Abstract
The aim of the paper is to discuss Vestígios, an live cinema composition that is played from a purpose-built software. Vestígios is an audiovisual work in which images are reactive to sounds. In this piece I explore the notions of audiovision and synesthesia to integrate the audible and visible information in a live cinema work. Vestígios explores the movement between signs and noises, information and degeneration.The artistic process consists of working from collections of images and sounds that are live performed. In Vestígios, various audiovisual information was organized into inventories, which I present in the piece as ghostly spectra that reappear adrift. The piece works on the notion of technical image and spectrum to develop its poetics. The creative methodology considers and archaeological perspective in order to explore the relationship between media information, simulacrum and memory. The purpose is to create an audiovisual environment that evokes the condition of imaginary in the post-historical period, as defined by the Philosopher Vilém Flusser. In XXI Century, faster computers provide the technological conditions to carry out audiovisual events in a way widely different from works composed using tape or electronic video. Computers allow artists to organize images and sounds in very flexible and variable archives. In this context, the artist can act as a collector, working with dynamic inventories of audiovisual information. Considering this possibility, Vestígios is a work that may be recomposed each performance.
Keywords: Live cinema, Audiovision, Technical image, Spectrum, Imaginary.
Introdução
Vestígios é uma obra audiovisual inteiramente produzida em meio computacional, cujo objetivo é a realização de performances ao vivo. Trata-se, portanto, de uma obra de live cinema. O trabalho não se propõe a criar narrativas audiovisuais. Ao contrário, a intenção é trabalhar com fluxos de informações audiovisuais a partir de agrupamentos e algoritmos de aleatoriedade. Além disto, a execução e processamento das imagens é realizado em conjunto com o gesto de execução musical. Assim, em Vestígios, as imagens são “tocadas” juntamente com a música de sonoridade eletroacústica, num processo que incorpora níveis específicos de improvisação e interação com os algoritmos que automatizam relações entre sons e imagens no computador.
Os aspectos estéticos do trabalho sofrem influência de manifestações artísticas que possuem como referência o hibridismo de linguagens, com foco na produção de uma percepção integrada, similar à noção descrita por Michel Chion (1990) como audiovisão. Assim, parto da ideia de que não deve haver hierarquias entre o audível e o visível na concepção da peça, uma vez que a recepção da obra acontece por meio de uma constante interação entre os componentes sonoros e visuais. Vertentes artísticas tais como a música visual, a videoarte, a mídia arte e o cinema expandido influenciaram diretamente a concepção dos resultados. Em específico, para efetivar o trabalho, investiguei conceitos e concepções inerentes à algumas obras dos artistas Wolf Vostel e Aldo Tambellini, em razão do jogo que estes trabalhos estabelecem com o imaginário social e os meios de comunicação. Além disto, criei um software específico, cuja finalidade foi tornar as imagens reativas aos sons executados. O processamento visual da peça, portanto, reage à execução musical. A peça também toma como referência a noção de sinestesia, uma vez que objetiva produzir um tipo de percepção que é estimulada diretamente e indiretamente pelas relações entre os elementos audíveis e visíveis. Neste sentido, a construção visual e sonora da peça possui componentes simbólicos que compreendem antíteses e oposições, elementos que utilizo para gerar tensão e expectativa.
O fato da peça ter sido concebida inteiramente para ser executada em um meio computacional permite o trabalho integrado com arquivos sonoros e visuais, reforçando a ideia de um trabalho multimídia desde do início. O contexto de criação proporciona aspectos criativos e procedimentais específicos que somente puderam ser alcançados com o desenvolvimento do software criado para a peça. Assim, há uma relação intrínseca entre a composição audiovisual e a criação do programa que possibilitou estabelecer as relações simbólicas e os modos de execução concernentes ao trabalho. Importante ressaltar, deste modo, que o software criado funciona como uma escritura que possibilita a fixação de aspectos estéticos do trabalho, os quais somente podem ser alcançados com a execução dos algoritmos. Externamente ao software, arquivos de imagens contendo fotografias e amostras de vídeo e áudio são armazenados em um conjunto de pastas que os organizam de acordo com agrupamentos poéticos. Estas amostras podem ser facilmente carregadas no software, possibilitando, deste modo, recombinar as informações. Essa característica faz do software um meio muito eficaz e flexível para a realização de adequações e atualizações, fornecendo ao trabalho o aspecto de work in process.
