ela corresponde, como um duplo ou reflexo. Em termos bergsonianos, o objeto real reflete-se numa imagem especular tal como no objeto virtual que, por seu lado e ao mesmo tempo, envolve ou reflete o real: há coalescência entre os dois. Há formação de uma imagem bifacial, atual e virtual. É como se uma imagem especular, uma foto, um cartão-postal, se animassem, ganhassem independência e passassem para o atual, com o risco de a imagem atual voltar ao espelho, retomar lugar no cartão-postal ou na foto, segundo um duplo movimento de liberação e de captura.

Para Deleuze, o caso mais conhecido é o do espelho. Os espelhos de viés, os espelhos côncavos e convexos. Os espelhos venezianos são inseparáveis de um circuito, como vemos por toda a obra de Ophüls e em Losey, especialmente em Eva e em O criado. O próprio circuito é uma troca: a imagem especular é virtual em relação à personagem atual que o espelho capta, mas é atual no espelho que nada mais deixa ao personagem além de uma mera virtualidade, repelindo-a para o extra-campo. A troca é ainda mais ativa na mesma medida em que o circuito remete a um polígono de número crescente de lados: tal como um rosto refletido nas facetas de um anel, um ator visto dentro de uma infinidade de binóculos. Quando as imagens virtuais assim proliferam, o seu conjunto absorve toda a atualidade da personagem ao mesmo tempo em que a personagem já não passa de uma virtualidade entre outras.

Figura 1 - All about Eve Joseph Mankiewicz (1950)

A constituição da imagem cristal corresponde à operação mais fundamental do tempo. Para tanto, é preciso que o tempo se cinda, surja ou aconteça, em dois jorros dessimétricos, dos quais um deles faz passar todo o presente e o outro conserva todo o passado. O tempo consiste precisamente nessa cisão, é ele que vemos em um cristal. O cristal é a perpétua fundação do tempo. Tempo não cronológico pelo qual passa: “a potente vida inorgânica que encerra o mundo” (Deleuze, 1985, 311)

Para que o tempo se apresente diretamente é preciso que a aparência mais segura seja abalada. A imagem não está sempre no presente, ela encarna uma densidade temporal: é habitada simultaneamente por um passado e por um futuro que a assombram. Exemplo disso são as célebres sequências de Orson Welles, por exemplo, onde Kane se dirige a seu amigo jornalista para consumar a ruptura e se move, segundo Deleuze, no tempo, e não no espaço1. É um cinema verdadeiramente proustiano, no qual os seres ocupam um lugar no tempo, incomensurável com o espaço.2 3

Figura 2 - WELLES, Orson. A dama de Shangai. EUA: 1948, 87 min.

Nesse sentido, o tempo não se reduz a sua dimensão cronológica, na qual os instantes sucedem-se entre si. O movimento aberrante, por exemplo, não pode ser reconduzido ao espaço percorrido e como ele dá a ver um movimento puro, extraído do móvel, também libera a possibilidade, para o tempo, de ser percebido diretamente, sem que se precise rebatê-lo sobre a trajetória de um móvel.

Para Deleuze, o viés bergsoniano segundo o qual é preciso extrair do movimento a mobilidade, que é sua própria essência, é solidário do viés proustiano de atingir “um pouco de tempo em estado puro”4.

O cinema, capaz desde sempre, de restituir ao movimento sua pureza, foi também, desde sempre, capaz de apresentar o problema do tempo. O que muda do cinema clássico para o cinema moderno é que o tempo se torna uma questão explícita e novos agenciamentos das imagens se tornam possíveis. A representação orgânica se desfaz, a imagem cristalina a substitui por imagens-tempo. As imagens são capazes de mostrar diretamente o tempo, de fazê-lo sentir. A montagem moderna dá lugar a mostragem e não mais obedece a uma ordem cronológica do antes e depois, mas parte da coexistência de passado e futuro no presente.

Para se atingir a imagem-cristal, é preciso que o atual e o virtual se tornem indiscerníveis. As duas faces da imagem se tornam então inassinaláveis. O espelho é a imagem clássica que produz imagens-cristal, no qual atual e virtual trocam de lugar. Em A dama de Shangai de Welles, a onipresença dos espelhos faz as imagens virtuais proliferarem a tal ponto que a atualidade do personagem parece ser absorvida pela virtualidade das imagens, tornando-se uma virtualidade entre as outras5. Trata-se, para Deleuze, de uma imagem-cristal em estado puro, pois o atual e o virtual, sem se confundirem, se tornam indiscerníveis. A única maneira que os personagens têm de escapar dessa virtualidade e recuperar sua atualidade será quebrando todos os espelhos.

