AVANCA | CINEMA

O caminho da contemplação: para Além da Estrada, de Charly Braun

José Duarte

ULisboa-CEAUL, Portugal

Abstract

Beyond the Road is the first feature film directed by Brazilian director Charly Braun in which he explores the importance of the journey by telling the story of two foreign travellers, Santiago and Juliette, who are looking for their past while discovering the present. Set in Uruguay, Beyond the Road is, in a certain way, a film that focuses its attention in the landscape that allows both travellers to undergo a physical as well as a spiritual journey. As they gradually travel through the country both characters learn more about the Uruguayan nation as well as about themselves. Using the long-established road movie format, this Uruguayan-Brazilian co-production reveals itself as an immersive portrait of a nation and of self-discovery. Thus, the purpose of this text is twofold: 1) to look at the way the director uses the road movie subgenre to portray a nation; 2) to understand how by traversing the landscape both Santiago and Juliette find a place within themselves to continue to another potential journey, one that is characterized by transformation and possibility.

Keywords: Journey, Transformation, Landscape, Nation, Road Movie, Beyond the Road

“Um rio nunca pode subir outra vez até a nascente” – Além da Estrada, 2010

O road movie

Na multifacetada história do género road movie é comum afirmar que este tem a sua origem nos Estados Unidos, como notam David Laderman (2002), Devin Orgeron (2007) ou, mais recentemente, Corrigan e Duarte (2018, 4) que reconhecem que é, de facto, neste país que têm sido produzidos grande parte dos filmes que identificamos como road movies. No entanto, a obra chama ainda a atenção para o facto de que o road movie não pode nem deve ser considerado um género exclusivo e isolado da nação norte-americana: “Today there is perhaps no film culture across the globe that has not embraced the road movie, many of those cultures having a longer history that has encouraged and promoted this genre.” (2018, 5). Tal realidade levar-nos-á a pensar na ideia do road movie como algo global 1, embora com especificidades regionais ou locais de acordo com o país onde este está a ser explorado.

Paralelamente, e ainda dentro deste contexto, é importante sublinhar que muitos outros investigadores defendem a ideia de que o road movie não é exclusivamente um género norte-americano, como é o caso de Samuel Paiva que, num artigo intitulado “Gêneses do gênero road movie”, coloca no mapa da história do road movie o Brasil, país que tem na sua cinematografia uma produção elevada de filmes de estrada, algo reafirmado por Sandra Brandellero em “The Contemporary Brazilian Road Movie in Latin America: Issues on Mobility, Displacement, and Autobiography” (2016, 237) ao referir-se à cada vez maior importância dos road movies brasileiros que, não estando inseridos num contexto de produção semelhante ao de Hollywood, se centram mais numa política autoral.

O argumento de Paiva e Brandellero é também usado em duas obras centrais que procuram explorar o road movie na América Latina2: The Latin American Road Movie, editado por Verónica Garibotto e Jorge Perez (2016) e The Latin American (Counter-) Road Movie and Ambivalent Modernity (2017), de Nadia Lie. No primeiro caso, é defendida a ideia de que o road movie, dada a sua relação directa com as questões de mobilidade e viagem, é transnacional, indo para lá da tradição que quase sempre é apontada aos Estados Unidos. No segundo caso, a autora vai ainda mais longe ao propor uma análise muito específica dos road movies produzidos na América Latina centrando-se, em particular, na grande ambivalência (e polivalência) do filme de estrada, que é também onde reside o seu poder. De acordo com Lie, é possível traçar um caminho do road movie feito na América Latina que recua até ao período do cinema mudo, algo que também Paiva (2011, 50) defende no seu ensaio.

Todavia, e apesar destes e de muitos outros estudos, o road movie continua a ser encarado como um género tipicamente norte-americano que seria mais tarde reapropriado e readaptado por outras nações que viam nele inúmeras possibilidades de olhar e reflectir sobre os seus países. Não obstante esta ser uma ideia comum a muitos dos estudiosos dos filmes de estrada, mais do que explorar uma história do road movie é necessário reconhecer as diferentes histórias do género e o modo como, estando interligadas, elas se distanciam ou se aproximam umas das outras.

