Abstract
From Claude Lanzmann’s controversial interdiction of documentary images produced by genocidal political regimes, this article analyzes the discursive choices of the documentary State Funeral (2019), from Ukrainian director Sergei Loznitsa, against Harun Farocki’s Aufschub (2007), Alain Resnais’ Nuit et brouillard (1956), Vanessa Lapa’ The Decent One (2014) and Rithy Panh’s, L’image manquante (2013). All these films use archive footage. To what extent do totalitarian regimes’ official images, without the marks of enunciation of the director who manipulates them in the present, enable the image ethics, or do they resemble the perpetrators’ propaganda? The proposal presented here relativizes Lanzmann’s concept, but the contemporary director must turn explicit its discursive intervention and show himself as the film enunciator. In this way, he could re-signify and use these images. Authors like Cristina Teixeira Vieira de Melo, François Niney and Arlette Farge are discussed.
Keywords: Archive Footage, Impartiality, The cult of personality, Enunciator, Images re-signification.
Introdução
O arquivo parece uma floresta sem clareiras; permanecendo nele muito tempo, os olhos se acostumam com a penumbra, eles entreveem a orla.
(Farge 2009, 70)
Entre 1922 e 1936, o jornalista do The New York Times, Walter Duranty trabalhou como correspondente desse mesmo jornal na Rússia. Tratado pelo então líder soviético Josef Estaline com as regalias e a fartura que a própria população não gozava, mais do que um jornalista, Duranty tornou-se um verdadeiro porta-voz do governo soviético no Ocidente, edulcorando as suas ações e minimizando os seus genocídios, sobretudo o Holodomor, o genocídio ucraniano, no início da década de 1930. Considera-se que Duranty contribuiu de forma determinante para reproduzir no Ocidente o culto à personalidade que Estaline produzia de si em casa, junto do povo soviético.
O filme Funeral de Estado (Holanda, Lituânia, 2019), dirigido pelo realizador ucraniano Sergei Loznitsa mostra, com imagens de arquivo, justamente os efeitos desse culto à personalidade na União Soviética, aquando do falecimento, velório e funeral de Estaline na Praça Vermelha, no dia 9 de março de 1953. Em 135 minutos de filme e totalmente constituído por imagens de arquivo do velório, do funeral e das múltiplas homenagens fúnebres, Loznitsa mostra as multidões constituídas por políticos, militares, mas também por pessoas comuns e camponeses na derradeira despedida ao adorado líder soviético. Em imagens muito bem captadas e hoje conservadas no Arquivo Krasnogorsk, do Russian State Documentary Film and Photo Archive, surge a emoção das pessoas em diversas regiões da então União Soviética, consternadas pela informação da morte de Estaline e, em seguida, daquelas que choravam integrando o cortejo que entrava na Casa dos Sindicatos, em Moscovo, no local onde decorria o velório. O filme apresenta-se, desse modo, nas suas exaustivas duas horas e quinze minutos, inteiramente como uma colagem dessas imagens de arquivo inéditas, sem qualquer recurso de locução em voz off.
Desenvolvimento
1. Parcialidade versus imparcialidade
É inegável a qualidade técnica das imagens e a sua força: a maneira como o mar de pessoas invade o velório e preenche as ruas das principais capitais da URSS em homenagem e a uma última despedida a Estaline traduz com muita autenticidade o sentimento do momento e o resultado da política de anos do culto à personalidade promovida pelo líder soviético. As imagens de arquivo conferem hipotética autenticidade e imparcialidade ao filme, algo almejado por Loznitsa e, aparentemente indissociável do seu estilo. De acordo com o realizador,
The idea that a society is divided into a majority and a minority, and that the majority is always right, hasn’t gone anywhere either. The Soviet Union and Nazi Germany were just the extreme manifestations of these ideas, and ones that I’m sure will reappear in the future. That’s why I try to go back to the past — because we can be impartial and look back at what really happened.1
Aqui talvez valha a pena buscar qual o entendimento que Loznitsa faz do conceito de imparcialidade. Não se precisa ir tão longe, no exemplo de Walter Duranty que abre este texto, o jornalista parcial e sem escrúpulos que se vendeu a Estaline, para fazer do seu jornalismo um mero instrumento de propaganda. O jornalismo, de certo modo, inculca a imparcialidade como um valor a ser alcançado, algo que garantiria a sua boa prática e sua constituição ética. É importante lembrar ainda que a imparcialidade, em qualquer discurso ou meio é impossível, uma vez que qualquer ato de fala ou discurso está fundado numa experiência fenomenológica e na subjetividade de quem fala, que torna impossível uma imparcialidade de facto. A imparcialidade, assim, surge como um valor empresarial, uma falácia, uma pseudo-bandeira para um jornalismo especialmente corporativo, que precisa dar provas diuturnas de que o seu jornalismo não segue seus próprios interesses corporativos, mas sim o interesse da população e à ética da informação. Nada mais falso. E parcial.
A História, por outro lado, ao lidar com o arquivo, de acordo com a historiadora Arlette Frage, precisa “desconfiar de uma identificação sempre possível com as personagens, as situações ou as maneiras de ser e de pensamento que os textos põem em cena” (2009, 71). Para ela, é um perigo para o historiador criar uma identificação com seu tema e direcionar a pesquisa para coadunar as suas perspetivas e pontos de vista sobre a História. Contudo o cinema e, sobretudo, o documentário, apesar de ter uma relação próxima em diversos níveis com a História, como já foi detalhado por Marc Ferro (Ferro 1992), tem, antes de tudo, uma relação maior com a subjetividade e o ponto de vista do seu realizador do que, propriamente, fazer ciência histórica rigorosa, independente de muitas produções audiovisuais o fazerem com certa frequência.