Não fossem os cristais de tempo não haveria sonhos nem sonhadores. Não há sonhos sem imagem-cristal, sem um desdobramento permanente do tempo.

É precisamente esse plano genético que Deleuze pretende desenvolver. Se o tempo não pudesse se desdobrar em passado e presente, atual e virtual, o sujeito não poderia se desdobrar em sonhador e ator, já que não é o tempo que está em nós, mas somos nós que estamos inseridos no tempo. A imagem-cristal é, pois, uma percepção do tempo, sua gênese e desdobramento, a inflexão da matéria e do espírito, do presente e do passado. Nesse sentido, assinala Deleuze: “O que se vê no cristal é sempre o jorro da vida, do tempo, em seu desdobramento ou sua diferenciação” (Deleuze, 1985, 121).

O cristal é expressão. A expressão vai do espelho ao germe. É o mesmo circuito que passa por três figuras, o atual e o virtual, o límpido e o opaco, o germe e o meio. Por um lado, o germe é a imagem virtual que fará cristalizar um meio atualmente amorfo, mas por outro lado, este deve ter uma estrutura virtualmente cristalizável, em relação à qual o germe desempenha o papel de imagem atual.

Numa célebre sequência de Cidadão Kane, a pequena bola de vidro se parte ao cair das mãos do moribundo, mas a neve que ela continha parece vir em nossa direção, por rajadas. Não sabemos se o germe virtual Rosebud vai se atualizar, pois não sabemos de antemão se o meio atual tem a virtualidade correspondente.

Figura 3 - “Citizen Kane”. Orson Wells, EUA,1941.

Por mais que a imagem-cristal tenha muitos elementos distintos, sua irredutibilidade consiste na unidade indivisível de uma imagem atual e de sua imagem virtual. Mas, afinal, o que é essa imagem virtual em coalescência com a atual? O que é uma imagem mútua? pergunta Deleuze. Para ele, Bergson sempre se colocou essa questão e procurou sempre a resposta no abismo do tempo. O que é atual é sempre um presente, diz Deleuze. Mas, justamente o presente muda ou passa. Pode-se sempre dizer que ele se torna passado quando já não é, quando um novo presente o substitui. Mas isso não quer dizer nada. Certamente é preciso que ele passe para que o novo presente chegue, que passe ao mesmo tempo que é presente, no momento em que o é. É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada, ainda presente e já passada, a um só tempo e ao mesmo tempo. Se não fosse já passada ao mesmo tempo que presente, jamais o presente passaria. O passado não sucede ao presente que ele não é mais, mas ele coexiste com o presente que foi. O presente é a imagem atual e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem especular. Segundo Bergson, a paramnésia (ilusão de déjà-vu, de já vivido) nada mais faz do que tornar sensível essa evidência. Há uma lembrança do presente, contemporânea do próprio presente, tão colada a este quanto um papel ao ator. Nesse sentido, afirma Bergson:

...nossa existência atual, na medida em que se desenrola no tempo, se duplica assim de uma existência virtual, de uma imagem especular. Logo, cada momento de nossa vida oferece estes dois aspectos: ele é atual e virtual, por um lado percepção, por outro lado, lembrança. (Bergson, 1991, 916-919)

E mais adiante:

Aquele que tomar consciência do contínuo desdobramento do presente em percepção e em lembrança (...) será comparável ao ator que desempenha automaticamete seu papel, se escutando e olhando encenar” (Bergson, 1991, 136-139).

Essas observações de Bergson nos remetem a algumas cenas de Morte em Veneza, nas quais o personagem do músico não para de se recordar de seu presente, que agora é passado. Tais lembranças se constituíram no presente, mas agora são meras lembranças de algo que passou, como a morte de sua filha, seu último concerto que resultou em um desastre e suas discussões com seu amigo. Todas essas lembranças não param de chegar em sua memória e o atravessam por inteiro.

Figura 4 - Morte em Veneza. Luchino Visconti. Itália, 1971.