O trabalho é realizado a partir de coleções de arquivos audiovisuais, os quais são entendidos como vestígios simbólicos que podem ser re-codificados pelo receptor a partir das articulações e sobreposições realizadas, em certa medida, ao acaso pelo software criado.
Vestígios: aspectos tecnológicos
Para realização do trabalho, foi criado um software específico que permite, em um único ambiente computacional, diversas formas de síntese sonora e manipulação de amostras de som e imagem. A execução das amostras ocorre na peça a partir de relações estabelecidas pelos algoritmos que proporcionam a produção de movimentos reativos entre sons e imagens. O ambiente é formado por nove máquinas de síntese sonora baseadas na execução de amostras, que podem ser manipuladas de diferentes maneiras. Dois executores de vídeo acionam oito agrupamentos de imagens de natureza estática e em movimento. A execução da peça ocorre a partir de controladores digitais conectados ao computador.
A produção de uma obra audiovisual neste contexto computacional específico é muito diferente dos métodos adotados em suportes que geram resultados fixos, tais como fitas e softwares lineares de edição. Isso decorre do fato de que o software criado para a peça proporciona o trabalho com coleções de arquivos sonoros e visuais que podem ser armazenados e acionados dinamicamente, em um formato não linear, de acordo com as configurações realizadas na programação. Trata-se, portanto, de um jogo combinatório que ocorre a partir de bancos de imagens e sons armazenados no computador. Assim, a cada execução, o fluxo de informações audiovisuais ressurge diferentemente, porém mantendo constante os aspectos adotados na camada de processamento.
Em um processo linear de edição de imagens e sons, os arquivos são adicionados sequencialmente com objetivo de serem fixados em um produto final. No caso de Vestígios, a ordem e o resultado podem ser alterados dinamicamente por meio da simples recombinação, acréscimo ou decréscimo de amostras nos inventários. O software possibilita que as amostras possam ser re-agrupadas e armazenadas facilmente na memória do computador, o que permite ao executor a elaboração de novos resultados a cada apresentação. Portanto, trata-se uma obra de caráter aberto que pode ser constantemente reconstruída.
Por outro lado, o processamento digital realizado permite fornecer à obra uma unidade estética. A variação na coleção de arquivos de sons e imagens é compensada pela plasticidade resultante do processamento digital, o qual altera radicalmente os arquivos originais, dando-lhes um aspecto visual específico. Assim, a base de dados utilizada serve como ponto de partida para o resultado que decorre do fluxo de informações e processamento no software.
De modo geral, podemos dividir a peça em duas camadas. A primeira delas contém os dispositivos digitais que executam sons e imagens a partir dos agrupamentos de informações armazenados. Os parâmetros destes dispositivos programados no software são acionados e controlados por controladores físicos externos. Posteriormente, na segunda camada, são adicionados níveis de processamento digital que alteram esteticamente os arquivos executados. As imagens, por exemplo, são processadas através de dois fluxos de processamento digital, que podem ser permutados pelo gesto do artista. Esquema similar é utilizado para o acionamento das amostras sonoras, que podem atravessar diferentes fluxos de processamento no decorrer da performance. A peça é assim executada pelo artista em tempo real. Contudo, como há elementos pré-programados que produzem reações automatizadas, não são todos os parâmetros que são controlados diretamente pelo artista. Para alguns parâmetros, o software somente possibilita fazer escolhas indiretas, uma vez que dependem do mapeamento digital intermediário realizado pela programação.
Arqueologia de informações e coleção de arquivos
No contexto de um trabalho não narrativo realizado inteiramente em meio computacional, o artista pode atuar como um colecionador de arquivos. O método de criação de Vestígios incorpora esta ideia como conceito central. O colecionador de arquivos é um pesquisador de informações e situações às quais ele registra e armazena para fazer uso criativo em suas peças. Em Vestígios, a poética busca revelar um estado de informação oculto no espectro visual e sonoro capturado da realidade, com objetivo de produzir nova informação. A poética do trabalho foca no recorte e processamento digital para evidenciar nas imagens e nos sons aspectos que antes não estavam tão claramente tangíveis.