Complementar a essa ideia, o cinema documentário tampouco é jornalismo – e, voltando a ele - talvez se o jornalismo assumisse algumas das discussões teóricas e éticas do documentário, seria mais bem realizado. O documentário é justamente o espaço de ser parcial, não de forma negativa ou antiética, mas de trabalhar o seu conteúdo, a forma do filme, de modo a que o contrato estabelecido entre um enunciador e seu público, seja evidenciado. Para Cristina Teixeira Vieira de Melo,
Ao contrário do que ocorre com os gêneros jornalísticos, a parcialidade é bem-vinda no documentário. Por isso afirmamos que o documentário não é um gênero propriamente jornalístico. Enquanto o jornalismo busca um efeito de objetividade ao transmitir as informações, no documentário predomina um efeito de subjetividade, evidenciado por uma maneira particular do autor/diretor contar a sua história. Este gênero é fortemente marcado pelo “olhar” do diretor sobre seu objeto. O documentarista não precisa camuflar a sua própria subjetividade ao narrar um fato. Ele pode opinar, tomar partido, se expor, deixando claro para o espectador qual o ponto de vista que defende. Esse privilégio não é concedido ao repórter sob pena de ser considerado parcial, tendencioso e, em última instância, de manipular a notícia. (Melo, 2002, 6).
É, portanto, a partir dessa crítica à imparcialidade como um valor no documentário, que cabe uma análise mais acurada das escolhas estéticas e discursivas de Loznitsa no filme Funeral de Estado. Antes de tudo, é importante reforçar algo que pode passar desapercebido na citação de Vieira de Melo: o documentarista “pode opinar”. Ou seja, não há uma fórmula nem uma obrigatoriedade de como o realizador deva portar-se ou trate o seu material fílmico e construa a estética do seu filme. Todas as escolhas de um realizador devem ser respeitadas e entendidas como parte não apenas de um histórico e prática pessoal, de como abordar o material filmado bem como de sua própria maneira de se relacionar com a imagem cinematográfica. O documentário talvez seja um dos espaços do cinema em que mais se encontre formas distintas, complementares ou até mesmo antagónicas de se trabalhar com a imagem filmada, no que diz respeito ao discurso, à narrativa e a uma ética de suas imagens. São aliás essas diferentes formas, as suas defesas e possibilidades, os seus embates, que conferem fascínio ao documentário, uma vez que boa parte dos seus realizadores sempre questionam as suas práticas e escolhas discursivas. Desse modo, entende-se que todas essas escolhas, de qualquer realizador, são sempre legítimas, importantes e, mesmo que haja discordâncias, elas permitem reflexões sobre a criação dos discursos documentais, a prática fílmica e uma ética das imagens.
As escolhas de Sergei Loznitsa são muito simples e claras: ele utiliza material de arquivo inédito do funeral de Estaline e compõe o seu filme numa colagem de imagens e sons do evento bem como da reação de populares noutras cidades da URSS, guiando a sua montagem pela força presente nas ações dos planos e, na maior parte das vezes, aparentemente respeitando o tempo cronológico do acontecimento. Não há efetivamente uma narrativa, tampouco alguma locução que evidencie o ponto de vista do realizador que, até ao final do filme, não se sabe qual é. O documentário aparenta mais uma colagem de material bruto das filmagens do que propriamente um filme construído enquanto documentário. Não fica claro, por exemplo, se a música que se ouve ao longo do filme, é uma interferência do realizador para dar uma característica épica ao evento, ou se era uma música diegética ao longo do funeral, utilizada com os mesmos fins pelo governo – algo fundamental para a perceção não apenas do acontecimento quanto do próprio filme. Os únicos trechos musicais visualmente justificados como diegéticos são os ouvidos na sala onde decorre o velório - em dois planos muito rápidos, deteta-se a presença de uma orquestra e de um coro - e numa fábrica em Kirov – num plano muito rápido vislumbram-se alguns instrumentos de uma pequena banda filarmónica. Aqui a importância da música é fundamental porque é ela que reforça um caráter épico às imagens e ao acontecimento, aumentando a sensação de culto da personalidade que é o que se destaca no filme. Não há também, ao longo do documentário, qualquer reflexão sobre a produção dessas imagens na época, como e porque foram feitas, qual seu objetivo. Não se define neste projeto o impulso enunciado por François Niney:
Ainsi la «nature» originelle de l’archive (fiction ou reportage, réclame ou propagande, ethnologique ou industrielle) devient seconde relativement à la fonction qu’elle vient occuper dans le nouveau montage et qui lui fait dire que ce pour quoi elle avait été conçue. Et l’esprit dans lequel elle a été conçue est en partie avéré par ce décalage. Sauf à coller des images d’archives à l’aveuglette, comme «simple» illustration d’un discours fabriqué en dehors d’elles (recette de la plupart des films de montage historique), le documentariste est appelé à leur poser les questions suivantes : Que montraient-elles à l’époque (qui les a faites, pour qui) ? Que voulaient-elles dire ? Y a-t-il un écart entre ceci et cela ? Qu’y voyons-nous aujourd’hui ? Quels liens (corroboration ou contradiction, restriction ou extension) établir avec d’autres images d’époque ou des témoignages contemporains ? (Niney 2006, 255)
No fim do filme, uma cartela com um letreiro explica, tal qual uma legenda de foto num jornal, que o funeral evidenciava o culto à personalidade de Estaline e que, posteriormente, o seu corpo foi retirado do mausoléu e enterrado, a partir da revisão crítica ao seu papel na história como genocida. Esse é o único momento em que o espectador entende o objetivo do realizador com aquele filme, ou seja, de crítica à figura de Estaline e ao culto à personalidade promovido por ele, evidenciado por aquelas imagens que, até então, pareciam contradizer essa trajetória crítica. Mas isso é feito rapidamente com uma cartela no fim, logo antes dos créditos, com um subterfúgio que não é, efetivamente, cinematográfico. Loznitsa não coloca as questões de François Niney. Estará ele a correr os riscos de uma construção de uma nova linguagem de propaganda que Niney também preconiza?
