Abstract
This text intends to show the relationship between Fyodor Dostoevsky’s literature, in the book “The brothers Karamazov” and Law and Psychoanalysis, based on concepts formulated by the Russian, in the construction of the character of the three brothers, participants in the plot of the murder of the father, as antecedents of the observations confirmed by Sigmund Freud. The jury debates – whether those in defense of Dimitri, accused of parricide, or the prosecution arguments – denote the close relationship between Fiodorian literature and the framework of Russian Law, predominant in the 19th century.
Keywords: “The brothers Karamazov”; Dostoiévski; Law and Literature.
1. Introdução
Tencionamos comentar os elementos psicanalíticos e jurídicos da obra dostoievskiana (em especial, da obra de maturidade, no caso, “os irmãos Karamazov”, vindo a ressaltar a natureza intercomunicativa entre a literatura, a psicanálise e o direito, no texto complexo deste livro do autor russo.
Numa reflexão elementar sobre a literatura, o direito, o cinema e a psicanálise freudianas, nos indagamos se o velho escritor russo não se teria antecipado em definir certos traumas e comportamentos humanos mais profundos, ao investigado os subterrâneos da psicologia do homem, de tal modo que as pesquisas de Sigmund Freud, algumas décadas após, as iria nomear e, cientificamente, relacionar. Só podemos fazê-lo através da leitura da obra dostoievskiana, a seguir.
Toda a obra- extenssima, aliás, de Fióder Dostoiévski é marcada pela observação de elementos jurídicos – inclusive, anti-normativos, como se pode observar em Crime e Castigo e em outros romances, cujos personagens transgridem, proposital e planejadamente, a norma geral e nacional, humana e social.
Comecemos pelo final, é dizer, por sua obra máxima, da maturidade, Os irmãos Karamázov, publicada pouco antes dele morrer, em 1881, na qual denuncia o parricídio, nas palavras do personagem Ivan Karamázov, intenção que atormenta a mente de todos nós.
O livro Os irmãos Karamázov é uma proclamação de amor à humanidade. E como já afirmamos Freud amava essa literatura. Dostoievski tem oportunidade de descrever, com profundidade, o caráter e a psicologia de cada dos três irmãos, Dmitri, Ivan e Aliocha, os quais, em que pese possuírem todos a forma ou o jeito “Karamázov” de ser, se diferenciam no comportamento e nas convicções de cada um. Façamos uma incursão interpretativa mínima do longo livro de maturidade do autor russo, como forma de demonstrar a importância da literatura antecipatória da psicanálise.
No longo capítulo 3, do livro 5( “Os irmãos se conhecem”),2 o autor estabelece um largo diálogo entre os irmãos Ivan e Aliocha, de 23 e 20 anos, respectivamente, onde e quando aquele personagem fala de sua “sede de viver”, enquanto o caçula Aliocha – numa espécie de comportamento a la príncipe Mischkin-, demonstra sua fé, seu amor ao próximo, numa verdadeira re-encarnação crística, em contraste com a incredulidade de Ivan, o qual finda por reconhecer que cada ser humano tem uma espécie de “demônio” dentro de si, cuja argumentação contrária, o autor Dostoiévski tanto se preocupou em carta, que o seu editor não alterasse, porquando ele garantiria a contra-argumentação, em capítulo posterior. E assim foi feito.
2. Direito e Psicanálise no Cinema e na Literatura
O livro de Dostoiévki foi adaptado para o cinema, mais de uma vez. Interessa-nos sugerir a referência, aqui, apenas a uma delas: a transposição dirigida pelo filho de imigrantes judeu-russo, Richard Brooks, em 1957, clássico de Hollywood que conta no elenco com Yul Brunner, Maria Shell e Lee J. Cobb, porquanto importa comentar, antes, a literatura dostoievskiana no que a mesma influenciou a gênese da Psicanálise Freudiana, em sua relação com o Direito.
3. Agudezas literárias
Convém ressaltar, ainda, algo como os leitmotiv do romance, um dos quais a largueza da narrativa fiodoriana n` Os Irmãos Karamazov” a exemplo de quando Ivan afirma que as crianças são inocentes e todo o universo não vale as lágrimas de uma só criança que sofra castigos e a prática de maldades e torturas de adultos.