Trata-se de método arqueológico, na medida em que o procedimento busca “escavar” dimensões “ocultas” dessas informações. Utilizo a noção de arqueologia no sentido de investigação e escavação de informações que estavam pouco nítidas. Ao mesmo tempo, faço uma arqueologia que se propõe a explorar fenômenos sobre a construção do imaginário coletivo, especialmente no que concerne à relação dos indivíduos com as tecnologias audiovisuais.
Conforme descrito anteriormente, o software criado para a peça permite que arquivos sonoros e visuais possam ser agrupados por meio de combinações e eixos temáticos, sendo facilmente armazenados na memória do computador para serem acionados durante a execução da peça. Deste modo, a metodologia do trabalho consiste em realizar um inventário de arquivos extremamente amplo, cujas unidades são agrupadas e re-agrupadas de modo flexível para a execução ao vivo.
Com efeito, a realização de um inventário deste tipo deve ter como ponto de partida os elementos conceituais necessários para se delinear as proposições que estarão embutidas na obra. Em Vestígios, trabalhei com as noções de imaginário e memória a partir do conceito de pós-história, conforme foi estabelecido pelo Filósofo Vilém Flusser (2008) em seus estudos. Para Flusser, o surgimento da imagem técnica, ou técno-imagem, modificou totalmente a condição de produção do conhecimento e a presença do homem no mundo, lançando as sociedades modernas em uma nova direção. O universo das imagens técnicas leva o homem a produzir um imaginário não linear e absolutamente diferente daquele relacionado ao mundo histórico que se desdobrava da relação com a escrita. Além disto, as técno-imagens operam muito diferente das imagens projetadas pelas sociedades antigas, uma vez que não se trata de retorno “à bidimensionalidade”, mas de avanço rumo a nova situação, de “precipitação” na direção do “abismo” da “zero-dimensionalidade” dos aparelhos tecnológicos (Flusser 2008, 15).
Os aparelhos são máquinas que calculam um resultado e, portanto, a informação, embora seja projetada em um terminal, não se encontra registrada em uma superfície, mas no interior dos circuitos e na forma de um processo matemático-eletrônico. Para Flusser, o surgimento dos aparelhos e, por consequência, da pós-história, colapsa o imaginário linear produzido pela tecnologia intelectual escrita, uma vez que produz acúmulo de técno-imagens no ambiente social. Os aparelhos e redes de comunicação, segundo o autor, produzem descontinuidade no imaginário humano, já que a memória do indivíduo opera imersa em um ambiente de reprodutibilidade e disseminação de conteúdos audiovisuais.
Considerando tal nova configuração do imaginário humano em sua relação com os dispositivos audiovisuais, Flusser busca diferenciar a técno-imagem da imagem tradicional bidimensional. Para ele, ocorre movimento invertido:
A imagem tradicional é produzida por gesto que abstrai a circunstância, isto é, por gesto que vai do concreto rumo ao abstrato. A técno-imagem é produzida por gesto que reagrupa pontos para formarem superfícies, isto é, por gesto que vai do abstrato rumo ao concreto. E como gesto produtor confere significado à imagem, o modelo sugere que o significado das imagens tradicionais é o oposto do significado das técno-imagens (Flusser 2008, 19).
Mas o que significaria isso afinal? Tal oposição de sentidos ressaltada por Flusser refere-se ao fato de que as técno-imagens não surgem como efeito de uma circunstância. Ao contrário, elas emergem ao olhar por meio dos aparelhos, que as concretizam no mundo, sem que possamos ao certo compreender seu laço com a origem. Para Flusser (2008), as imagens técnicas são imagens “prováveis”, uma vez que não convém pensá-las em termos de ficção e realidade, mas enquanto aparição com probabilidade de ocorrer. Deste modo, as técno-imagens “escondem e ocultam o cálculo” realizado no interior dos aparelhos e a tarefa com as imagens técnicas “é pois precisamente a de des-ocultar os programas por detrás das imagens”. Isso porque “as imagens técnicas pretendem que elas, também, significam cenas. E que as significam ´melhor´ (mais fielmente) que imagens tradicionais” (Flusser 2008, 29).