Qui prétend au contraire utiliser les images d’archives bribes d’actualités et de documentaires d’époque – comme des données toute faites sans les mettre à la question, risque fort, sous couvert de leçon d’histoire, de servir la propagande d’aujourd’hui, avec les images de la propagande d’hier. Que fait-il d’autre que plaquer un discours prévu sur des images prétextes ce qui, loin d’être un travail historique fécond reconduit les vieilles formules «objectives» et péremptoires de la propagande «actualitaire»
(Niney 2006, 255)
Ora, se Loznitsa pesquisa e faz uso de imagens inéditas do funeral, imagens estas que foram feitas pelo Estado Soviético, com efeitos de documentação e, muito possivelmente, de propaganda, o que difere o filme do realizador ucraniano das imagens captadas pelos soviéticos em 1953? De facto, a impressão que o filme apresenta ao espectador desavisado, que não sabe que está a assistir a um documentário contemporâneo, que não conhece o realizador e chegou à sessão de cinema após os créditos iniciais, é de que o filme não passa de uma peça histórica de propaganda de época, do governo soviético, para reforçar ainda mais o culto à personalidade de Estaline - algo que seria, em tese, o oposto das intenções do realizador. Se esse filme for exibido sem os créditos iniciais, a cartela final e os créditos finais, não há como ninguém dizer que não é um filme da época, de propaganda soviética. Se isso acontece e se essa não era a intenção do realizador, algo foi mal conduzido no processo fílmico, que interferiu no processo de comunicação que o realizador intentava com o seu público. Pode dizer-se que o documentarista quer dar – e deve dar – a liberdade para o espectador perceber o filme da maneira como ele quiser e não deve necessariamente seguir um direcionamento alinhado ao do realizador sobre o conteúdo apresentado. Mas essa lógica justa e nobre não pode ser uma cama de Procrustes, aplicada indiscriminadamente a qualquer tipo de imagem ou discussão no documentário, como se verá a seguir.
O filme de Loznitsa comprova a afirmação de Vieira de Melo e vai além: mostra que o documentário necessita de parcialidade, sobretudo filmes que lidam com imagens de arquivo produzidas por governos totalitários cujas imagens, ao serem vistas, demandam outro nível de reflexão. O objetivo aqui não é dizer o que Loznitsa deveria ter feito. É necessário respeitar as suas escolhas. Mas é também importante analisar o que implica trabalhar com as imagens de arquivo e reflectir sobre o facto de que o seu uso está indiscutivelmente associado a uma necessidade permanente de se pensar sobre a ética dessas imagens. O historiador Marc Ferro, em Récits d’Amertume, refere:
Tous les documents doivent être analysés comme des documents de propagande. Mais le tout, c’est de savoir de quelle propagande il s’agît. Les images d’archives ne sont pas mensongères au moins sur un point : ce que l’on a voulu dire aux gens. Ça c’est une vérité historique ! (Ferro 1993)
O cineasta Claude Lanzmann, realizador do impactante Shoah (1985), tinha uma postura contundente com relação ao uso de imagens de arquivo dos campos de concentração nazis, sobretudo por aquelas imagens feitas pelos próprios soldados e oficiais alemães, e que pode contribuir para esta discussão. É claro que não se pode comparar em termos de imagem e de sua ética, cenas de campos de concentração nazis com as cenas do funeral de Estaline. Contudo, essas imagens podem ter algo em comum que ajudam a jogar luz à reflexão que ora se propõe e que se apresenta como uma questão central: ambas podem constituir imagens de arquivo de um acontecimento, a partir de imagens produzidas por um estado despótico para reafirmar uma ideologia, um discurso e uma versão da História.
Lanzmann entendia que imagens fílmicas feitas por oficiais e soldados nazis não poderiam ser utilizadas e ia mais além: deveriam ser todas destruídas. Para o documentarista francês, ao utilizar imagens de arquivo feitas pelos perpetradores, o realizador coloca-se automaticamente no lugar de quem segura a câmara e põe o olho no visor. Dessa maneira, o realizador colocar-se-ia no lugar do próprio oficial nazi, independente do motivo que o tenha levado a filmar um campo de concentração ou os seus prisioneiros. A partir de uma detalhada reflexão sobre a ética e a interdição ou não das imagens dos campos2, Lanzmann construiu a sua própria ética das imagens e no filme Shoah, opta conscientemente por não utilizar nenhuma imagem documental de arquivo dos campos de concentração ou mesmo da sua libertação.
Ainda que compreensível, há um certo exagero na premissa de Lanzmann. Primeiro, nunca se deve destruir imagens documentais por elas pertencerem à História. Além disso, por mais sensíveis que sejam, elas sempre podem ser utilizadas, depende de como: serão sempre a verdade histórica enunciada por Marc Ferro. De facto, ao tomar o exemplo das imagens feitas por oficiais nazis, o intuito de produção delas pelos alemães certamente era danoso e vilipendiava as vítimas da Shoah, não tinham qualquer finalidade de denúncia, mas, pelo contrário, de júbilo. Então pode dizer-se que a matriz dessas imagens é amplamente negativa, conforme argumentado por Lanzmann.