Como tal, em primeiro lugar, será necessário olhar para a tentativa de definição de road movie, começando justamente pelo que é canónico. Não sendo propósito deste estudo aprofundar as possíveis definições deste género, valerá a pena debruçar-me um pouco sobre esta questão para depois me fixar no contexto latino-americano com intenção de facilitar a análise do filme Além da Estrada (2010), de Charly Braun.

Apesar de o género poder ser associado desde muito cedo a vários outros filmes de Hollywood, como apontam Cohen & Hark (1997, 2), Easy Rider, realizado por Dennis Hopper em 1969, é considerado por muitos o filme fundador do filme de estrada. Para Cohen e Hark o road movie é um género que permite explorar as tensões e crises da nação no momento em que está a ser produzido (idem), para além de reflectir sobre a questão da mobilidade, geralmente feita por via de meios de transporte automatizados, em particular o carro ou a mota – como acontece no caso de Hopper. Esta descrição demasiado genérica pode ser ainda acompanhada de uma outra elaborada por Corrigan3 & White:

A prescriptive definition of the road movie would doubtless focus on automobiles or motorcycles as the center of narratives about wandering or driven men who are or eventually become buddies. Structurally, the narrative develops forward, usually along a linear path, as an aimless odyssey toward an undefined place of freedom. Encounters are episodic and disconnected and traveling shots of open roads and landscapes are the stylistic heart of the genre. (2004, 318)

Tanto Cohen & Hark como Corrigan & White, como é possível observar, destacam o lado motorizado do road movie, a possibilidade de fuga ou descoberta, o avanço na narrativa e a importância da paisagem (as personagens redescobrem-se através do espaço, o fílmico e o geográfico) como elementos que caracterizam o género. Os autores também reconhecem que a complexidade do road movie complica uma definição mais estável, especialmente porque este se foi adaptando aos diferentes momentos e tensões de cada década nos Estados Unidos.

Neste país em particular, e como os autores também defendem, a tecnologia teve um papel preponderante na configuração da paisagem americana moderna4: o automóvel era o símbolo máximo da mobilidade social, e da possibilidade de construção do sonho americano, algo que continua até aos dias de hoje.

No entanto, se esta especificidade pode ser atribuída no caso norte-americano, o mesmo poderá não ser verdade nos outros casos. Aliás, no livro de Lie (2017), essa é uma questão central na forma como a autora aborda o road movie no espaço latino-americano em particular: este não está intimamente ligado ao grande avanço tecnológico porque esse momento de modernidade chegou mais tarde aos outros países.

No estudo desta autora, o que se começa por destacar é que o road movie, mais do que ser um género norte-americano, é um género transnacional desenvolvendo, por isso, características próprias mediante cada contexto ou geografia. Embora o livro de Lie se centre num sub-género específico do road movie – o (“counter-road movie”) – a definição que a autora oferece serve o presente ensaio: “[a] road movie [is] any story that centers on mobility and takes place in an era in which automobile transportation exists”. (2017, 10).

Neste sentido, e olhando para o contexto da América Latina tendo em conta o texto de Lie, podemos identificar várias singularidades do road movie latino-americano em relação ao road movie norte-americano. Em primeiro lugar, e como já foi apontado, a tecnologia não tem um papel tão importante na viagem. As viagens são por isso mais lentas e, como tal, dadas a maior contemplação: ver e olhar é de extrema importância no género, o que investe a paisagem de grande poder simbólico.

Ao mesmo tempo, e com estreita relação a esta última questão, há uma preferência por investigar o real (Lie, 2017, 6), uma vez que os filmes exibem quer características que os aproximam da ficção, quer do documental. A câmara à mão é um dos métodos favoritos de grande parte dos realizadores, primeiro como forma de captar o real e, segundo, como modo de aproximar os espectadores à realidade da região que estão a filmar e no qual também é possível detectar uma estética própria – uma forma quase amadora de apresentar o espaço, os planos longos, o uso de actores não profissionais ou a preferência por filmar em locais reais dão conta da vontade de experimentar por parte dos realizadores, mas também de uma certa precariedade no que toca à indústria cinematográfica (Garibotto & Pérez, 2016, 2).

