Capítulo / Chapter V | Convidados / Guests

Cinema at school and beyond school

Cinema na escola e para além da escola

José da Silva Ribeiro

ID+ /IPCA, AO NORTE

Abstract

Cinema has often represented school, it has often entered school to understand it, but also with its form and content. More recently, the democratization of technological means has led to creative practices in schools. In addition to school, from school age, cinema became interested in the outside of school in associations, film clubs and with senior people beyond work and in the creative occupation of free time. We propose to map cinema practices at school and beyond school and explore cinema practices for all from the perspective of an interdisciplinary and multimedia project in which it proposes to develop the creative process and the appropriation of narratives mediated by cinema and digital narratives together, of populations and communities involving all age states in associations, educational institutions of all levels and universities for the elderly, exploring mainly autobiographical narratives as a personal expression of the self and the contexts of their experiences and the pedagogical and therapeutic exploration of visual and sound creativity and audiovisual.

Keywords: Cinema and education; Cinema and School; Narratives of the self; Visual, sound and audiovisual creativity

Introdução

Foi nos anos de 1980 que me interessei pelo cinema e pela fotografia na educação. Em primeiro lugar foram as fotografias que se associavam ao processo de alfabetização pelo método Paulo Freire (palavras indutoras), prática então desenvolvida no Plano de Alfabetização e Educação de Base de Adultos1 da DGEP - Direção Geral de educação Permanente. Hoje esta prática está mais solidamente documentada e fundamentada pela pesquisa de campo, pela prática educativa e pela fundamentação teórica e expandida para a educação em geral, sobretudo com populações carenciadas e com acesso precário à informação escrita na sua comunidade ou em sua vida familiar (Alvarado e All, 2010, Carlos e Alcântara, 2017). Esta prática deu, mais tarde, origem ao interesse pelas foto-narrativas e pela foto linguagem2, como dispositivo educativo inicialmente dirigido para adolescentes e, posteriormente, para a vida associativa e para a vida profissional em empresas, (Baptiste e all, 1991). Desenvolvi estas práticas educativas, em finais dos anos de 1980, em Angola – Lunda Norte tanto na Capacitação (alfabetização e educação de base) como na formação profissional na Companhia de Diamantes de Angola. A pesquisa e as práticas educativas associadas à fotografia abriram caminho para a fotografia como método de pesquisa e como uso social (Collier, 1967, Bourdieu, 1965, Freund, 1974, Barthes, 1980) que integrei na dissertação de mestrado, ou um pouco mais tarde, para a Photo Voice (Wang e Burris,1997) e as Fotografias Faladas3 (Viana, 2000). Utilizei profusamente imagem fixa no ensino da História partindo quer da fotografia quer da pintura, da tapeçaria e de outras representações visuais presentes nos manuais ou em coleções de slides que fui fazendo em visitas a museus e a exposições. Era mais fácil apresentar aos alunos as imagens fixas que a imagem em movimento pelas limitações tecnológicas e pela falta de equipamentos nas escolas. Também o cinema me serviu para alguns projetos de educação de adultos e para o ensino da história e das ciências sociais. É, no entanto, no âmbito da pesquisa e ensino da antropologia, da antropologia visual e da cultura visual que tanto a fotografia como o cinema se tornaram ferramentas realmente relevantes.

Deste percurso foram surgindo duas vias principais de uso da fotografia e do cinema. Uma de exposição de conteúdos em ensino, hoje facilitado pelo uso de aplicativos informáticos, power point, e suas mais diversas formas criativas das quais saliento os Pecha Kucha4 – Formato de apresentação concebido em 2003 por Astrid Klein e Mark Dytham, da Tóquio Klein Dytham Architecture (KDa), em que se procura mostrar de forma concisa (20X20) uma matéria de forma a fim de incentivar o interesse do público e aumentar o número de apresentadores no decurso de uma sessão. Também o cinema servia esta forma de exposição. Os filmes serviam para motivar os alunos e apresentar outras versões das matérias / temáticas a estudar. Outra forma de utilização da imagem fixa e animada surgiu na antropologia e nas ciências sociais como meio de pesquisa na realização do trabalho de campo, na construção de narrativas visuais, sonoras, audiovisuais e multimediáticas. Destas práticas dei conta em Notas de um Percurso pelo Cinema e pela Escola (Ribeiro, 2021) e integrei estas práticas na tese de doutoramento e em projetos diversos.