2. Imagens de arquivo: essência de uma montagem
Mas o cinema é montagem e, através dela, imprime-se novos sentidos à imagem. É justamente a subjetividade – e parcialidade – do cineasta que têm o poder de transformar essa imagem e de lhe dar nova polaridade. A imagem existe, mas o que a transforma de uma potencialmente danosa e de júbilo, numa imagem de denúncia e reflexão, é justamente a montagem e o discurso do realizador. Então o que difere essas imagens de arquivo mais sensíveis, eventualmente interditas conforme Lanzmann, e essas imagens que podem ser utilizadas com caráter de denúncia e reflexão por um filme é justamente a capacidade que o cinema oferece, através da montagem, de as re-significar. Assim se inverte a polaridade negativa dessas imagens com um duplo ganho: esvazia-se o cunho de júbilo de quem produziu a imagem danosa e esta assume um caráter positivo de denúncia e crítica social em meio ao filme. Mas esse não é um recurso específico, nesse caso, apenas da montagem, mas do próprio trabalho de organização do material de arquivo, seja ele fílmico ou não:
Isso começa bem devagar com manipulações quase banais sobre as quais, no fim das contas, é raro refletir. Entretanto, ao realizá-las, fabrica-se um objeto novo, constitui-se uma outra forma de saber, escreve-se um novo “arquivo”. Trabalhando, reutilizam-se formas existentes, com a preocupação de ajustá-las de outra maneira para tornar possível outra narração do real. Não se trata de recomeçar, mas de começar outra vez, redistribuindo as cartas. Isso se faz insensivelmente, justapondo toda uma série de gestos, testando o material empregando jogos simultâneos de oposição e de construção. (Farge 2009, 64).
Há inúmeros exemplos desses jogos complexos, feitos por documentaristas que trabalham sobre imagens de arquivos sensíveis, re-significando-as. O filme Intervalo (2007) do cineasta alemão Harun Farocki é todo constituído por imagens de arquivo feitas a mando de oficiais nazis com o intuito, à época, de oferecer uma propaganda positiva dos alemães que, segundo essas imagens, dariam um tratamento digno e humano aos seus campos de prisioneiros na Segunda Guerra Mundial – tal e qual o jornalismo tendencioso de Duranty, inicialmente aqui apontado. Mas Farocki não se coaduna no seu filme com as intenções dos alemães que produziram tais imagens. Pelo contrário, Farocki apresenta, mas questiona as imagens, investiga e analisa a sua produção, de modo a desconstruí-las e transformá-las em senso crítico. Nesse sentido, adicionados a um claro discurso de análise e découpage do material de arquivo e de propaganda originais, utilizar essas imagens são importantes para desconstruir o discurso então subjacente a elas e criar outras possibilidades de discurso, com uma polaridade até mesmo contrária, nesse caso, política e eticamente necessária.
O trabalho com o arquivo não é simples e traz inúmeras complexidades. Sem se referir ao cinema, a historiadora Arlette Farge lembra que “o arquivo não é uma reserva na qual se sorveria por prazer, mas é permanentemente uma falta. Uma falta semelhante àquela de que falava Michel de Certeau a propósito do conhecimento ao defini-lo assim: ‘O que não para de se modificar por uma falta inesquecível’” (2009, 58). É a falta das imagens que define outro filme que pode ser lembrado como uma maneira instigante de lidar com imagens de arquivo sensíveis é o cambojano A imagem que falta (2013), de Rithy Panh. O filme conta as experiências do próprio realizador, preso em campos de trabalho no Camboja do Khmer Vermelho. A imagem que falta que dá nome ao filme é justamente a imagem que traz a verdade do acontecimento, para além das imagens fabricadas pelo regime. Se as imagens disponíveis do período são unicamente aquelas produzidas pelo próprio governo da Kampuchea Democrática, como mostrar imagens daquela época, como contar a verdade? Panh utiliza-se de um artifício engenhoso para cobrir as imagens que faltam: cria cenários e bonecos de barro e, através de maquetes, conta a história da sua experiência nos campos, dos assassinatos e das torturas, criando imagens a partir de sua própria memória. Ainda assim, o realizador não deixa de utilizar imagens de arquivo produzidas pelo regime. Em umas a sua locução em off aponta, como Farocki, o que está por trás da produção daquelas imagens, reforçando as suas mentiras e contradições. Noutras, ele sobrepõe nelas as imagens de bonecos de barro, adicionando, à outra camada de imagem, a imagem pré-existente, dando outro caráter às imagens originais, evidenciando o seu caráter discursivo, a sua subjetividade e parcialidade. Como reforça Arlette Farges,
(...) um arquivo inesperado, fora do campo que se estipulou, vem chacoalhar a monotonia da coleção. Diferente, loquaz ou sugestivo, ele oferece por sua singularidade uma espécie de contrapeso a uma série que está se estabelecendo. Ele divaga, diverge, abre para novos horizontes de conhecimento, traz uma grande quantidade de informações que não podia esperar na onda habitual do despojamento. (Farge 2009, 66-67).
Em ambos os casos de Farocki e Panh, as imagens de arquivo produzidas por governos autoritários são utilizadas, mas contradizem a proposta de sua interdição feita por Lanzmann, pois, apesar de serem utilizadas, elas estão totalmente re-significadas. Ao fazer isso, Farocki e Panh potencializam essas imagens, mas no sentido inverso ao intuito original de sua produção. Mais do que isso, eles refletem sobre elas, transformando-as em metaimagem, em que elas falam de si próprias, em que os filmes falam sobre elas enquanto tema, trazendo o espectador para a superfície da imagem, ao contrário de um contrato mais diegético da mesma – que era o temor de Lanzmann com relação à postura que se poderia adotar diante dessas imagens.