É aqui também que reside algo que é central na forma de olhar o road movie a partir de duas geografias diferentes, uma vez que no primeiro caso (o norte-americano) a indústria cinematográfica está estabelecida e as possibilidades de criação são muitas. No segundo caso as dificuldades em filmar são outras: algumas cinematografias são de pequenas nações ou, mesmo no caso de grandes nações, o apoio à produção cinematográfica também não será o suficiente.

Há ainda três aspectos que merecem atenção quanto aos road movies latino-americanos, e que contribuem para a sua melhor compreensão mesmo perante algumas das adversidades apontadas aqui. Antes de mais, o road movie tem sido um género celebrado pela cinematografia latino-americana desde muito cedo, havendo inclusive situações de países que, de algum modo, conseguem rivalizar com a história do género nos Estados Unidos, como será o caso mais óbvio do Brasil, como já foi apontado, onde os filmes passados na estrada são um veículo essencial para compreender a transformação da paisagem humana e física do país.

Seguidamente, e não obstante as diferenças ou singularidades de cada geografia, os temas aproximam-se em cada uma delas5: o road movie é marcado por uma viagem que pode ou não transformar os protagonistas, permite um olhar específico sobre a identidade dos que viajam, mas também sobre a nação que estes habitam e oferece-se enquanto meditação sobre a fragmentação, o desenraizamento e sobre a mobilidade (positiva e negativa).

Finalmente, e não de menor importância, é comum assistir a cada vez mais colaborações internacionais entre países, exemplo da flexibilidade e complexidade do género.

Neste contexto, Além da Estrada (2016) de Charly Braun, é exemplar, uma vez que, não só corresponde a grande parte das características enunciadas anteriormente, mas também por ser uma co-produção Brasil-Uruguai.

Além da Estrada – um filme sobre a contemplação

Na edição número 45 da revista piauí, num texto-diário intitulado “Se não melhorar, talvez eu vá dirigir um táxi” (2010), o realizador brasileiro Charly Braun escreve sobre as dificuldades que teve em conseguir realizar a sua primeira longa-metragem, Além da Estrada. Antes desta, Braun já tinha dirigido duas curtas-metragens, Quero Ser Jack White (2004) e Do Mundo Não Se Leva Nada (2006) e, à data deste estudo, realizou ainda uma outra longa-metragem intitulada Vermelho Russo (2016), obras que foram premiadas em diversos festivais.

Apesar das dificuldades em conseguir concluir Além da Estrada – o tempo, a questão do financiamento e algumas burocracias relacionadas com a banda sonora trouxeram contratempos, por exemplo – o filme foi lançado em 2010 e exibido em diferentes festivais, arrecadando o prémio de melhor realizador no “Rio International Film Festival”, que torna evidente a qualidade do trabalho de Braun. Além da Estrada é uma co-produção Brasil-Uruguai que conta a história do argentino Santiago (Esteban Feune de Colombi) e de Juliette (Jill Mulleady), uma belga, que estão no Uruguai por razões diferentes, mas que se encontram e se aproximam. Essa aproximação será o ponto de partida para uma viagem pela paisagem uruguaia na qual ambos se descobrem e descobrem o mundo que os rodeia.

A sinopse que não é muito alargada, e talvez insuficiente, aponta desde logo três ideias centrais no filme: o tema da viagem e da estrada, o tema da identidade e, finalmente, a questão da paisagem. Estas três questões são exploradas dentro do contexto do filme de estrada. Além da Estrada é um road movie que responde e corresponde às características enunciadas anteriormente. Em primeiro lugar, envolve duas pessoas em mobilidade num momento em que o automóvel existe, sendo este até o veículo que permite aos dois protagonistas conhecerem-se.