Experiência de Campo

No Início deste ano de 2022 participei na iniciação ao Cinema na Escola no Agrupamento de Escolas de Coronado e Castro, no Concelho da Trofa no projeto C3-Curtas Coronado e Castro com Sílvia São Miguel que daria continuidade a esta de iniciação. Perguntávamos então porquê o cinema na Escola? As respostas foram dadas a partir de duas vias: como o cinema representa a escola e o cinema praticado na escola. Escolhemos para a primeira via dois filmes - Entre os Muros da Escola5 de Laurent Cantet (2008) e La Cour de Babel de Julie Bertuccelli (2013). A segunda via abordava o cinema praticado na escola: o visionamento de filmes e as práticas de realização de pequenas produções cinematográficas…

Figura 1 – Cartaz de L’Arrivée d’un train

Os filmes apresentados remetiam para os dois percursos queo cinema trilhara desde seu nascimento: Filmes Lumière (La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895) e L’Arrivée d’un train6 en gare de la Ciotat (1895)), o documentário, o “cinema do real” no qual se enquadrava La Cour de Babel. É também no contexto da realização deste filme que os alunos vão produzir e levar a um festival a produção realizada durante a presença da realizadora, Julie Bertuccelli, na sala de aula durante 1 ano. O filme Entre les Murs - Entre os Muros da Escola é um filme de ficção baseado no romance homónimo de François Bégaudeau que é também professor e ator principal (professor François Marin) do filme. Este remetia na conversa com os alunos para o outro percurso que o cinema trilhara a partir de Georges Méliès, Voyage dans la Lune (1902) e Le voyage à travers l’impossible (1904). Se o primeiro filme apresentado nos remetia para o real, o segundo não nos remetia para o fantástico e o imaginado, mas para algo que podíamos chamar de re imaginado. O escritor do romance, François Bégaudeau, era professor, escrevera o livro baseado na sua experiência de professor e nos problemas que surgiam na escola, mas também vai representar o papel de professor na adaptação da obra literária ao cinema - François Marin no filme. Sabíamos a complexidade que estávamos a introduzir na conversa com os alunos, mas entendemos necessário e de possível assimilação estas três vias que agora se nos deparavam: o real, o imaginado e o real imaginado.

Figura 2 – Entre les Murs

Situação mais complexa seria a de trazermos para a conversa a referência de Andrey Tarkovsky acerca da observação no cinema, mas também em outras artes, na literatura e na ciência (o cinema foi e é também, desde o pré-cinema, instrumentação de pesquisa e de divulgação da ciência). Era, porém, mais difícil o que Tarkovsky, Eisenstein, Flaherty tinham de comum associando ao cinema e à montagem cinematográfica a poesia japonesa.

Os poetas japoneses sabiam como expressar suas visões da realidade numa observação de três linhas. Não se limitavam a simplesmente observá-la, mas, com uma calma sublime, procuravam o seu significado eterno. Quanto mais precisa a observação, tanto mais ela tende a ser única e, portanto, mais próxima de ser uma verdadeira imagem. Tarkovsky, 1998 (Esculpir o Tempo)

Um velho lago silencioso
Salta uma rã na água
Um chape quebra o silêncio.

Abriu-se assim um percurso de reflexão aplicável a múltiplos aspetos da vida na escola e à abordagem disciplinar e interdisciplinar que o cinema trazia para a escola, para a vida dos alunos e para práticas que podiam vir a realizar-se – prática de visionamento dos filmes e debate dos temas abordados – uma prática mais clássica do Cinema na Escola ou da literacia fílmica; a abordagem do cinema como arte, tecnologia, ciência; criatividade artística e processo social e cultural.