Em OS IRMAÕS KARAMAZOV, Dostoievski faz esse personagem (Ivan) reconhecer-se uma centopeia, a recordar a aranha, de que se culpava equiparar-se o personagem central de Crime e Castigo, o Raskolnikov, tanto quanto aracnídeo animal fica caracterizado o pai dos irmãos, Fiodor Pavlovitch, o qual além de individualista e sensual, se casa duas vezes e diz: “ Não tem mulher feia, gorda ou triste, rica ou pobre, tudo vale...” Com efeito, à pagina 159, do livro da editora Martin Claret, no capitulo sobre “os sensuais”, o autor mostra um Pavlovitch pedófilo, provavellmente, sendo o pai biológico do adotado Smerdiakov, seu verdadeiro assassino, como ficará provado ao final.
Consoante afirmado por Joseph Frank, em sua célebre biografia de Dostoievski:
“Os irmãos Karamazov alcança uma expressão clássica do grande tema que preocupava Dostoievski desde Memórias do subsolo: o conflito entre a razão e a fé cristã. A grandeza controlada e medida do romance evoca espontaneamente uma comparação com as maiores criações da literatura ocidental. Divina comédia, Paraíso perdido, Rei Lear, Fausto – são os títulos que vem a mente quando se tenta medir a estatura de “Os irmãos Karamazov”, pois essas obras também tratam da discussão , que nunca tem fim e nunca terá, provocada pelas “questões maldidas” do destino da humanidade.”3
Por outro lado, podemos afirmar que Dostoievski se aprofunda na psicologia de seus personagens, de tal modo, tão densamente, que a psicanálise como ciência do entendimento e compreensão das profundezas inconscientes humans, teria sido antecipada pela intuição autoral do literato russo.
Na conformidade de Laéria Fontenele, há uma singularidade da interpretação em psicanálise:
“Fundada em 1900, a psicanálise utiliza a mesma nomenclatura conceitual de então para nomear algo fundamentalmente heterogêneo aos saberes científico e filosófico. Este último apresenta, por sua vez, uma longa tradição a respeito da interpretação psicanalítica, que a distingue da posição que ocupa no círculo hermenêutico da filosofia, de seu valor exegético para a compreensão dos textos sagrados e de seu sentido científico.”4
Destarte, a sexualidade e a interpretação, se constituindo em dois núcleos transcendentais de tematização freudiana, se encontram já em demasia na obra dostoievskiana, a qual se caracteriza pela investigação dos labirintos da culpa dos seus personagens, vero antecipação das descobertas psicanalíticas. Aliás, este foi um tema mui caro ao século XIX, a descoberta do “monstro” interior, o lado demoníaco no interior profundo do ser humano.
O velho escritor estava, por fim, obtendo algum reconhecimento popular, inclusive da juventude, porquanto fora aplaudido – mereceu mais palmas nos “grandes debates” travados com Tchernichévski, retornado à Rússsia.
Na sua monumentalidade, Os Irmãos Dostoiévski merece ser seccionado em partes, em atendimento à nossa pretensão de analisá-las, mais detidamente. Inicialmente, as relações entre os personagens Ivan Fiodorovitch e Smerdiakov, os assassinos mental e material do pai Pavlovitch, cujos diálogos, em tres conversas demoradas, ocasião de visitas que Ivan faz ao valete, reveladas a psicologia dos mesmos, pelo autor narrador.