É também um filme que procura explorar mais as questões interiores – talvez por isso o filme se afaste de Montevideu e apresente um outro lado do Uruguai – do que especificamente uma história sobre mobilidade. As personagens partem para o Uruguai por razões diferentes e com propósitos diferentes: Juliette para encontrar um amor do passado; Santiago para fugir a uma vida desenfreada nos Estados Unidos e para conhecer um terreno que os seus pais lhe deixaram. A viagem de ambos, após se encontrarem, pode ou não prometer mudança. Esta é uma questão essencial, uma vez que o final em aberto deixa os espectadores na dúvida.

Do ponto de vista estético, o realizador optou pela utilização de filmagens in loco, o que confere uma dimensão mais real à imagem e à situação, bem como por um estilo que o aproxima do documentário. Os planos longos e as imagens da paisagem contribuem para criar um ambiente em que a contemplação se impõe fazendo da viagem dos protagonistas um momento único de introspecção e de reflexão sobre eles próprios e aquilo que os rodeia.

O filme concentra assim a sua atenção nas (im)possibilidades da estrada e do seu percurso de transformação. Além da Estrada faz parte desses objectos cinematográficos que, como atenta Alessandra Brandão (2002, 75), apresenta personagens “que erram e se (des)encontram, em filmes que nos co-movem e explodem em imagens des/reterritorializadas”.

A paisagem uruguaia tem um papel preponderante na forma como a viagem é explorada pelo realizador. Desconhecida para ambos, esta é um elemento central na forma como a viagem dos protagonistas se desenrola, permitindo um novo início no qual as imagens são recontextualizadas e repensadas a partir da experiência dos protagonistas. Só longe do território que lhes é familiar poderão finalmente compreender o seu caminho que parece ser ainda mais completo quando os dois se juntam.

A dimensão ficcional do filme utiliza a paisagem para aproximar os protagonistas e para que estes possam redescobrir-se. O filme começa, desde logo, por mostrar uma imagem de movimento, aludindo à ideia de viagem: Santiago chega a Montevideu, cidade portuária e, por isso, de movimentos, deslocações, chegadas e partidas o que, de alguma forma, é simbólico. Ao mesmo tempo, a capital é mostrada, em breves momentos, por via do carro de Santiago, o veículo que também permite que Juliette e ele se conheçam.

Santiago dá boleia a Juliette num percurso que vai desde a capital até Rocha. Durante esse percurso, e como atentam Martins e Marzulo (2014, 9), se as cenas iniciais dão conta de alguns espaços emblemáticos, como é o caso do Palácio Salvo, na Plaza Independencia, rapidamente somos levados para outros caminhos, de “estradas duplicadas”, “em meio a dunas de areia”, sem “marcos nem limites precisos”. E isso ainda é mais notório quando os protagonistas se afastam do litoral à procura do grande amor de Juliette, entrando por espaços e paisagens infinitas que sublinham o lado introspectivo da viagem. Por um lado, o mar que é apontado logo no início do filme por Santigo e, por outro, a paisagem interior imediatamente a seguir, são dois espaços que demarcam o percurso dos protagonistas, mas também apontam quer para a ideia de contemplação, quer para a ideia de deriva.

Esta questão é ainda mais evidente através das várias localizações que ambos visitam e que revelam um certo lado degradado das estruturas, sublinhando a paisagem vazia, como notam ainda os autores:

Há um vazio imenso nessa paisagem: vazio nas estradas, vazio nas casas abandonadas, vazio nas estruturas que uma vez atenderam turistas, a grama está crescida, vidros quebrados, e inclusive o “castelo” onde vive Baltazar está coberto pelo pó, pela passagem de um tempo sem movimento. Há um certo ar de provisoriedade, apesar de não sê-lo. Mas esse vazio não é desprovido de escala. Há sempre uma edificação ou algum elemento construído que dá a dimensão de amplidão da paisagem, que parece não ter fim. (Martins e Marzulo, 2014, 10)