Em Nuit et Brouillard (1955), Alain Resnais utilizou as imagens de arquivo filmadas pelos nazis e pelas forças aliadas para denunciar as atrocidades do Shoah, para com elas estabelecer o contraste entre o aparente sossego e neutralidade do espaço presente confrontado com o horror inexplicável do mesmo espaço e dos objetos de um tempo recente. Para isso, confronta as imagens de arquivo com o espaço físico do campo de concentração de Auschwitz e com o texto de Jean Cayrol. Vanessa Lapa, em O Homem Decente (2014), utiliza exclusivamente imagens e vozes de arquivo mas consegue, através de inesperados contrastes entre imagens feitas por nazis e feitas por aliados e imagens feitas por aliados e vozes e testemunhos escritos de nazis, analisar e denunciar a amplitude intelectual e política de um homem e a vastidão terrífica de um regime. Através da montagem cinematográfica.
E é precisamente na montagem dessa amálgama de imagens de arquivo que lhe chega às mãos que Loznitsa corre os riscos apontados por François Niney.
O anúncio da morte de Estaline, os detalhes acerca da evolução do seu estado clínico, as informações acerca do seu velório e posterior funeral e todos os discursos a ele inerentes assim como as mensagens ideológicas acerca do seu legado e a força incutida para a continuação do desenvolvimento do comunismo foram sucessivamente ouvidos nas múltiplas regiões e repúblicas da URSS mostrando imagens das diversas e longínquas paisagens e da multiplicidade de etnias que compõem o povo russo. A simultaneidade foi a tónica desta montagem que espelhou a preocupação que todos os realizadores do regime tiveram em registar nos diversos pontos da União as reações a tão funesto acontecimento.
O anúncio da morte é recebido através de uma emissão de rádio simultaneamente ouvida na aldeia de Novo-Deminova (Ucrânia), num kolkhoz em Tajik e em Khabarousk. A explicação detalhada de todo o percurso clínico de Estaline desde os primeiros sintomas a dois de março até ao suspiro final a cinco de março é ouvida, simultaneamente, através do comunicado radiofónico transmitido nos altifalantes de uma plataforma do Azerbeijão, de uma estepe na região de Altai, de uma aldeia da Região Autónoma da Iamália-Nenétsia, ou uma outra cidade, mais moderna, mais agitada mas não identificada. A mesma emissão radiofónica enceta um discurso sentimental acerca da morte, do sofrimento, da perda de um ente querido e da absoluta necessidade da continuação de uma luta para que o seu legado seja perpetuado. Um discurso que é simultaneamente ouvido durante as sucessivas homenagens fúnebres junto das estátuas de Estaline em Moscovo, Kraspodar, Minsk (Bielorrússia), Vladivostok – onde a voz off profílmica descreve pormenores acerca das cores, formatos e materiais relativos às coroas de flores expostas no velório do líder – Magnitogorsk, Frunze (Quiguistão), Vilnius (Lituânia), Lviv (Ucrânia) e numa plataforma marítima no Azerbeijão. Os últimos momentos do velório e a saída do féretro para o exterior do edifício é também descrita através de uma emissão que é ouvida nas estepes da Mongólia e em muitas outras cidades não identificadas, por multidões também elas anónimas. As vozes in, diegéticas/profílmicas, são muito poucas: as três entidades políticas que discursam na Praça Vermelha e três operários numa fábrica de Kirov que enaltecem as virtudes do comunismo. Os altifalantes que transmitem os discursos também são o alvo da câmara cinematográfica como o elemento máximo da máquina da propaganda: aparecem em grande plano como elemento primordial.
A montagem de Sergei Loznitsa também projeta um outro elemento primordial no culto da personalidade e na sua relação com o espaço: as diversas sequências, alternadamente ou aleatoriamente a preto e branco ou a cores. projetam continuamente retratos gigantescos de Estaline, pendurados em prédios, transportados pelas multidões ou por vários outros métodos. O protagonista é o retrato do líder luxuosamente emoldurado na Casa dos Sindicatos em Moscovo, onde decorreu o velório, que aparece inúmeras vezes como elemento identificador do espaço; mas outros se repetem no aeroporto de Moscovo, nas fotos de perfil inseridas nas gigantescas coroas de flores, em prédios nas cidades mais distantes das repúblicas soviéticas, nomeadamente em Minsk, Varsóvia, Vladivostok, Magnitogorsk, nas fábricas e plataformas marítimas, um deles pendurado numa grua como que numa ritualizada elevação aos céus, num espaço fabril nas sequências finais do documentário e, na sequência final, no peito dos operários que posam para a câmara com um orgulho de militância.
Perpetuando a ritualização da doutrinação totalitária, as bandeiras e os estandartes tornam-se objetos inevitáveis em contexto de propaganda; as exéquias fúnebres e as múltiplas homenagens a Estaline exigiram a sua presença constante. Os realizadores do regime, inspirados na estética de Leni Riefenstahl, tornaram-nas protagonistas e Sergei Loznitsa centrou nelas muitas das suas sequências. A sua omnipresença é notória em todas as aldeias e cidades: as do partido comunista nas respetivas sedes à volta das quais a população se reúne e as bandeiras brancas com uma risca preta, a meia haste, em sinal de luto que vão aparecendo sucessivamente em múltiplas cidades.