Inicialmente, revemos o capítulo terceiro, do livro quinto, intitulado “os irmãos se conhecem”, das páginas 254 a 262, da edição brasileira da editora Martin Claret: aí identificamos um núcleo ideológico/psicológico destes irmãos, o qual vai descrito com requintes de detalhes e apuro, pelo escritor da “racionalidade inconsciente” que foi Dostoievski, ao descrever razões vicerais dos seus personagens. Vejamos que no livro 3, já identificáramos a “larguesa” ou um dos leitmotiv do livro, especialmente no capítulo IX, “os sensuais”, onde o autor demonstra o “modo Karamazov de ser”.5
Já aqui, no livro 5, capitulo 3, observamos o quanto Dostoievski se antecipou a Freud: identificou na alma humana as instâncias do inconsciente, do pré-consciente e a da consciência, tanto quanto o pai da psicanálise identificaria e nomearia de ego, superego e id. No diálogo (pag. 165) entre os irmãos Ivan e Aliocha, este indaga daquele: “ Irmão, deixe-me fazer uma pergunta. É possível que todos tenham o direito de julgar seus semelhantes, de decidir quem merece viver e quem não merece mais?” A resposta de Ivan Fiodorovitch mostra-se incisiva e esclarecedora de seu caráter, bem como do desejo freudiano: - “Para que meter nisso a avaliação dos méritos? Resolvendo essa questão, o coração quase não preocupa com os méritos, mas com outras razões muito mais naturais. Quanto ao direito, quem não tem o direito de desejar?” (pag.166,id. Ibidem).
Afinal, desejar a pulsão de morte não dava cadeia, o show precisava continuar. Adiantemo-nos na leitura dos Irmãos Karamázov: pulemos para a quarta parte, livro XI, quando Ivan Fiodorovitch demonstra sua alegria por Aliocha achar que seu irmão Ivan seria capaz de ter desejado a morte do seu pai, preocupação dostoievskiana e objeto dos tormentos psicológicos do autor, em toda a extensão da obra, como se pode inferir do diálogos entre os personagens, descritos e reveladores da antecipação literária das pesquisas científicas freudianas, de como o Sigmund Freud chegou à metapsicologia, em duas tópicas: na primeira tópica, identificando a estrutura do consciente e do inconsciente; a teoria da ab-reação, inicialmente, pelo método da hipnose, com a técnica da catarse e da superação do trauma, e, depois, acontecendo a descoberta do pré-consciente e as repressões, numa verdadeira estruturação encadeada: consciente-préconsciente e inconsciente, cujas páginas dostoievskiana prenunciam.
Por exemplo: às páginas 306, 688, 692 ,792 e 705 dos “Irmãos...” podemos identificar o verdadeiro prenúncio literário e artístico devidamente articulado de todas essas duas tópicas freudianas, cujo método da segunda seria “uma associação livre de ideias” e, tendo utilizado o cientista inaugurador da psicanálise, a técnica da interpretação e ressignificação de representações, transferência e resistência.6
Vejamos ou revisemos: Ivan Pavlovitch ficara feliz ao ser beijado por seu irmão Aliocha, no entanto, sua pré-consciencia pesada, impede de ele aceitar o beijo do pai, antes da despedida a Moscou, consoante descrito à página 306:
“Acompanhando a saída do filho, Fiodor Pavlovitch se agitou, preparando-se para beijá-lo. Mas Ivan lhe apertou apressadamente a mão, com visível desejo de evitar o beijo. O velho logo compreendeu isso e se conteve.” (op. Cit. Idem, ibidem, pag. 306)
Com efeito, dado o ortodoxismo dostoievskiano, se Ivan tivesse aceitado o beijo do pai, se teria sentido qual Judas, o qual entregou a Cristo após o beijo...
Já adiante, em pleno livro XI, da parte V, das páginas 688 a 692, Ivan Fiodorovitch retorna ao diálogo com seu irmão Aliocha, a quem confia e ama, oportunizando a este afirmar a certeza de que quem assassinou o pai comum não foi o irmão Ivan, Não foi você, não foi”. À página 692, dialogam assim:
“ – Isso não é possível! – exclamou Aliocha.
– Como não é possível? Eu mesmo o li.
– Tal documento não pode existir – repetiu Aliocha, ardentemente. – É impossível, pois não foi ele o assassino.. Não foi ele quem matou nosso pai, não foi ele!
Ivan Fiodorovitch parou bruscamente.
– Então, quem é o assassino, em sua opinião? – perguntou Ivan, parecendo frio; até mesmo certa arrogância se manifestava no tom de sua pergunta.
– Você mesmo sabe muito bem – respondeu Aliocha, de forma suave e penetrante.
– Quem? Voc|ê quer contar a fábula sobre aquele idiota louco, aquele epilético? Smerdiakov?