Imagens cristalinas de tempo

O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: já que o passado não se compõe depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo. É preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro ou ainda desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção ao futuro e outra caindo no passado. É preciso que o tempo se cinda ao mesmo tempo que se afirma ou desenrola: ele se cinde em dois jatos dessimétricos, um fazendo passar todo o presente e o outro conservando todo o passado. O tempo consiste nessa cisão, e é ela, é ele que se vê no cristal.

A imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não-cronológico dentro do cristal, a potente vida inorgânica que encerra o mundo. O visionário, o vidente é quem vê no cristal, e o que ele vê é o jorro do tempo como desdobramento, como cisão. O cristal não cessa de trocar as duas imagens distintas que o constituem, a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva: distintas e no entanto indiscerníveis, e indiscerníveis justamente por serem distintas, já que não se sabe qual é uma e qual é outra. É a troca desigual, ou o ponto de indiscernibilidade, a imagem mútua. O cristal vive sempre no limite, ele próprio é, nas palavras de Deleuze:

...limite fugidio entre o passado imediato que já não é mais e o futuro imediato que ainda não é (...), espelho móvel que reflete sem descanso a percepção em lembrança (Deleuze, 1985, 109)

O que se vê no cristal é, pois, um desdobramento que o próprio cristal não para de fazer girar sobre si, que ele impede de findar, já que é um perpétuo Se-distinguir, distinção se fazendo, que retoma sempre em si os termos distintos, para relançá-los de pronto. A imagem cristal é certamente o ponto de indiscernibilidade de duas imagens distintas, a atual e a virtual, enquanto o que vemos no cristal é o tempo em pessoa, um pouco de tempo em estado puro, a própria distinção entre as duas imagens que nunca acaba de se reconstituir. Por isso há diferentes estados do cristal, conforme os atos de sua formação e as figuras que nele vemos.

Deleuze nos apresenta quatro estados cristalinos da imagem, segundo os quais poderíamos pensar o tempo6. O cristal rachado em Renoir, por exemplo, nos remete a questão, segundo a qual: “...nascemos dentro de um cristal, mas o cristal só retém a morte, e a vida deve sair dele, depois de ser ensaiada” (Deleuze, 1985, 114) E, para Deleuze, toda a questão de Renoir reaparece: “...onde termina então o teatro e onde começa a vida ?” (Deleuze, 1985, 115)

O que vemos no cristal é sempre o jorro da vida, do tempo, em seu desdobramento ou diferenciação. É em nossas lembranças puras que permanecemos contemporâneos da criança que fomos. A criança em nós, segundo Fellini, é contemporânea do adulto, do velho e do adolescente. Assim, o passado que se conserva assume todas as virtudes do começo e do recomeço: é ele que possui em sua profundidade ou em seu flanco o impulso da nova realidade, o jorro da vida. Uma das belas imagens de Amarcord mostra um grupo de escolares, o tímido, o engraçadinho, o sonhador, o bom aluno, etc, que se encontram em frente ao grande hotel ao término da temporada; e enquanto os cristais de neve caem, cada um por si e, no entanto todos juntos, eles esboçam ora um passo de dança desajeitado, ora uma imitação de instrumento de música, indo um em linha reta, outro trançando círculos, um terceiro girando sobre si mesmo... Para Deleuze, há nesta imagem uma ciência da distância medida para separá-los uns dos outros, e, no entanto, uma ciência da ordenação que os reúne. Eles mergulham numa profundidade que não é mais a da memória mas a de uma coexistência na qual nos tornamos seus contemporâneos, assim como eles se tornam contemporâneos de todas as temporadas passadas e por vir. Os dois aspectos, o presente que passa e que vai para a morte, o passado que se conserva e retém o germe de vida, não param de interferir, de coincidir.

Figura 5 - Amarcord. Federico Fellini, Itália / França, 1973.