Os elementos básicos da linguagem cinematográfica foram trabalhados com os alunos: noção de plano, enquadramento, duração; plano de rodagem, plano de montagem; movimentos de câmara – panorâmica, travelling, plano sequência; grandeza dos planos (contextualizar, descrever, sublinhar), ângulos de filmagem, figuras da linguagem cinematográfica…

Como passar estas reflexões, estas conversas com os alunos, para práticas na escola?

Em primeiro lugar pareceu-nos importante que os alunos não vissem esta tarefa como impossível ou difícil de realizar, que a entendessem divertida, mobilizadora de múltiplos conhecimentos, integradora, ao alcance dos meios que tem ao seu dispor, endereçadora7 (filme produzindo uma relação com a sociedade e com o público). Pareceu-nos necessário e urgente passar a situações experienciais quer através do visionamento de filmes realizados por crianças ou jovens do seu estado etário quer para uma breve experiência de registo de imagem e edição.

Procedemos para isso a uma visita à plataforma Lugar do Real8 para o visionamento de filmes realizados por crianças e jovens em contexto escolar – práticas desenvolvidas nas escolas ou com as escolas em Viana do Castelo com o apoio da AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual e ao projeto de Salto a Melgaço do Marajó9, projeto de cooperação entre o MDOC – Festival de Cinema Documentário de Melgaço, o Festival do Filme Etnográfico do Pará e grupos de pesquisa em Portugal e no Brasil: Grupo de Estudos em Cinema e Narrativas Digitais da AO NORTE / ID+ e VISAGEM – Grupo de Pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem da Universidade Federal do Pará em que estive envolvido desde 2017.

Outra forma de romper o estranhamento do Cinema na Escola foi de convidar os alunos a fazerem registos com telemóveis de modo a contar uma pequena história (a pequena história não passou além de um registo de acontecimentos e de pequenas encenações) e de passar ao processo de edição. Os meios a utilizar seriam os disponíveis aos alunos – seus telemóveis e computadores portáteis onde previamente se instalaram um editor de vídeo – Kdenlive10 e um editor de áudio digital - Audacity11. Foram também distribuídos anteriormente tutoriais destes dois softwares para que os alunos tivessem algum conhecimento prévio que permitissem a realização da tarefa de edição áudio e vídeo.

As práticas posteriores a estas conversas com os alunos foram desenvolvidas com o apoio da Professora Sílvia São Miguel autora e responsável pelo projeto. Para tal elaboram-se documentos / tabela de modo a permitir escrever a sinopse, o guião / roteiro / argumento do filme, documentos de permissão de utilização de imagem. O acompanhamento e apoio realizou a partir da Casa de Aprender (biblioteca da Escola).

Cinema, Educação e Sociedade

O cinema como fato cultural afeta todos os cidadãos e, portanto, é necessária uma pedagogia para poder assimilá-lo, apreciá-lo, incorporá-lo em todos os seus níveis. Não há dúvida de que o cinema reúne uma série de características que favorecem o desenvolvimento do pensamento do indivíduo nos níveis cognitivo, social, emocional e crítico. Isso é algo que acontece quando somos espectadores, mais ainda mais quando nos tornamos criadores e participamos no processo de criação/produção. O potencial como conteúdo e como metodologia a nível pedagógico é enorme, e não podemos ignorar que o cinema é a base da linguagem audiovisual em que a maioria dos estímulos que recebemos são transmitidos quotidianamente nos media que nos envolvem nas mais diversas situações. Se não somos capazes como cidadãos de compreender a linguagem que nos rodeia seremos uma população dócil, alienada, suscetível a qualquer processo de manipulação. Entendemos, pois, ser necessário desenvolver na escola a literacia mediática, a educação para os media, a educação para o cinema como elemento nuclear da linguagem audiovisual.