A chave para compreender tal questão não pode ser desvinculada da ideia de uma performatividade dos aparelhos junto ao sistema sensorial humano. No contexto pós-histórico, as técno-imagens se reproduzem e performam informações em círculos de acontecimentos programáveis. Isso porque o fluxo não linear da rede interconecta os terminais dos aparelhos, que convertem a informação “pura”, matematizada e codificada, em signos sonoros e visuais. Além disto, as técno-imagens se fragmentam, se desestruturam em pontilhados que ao se reagruparem alteram seus significados. E isso não ocorre somente no campo especificamente do aparelho, da tecnologia de armazenamento e transmissão, mas na própria memória do indivíduo. Assim, é a própria memória que se fragmenta e se recompõe constantemente, tendo como sistema de mediação os aparelhos e redes de transferência. O indivíduo encontra-se numa posição de terminal e, portanto, de agente codificador e replicador. Circulando neste ambiente, neste ecossistema de trocas, as técno-imagens possuem potencial de capturar o imaginário do indivíduo, incorporando-se a sua visão de mundo. Mas elas não encontram-se fixadas e limitadas em algum suporte exclusivo, uma vez que a reprodutibilidade as tornam ubíquas.
É importante ressaltar neste momento que esse fluxo de fragmentação e recomposição interfere e altera o próprio sentido da imagem que, a rigor, enquanto informação digitalizada não tem sentido algum, a não ser no instante da recomposição, no momento em que os fragmentos digitais são processados e fixados uns aos outros enquanto informação no terminal. As máquinas digitais armazenam nada além de números que tendem à plena abstração, configurando-se como informação sensorial apenas quando computadas em um terminal e na presença do sistema sensorial dos indivíduos.
Contudo, há zonas de poder neste ecossistema informacional. A trama não possui o mesmo equilíbrio em cada ponto, uma vez que existem centros de produção e controle de informação, que operam com maior potencial de agenciamento. Assim, temos que as grandes corporações midiáticas são terminais que catalisam sentidos através de sua capacidade, mesmo que momentânea, de reunir fragmentos e codificá-los enquanto discursos que atravessam o imaginário social. A informação é trabalhada e codificada por meio do contexto e da agência que a produz. Quanto mais poder um centro midiático possui, mais agressiva será sua capacidade de engendrar sentidos e produzir imaginários dominantes.
Imersa nesse jogo de forças, a memória corporal dos indivíduos reúne fragmentos para tentar elaborar discursos e sentidos. Deste modo, as imagens técnicas, embora efêmeras, invadem o imaginário e atuam no processo mnemônico das sociedades. Não se pode, assim, falar de um imaginário individualizado, já que os dispositivos tecnológicos atuam justamente como máquinas de intercâmbio que posicionam os indivíduos num processo de inter-subjetivação. Na sociedade dos aparelhos, o indivíduo encontra-se sempre interligado ao conjunto das relações produzidas pela mediação das máquinas de comunicação. O imaginário encontra-se conectado o tempo todo, restando pouco espaço para o isolamento das ideias.
E de que modo tal condição se torna tão relevante no contexto do trabalho artístico audiovisual? Ora, se considerarmos que a potencialidade da arte reside justamente em sua capacidade de revelar as dimensões ocultas da realidade, temos que o papel do artista na sociedade pós-história é capturar tal questão para propor uma recodificação da informação, realizando assim um contra-discurso que desfavoreça o controle social. Ele evocará os fragmentos de memória tecnologicamente apreendidos pelas máquinas audiovisuais para produzir uma epifania, uma revelação que possibilite desprender o imaginário de sua programação habitual.
Capturando a complexidade do desafio pelo qual atravessa o mundo das técno-imagens, Flusser visualizou duas tendências possíveis para a sociedade pós-histórica:
Partindo das imagens técnicas atuais, podemos reconhecer nelas duas tendências básicas diferentes. Uma indica o rumo da sociedade totalitária, centralmente programada, dos receptores das imagens e dos funcionários das imagens; a outra indica o rumo para a sociedade telemática dialogante dos criadores das imagens e dos colecionadores das imagens (Flusser 2008, 14).
Espectrologia e corporificação
No universo das técno-imagens, a vida se torna envolta em “não coisas”. A experiência e a memória estão cada vez mais sendo produzidas por entes imateriais que transitam de um ponto a outro na ubiquidade da rede telemática, envolvendo as pessoas em imaginários passageiros, que se figuram e se desfiguram de acordo com o programa sugerido pelos centros de informação. É ilusão, portanto, acreditar que o imaginário resultante do tráfego de informações nas redes digitais é um fenômeno absolutamente descentralizado. Ao contrário disto, os algoritmos industriais estão objetivamente preparados para capturar as informações dos usuários, traçando perfis que automatizam execuções de proposições alienantes que são retornadas aos próprios usuários para induzi-los em suas ações cotidianas. Esta violência contra a produção coletiva do imaginar encontra-se imersa em fluxos audiovisuais que desencadeiam processos inconscientes, retroalimentados pelos algoritmos que estão à espreita, aguardando o input dado pelo usuário no sistema.