A adoração fúnebre espelha-se na grandiosidade de símbolos que atuam, muitas vezes, como forma de competição e de exuberância. Neste documentário, essa exuberância define-se na profusão intensa, omnipresente e intensamente colorida, mesmo nos excertos a preto e branco, das quase sempre gigantes coroas de flores. Ao lado das palmas, elas inundam a sala do velório onde o caixão aberto está depositado; são continuamente transportadas para as praças, pelas multidões nos desfiles de homenagens nas diversas cidades e depositadas junto das diversas estátuas do líder. Na sala do velório, são frequentes as sequências com grande número de pessoas subindo as escadarias transportando continuamente gigantescas coroas de flores. Essas envolvem todo o exterior do edifício da Casa dos Sindicatos, projetam todo o enquadramento pictórico do desfile fúnebre e atapetam toda a simetria dos corredores ao ar livre que enquadram a Praça Vermelha até ao Mausoléu de Lenine onde Estaline foi sepultado.
O poder totalitário político é espelhado também através do poder da montagem em quatro sequências significativas: na organização do velório, na receção às delegações oficiais das diversas repúblicas socialistas soviéticas e delegações estrangeiras e nas exéquias fúnebres na Praça Vermelha. As primeiras sequências do documentário, apresentadas ainda antes do genérico, identificam os primeiros gestos da colocação do féretro no espaço da futura adoração rodeado dos seus colaboradores mais próximos. Os grandes dignatários do Partido e os colaboradores mais próximos são os protagonistas de uma montagem que se inicia com uma imagem da aerogare do aeroporto de Moscovo e que nos vai sucessivamente mostrando, em imagens a cores ou a preto e branco, a chegada das diversas delegações, nomeadamente da República Socialista da Checoslováquia, República Popular da Polónia, da República Popular da China, da República Popular da Bulgária, da República Socialista da Roménia, da República Popular da Hungria e da República Democrática Alemã e a delegação da Finlândia e do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Os altos dignatários aparecem em momentos específicos durante o velório em planos longos e em espaços privilegiados durante o cortejo fúnebre em direção à Praça Vermelha e nas cerimónias fúnebres no Kremlin, mais uma vez, elogiando o seu líder, o partido e o regime através dos seus discursos. Imagens de propaganda, em planos intermináveis.
A imensidão da URSS espelha-se na amplitude espacial e na multiplicidade étnica que se vislumbra nos rostos que simultaneamente ouvem o anúncio da morte do seu líder e se mobilizam para as contínuas homenagens. Espelha-se na imensidão das massas, nas multidões, na organização das cerimónias que Sergei Loznitsa, através das imagens escolhidas e de processos de montagem, torna simultâneas e, num percurso de duração de planos, espelha como intensas, simétricas, não deixando nunca de sublinhar o seu caráter marcadamente encenado. É através da montagem que vemos homens e mulheres de Tallin, de Riga e de Moscovo em filas intermináveis para comprar os diversos jornais que noticiam os detalhes acerca da morte de Estaline. É através da montagem que vemos cortejos intermináveis de homens, mulheres e crianças, vestidos com roupas mais ou menos quentes, mais ou menos ocidentais, mais ou menos confortáveis, mais ou menos adequadas ao frio e à neve que caía, transportando retratos, coroas de flores, vasos com plantas, até às inúmeras estátuas ou monumentos dedicados ao grande líder Estaline: e em todas as aldeias e cidades, a mesma ordem, a mesma simetria, a mesma organização, a mesma mobilização e em simultâneo e por opção do realizador. Na sala do velório, a logística de receção de todos aqueles que querem prestar uma derradeira homenagem permite a contínua passagem das pessoas e são apresentadas sequências e planos longos de contínuas passagens de multidões que, em passo regular e relativamente rápido, desfilam perante o féretro. São mostradas inúmeras sequências de filas entrando e saindo da sala filmadas em vários ângulos, subindo as escadarias de acesso também em outras posições de câmara, em planos intermináveis, mostrando também uma diversidade de indivíduos que demonstram, claramente, diversas origens sociais. Planos longos de filas de pessoas que serpenteiam entrando no mausoléu de Lenine na Praça Vermelha: para dar a ideia da imensidão, da exuberância. Tal como Leni Riefenstahl em O Triunfo da Vontade. É uma montagem de propaganda.
No culto da personalidade instaurado, as imagens apresentadas projetam algo de mais terrível e enigmático, algo indecifrável: a reação das pessoas perante a morte de Estaline, a sua postura, os seus gestos e muito especialmente os seus rostos. E como é que estes rostos se definem perante a realidade? E como é que o documentário os agarra no seu pacto com a verdade? No seu pacto com a câmara, com a encenação do regime e com a encenação cinematográfica? Ao longo de todo o filme é confrangedora a consternação destes rostos, mas mais ainda é verdadeiramente indecifrável a total incomunicabilidade entre todas as pessoas. E essa realidade não é desvendada nem pelos realizadores das imagens nem por Sergei Loznitsa. São rostos de várias etnias, tristes, consternados, circunspectos, profundamente silenciosos, que choram, rostos em grande plano, rostos de perfil, rostos que olham para a câmara em pose, por vezes, mas que também olham discretamente, a medo. Rostos apreensivos, rostos sem expressão, mas que não olham uns para os outros, numa eterna e indefinível incomunicabilidade. Rostos que têm a plena consciência que estão a ser filmados. Muitos rostos de crianças, em grande plano, como as de Leni Riefenstahl. Rostos que choram copiosamente, rostos que choram disfarçadamente ou que escondem com as mãos a sua emoção. Rostos jovens e rostos velhos, uma profusão de grandes planos de rostos.
Na sala do velório, um outro paradigma: os rostos desfilam e olham pra fora de campo, apresentam-se quase sempre de perfil. O fora de campo é o corpo de Estaline. Os travellings de acompanhamento ou os planos panorâmicos ou os desfiles de rostos perante a câmara fixa projetam rostos consternados, sérios, impressionados, mas sempre sós, sempre a confrangedora incomunicabilidade.