Fazer este caminho significa também, de algum modo, estabelecer uma relação com a paisagem que, por ser vazia, não significa que esteja esvaziada de sentido. A paisagem vazia oferece-se como espaço de silêncio e momentos dados à reflexão. Talvez a paisagem do interior, com a qual os protagonistas parecem não ter qualquer relação directa, seja aquela que mais contribua para a auto-descoberta dos personagens. No entanto, e a contrastar com esta paisagem de ruínas e contemplação, surgem momentos como quando Santigo e Juliette visitam o tio dele, o pintor Hugo (Hugo Arias), numa casa de campo abastada onde privam, por exemplo, com Naomi Campbell que aceitou fazer parte do filme de forma um pouco acidental6. Estes momentos dão conta também de um país de contrastes e desviam, de alguma forma, os protagonistas do já mencionado percurso de contemplação. É, aliás, após a cena na Quinta do tio que Juliette decide partir em busca do ex-amor.

Se o lado ficcional conta a história da viagem e da paisagem de uma forma, o lado documental fá-lo também em paralelo como modo de contar partes da história de uma nação, como nota Nikolaidis:

One thing which really makes the film stand out is the mini interviews and interactions with some of the locals. A peasant helps out with some petrol and refuses to take any money in return; an ageing gaucho spills his heart about trying to pass on techniques to younger generations; a man recounts his search for his roots in the countryside. (2011)

A viagem feita ao interior pelos olhos da câmara – a viagem do espaço cinematográfico – dá-nos conta de diferentes formas de olhar a nação através dos pequenos momentos que regista e que são compostos pelos homens e mulheres que habitam a paisagem.

Dentro da história da viagem de Santiago e Juliette, Charly Braun filma diferentes personagens (não actores na sua maioria) – homens do campo, homens com as suas raízes ligadas à nação – que, para além de serem representativos deste jogo ficção/documentário, aludem ao tempo passado, presente e futuro e à tensão existente entre o moderno e o tradicional.

O grande exemplo, como explicam Martins e Marzulo (2014, 11), será talvez o momento em que Santiago e Juliette visitam uma feira de cavalos em que um homem com alguma idade se queixa de que não consegue passar o seu conhecimento às gerações mais novas mas, enquanto o faz, bebe uma coca-cola, símbolo da cultura popular contemporânea. Da mesma forma que os lugares podem alterar as pessoas, também esses lugares podem ser alterados pela introdução de novos objectos que dão um outro sentido à paisagem. Estamos, assim, perante o Uruguai com as suas múltiplas facetas: pobre e rico, urbano e rural, tradicional e moderno, entre o interior e o litoral. Ao mesmo tempo, Santiago, que decide abandonar uma estrutura moderna como a cidade de Nova Iorque, também atribui um novo sentido ao Uruguai, um espaço que, não deixando de ser moderno, possui um outro tempo e um outro ritmo – menos apressado – que lhe permite repensar a vida.

Para além disso, e de acordo com a estrutura episódica do road movie, é necessário ter em conta que as paragens são importantes na narrativa por serem momentos dados à reflexão. Como tal, cada instante em que Santiago e Juliette deixam o carro para apreciar a paisagem, ou relembrar alguns espaços no caso dele, relacionam-se com o que os rodeia, o que lhes permite obter também uma renovada perspectiva sobre si mesmos.

A acrescentar surge o modo como o realizador utiliza a banda sonora para comentar a viagem dos dois protagonistas. Ela é um dado essencial na estrutura do road movie, pois intensifica o efeito dramático do filme e “procede como mapa, porventura auxiliar, das ligações entre personagem, realizador e espaço” (Rosário, 2010, 13). Assim, canções como “All I need” dos Radiohead ou “Glosoli” de Sigur Ros acompanham os protagonistas e são também elas reflexões sobre o momento da viagem, mas também compõem a paisagem ao contribuir para o lado poético das imagens recolhidas pela câmara.