A decomposição cristalina das imagens em Visconti

A decomposição cristalina das imagens de tempo está presente em toda a obra de Visconti e segundo Deleuze ele atinge a perfeição quando sabe ao mesmo tempo distinguir e fazer atuar quatro elementos principais, segundo relações variadas. Em primeiro lugar o mundo aristocrático dos ricos, dos antigos-ricos aristocratas, ele que é cristalino, mas parece um cristal sintético porque está fora da História e da Natureza, fora da criação divina. O padre de O leopardo explicará:

...não compreendemos esses ricos, porque criaram um mundo só deles, do qual não podemos entender as leis, e onde o que nos parece secundário ou mesmo inoportuno assume uma urgência, uma importância extraordinárias, por isso seus motivos sempre nos escapam como se fossem ritos de um religião por nós desconhecida. (Deleuze, 1985, 124)

Esse mundo não é o do artista criador, embora Morte em Veneza ponha em cena um músico, mas cuja obra, justamente fora intelectual e cerebral demais. Também não é um mundo de simples amantes da arte. São, isto sim, pessoas que se cercaram de arte, sabem profundamente que a arte é ao mesmo tempo obra e vida, mas é este saber que os separa da vida e da criação, como o Professor de Violência e paixão7. Invocam a liberdade, mas uma liberdade que gozam como se fosse um privilégio vazio, que chegasse a eles de fora, dos antepassados de quem descendem e da arte de que se rodeiam. Luís II quer provar sua liberdade, enquanto o verdadeiro criador, Wagner, é de outra raça, na verdade muito mais prosaica e menos abstrata. Luis II quer papéis e mais papéis, como os que ele arranca do ator exausto. O rei encomenda seus castelos desertos, num movimento que esvazia a arte e a vida de qualquer interioridade.

Para Deleuze, o gênio de Visconti culmina sempre nas grandes cenas ou composições, frequentemente em vermelho e ouro, como a ópera de Senso8, os salões de O leopardo, o castelo de Munique, em Ludwig, a paixão de um rei9, as salas do grande hotel de Veneza: imagens cristalinas de um mundo aristocrático.

Em segundo lugar, esses meios cristalinos são inseparáveis de um processo de decomposição que os solapa de dentro, e os torna sombrios, opacos: como o apodrecimento dos dentes de Luís II, a podridão da família que invade a casa do Professor de Violência e paixão, abjeção do amor da condessa de Senso, abjeção dos amores de Luís II, e por toda parte o incesto, como na família da Baviera, na abominação de Os deuses malditos10, por toda parte a sede de matar e de se matar, ou a necessidade do esquecimento e da morte. Não é somente o fato de que esses aristocratas estejam sendo arruinados, mas a ruína que se aproxima é apenas uma consequência, é que um passado desaparecido mas que sobrevive no cristal artificial espera por eles, os aspira, traga, retirando-lhes toda a força ao mesmo tempo em que eles se embrenham nele.

O terceiro elemento de Visconti é a História. Ela duplica a decomposição, a acelera ou mesmo a explica: as guerras, a ascensão de novas potências, a emergência de novos ricos que não se propõem a devassar as leis secretas do velho mundo, mas a fazê-lo desaparecer. Todavia, a História não se confunde com a decomposição interna do cristal, é um fator autônomo que vale por si mesmo, e ao qual Visconti ora dedica imagens esplêndidas, ora confere uma presença ainda mais intensa. Em Ludwig vemos muito pouco de História, os horrores da guerra e a ascensão da Prússia só nos chegam indiretamente. Talvez porque Luís II da Baviera quer ignorar tudo sobre isso: no entanto, a História ruge à porta. Em Senso, ao contrário, ela está já presente com o movimento italiano, a célebre batalha e eliminação dos garibaldinos. Em Os deuses malditos, com a vitória de Hitler, a organização dos SS e a exterminação dos AS. Porém, presente ou no extratacampo, a História nunca é cenário. Ela é percebida de viés, numa perspectiva rasante, sob um raio que nasce ou se põe, uma espécie de laser que vem cortar o cristal, desorganizar sua substância, apressar seu escurecimento, dispersar suas faces, sob uma pressão ainda mais forte na medida em que é exterior, como a peste em Veneza, que deixa o personagem do músico atordoado e deseperado para ir embora por isso, ou a chegada silenciosa da SS ao amanhecer em Os deuses malditos.