A UNESCO é uma das entidades que, há anos, enfatiza a necessidade de criar legislação e dar diretrizes que permitam a implementação da alfabetização visual e audiovisual. Portugal tem desenvolvido programas de literacia visual, audiovisual e digital. No entanto, as populações escolares abrangidas por estes programas são, pouco significativas ou atingidas com ações que envolvem muitos alunos, mas sem o necessário aprofundamento e sem o desenvolvimento de práticas significativas.

A literacia fílmica ou educação cinematográfica (educação pelo cinema e sobre o cinema) foi, pois, objeto de múltiplas abordagens e de práticas diversas de trabalho ao longo do percurso pelas ciências Sociais, ciências da linguagem e pelo cinema. No entanto, tanto a escola como a universidade não privilegiavam estes meios na educação. Foi, pois, sem surpresa, ainda que, envolvidos em múltiplas práticas de cinema na escola / educação / formação em Portugal e no Brasil, recebi os resultados da pesquisa realizada pela Unión de cineastas - Espanha em 2022 na publicação Papeles de Cineastas Nº2. Educación Pública y Cine: Pensar en la essencial.

A análise também mostrou a perceção que os profissionais consultados em cada país tinham sobre o percentual de participação dos alunos nesse tipo de alfabetização, dada a falta de outros tipos de estatísticas válidas para medi-lo razoavelmente. Os resultados indicaram que nos países nórdicos, o percentual foi relativamente alto, com 81% para a Dinamarca e 75% para a Suécia. A Irlanda também detinha uma posição privilegiada com 80%. Na parte central do ranking estavam Malta (60%), Bélgica (50%) ou República Checa (40%). Outros países como a Inglaterra (25%) ficaram muito abaixo. Nações como França, Alemanha, Hungria, Irlanda do Norte, Escócia, Luxemburgo ou Eslovénia ficaram em torno de 10%. Mas houve países que ficaram ainda abaixo, oscilando em torno de 5%. Eram Holanda, Suíça, Áustria, Lituânia… e Espanha. Trata-se de quantidade, não de qualidade, lembrou o relatório. Em alguns dos países no topo da lista, é possível que se trate de alguma atividade superficial, mas que atinge grande parte do corpo discente e noutros casos trata-se de programas relativamente limitados, mas de grande profundidade (BARNÉS, 2022).

Desconhecem-se os dados sobre Portugal. No entanto, desde 2013 existe o PNC – Plano Nacional de Cinema implementado pelos ministérios da Cultura e da Educação, para promover a literacia para o cinema e a formação de públicos junto dos mais novos e através das escolas. Atualmente o site do PNC define-se como: “Iniciativa conjunta das áreas governativas da Cultura e da Educação, o Plano Nacional de Cinema é operacionalizado por uma equipa de trabalho que integra elementos da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (CP-MC), do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e da Direção-Geral da Educação (DGE)12 ”. Apresenta como objetivos:

Atualmente o PNC é regulado pelo Despacho n.º 65/2022 de 5 de janeiro para o período de 2021-2030 e integrado no Plano Nacional das Artes. Concede-se também que o PNC 2021-2030 visa “promover o cinema português e o setor do audiovisual como áreas estratégicas da cultura e da economia nacional, envolvendo todas as entidades e agentes, nacionais e internacionais, com metas e objetivos calendarizados. O cinema é um instrumento central para o desenvolvimento de Portugal enquanto país externamente competitivo e internamente coeso. Como forma de expressão artística, o cinema expande horizontes, dá a conhecer novos mundos, contextos e realidades, e permite explorar temas como cidadania, democracia e diversidade. Falar sobre filmes com os pares permite às crianças e jovens desenvolver a sua capacidade de expressão e argumentação, a sua criatividade e motivação, e a sua confiança. Fazer pequenos filmes dá voz a crianças e jovens com dificuldades de expressão noutros domínios, e permite o avanço do setor do cinema e do audiovisual enquanto áreas estratégicas da cultura e da economia nacional (Despacho n.º 65/2022).

Não encontramos indicadores da população escolar envolvida. Apenas uma referência que participam no PNC “410 Agrupamentos de Escolas e Escolas não Agrupadas, de todos os distritos do continente, Regiões Autónomas e Escolas Portuguesas no Estrangeiro dos países da CPLP”.