Para além desta questão, existe ainda o facto de, sendo canções de bandas internacionais, estas contribuem para a dimensão transnacional do filme. Não só o filme é um road movie, como um road movie falado maioritariamente em inglês – a única língua em que Santiago e Juliette se conseguem entender –, com uma banda sonora que ultrapassa as fronteiras uruguaias. Se as canções de Radiohead e Sigur Ros aprimoram a relação entre personagens, paisagem e filme, “Colours”, por sua vez, a canção interpretada por Donovan em 1965, atenta na importância da beleza das pequenas coisas. Finalmente, as outras duas canções que fazem parte do filme estão directamente relacionadas com a geografia do filme: uma pelo artista cubano Bola de Nieve e a outra por Kevin Johansen, intitulada “Road Movie” (2007) e cujo o início remetem especificamente para a necessidade de nos encontrarmos:

Anduve por el Norte, anduve por el Sur
Como “autogeografia” y en un eterno tour
Ví que no es solamente cuestión de latitude...

A canção permite uma rima interna com o caminho dos protagonistas: viajar em busca de si mesmo não é uma questão de latitude, mas sim de encontro e de entendimento de uma “geografia interna”. E é justamente por isso que o filme mostra o caminho dos dois protagonistas, a forma como convergem e necessariamente divergem, mas também como, perante um caminho que não lhe és familiar, descobrem aquilo que de mais familiar existe. É também disso que o final se trata.

O que fica para além da estrada – uma conclusão

Se há algo que fica bem explícito em Além da Estrada, e que se pode ligar ao que tem vindo a ser defendido em relação ao road movie latino-americano, é que este um filme centrado nas pequenas revelações. Sabemos que, de algum modo, no fim da viagem Santiago e Juliette estão mudados, mas o espectador não consegue perceber a dimensão dessa mudança e não será esse o propósito do realizador.

As personagens, como vimos, partem num percurso que lhes permite alcançar, através da paisagem, um lugar dentro de si mesmos, daí que os dois últimos momentos do filme sejam relevantes para a sua compreensão. Em primeiro lugar, e como nota Eduardo Valente na crítica à criação de Braun (2010), surge a dimensão pessoal do filme por via dos créditos. É já nos créditos finais que somos confrontados com imagens pessoais, de arquivo do realizador, de um período da sua infância em que também ele esteve nos mesmos locais que a ficção nos apresentou.

Estas imagens imprimem nova força à geografia uruguaia, que aqui passa a ser um local não só geograficamente emocional dos protagonistas, mas também de quem criou a história em que estes se inserem, permitindo ao realizador:

[...] reencontrar um espaço ao mesmo tempo estrangeiro (literalmente) e profundamente familiar, e tentar perceber nele as tensões entre passado, presente e futuro (todas as três dimensões bastante importantes na narrativa) que ainda (co)movem quem ali circula (e aí podemos pensar no personagem principal servindo como alter-ego do diretor, mas estamos falando principalmente da câmera). (Valente 2010)

A leitura de Valente sublinha ainda um outro aspecto, que é o facto de que, com estas imagens finais, Braun confunde ainda mais a relação entre ficção e documentário que já discutimos anteriormente. Esta é talvez a melhor forma que o realizador encontrou para lidar com a sua viagem pessoal através da viagem dos protagonistas.

Simultaneamente, e já regressando à ficção, o facto do filme deixar a narrativa em aberto também é relevante. A cena final, onde a paisagem tem novamente um papel central, coloca os protagonistas no mesmo caminho de contemplação. Não se trata, como aponta também Valente na sua crítica, de uma construção um tanto ou quanto genérica sobre a paisagem, isto é, no sentido em que ela não adiciona nada de profundo ao caminho dos protagonistas, mas sim exactamente o contrário, pois parece estabelecer uma ligação quase directa com as tais imagens pessoais que este considera serem a grande força do filme.