Envolto neste universo da técno-informação, ou seja, das informações desmaterializadas, o sujeito encontra-se dissolvido em um mundo espectral que penetra diretamente seus sentidos corpóreos. Temos no adjetivo espectral o principal eixo para compreender a magnitude do mundo digital: ele atualiza a experiência por meio de espectros computáveis, que se figuram e se desfiguram, passando do plano abstrato e universal do cálculo algorítmico para o mundo do imaginário coletivo:
O entorno está se tornando progressivamente mais impalpável, mais nebuloso, mais fantasmagórico, e aquele que nele quiser se orientar terá de partir desse caráter espectral que lhe é próprio (Flusser 2007, 55)
Somos uma cultura altamente voltada para a visão, e a imagem midiática é responsável por capturar o imaginário das pessoas, orientando-as em um plano de ações que se volta para o projeto capitalístico. Podemos assim dizer que a principal ferramenta do capitalismo industrial é capturar e dominar o imaginário para produzir comportamentos controláveis, naturalizando-os e disseminando-os. No ceio deste processo, o programa audiovisual emerge como plano corporificador de hábitos que se concretizam nos corpos por meio do ver e do ouvir cotidianos.
Os espectros audiovisuais são esses entes que navegam descorporificados de um espaço a outro, buscando nos espectadores novas corporificações. Assim, as imagens técnicas transitam e estão em busca de serem corporificadas de algum modo, uma vez que sem os corpos elas não possuem sentido. Necessitam de corpos para se concretizarem e se salvarem de sua existência abstraída e desprovida de semiose. Operam, portanto, como os vírus!
Assim, os espectros assumem a forma de memórias que transitam fantasmagoricamente de um corpo a outro. Aparecem e somem, corporificam e descorporificam. São Vestígios de gestos, hábitos, comportamentos e codificações culturais que transitam na interconexão dos corpos com as tecnologias, atuando como dispositivos que produzem processos de subjetivacão (Agamben 2005). Capturam assim o ser vivente em suas dimensões, corporificando-se e descorporificando-se no imaginário coletivo.
Voltemos agora à ideia do artista-colecionador. Ele coleciona fragmentos de informações audiovisuais que podem ser reagrupadas para construir sentidos que foram fragmentados e dispersados nos processos de transmissão realizados pelos aparelhos audiovisuais. Colecionando e rearranjando técno-informações, o artista poderá trabalhar com signos sonoros e visuais em uma dimensão diferente daquela emitida pelos centros de controle.
No caso de Vestígios, meu maior interesse foi “escavar” as informações em busca de signos que revelam os sentidos “ocultos” de certos momentos históricos e processos sociais. As imagens trabalhadas na peça estão focadas nas tecnologias e máquinas de comunicação, bem como nos gestos e posturas daqueles que as manipulam. Mas não é somente isso, há imagens que tratam dos efeitos desencadeados pela sociedade de consumo. Assim, realço a noção de uma trama heterogênea de processos humanos e maquínicos que envolve a produção do imaginário técno-informacional das sociedades disciplinares e das sociedades de controle, a primeira com sua propensão de “modelar” e a segunda com sua propensão de “modular” (Deleuze 1992, 221).
Pode ser um gesto, uma silhueta, um contorno, um objeto ou mesmo uma associação entre coisas, elementos esses que irei processar digitalmente na peça, buscando realçar as “sombras” que residem na informação. Pois são os espectros que resistem ao tempo da memória e não a imagem figurativa. Portanto, Vestígios incorpora a reflexão sobre os espectros, buscando compreender como eles podem ser incorporados ao plano da criação audiovisual. O trabalho evoca imagens passadas por meio da intensificação de sua dimensão espectral, revelando aspectos que estavam ocultados em suas aparições figurativas anteriores. Na “sombra espectral” dessas imagens escondem-se signos que revelam hábitos que fazem parte da memória e do comportamento social contemporâneo.