E depois há o quarto elemento, o mais importante em Visconti, segundo Deleuze, porque garante a unidade e a circulação dos outros, É a ideia, ou melhor, a revelação de que algo chega tarde demais. Chegando a tempo, talvez pudesse evitar a decomposição natural e a desagregação histórica da imagem-cristal. Mas é a História, e a própria natureza, a estrutura do cristal, que fazem com que esse algo não possa chegar a tempo. Já em Senso, “tarde demais, tarde demais”, urrava o amante abjeto, tarde demais devido à História que nos divide, mas também a nossa natureza, tão podre em você quanto em mim. O príncipe em O leopardo, ouve o tarde demais que se estende sobre toda a Sicília: a llha, cujo mar nunca é mostrado por Visconti, está tão mergulhada no passado de sua natureza e de sua história que nem mesmo o novo regime nada poderá fazer por ela. “Tarde demais” ritmará sempre, as imagens de Ludwig, já que é seu destino. Esse algo que chega tarde demais é sempre a revelação sensível e sensual de uma unidade da Natureza e do Homem. Por isso não é uma simples carência, mas o modo de ser dessa revelação grandiosa. O tarde demais não é um acidente que se dá no tempo, mas uma dimensão do próprio tempo. Como dimensão do tempo é a que se opõe, através do cristal, à dimensão estática do passado tal como este sobrevive e pesa no interior do cristal. É uma claridade sublime que se opõe ao opaco, mas que se caracteriza por chegar tarde demais, dinamicamente11.

Como revelação sensível, o tarde demais se refere à unidade da natureza e do homem, enquanto mundo ou meio. Mas, como revelação sensual, a unidade se faz pessoal. É a revelação que transtorna o músico em Morte em Veneza, ao receber do garoto a visão daquilo que faltou à sua obra: a beleza sensual. É a insustentável revelação do professor de Violência e paixão, ao descobrir no rapaz um malandro, seu amante em natureza e seu filho em cultura. Contudo, ressalta Deluze que:

Já em Obsessão, primeiro filme de Visconti, a possibilidade da homossexualidade surgia como a chance de salvação, de sair de um passado sufocante, mas tarde demais. Entretanto, a homossexualidade não é a obsessão de Visconti. (Deleuze, 1985, 127)

Dentre as mais belas cenas de O leopardo, está aquela em que o velho príncipe, tendo aprovado o casamento por amor de seu sobrinho com a filha do novo rico, para salvar o que pode ser salvo, recebe durante uma dança, a revelação da moça: seus olhares se entrelaçam, eles são um para o outro, um do outro, enquanto o próprio sobrinho é rejeitado ao fundo, fascinado e anulado pela grandeza do casal, mas é tarde demais tanto para o velho quanto para a moça.

O tarde demais condiciona a obra de arte e condiciona seu êxito, já que a unidade sensível e sensual da natureza com o homem é, por excelência, a essência da arte, na medida em que é sua propriedade ocorrer tarde demais no que diz respeito a tudo, exceto a uma coisa: o tempo reencontrado.

A decomposição cristalina em Morte em Veneza

Morte em Veneza se baseia no romance de Thomas Mann12. Mas, o romance de Thomas Mann, por sua vez, é inspirado no diálogo do filósofo grego Platão, séc. IV a.C. chamado Fedro13. Os problemas levantados por Platão nesse belíssimo diálogo nos auxiliam a pensar as colocações deleuzianas acerca da decomposição critalina das imagens de tempo no filme de Visconti.

Segundo James Arêas, Fedro, se apresenta segundo a perspectiva de uma reapropriação crítica do passado, em função de objetivos determinados. Essa reapropriação toma a forma de uma análise que permite transpor o passado e problematizar diferentemente o presente. Desse modo, a perspectiva platônica visa estabelecer, sob a temática geral do amor, a especificidade do delírio erótico, delírio propriamente filosófico, frente às demais formas de possessão divina. A diferença essencial que o delírio erótico apresenta é assinalada a partir do estreito vínculo que ele mantém com a constituição do discurso filosófico em Platão.

A visão do belo na esfera sensível provoca ou estimula a reminiscência da beleza verdadeira. O amante é tomado por um extremo entusiasmo, expansão vital e estremecimento febril que se espalha por toda a alma. A visão do objeto amado desperta a busca incansável pela beleza. O amante só reconhece no belo o objeto de um prazer sensual sem limites ao qual se entrega e se lança com toda a força do seu desejo. Sua alma atormentada, arrebatada pelo delírio não pode repousar senão na presença do objeto amado. Impelido assim pela paixão, o amante abandona todas as suas ocupações, despreza seus afazeres e suas obrigações: ele se contenta em venerar o ser que possui a beleza, ele o quer e está disposto a sacrificar-se, a escravizar-se a ele. Mas se o amado lhe escapa, então, logo surge a outra face de sua incúria: a impetuosidade tirânica de seu amor que se atira na perseguição implacável do amado.