Aliocha logo sentiu seu corpo estremecer inteiramente.
– Você mesmo sabe muito bem quem – Aliocha deixou escapar fragilmente, sem fôlego.
– Sim, quem? quem? – exclamou Ivan, agora quase com raiva. Toda a sua frieza desaparecera de uma só vez.
– Só sei de uma coisa – disse Aliocha, quase sussurrando. – Não foi você quem matou o nosso pai! ”
– Não foi você? O que quer dizer “não foi você” ? - disse Ivan, aterrado de surpresa.
Não foi você quem matou o nosso pai ! Não foi! – repetiu Aliocha com firmeza.” (pág. 692/3, id. Ibidem).7
Lá adiante, na página 792, a leitura remete à insinuação de familiaridade do personagem Smerdiakov com Ivan, ao tentar – em uma de suas três conversas, conjuntas-, quando aquele tenta tranquilizar a consciencia do irmão inteligente. À pagina 705, Ivan Fiodorovitch já está mais tranquilizado, duas semanas depois de retornado de Moscou, de onde voltara, dialogando com o valete, Smerdiakov diz:
“Agradeço por tudo. Marfa Ignatievna nunca me esquece, Em sua infinita bondade, ela sempre me ajuda, sempre que eu preciso de alguma coisa. Pessoas boas me visitam todo dia.
– Até a vista. Aliás, eu não dizer que você sabe fingir um ataque epilético... Você também não... não o aconselho a dizê-lo – disse de repente Ivan, sem saber por quê.”
Acontece que o leitor sabe, àquelas alturas da leitura...o leitor sabe que são dois cúmplices do assassinato, trata-se do “inconsciente” de Ivan a traí-lo. Essa foi a segunda conversa entre ambos, no hospital. Só nos resta descrever a terceira e última conversa.
A terceira e última conversa de Ivan e o Valete mostram-se, às escâncaras, os “estados conscientes e inconscientes” do primeiro irmão, uma verdadeira “largueza” ou leitmotiv profundo do livro, uma verdadeira pré-figuração de Freud na literatura mais amadurecida do escritor russo. Estes estados de “consciência e inconsciencia” de Ivan revelam os dois abismos psiquinalíticos do personagem.
De nós humanos todos, que abraçamos, por natureza, o bem e o mal, as tentações do bem e as tentações do fazer algum mal, segundo Dostoievski. Nessa “terceira e última conversa com Smerdiakov”, contida no livro XI, capituloVIII, porquanto Smerdiakov percebera na visita anterior que seu meio-irmão irmão, apesar de ser um “homem inteligente” não percebera, totalmente, do quanto mau e decidido estava ele, valete, de retirar a vida do pai Pavlovitch, carecendo, apenas, da autorização moral de Ivan, e então, necessita voltar à carga, voltar a arrematar o quanto seria ele valete capaz de executar os planos que corriam no inconsciente de Ivan. Eis, às paginas 865 e seguintes, da edição de Martin Claret, a descrição perfeita do perfil psicológico de Smerdiakov:
“Ele odiava as suas origens, sentia vergonha delas, não conseguia imaginar, sem ranger os dentes, que tinha “saído da S...merdi...áchtchaia”. Em relação ao empregado Grigóri e à sua esposa, seus benfeitores em sua infância, ele não sentia respeito algum. Amaldiçoava a Rússia e zombava dela. Seu sonho era emigrar para a França e tornar-se francês.”8
Qual o homem do subsolo, Smerdiakov é descrito, verdadeiramente, como uma mosca, e assim se considera ele próprio. E como observamos do pequeno trecho inserido na descrição de seu perfil, ele se considerava “filho de uma mãe merda, a partir do seu próprio nome: S...merdi...áchtchaia.
Uma grande crueldade se pode extrair do texto dostoievskiano, mas assim é sua literatura, quase sempre trágica, negra, profunda na caracterização dos seus personagens humanos e pecadores, sobretudo aqueles como Smerdiakov e Ivan, para quem, incrédulo costuma afirmar que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Tomados pelo pecado da queda, eles reconhecem que Ivan puxou ao pai, daí seu encontro com o diabo, o qual chega a dizer algumas coisas certas, sendo que nessa prefiguração de Freud, o “Deus inconsciente” de Ivan Karamozov, é demoníaco.