Tomei tal questão como foco criativo, utilizando processamento computacional para destacar o negativo das imagens inventariadas. Assim, as imagens foram colocadas em um meio caminho entre o signo e o ruído através de um processamento digital degenerativo. Essa perda de resolução torna a imagem opaca, turva e, ao mesmo tempo, estridente. Adicionalmente a isso, o movimento acelerado e em sobreposição com outras imagens visa criar a necessidade de buscar a informação, desvendá-la, já que ela não se encontra absolutamente disponível, mas entrelaçada com outros níveis de informação. Esse jogo visual permeado de informações e ruídos estimula a memória do espectador, indicando a ele o caráter transitório das imagens, assim como o potencial de capturá-lo em sua trama.
Ricardo Fabrinni (2016, 245), referindo-se ao conceito de simulacro na obra de Jean Baudrillard (1991), adverte sobre o caráter “vazio” e “obsceno” das imagens cujo o excesso de signos paradoxalmente as esvaziam de sentido. Os simulacros são imagens que mostram tudo, não tem nada a esconder e, por esse motivo, se apresentam como algo neutro e universal. Figurações de um mundo idealizado, que não possui falhas e descontinuidades. Essas imagens não contém nenhum tipo de dobra ou linha de fuga, estando isentas de mistério e enigma. Mesmo assim, os simulacros fascinam e capturam o espectador em sua trama, pois são eficientes em se multiplicar de modo viral.
Tomando como objetivo problematizar tal questão e traçar uma direção oposta a ela, Vestígios investe na ideia de realçar o segredo e o mistério das imagens por meio de processamento digital e movimento. Ao invés da objetividade e da figuração, busca-se trabalhar as imagens de modo a intensificar em sua estética níveis perceptivos que remetem a algo misterioso, que precisa ser desvendado pelo espectador. Ademais, os sons criados para a peça, tão somente realçam as dobras dessas imagens, na medida em que oferecem uma dica, uma chave simbólica que ajusta a visualidade das imagens, produzindo uma anamorfose por sinestesia. Assim, o som penetra ativamente a peça com suas tensões e chaves simbólicas. Adiante neste texto, explicarei os dois modos pelo qual busco produzir esse efeito anamórfico.
Voltemos neste momento para a noção Flusseriana de que as técno-imagens tendem a se concretizar no mundo, em um movimento inverso ao da imagem tradicional, cujo propósito é abstrair o acontecimento. Buscarei com isso, propor a ideia que estou perseguindo neste texto. Esta concretização das imagens não se limita aos terminais dos aparelhos, às telas. A concretização das imagens é um fenômeno corporal e de memória. Assim, conforme venho assinalando, proponho pensar a concretização de imagens como uma forma literal de corporificação, no sentido que imagens e sons atuam como moduladores corporais. Portanto, as imagens operam para construir imaginários e hábitos. Elas modulam os corpos, pois os aparelhos operam em conjunto com a memória e sua capacidade de retenção.
Buscando melhor compreender tais processos, em Vestígios realizei uma arqueologia das técno-imagens com objetivo de inseri-las em uma nova situação. Minha intenção foi encontrar por meio da técnica a qual chamo de espectrologia, a informação oculta, a dobra da imagem, sua dimensão extraordinária, sua sombra, seu negativo, evocando por meio do próprio processamento digital a revelação de sua parcela oculta. Os segredos estão contidos espectralmente nas imagens e a percepção deles pode ser intensificada por meio da desfiguração realizada no processamento digital.
Temos com isso que a figuração não importa, uma vez que é a sombra que sugere o mistério da imagem. Toda imagem técnica, portanto, possui uma sombra que pode ser realçada, especialmente quando capturada no limiar de sua aparição no terminal, ou seja, no instante em que a sua composição abstrata (zero-dimensional) busca emergir enquanto forma. As informações digitalmente alteradas revelam os trejeitos e os hábitos que sobrevivem na imagem. A sombra, a silhueta, evocam o ponto de inflexão pelo qual a imagem se desfigura e se afasta potencialmente de sua forma neutra. Assim, busco extrair das imagens um segredo, evocando seu negativo e colocando-as em um estado de deriva cuja aleatoriedade do movimento projetado pelos algoritmos produz um jogo de livre associações que é complementado pela memória do espectador.