Nos últimos momentos de Além da Estrada, o ecrã surge dividido em duas partes: de um lado Sebastian e Juliette alinhados em cima de uma ponte incompleta e, do outro, aquilo que aparenta ser o mar. Se, por um lado, a ponte parece não levar a lado algum, por outro, a cena determina que os protagonistas, conscientes do seu caminho sabem o que é necessário “construir” para seguir um outro caminho, uma nova história. Esta interpretação pode ainda ser reforçada pelo modo como, compreendendo agora qual o caminho que devem seguir, os protagonistas estão para lá do lugar físico, habitando agora um lugar emocional, que os aproxima tanto do céu, como da terra ou do mar e, por isso, não possui fronteiras, nem barreiras. Tudo é possível.

Finalmente, e contrariando uma parte da leitura de Valente, a paisagem não é só lugar habitado, mas compreendido, o que nos leva novamente às imagens dos créditos finais. A ponte em que Santiago e Juliette se encontram pode funcionar como metáfora para alguém que já iniciou a viagem de auto-descoberta e olha agora para fora de si mesmo, tal como o realizador faz com as imagens pessoais. Estas, não só nos dão conta de um retrato íntimo, mas também daquilo que significou o percurso de realização deste filme para Charly Braun que, regressando às suas memórias, mas também reflectindo sobre elas por via do filme, pode agora continuar em frente.

De certo modo, o que o filme transporta consigo é algo comum a muitos filmes de estrada, em particular no caso latino-americano, em que o fim da paisagem não significa o fim da viagem, mas sim um novo início, possível apenas por causa do que foi deixado para trás e que fica para além da estrada.

Notas Finais

1The Global Road Movie: Alternative Journeys Around the World, livro editado por José Duarte e Timothy Corrigan (2018), representa um conjunto de ensaios em que vários filmes de estrada de vários países são analisados, o que mostra a globalidade do género.

2 De relembrar a importância também do livro Journeys in Argentine and Brazilian Cinema: Road Films in a Global Era, de Nicole Pinazza (2014), também ele dedicado ao estudo do road movie, mas apenas no Brasil e Argentina e, como tal, não tão relevante para o estudo em causa, que procura oferecer um retrato geral dos filmes de estrada no espaço latino-americano.

3 É Timothy Corrigan que, em A Cinema Without Walls: Movies and Culture After Vietnam, publicado em 1991, abre o caminho para a discussão sobre o road movie, colocando-o, desde logo, como um fenómeno do pós-Segunda Guerra Mundial.

4 Não havendo espaço para poder iniciar esta discussão será importante sublinhar que Easy Rider é exemplar na questão da tecnologia ao actualizar o Western: não havendo lugar para o homem a cavalo nesta nova paisagem ele é substituído por homens em motas que se deslocam agora sobre os Estados Unidos com outro ritmo e a uma outra velocidade.

5 Lie explora, por exemplo, um dos tropos do road movie no contexto latino-americano: a viagem é feita, modo geral, por duas pessoas (geralmente homens). Esta característica do filme de estrada é conhecida como buddy road movie e pode incluir muitas facetas – casal, pai e filho, amigos, estranhos que se conhecem (no qual refere Além da Estrada) ao longo da viagem, entre outros: “This buddy structure punctuates many Latin American road movies. Besides the typical male buddies (Diarios de motocicleta) […] we find a wide variety of combinations: from father and son (Jaime Sebastián Jácome’ s La ruta de la luna, 2014) to mother and daughter (María Paz González’s Hija, 2011); from female friends (María Novarro’s Sin dejar huella, 2000) and lesbians (Diego Lerman’s Tan de repente, 2002) to children (Isthar Yasín’ s El camino, 2007) and family relatives (Gonzalo Tobal’s Villegas, 2012); from heterosexual couples (Manuel Rombero’s La rubia del camino, 1938) to people who occasionally meet (Charly Braun’s Por el camino, 2010) or are accompanied by animal buddies (the dog in Carlos Sorín’s Bombon: El perro , 2004; the horse in Cochochi).” (Lie, 2017, 12).

6 De destacar esta presença de Campbell que o realizador encontrou quando estava a fazer o filme e que acentua o lado real/documental do filme, mas também espontâneo.

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