É precisamente a esse Eros tirânico que os homens chamam amor, mesmo quando o desvalorizam ou o condenam, conscientemente ou não, é ainda a ele que obedecem. Não se pode rejeitar esse amor-apetite ou esse Eros tirânico se não se pode conceber uma outra espécie de amor. Essa outra espécie de amor é na realidade o amor de um outro gênero: para os mortais o amor é alado; para os deuses Eros é pteros, aquele que faz crescer as asas e nos possibilita voar, numa viagem semelhante à que descreve Platão em Fedro, mas que infelizmente não terei tempo de desenvolver aqui (252b).

A concepção platônica do amor em Fedro nos dá a chave para compreensão do que se passa entre o personagem do músico e Tadzo. Levando em consideração a abordagem de Deleuze, segundo a qual o que o personagem do músico vem em Tadzo é tudo aquilo que faltou à sua obra, isto é, a beleza sensual, mas essa revelação chega tarde demais, o desespero que o personagem do músico parece se encontrar reside no fato de que, assim como ele fica vidrado na beleza de Tadzo, ele parece também ser tomado por uma espécie de delírio, esse mesmo delírio de que fala Platão em seu diálogo.

Porém esse pathos, ou melhor, a visão do belo, revelada ao músico pela beleza sensual do personagem de Tadzo, chega tarde demais! Se chegasse a tempo, talvez pudesse evitar a decomposição, ou a corrosão desse cristal. Mas, é tarde demais! Tudo o que o personagem do músico vê em Tadzo é, precisamente, tudo aquilo que faltou em sua obra, essa beleza sensual, a sensualidade revelada por Tadzo, que desperta o eros. Aschenbach fora acusado de ser formal demais, para ele a arte é um produto da inteligência.

Ao longo do filme vemos o personagem do músico se lembrar de seu passado. Todas essas lembranças, ou imagens-lembrança se encontram no passado virtual, o qual ele tenta o tempo inteiro atualizar. A imagem cristal reside precisamente aí, nessa cisão temporal. O tempo se cinde nesses dois jorros dessimétricos: um deles se lança em direção ao passado e outro preserva o presente. Essa cesura do tempo que vemos no cristal é a própria dissolução do eu, da identidade. Na medida em que o tempo está cindido não há como encontrar um eixo ou um ponto fixo, um porto seguro.

Aschenbach perdeu sua esposa, sua filha, foi vaiado em sua última apresentação e culminou com um enfarto-síncope? Por isso foi aconselhado, pelo médico, a tirar umas férias. No entanto, é justamente aí que ele se depara com a revelação daquilo que faltara em sua obra: a beleza sensual de Tadzo, mas é tarde demais, a corrosão, a decomposição cristalina já o tomara de assalto e não há mais o que fazer, não há mais tempo. A peste que devasta Veneza, parece ser um indício de que algo estranho se passa, um indício ou um signo da corrosão, da decomposição cristalina que se anuncia. Mesmo com a tentativa de salvar-se e de salvar Tadzo da peste, Aschenbach não consegue impedir a decomposição cristalina que o corrói por dentro, é tarde demais, no tempo, impossível evitá-la!

Conclusão

O artista é aquele que viu e ouviu coisas demais, demasiado fortes para ele e que coloca neles a marca discreta da morte. Qual saúde bastaria para liberar a vida onde ela está aprisionada?

O personagem do músico é uma homenagem à Gustav Mahler, que também assina trilha sonora do filme (impressionista inglês), que morreu de u colapso nervoso. É a música de Mahler, de grande apelo íntimo e trágico, que acompanham o funesto trajeto de Gustav Aschenbach, como uma versão masculina de Tristão e Isolda, ópera de Wagner, na gôndola do sinistro rema rumo ao Lido – o suplício.

O artista, entre eles o romancista, nas fronteiras dos devires, em sua zona de indiscernibilidade, acaba por exceder os estados perceptivos e as passagens afetivas. É alguém que vê, uma espécie de vidente, alguém que se torna, que entra em devir. Nesse sentido, afirmam os autores: “Trata-se sempre de liberar a vida, lá onde ela está aprisionada, ou tentar fazê-lo num combate incerto” (Deleuze, 1997, 15). Essa é a tarefa da arte e da filosofia, como saúde, como potências criadoras e vitais.