Outra parte interessante do livro Os irmãos Karamazov a merecer nossa transcrição, abaixo, se encontra na página 347 e SS., da mesma citada edição, em seu livro 6, capitulo 3, letra F, quando nos fragmentos do Starret compilados por Aliocha, repousa a resposta à indagação: “Os senhores e os servos podem se tornar irmãos espirituais?”9
“– Meu Deus, alguns dizem, o pecado existe também entre o povo. E, até mesmo, de hora em hora, o fogo da corrupção salta aos olhos, vindo de cima. Também entre o povo, acontece o isolamento, surgem os acumuladores e sanguessugas: o comerciante já se encontra cada vez mais ávido de honras, aspira a exibir a sua instrução, sem ter instrução alguma, e para tanto desdenha vergonhosamente os velhos costumes.”
Dostoievski reconhece, sem preconceitos, a existência do mal e da possibilidade da corrupção em todas as classes sociais, inclusive no povo, na classe popular. Por último, urge ressaltar do livro sob comentário, alguma característica de Dmitri Karámazov, o qual é acusado de parricídio, que conserva, apesar das acusações judiciais e persecutórias, um “senso de honra”, cuja dupla de irmãos Ivan e o valete á não possuíam mais, destarte, o advogado de defesa lembra o personagem intelectual Karmazinov, de Os demônios, ao atribuir esse caráter em Mitia, e ao afirmar que o pai Pavlovitch é um mal pai, tratando-se de um pai desleixado, bebarrão e sensual. Dmitri, aliás, em pese a acusação judicial de haver matado o próprio pai – ainda que abaixo de “erro legal” -condenado a 20 anos de trabalhos forçados-, confessa que, graças às orações de sua mãe, não teria matado o próprio pai, ainda que tivesse prometido que o faria, por diversas vezes.
Os irmãos Karamazov livro complexo e largo, de umas tais larguezas que seria veleidade pretender esgotá-lo em tão curto espaço de rápidos comentários, significados apenas com a intenção de ressaltar-lhe a pré-figuração freudiana de algumas definições cientificas da psicanálise. Além, claro, de alguma referência à natureza jurídica dos comportamentos humanos, inseridos numa sociedade do século XIX, consoante Dostoievski reflete em seu texto seminal. Numa reflexão elementar sobre o cinema e a psicanálise freudiana, nos indagamos se o velho escritor russo não se teria antecipado em definir certos traumas e comportamentos humanos mais profundos, se não teria investigado os subterrâneos da psicologia do homem, de tal modo que as pesquisas de Sigmund, algumas décadas após as iria nomear e, cientificamente, relacionar. Só podemos fazê-lo através da leitura da obra dostoievskiana.
Dostoievski reconhece, sem preconceitos, a existência do mal e da possibilidade da corrupção em todas as classes sociais, inclusive no povo, na classe popular.
Eis uma observação fulcral do pensamento e da expressão dostoievskiana: a fraqueza e o pecado humanos, típicos das criaturas. Por último, urge ressaltar do livro sob comentário, alguma característica de Dmitri Karámazov, o qual é acusado de parricídio, que conserva, apesar das acusações judiciais e persecutórias, um “senso de honra”, cuja dupla de irmãos Ivan e o valete á não possuíam mais, destarte, o advogado de defesa lembra o personagem intelectual Karmazinov, de Os demõnios, ao atribuir esse caráter em Mitia, e ao afirmar que o pai Pavlovitch é um mal pai, tratando-se de um pai desleixado, bebarrão e sensual. Dmitri, aliás, em que pese a acusação judicial de haver matado o próprio pai – ainda que abaixo de “erro legal” -condenado a 20 anos de trabalhos forçados-, confessa que, graças às orações de sua mãe, não teria matado o próprio pai, ainda que tivesse prometido que o faria, por diversas vezes.