As sequências finais mais rápidas manifestam um projeto de montagem mais dinâmico, mais autoral e mais interventivo. Quando o chefe de cerimónias na Praça Vermelha dá por encerradas as cerimónias fúnebres, todos tiram os chapéus e, na Praça Vermelha, iniciam-se as movimentações para a entrada do caixão no mausoléu, ouvem-se as salvas de tiro na Praça e, na sequência seguinte, as sirenes das fábricas num outro espaço longínquo não identificado e os apitos dos comboios a vapor num outro lugar e a multidão a tirar os chapéus num outro espaço e as salvas dos canhões dos barcos num outro mar, e uma salva de tiros numa outra fábrica onde todos param, e canhões num cais à beira de um outro mar, e operários de uma outra fábrica, de chapéus na mão ao lado de comboios que apitam e largam nuvens de vapor e operários parados olhando as câmaras ao lado das chaminés dos barcos que roncam em uníssono, e um homem parado no meio das estepes, em silêncio, e lenhadores parados, ao lado de renas, ouvindo comboios a apitar. E, de novo, os mongóis, parados, em homenagem. Uma união de tempo em espaços diferentes, pelo país todo. A rapidez, o paralelismo, a relação entre os sons das diversas sirenes, salvas e barulhos na projeção de um mesmo totalitarismo aliados à cartela final denunciam o culto e o terror. O percurso autoral também se definiu numa exceção algo sarcástica e talvez dissidente de Sergei Loznitsa à opção propagandística: a certa altura, também nos mostra uma sequência que decorre durante o velório com vários planos de desenhadores, pintores e escultores, atarefados frente ao caixão tentando registar a última imagem do líder máximo. Entre eles, continuamos a ter o travelling demorado pelas coroas de flores que forram as paredes do mausoléu, o desfile interminável das pessoas que debaixo de neve se amontoam para homenagear o seu ídolo e a imagem final de uma porta fechada guardada por dois guardas totalitários numa simetria e numa ordem que é um documentário de propaganda intocado por Serguei Loznitsa.
Nestas últimas sequências, enunciando as mesmas características de simultaneidade, de imensidão geográfica e totalitária, de consternação e culto da personalidade numa estética marcadamente propagandística na linha de Sergei Eisenstein e de Leni Riefenstahl, Sergei Loznitsa enuncia um respiro de poética fílmica em contraste às duas horas anteriores da aridez de um aparente material bruto justaposto. É a melhor parte do filme – para não dizer a única - em termos cinematográficos. Até então, o que se vê, é um aparente filme de propaganda, um documentário que, na verdade, reforça o caráter de culto à personalidade de Estaline. O realizador, em sua busca, talvez, por uma pretensa imparcialidade, abre mão de seu discurso e de sua crítica, mas fazendo uso de um tipo de imagens que necessariamente pedem uma impressão mais palpável da subjetividade de quem as manipula.
Por outro lado, o filme de Loznitsa, ao não fazer operações de criação de uma nova re-significação da imagem de arquivo como fazem Farocki, Panh, Resnais e Lapa confirma parcialmente a teoria de Lanzmann pois o tratamento que Loznitsa dá às imagens de arquivo no seu filme, limita-o a colocar-se no mesmo lugar que os agentes do estado soviético que produziram aquelas imagens em 1953, muito possivelmente com intuito de propaganda e reforço da mitologia de Josef Estaline na URSS.
Conclusão
Conclui-se assim, que há diversas maneiras de utilizar as imagens de arquivo e que algumas delas demandam uma ética própria, muito específica. Todas elas passam pela impressão da subjetividade, de carregar de forma patente na montagem o discurso do realizador. Isso pode ser feito também evidenciando essas imagens como imagens, refletindo sobre suas formas de produção e assim as transformando em metaimagens, imagens fortes, instáveis e selvagens, como lembra Mitchell (1994). Nesse sentido, vale voltar mais uma vez à definição de documentário proposta por Vieira de Melo:
O documentário é, portanto, uma obra pessoal, mais do que isso, documentário é um gênero essencialmente autoral, sendo absolutamente necessário e esperado que o diretor exerça o seu ponto de vista sobre a história que narra. É impossível ao documentarista apagar-se.
A subjetividade e a ideologia estão fortemente presentes na narrativa do documentário, oferecendo representações em forma de texto verbal, sons e imagens.
(Melo 2002, 7).
Ainda que a discussão de autoria no cinema seja complicada e já datada, o que não se pretende discutir ou aprofundar aqui, o que Vieira de Melo propõe é a clareza e a visibilidade do enunciador no filme documentário. Essa presença é importante, sobretudo em filmes que utilizam imagens de arquivo e, ainda mais, quando são imagens produzidas por governos totalitários ou de exceção. Mas, aparentemente, Loznitsa percebe o trabalho com material de arquivo de outra forma. Segundo ele, “When working with archives, I am limited by the footage I have at hand. I’m making a collage of what’s on offer, creating a narrative that will lead both myself and the viewer to some kind of meaning”3. Porém aqui é importante levar em consideração o alerta de Farge, que parece contradizer às escolhas de Loznitsa:
Quando o documento se anima a ponto de levar a crer que ele se basta a si mesmo, sobrevém inevitavelmente a tentação de não se desgrudar dele e de fazer um comentário imediato a seu respeito, como se a evidência de seu enunciado não devesse ser reinterrogada. Disso decorre uma escrita da história, descritiva e plana, incapaz de produzir outra coisa que não o reflexo (e mesmo o decalque) do que foi descrito há duzentos anos. A narrativa da história torna-se uma glosa entediante, um comentário positivista no qual os resultados obtidos não passaram pelo crivo da crítica. (Farge 2009, 73).