O olho vê não somente a imagem na tela, mas as imagens da imagem na mente, todas as relações possíveis; e o que a mente assegura na memória não corresponde exatamente à objetividade da forma, mas ao seu espectro, sua capacidade de produzir encantamento. Assim, ao invés de concretizar a imagem como figuração, busco extrair dela exatamente sua pré-figuração. Trata-se de um instante fugaz em que a imagem revela ao espectador uma informação oculta, um segredo que se esconde por detrás dela mesma.
Figura 1 – imagem de Vestígios.
No momento em que o computador recompõe a informação, computando números e correntes de elétrons em imagens, a informação encontra-se no meio caminho entre o signo e o ruído, entre a resolução e a ausência de resolução, por assim dizer. Qualquer interferência na existência matemática da imagem poderá modificar sua figuração. Em razão disso, é possível alterar o código digital para produzir distorções e degenerações que realçam os contornos e as silhuetas das formas. Tomando como referência tal possibilidade, em Vestígios introduzo no processamento uma série de operações que produzem interferências na imagem original, colocando-a em um estado liminar que permuta entre sinal e ruído. O ruído, portanto, ocorre como uma camada de perturbação no sentido aparente da imagem, realçando seu segredo, sua faceta ocultada, que se desprende na operação. A imagem se torna assim turva, confusa, descontínua. O sinal, ou seja, o signo que simulava o estado neutro da técno-imagem, fica portanto prejudicado pela falta de resolução e pelo nível acentuado de interferência no código.
No contexto dessas silhuetas e sombras, desses negativos e polarizações, a técno-imagem evoca no espectador um efeito reverso pelo qual ele verifica sua própria condição espectral. O que proponho com o trabalho é um movimento invertido: ao invés da imagem capturar o imaginário do espectador com sua forma figurativa e neutra, é o próprio espectador que se vê sem resolução na imagem, o que revela de modo retroativo ao indivíduo a própria condição espectral e desmaterializada de sua existência na sociedade digital.
Figura 2 - imagem de Vestígios.
Estilhaços fonográficos enquanto anamorfose visual
A sociedade digital estilhaça a realidade. Fragmenta e pulveriza o imaginário coletivo. Os estilhaços de informação são lançados para todos os lados, mas as grandes agências possuem força suficiente para recombiná-los provisoriamente em determinadas configurações, construindo simulacros que se ajustam aos propósitos dominantes. As imagens planas e vazias por saturação dissimulam, deste modo, a violência que reside por detrás das narrativas, em razão de sua capacidade de forjar o real.
Em Vestígios, a realidade estilhaçada é denunciada pela interposição do som contra a imagem. Utilizo um conjunto de amostras de áudio extraídas do momento de ruptura de materiais diversos, como por exemplo o vidro, os quais interceptam a imagem de modo a criar uma anamorfose por sinestesia. A anamorfose ocorre com a interceptação do campo visual pelos signos sonoros que evocam a ruptura e descontinuidade da matéria, produzindo assim efeito de antítese sob a informação visual. Além dos sons do estilhaçar dos materiais, uma série de outros sons eletrônicos interceptam o sentido das imagens. São ruídos eletrônicos e digitais extraídos de processos informacionais, tais como o som de mensagens transmitidas por telégrafo e ruídos de conexão realizados por modem de tecnologia discada. Estes sons foram manipulados na peça, por vezes acelerados e desacelerados, cortados, descontinuados, com objetivo de imergir o espectador em uma percepção temporal extra-cotidiana.
O material sonoro da peça não se limita a esta região de antíteses, mas se desdobra em termos harmônicos e texturais, evocando sensações que refletem o estado de ansiedade, tensão e contradição que se desdobram das relações entre indivíduos e meios de comunicação. A composição musical possui assim o objetivo de produzir descontinuidade de sentido, refratando o material videográfico.
Além do efeito simbolicamente anamórfico descritos acima, o algoritmo do software também articula interferências visuais diretamente nas imagens, interceptando-as por meio de anamorfoses computadas pelos algoritmos. Desdobra-se desta interposição um efeito de movimento visual que se articula aos sons, que modificam a aparência e a forma das técno-imagens, conferindo-lhes variações no espectro de cores, na resolução, desfocando-as, obscurecendo-as e clareando-as, em uma deriva de combinações que não podem ser diretamente controladas na performance, embora tudo ocorra no âmbito da programação desenvolvida. O efeito de tal descontrole, produzido por diversos algoritmo de aleatoriedade que se articulam entre si, é uma deriva de relações simbólicas que permite ao espectador encontrar a melhor e mais adequada percepção para a peça em um dado momento. O que se pretende, sobretudo, com este jogo dinâmico entre sons e imagens, é desencadear um processo de combinatórias que viabilize o entrecruzamento das informações, permitindo que a inserção do acaso no fluxo computacional revele sentidos inesperados. Assim, o acaso potencialmente reveste a peça de certo mistério, deixando as informações um tanto quanto “opacas”, o que demanda do receptor um esforço perceptivo adicional.