Embora a educação cinematográfica remonte em muitos países, quase ao início do século XX, por vezes aparece associada à abordagem de conteúdos através do cinema ou a uma espécie de metodologia “inovadora” ligada às Tecnologias de Informação e comunicação. Em Portugal associada a Educação Artística uma vez que integrada no Plano Nacional das Artes?

Pergunta-se, pois, como introduzir o cinema na educação pública? A pergunta deu e dá origem a muitos e acalorados debates. Refere-se frequentemente que o cinema nunca se alheou da sua dimensão pedagógica e que cinema e educação sempre se aliaram. Será verdade esta frequente afirmação? Mas o que procuram cineastas, docentes, cidadãos? A esta interrogação a União de Cineastas (Espanha) na recente publicação acima referida refere: “Legitimar as práticas existentes, criar redes, sistematizar métodos, dar consistência às práticas e projetos de educação cinematográfica de moda a que estes não sejam apenas atividades voluntárias ou realizadas ao caso, mas se convertam num direito e oportunidade para todos” (Barnés, 2022).

Principais debates

Os principais debates sobre o cinema na escola situam-se em quatro principais eixos. O primeiro questiona se a educação cinematográfica deve ou não fazer parte do currículo escolar como disciplina ou se é mais adequado que o cinema seja abordado de forma transversal às diferentes disciplinas sem, no entanto, perder de vista o objetivo final de integração da educação audiovisual, em geral, em todos os níveis de ensino, desde a educação infantil.

O segundo grande eixo de debate gira em torno do desenho de materiais curriculares e políticas de avaliação da competência dos alunos no campo cinematográfico. Essa linha de propostas também indaga sobre os canais ideais para incluir esse conhecimento num plano abrangente de educação audiovisual que alcance todas as administrações educacionais e obtenha resultados efetivos e generalizáveis para além de programas ou atividades específicas. Pretende-se que o contato com o audiovisual não seja uma atividade estranha e desvalorizada, ilustrativa, mas fazendo parte do processo educativo e da consequente avaliação dos resultados. O que entender aqui por avaliação dos resultados? Qual o efeito do cinema nos alunos que participaram nas atividades?

A terceira controvérsia decorre da quem deverá assumir a responsabilidades do processo e das atividades: os próprios professores ou os profissionais do setor audiovisual? Nessa linha, exige-se a formação de professores como principal meio de formação do cidadão por meio da cinematografia desde a infância. Como operacionalizar na escola a relação entre os doentes, os profissionais dos media e outras instituições ligadas ao cine – Cineclubes e outros.

Um quarto eixo de debates tem a ver com a necessidade de uma política de integração das administrações educativas, instituições, agentes sociais e, sobretudo, famílias, no quadro comum da educação audiovisual. Se o principal ambiente de consumo mediático continua sendo o contexto familiar e as práticas que se desenvolvem nesse contexto diferem muito daquelas que são promovidas a partir da escola, como pensar uma educação cinematográfica que sirva de ponte entre os dois contextos de aprendizagem? A educação audiovisual talvez seja tarefa de todos e não apenas um objetivo da educação formal, pelo que esta responsabilidade não corresponde exclusivamente ao sistema escolar, mas deve também alargar as famílias e outros agentes sociais como entidades reguladoras, indústria e sociedade civil. O objetivo final, é claro, o empoderamento dos cidadãos, mas não apenas através do desenvolvimento de habilidades mediáticas, mas também através da formação crítica e do cultivo e do desenvolvimento pessoal através do cinema. Daí a necessidade de educação para o cinema para todos os estados etários objeto principal do nosso projeto de pesquisa/ação.

Estratégias para a educação cinematográfica

A educação cinematográfica não é apenas mais uma tarefa da escola e dos professores. Ela exige uma articulação entre os diferentes agentes, aqueles que optaram por construir pontes entre organizações educacionais e culturais, políticos, agentes da indústria e outras organizações do setor social e cultural.