O Direito e a norma jurídica estão presentes na ficção de Fiodor Dostoiévski, tanto quanto nos principais compendios de Direito Penal ocidental, sobretudo se consideramos que a literatura se manifesta através de incursões em outros territórios investigativos da alma e do comportamento libertário e pecador do ser humano, possuidor do livre arbítrio. O Direito através da literatura pode ser visto e refletido, na essência de sua construção e arquitetura estética.
Assim é a literatura de Dostoiévski: próxima ao Direito, quanto à metáfora poética.
4. Conclusão.
Os irmãos Karamazov é, induvidosamente, um livro complexo e largo, interessante sob o ponto de vista religioso, a professar um catolicismo ortodoxo que o autor russo advogou, de umas tais larguezas que seria veleidade pretender esgotá-lo em tão curto espaço que tal ensaio se reservou, tendo levantado significados apenas com a intenção de ressaltar-lhe a pré-figuração freudiana de algumas definições cientificas da psicanálise, embora não possamos jamais esquecer o substrato jurídico que a narrativa expressa em suas quase mil páginas de profundas reflexões e descrições psico-sociais.
O direito e a psicanálise estão presentes na ficção dostoievskiana, da cabo a rabo.
Em conclusão, diriamos que o julgamento ou o júri descrito - com tomadas de depoimento de testemunhas de acusação e defesa do acusado personagem central, Dimitri, de haver assassinado o próprio pai-, ultrapassa aspectos psicanalíticos, socio-históricos e econômico-hereditários e/ou familiares, na medida em que pontos fulcrais da realidade arguída pelo autor, em seu texto literário, encaminha o leitor para se recordar ou se aperceber das profundezas psiquicas e jurídicas que a narrativa ficcional aprofunda.
Não há, portanto, como ignorar as agudezas jurídicas inseridas nas entrelinhas do texto.
Notas FInais
1O autor é presidente da ACC-Academia Cearense de Cinema e membro efetivo de diversas Academias de Letras de Fortalez(CE), autor de vários livros de Direito, Literatura e Cinema.
2DOSTEOIEVSKI, Fiodor M.: “Os irmãos Karamázov”, Martin Claret Editora, Porto Alegre, 2012, págs. 255 e SS., até pag. 263.
3FRANK, Joseph: Dostoievski- um escritor em seu tempo- A biografia, Cia. Das letras, São Paulo, tradução de Pedro Maia Soares, 2010, pag. 997.
4FONTENELE, Laéria: “A Interpretação”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002, pag. 10
5Convém ler ou reler, com atenção as páginas 161/165, da edição mencionada, da Martin Claret.
6FREUD, Sigmund: “O Inconsciente”, 1915, artigo integrande de suas obras completas, cujo capitulo VI destaca alguns pontos que se referem, assim como o título do artigo, a comunicação entre os dois sistemas(Cs e Ics- consciência e inconsciência)). Aliás, nesse capítulo o pai da psicanálise nos traz uma nova etapa que poderá interferir ou não na passagem da representação do Ics(inconsciente) para a Cs(consciência), passando pelo Pcs(pre-consciência).
7Observe-se que ambos os irmãos – Ivan Fiodorovitch e Aliocha- conversam, se encontram abaixo de um “poste”, representando uma luz, e o ex-seminarista Aliocha afirma que quem mandou dizer a Ivan que não foi ele o assassino do pai deles foi Deus. Eis o espírito religioso de Dostoievski atuando na narrativa...
8DOSTOIEVSKI, F.M. :Op. Cit. Pag. 865. O advogado o descreve com tintas verdadeiras: “Parece-me que ele não amava ninguém, além de si mesmo, e tinha uma autoestima impressionante. Imaginava que a civilização não fosse nada além de belas roupas, ternos decentes, camisas limpas e botas brilhantes. Imaginava ser o filho natural de Fiódor Pavlovitch ( e, realmente, disto existem provas); a sua situação em relação aos filhos legítimos de seu patrão, causava-lhe horror: tudo era para os outros filhos, nada para ele mesmo; para eles, todos os direitos, toda a herança, mas ele mesmo, ele mesmo não passava de um cozinheiro do próprio pai.” Id. Ibiem.
9Op. cIt, pag. 347, último parágrafo.
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