Esse parece ser o grande problema do diretor Sergei Loznitsa em Funeral de Estado. Ele não é limitado ao que tem em mãos como bem demonstra Panh em seus filmes e nem levará o espectador a algum tipo de significado sem que ele se posicione com relação às imagens, como faz Farocki, criando efetivamente uma narrativa - o que o diretor ucraniano não faz. O problema das escolhas de Loznitsa nesse filme é ele não aparecer efetivamente como enunciador e fazer com que o seu filme não se diferencie de um mero e complicado registo de propaganda estalinista, o oposto do que ele almeja.
Não basta pesquisar e ter acesso a um material fílmico inédito, surpreendente e de qualidade, montar e distribuir um filme, para se ter, efetivamente, cinema. A impressão é que o realizador aposta apenas nas características intrínsecas à própria imagem de arquivo, o seu valor histórico e sua qualidade de preservação, para que isso se constitua como cinema. Mas isso não é suficiente. Também não é suficiente uma cartela com algumas informações, no fim do filme, para criar tanto essa marca da enunciação quanto registar uma ética das imagens de arquivo. O cinema documentário não pode ser equiparado a uma fotografia no jornal, sem demérito a esta, que muitas vezes precisa da legenda ao fim da imagem para criar a narrativa da notícia que a fotografia, sozinha, por si própria, pelo seu caráter de imagem unitária, muitas vezes não consegue inferir. Nas suas aparentes pretensões pela narrativa4 como parece apontar Loznitsa, o cinema documentário precisa lidar com as marcas de seu enunciador sob pena de cair na mesma degenerescência do cinema observativo, que no afã da não interferência na realidade, na maior parte das vezes acaba por ficcionalizar a imagem documental – o que, aliás, não seria problema se fosse esta a proposta. Toda a escolha estética, como lembra Vieira de Melo, é também uma escolha política.
Volta-se assim ao nosso ponto de partida: se no fim um documentário feito de imagens de arquivo, em que o enunciador não aparece, em que as marcas de produção das imagens daquela época não são alvo de reflexão, de serem retrabalhadas e readquirirem uma outra essência, o que diferiria um documentário contemporâneo de uma peça de propaganda do período retratado, em que se enaltece justamente o que ele se propõe a criticar? É esse o perigo observado por Frage pois “a história não é jamais a repetição do arquivo, mas desinstalação em relação a ele, e inquietação insuficiente para interrogar incessantemente sobre o porquê e o como de seu fracasso no manuscrito” (Farge 2009, 75). Desse modo, o esforço documentário no cinema, em que pese um compromisso com a ética das imagens e com a sociedade que nos cerca, nunca pode ser confundido nas suas intenções com as práticas de um Duranty pelo mau – ou ingénuo - uso do material de arquivo. Se isso acontece, é melhor ter mais cuidado e começar a prestar mais atenção no uso de determinadas imagens, como manuseá-las, bem como dos discursos que delas podem aflorar.
Notas finais
1https://www.calvertjournal.com/features/show/11372/ukrainian-film-director-sergei-loznitsa-past-and-present-documentary. Acesso em 05 de junho de 2022.
2Essa discussão pode ser acompanhada no livro de George Didi-Huberman sobre as fotos tiradas clandestinamente nos campos de concentração de Auschwitz. DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágenes pese a todo: memoria visual del holocausto. Barcelona: Paidós, 2004.
3https://www.calvertjournal.com/features/show/11372/ukrainian-film-director-sergei-loznitsa-past-and-present-documentary. Acesso em 05 de junho de 2022.
4É claro que não se ignora aqui as inúmeras possibilidades contemporâneas e ao longo da história do cinema e mesmo na contemporaneidade que trabalham com a lógica do cinema não-narrativo, mas este não e o foco deste texto.
Bibliografia
Didi-Huberman, Georges. 2004. Imágenes pese a todo: memoria visual del holocausto. Barcelona: Paidós.
Farge, Arlette. 2009 O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp.
Ferro, Marc. 1992. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Ferro, Marc.1993. Récits d’Amertume. Carnets du Dr Muybridge, nº2, Lussas.
Igort. 2016. The Ukrainian and Russian notebooks: life and death under soviet rule. New York: Simon e Schuster.
Melo, Cristina Teixeira Vieira de. 2002 a. O documentário como gênero audiovisual (mimeo) Salvador: Intercom. p. 6, 7.
Mitchell, W.J.T. 1994. Picture Theory: Essays on verbal and visual representation. Chicago: The University of Chicago.
Muanis, Felipe. 2020. Convergências Audiovisuais: linguagens e dispositivos. Curitiba: Appris.
Niney, François. 2006. L’épreuve du réel à l’écran – essai sur le principe de réalité documentaire. Editions De Boeck & Larcier, Bruxelles.
https://www.calvertjournal.com/features/show/11372/ukrainian-film-director-sergei-loznitsa-past-and-present-documentary. Acesso em 5 de junho de 2022.
Filmografia
A imagem que falta. 2013. De Rithy Panh.França.
Funeral de Estado. 2019. De Sergei Loznitsa. Holanda, Lituânia.
Intervalo. 2007. De Harun Farocki. Alemanha, Coreia do Sul.
Noite e Nevoeiro. 1956. De Alain Resnais. França.
O Homem Decente. De Vanessa Lapa. Alemanha, Áustria, Israel.
O Triunfo da Vontade. 1935. De Leni Riefenstahl. Alemanha.
Shoah. 1985. De Claude Lanzmann. França, Inglaterra.