Parte do sucesso dessas estratégias deve-se ao fato de a educação cinematográfica ser concebida como parte de um tecido social mais amplo que coloca a cultura cinematográfica no centro e promovendo o acesso a um espectro muito amplo de públicos. Nesse sentido, as responsabilidades dessa educação cinematográfica são compartilhadas entre o público, a instituição de ensino, os agentes culturais e os setores da indústria.

Este tipo de modelo considera que a educação informal cumpre funções diferentes da educação formal, para a qual é dotada de ferramentas específicas e também possui mecanismos de avaliação para o pessoal que ensina as atividades, com os quais profissionais que não necessariamente realizam a sua atuação no contexto da educação regulamentada pode credenciar sua formação e ser legitimada no campo pedagógico. Desta forma, os docentes que promovem a literacia cinematográfica, desde professores especializados a trabalhadores em contextos informais, têm certificações que atestam o seu nível de experiência.

Este tipo de modelo considera que a educação informal cumpre funções diferentes da educação formal, para a qual é dotada de ferramentas específicas e também possui mecanismos de avaliação para o pessoal que promove e orienta as atividades. Os profissionais, que não realizam sua atuação no contexto da educação, poderiam ver a sua formação regulamentada, credenciada e legitimada no campo pedagógico. Desta forma, os docentes que promovem a literacia cinematográfica, desde professores especializados a trabalhadores em contextos informais, teriam certificações que atestam o seu nível de experiência.

Educar para o cinema / Educar com o cinema

Poderemos distinguir na abordagem do cinema na escola dois percursos, igualmente importante e que necessariamente se cruzam. A educação para o cinema centra-se no cinema, não apenas como linguagem, mas em todo o processo de criação, circulação e consumo do cinema. Trata-se de um amplo campo que poderíamos denominar teoria do cinema e também teoria dos cineastas.

Educação com o cinema é utilização do meio como ferramenta auxiliar para a transmissão de outros conteúdos curriculares, como história, geografia, música ou línguas ou para o desenvolvimento de processos cognitivos, habilidades sociais e potencialidades como imaginação, memória, sensibilidade, comunicação, pensamento crítico, desenvolvimento psicomotor ou a capacidade de resolver conflitos coletivamente

No trabalho que realizamos no Agrupamento de Escolas Coronado e Castro tentamos ligar as duas dimensões: nos filmes apresentados questionamo-nos em primeiro lugar sobre como o cinema vê a escola, como entra na sala de aula e aí os conflitos e as problemáticas aí existentes e os processos de ensino, mas subjacente a isto introduzimos a história do cinema nas linhas que se definem desde o seu nascimento e como se foram cruzando ao longo da história do cinema até à atualidade. Abordamos ainda os elementos estéticos da linguagem cinematográfica e a relação com as outras artes. Problemáticas funcionais, sociais e mesmo autobiográficas identificadas pelos alunos emergiram nas produções por eles realizadas. Estas constituem um excelente meio de estudos para conhecermos a escola, a educação, a sociedade e o imaginário dos alunos a partir do seu ponto de vista, contributo importante para passarmos do endereçamento do cinema para o endereçamento na educação (Ellsworth, 2001)..

Conclusões

A educação cinematográfica, a literacia fílmica, a educação para o cinema e pelo cinema não é apenas uma tarefa da escola, mas também das famílias e de múltiplos agentes públicos: museus, cinematecas, autarquias, associações culturais, cineclubes bem como atividades e mesmo planos supranacionais e realizadas nas próprias escolas ou em espaços públicos polivalentes.

As atividades realizam-se ou podem ser desenvolvidas durante o horário escolar no âmbito de disciplinas especialmente favoráveis à educação audiovisual, ainda que opcionais, ou outras disciplinas para as quais o cinema sirva de veículo de aprendizagem.

Podem ser desenvolvidos ou complementados com outras atividades fora do horário escolar, quer nas escolas sob a forma de workshops, cineclubes, festivais, mostras etc., quer através da deslocação aos próprios espaços de formação ou de exibição dos filmes – talvez o cinema continue a ser para ver na Sala de Cinema. O contato e a mediação de profissionais do setor (criadores, mas também agentes de programação, distribuidores e expositores) é de particular importância.