Os artistas têm uma maneira singular de ver a vida e por isso retornam com olhos vermelhos e o fôlego curto. São atletas, mas não do tipo que moldam e cultivam seus corpos e a vida, mesmo que muitos escritores tenham visto no esporte um modo de aumentar a potência da arte e da vida, mas são atletas bizarros, como o “campeão de jejum” ou “o grande nadador que não sabia nadar” (Deleuze e Guattari, 1993, 224). Esse atletismo é inteiramente afetivo ou inorgânico, não é, portanto, nem orgânico ou muscular, mas é um atletismo do devir que revela outras forças que não são as suas, uma espécie de “espectro plástico” (Deleuze e Guattari, 1993, 224).

Nesse sentido, os artistas são como os filósofos, com frequência sentem uma fragilidade, mas não devido às suas doenças ou neuroses e sim porque viram na vida algo demasiado grande para qualquer um e que colocou neles “a marca discreta da morte” (Deleuze e Guattari, 1993, 224). Eles viram, além da luta da vida com o que a ameaça, o intolerável, o insuportável. Por isso, sua percepção da natureza, dos bairros da cidade, de seus personagens, atinge um tipo de vidência que se compõe com eles, perceptos dessa vida, de um dado momento, e faz estourar as percepções em um tipo de cubismo, de crepúsculo, de púrpura, que só têm por objeto eles mesmos. Mas esse algo é, precisamente, a fonte ou o fôlego que os possibilita viver através das doenças. Isso é o que Nietzsche chama de saúde:. “Um dia saberemos talvez que não havia arte, mas somente medicina...” (Deleuze e Guattari, 1993, 224).

Por terem visto coisas demasiado grandes para eles, o escritor, o artista e o filósofo “regressam com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados” (Deleuze, 1997, 15). Haveria uma saúde que liberaria a vida onde ela está aprisionada no homem, nos organismos, nos órgãos? Que saúde seria essa? Nesse sentido, compete à arte e a filosofia, como saúde, inventar um povo que falta, um povo porvir. Não um povo que venha a dominar o mundo, mas um povo menor, que entre em um devir-revolucionário. Pode ser que esse povo só esteja presente no escritor, no artista, no filósofo: “povo bastardo inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado” (Deleuze, 1997, 14). Esse é o devir do escritor, do artista e do filósofo.

A arte é um devir que atravessa e arrasta os povos, as raças e tribos que ocupam a história universal. Os devires da arte e da filosofia deslocam raças e continentes14. Os devires podem arrastar o homem à doença a cada vez que o próprio homem erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas se eles invocarem uma raça bastarda, oprimida que resiste às dominações de toda natureza, a tudo o que esmaga e aprisiona, como processo, abrem um sulco para si na arte e na filosofia. O fim último da arte e da filosofia é evidenciar nos devires a criação de uma saúde ou mesmo inventar um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Como assinala Deleuze: “Escrever por esse povo que falta... (‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’” (Deleuze, 1997, 15).

Notas finais

1 A esse respeito cf. WELLES, Orson. Cidadão Kane. EUA: 1941, 119 min

2 A esse respeito cf. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

3 A esse respeito cf. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

4 Idem. Ibidem. p. 16

5 Cf. WELLES, Orson. A dama de Shangai. EUA: 1948, 87 min.

6 Dados os limites desse artigo, não apresentaremos todos os estados cristalinos da imagem, dos quais fala Deleuze.

7 VISCONTI, Luchino. Violência e paixão. Itália, 1974.

8 Idem. Senso. Itália, 1955.

9 Idem. Ludwig. A paixão de um rei. Bonn, 1972.

10 Idem. Os deuses malditos. Roma, 1969.

11 Vemos aqui uma profunda inspiração do sublime kantiano, ressalvadas as diferenças.

12 MANN, Thomas. Morte em Veneza. Tradução de Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

13 PLATÃO. Fedro. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1975.

14 A esse respeito cf. a brilhante exposição de DELEUZE e GUATTARI sobre o que os autores designam “Geofilosofia” in: O que é a filosofia? p.11-146.

Bibliografia

ARÊAS, James. 2005. “O delírio dos deuses e a loucura do filósofo” in: Comum. vol.11, nº 25: 5-24.

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