Os espectros sonoros habitam nossos corpos como os espectros visuais. Eles se corporificam e penetram o imaginário coletivo, pois são componentes da mesma trama social desencadeada pelas técno-imagens. A percepção e a memória do som são produtoras de imaginários como as imagens. Assim, não convém associar a noção de imaginação exclusivamente às imagens. O imaginário é sobretudo multissensorial e envolve a presença integral do corpo. As operações artísticas no campo da arte híbrida e multimídia buscam justamente evocar esta dimensão multissensorial do corpo e da memória por meio de uma indução realizada tecnologicamente. Deste modo, o contexto pós-histórico das entidades espectrais calculadas por aparelhos não deve ser visto somente em função das imagens. Neste sentido, podemos assinalar que a condição espectral do mundo pós-histórico é multimídia, uma vez que ela atinge o campo audiovisual de maneira dinâmica e integral.
Deriva audiovisual em um mundo pós-histórico
Ao se referir às formas de resistência nas sociedades de controle, Deleuze proporá:
Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle (Deleuze 1992, 217).
A frase propõe uma forma de evitar o controle por meio da interrupção dos processos. Proporei algo um pouco diferente, porém mantendo alguma relação com a noção de interrupção.
Na sociedade de controle os aparelhos encontram-se à espreita, aguardando o momento certo no qual irão disparar um simulacro audiovisual. Fazem isso através de sua automação algorítmica, mas sob o controle das instâncias que os programam, que os utilizam para promover o discurso audiovisual hegemônico. Assim, a inserção de elementos de aleatoriedade, acaso e jogo nos algoritmos que processam as técno-audiovisualidades possibilita indeterminar o entrecruzamento das informações, o que as tornam suscetíveis à revelação de sentidos antes encobertos pela linearidade e planificação inerentes à sua condição de simulacro. De certo modo, ocorre interrupção, mas não diretamente. As técno-informações são lançadas em um campo de indeterminação que possibilita a modulação de seus sentidos ao acaso no interior de um jogo perceptivo que opera por probabilidade e não por pré-determinação.
Enquanto artista-colecionador, ao invés de querer controlar o significado das audiovisualidades por meio de uma linearização do discurso, busco, ao contrário, lançá-las em uma deriva de sentidos que não pode ser complementada a não ser pelo receptor da obra. O trabalho não visa produzir sentidos diretamente, mas desconforto, estranhamento, desconfiança, descontinuidade e interrupção dos modos perceptivos cotidianos. Trabalhando deste modo a experiência audiovisual, busco criar as condições para que as percepções descentralizadas dos receptores da obra alcancem algum ponto de revelação, mesmo que passageiro, da condição espectral de suas próprias vidas.
Esta deriva é por natureza inconstante, mas opera fundamentalmente como um jogo de percepções. O acaso não determina, deste modo, o sentido, mas fornece uma condição potencial ao receptor, induzindo-o ao processo de livre associação. Não se trata, portanto, de construir uma narrativa, nem tampouco de linearizar a informação, encadeá-la. Embora o conjunto dos materiais já delimite relações potenciais, Vestígios não propõe sentidos pré-determinados, mas alusões. Trata-se de uma fabulação audiovisual. Trabalha-se, deste modo, com a produção de índices que se combinam uns aos outros, cujo efeito coloca o receptor em uma deriva de informações em que a memória e a imaginação se misturam. A percepção deste universo imaterial que, porém, atravessa constantemente e em fluxo o ser biológico, corporificando o ser cultural, revela ao receptor a posição que ele ocupa enquanto sujeito e agente na sociedade das técno-informações.
Bibliografia
Agamben, Giorgio. 2005. “O que é um dispositivo?” in Outra Travessia: revista de Pós-graduação em Literatura Nº 5: 9-16.
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