No século em que nos encontramos, o sistema educativo, em geral, enfrenta um contexto de mudança em que deve enfrentar pelo menos três grandes desafios que também afetam diretamente a educação no e com o cinema: digitalização - ninguém desconhece que, por trás do paradigma da educação para os media, tem sido priorizada uma abordagem instrumental que substituiu o livro didático pelo tablet ao invés de pensar nos desequilíbrios produzidos pela exclusão digital; Inclusão - também não se pode ignorar que as abordagens epistemológicas e os conteúdos com os quais trabalhamos até agora devem ser repensados historiograficamente a partir da perspetiva racial e de género; a educação cinematográfica pública deve sempre ter em mente como resolver as desigualdades de acesso e criar espaços de oportunidade para todos os alunos.

Talvez, como afirma Bergala, a escola não seja o melhor lugar para ensinar cinema, mas o que fica claro é que se você não entrar em contato com ele na referida instituição, haverá quem nunca tenha essa possibilidade. Nesse sentido, o trabalho das iniciativas públicas e das que trabalham no âmbito público já é valioso, aproveitemos a situação para continuar tecendo redes que nos permitam chegar a todos os públicos com os projetos de cinema e educação sem perder de vista o que afirma Tarkovsky:

“Por meio do cinema, é necessário situar os problemas mais complexos do mundo moderno no nível dos grandes problemas que, ao longo dos séculos, foram objetos da literatura, da música e da pintura. É preciso buscar, buscar sempre de novo, o caminho, o veio ao longo do qual deve mover-se a arte do cinema” (Tarkovsky, 1998)..

Notas finais

1PNAEBA - http://www.apcep.pt › docs › PNAEBA_ONLINE. O PNAEBA foi considerado o “o mais completo e fundamentado instrumento de política pública para a Educação de Adultos (EA) em Portugal” (Alberto Melo). Consultado em maio de 2022.

2O que é a foto linguagem? http://photolangage.fr/photolangage-une-methode-pour-communiquer-en-groupe-par-la-photo/ e https://communagir.org/contenus-et-outils/communagir-pour-emporter/les-outils-d-animation/le-photolangage/

3Carlos Viana, AO NORTE – LUGAR DO REAL - http:// lugardoreal.com/lugar-do-real?tag=ao-norte-fotografia-falada. Acesso em maio de 2022.

4Uma apresentação Pecha Kucha consiste num conjunto de vinte slides com pouco ou mesmo nenhum texto, que avançam automaticamente ao fim de vinte segundos (6 minutos e 40 segundos), resultando numa apresentação com a duração total de seis minutos e quarenta segundos (Anderson & Williams, 2012).

5O filme foi premiado com a Palma de Ouro do Festival de Canes em 2008. Legendado está disponível na plataforma Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=ccSb0d0O7Ok. Acesso em 17 de maio de 2022. Profusamente documentada sua utilização nas escolas em vários países.

6Uma apresentação Pecha Kucha consiste num conjunto de vinte slides com pouco ou mesmo nenhum texto, que avançam automaticamente ao fim de vinte segundos (6 minutos e 40 segundos), resultando numa apresentação com a duração total de seis minutos e quarenta segundos (Anderson & Williams, 2012).

7Os teóricos do cinema desenvolveram a noção de “modo de endereçamento” para lidar com essas grandes questões que atravessam os estudos de cinema, a crítica de arte, a linguística, a sociologia, a psicologia, a história e a educação. Questões como a relação entre o texto de um filme e a experiência de espetador. Dessa forma, o modo de endereçamento de um filme está relacionado com a necessidade de endereçar alguma comunicação, texto ou ação para alguém. Ellsworth (2001) associa o endereçamento no filme ao endereçamento na educação, isto é, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme, como atrair o espectador a uma posição particular de conhecimento a partir do filme, como o filme adquire sentido, dá prazer e agrada dramática e esteticamente.

8Lugar do Real é uma plataforma criada e gerida pela AO NORTE em que se disponibilizam os filmes realizados com as escolas e um vasto acervo documental pesquisado e desenvolvido por esta Associação - http://lugardoreal.com/. Acesso em 17 de maio de 2022.

9Documentação disponível sobre o projeto Salto a Melgaço do Marajó – Entre o Minho e o Amazonas https://grupovisagem.org/projetos/melgaco-entre-o-minho-e-o-amazonas/. Acesso em 17 de maio de 2022.

10Kdenlive é um editor de vídeo open-source baseado no framework MLT e KDE.

11Audacity é um software livre de edição digital de áudio disponível principalmente nas plataformas: Windows, Linux e Mac.

12https://pnc.gov.pt/quem-somos. Acesso em 17 de maio de 2022.

Referências bibliográficas

Livros

Barthes, Roland. 1980. A Câmara Clara, Lisboa: Edições 70.

Bergala, Alain. 2022. A Hipótese Cinema. Pequeno tratado sobre a transmissão do cinema dentro e fora da escola, Lisboa: Imprensa Nacional.

Bourdieu, Pierre. 1965. Un art moyen, Essai sur les usages sociaux de la photographie, Ed. de Minuit, Paris.

Collier, John. 1967. Visual Anthropology: Photography as a Research Method. UNM Press.

Freund, Gisele. [1974] (2010). Fotografia e sociedade, Lisboa, Nova Veja.

Tarkovsky, Andrey. 1998. Esculpir o Tempo, Martins Fontes.

Livros com dois ou mais autores

Baptiste Alain, Belise, Caire, Pechenart, Vacheret, Claudine.1991. Photolangage: une méthode pour communiquer en groupe par la photo, Paris: Ed. d’Organisation.

Artigos em revistas

Barnés, Héctor G. (2022) ¿A Quién le importa? La alfabetización mediática en los Sistemas Educativos Internacionales?, Papeles de Cineastas. Educación Pública y Cine: Pensar en la essencial, Nº2, 2022.

Carlos, Erenildo João e Alcântara, Raquel Rocha Villar .2017. Freire e o uso pedagógico da imagem visual na alfabetização de jovens e adultos, Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 46-64, Maio./Ago. 2017.

Cruz, Lílian Rodrigues e Guareschi, Neuza Maria de Fátima. 2007. Modos de endereçamento e a recepção do texto cinematográfico, Psicologia Argumento, Curitiba, v. 25, n. 49, p. 197-206, abr./jun.

Moya, Tamara. 2022. Si la clase no va al cine… por una ecología de la educación cinematográfica en españa, Papeles de Cineastas. Educación Pública y Cine: Pensar en la essencial, Nº2.

Wang, C. and Burris, M.A. (1997) Photovoice: Concept, Methodology and Use for Participatory Needs Assessment. Health Education & Behaviour, 24, 369-387.

Artigos ou capítulos de livros

Ribeiro, José da Silva. 2021. Notas de um Percurso pelo Cinema e pela Escola em Furtado, Rita. e all. Cinema e Formação, conceções estéticas e pedagógicas, Campinas, SP: Alínea Editora, pp 95 -123.

Ellsworth, Elisabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: Silva, Tomaz Tadeu da. (org.). Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

Filmografia

Entre os Muros da Escola. 2008. De Laurent Cantet. Haut et Court; Canal+; Centre National de la Cinématographie; France 2 Cinéma; Memento Films Production. France.

La Cour de Babel. 2013. De Julie Bertuccelli. Les Films du Poisson, Arte France Cinéma, Sampek Productions. France.

La Sortie de l’usine Lumière à Lyon.1895. De Louis Lumière. Louis Lumière. France.

L’Arrivée d’un train en gare de la Ciotat. 1895. De Louis Lumière. Louis Lumière. France.

Le voyage à travers l’impossible.1904. Georges Méliès. Star Film. France.

Voyage dans la Lune. 1902. Georges Méliès. Star Film. France.