Abstract
With the purpose of reflecting on contemporary audiovisual production, this article will analyze the narrative strategies of a transmedia object from the point of view of editing theory. As a hypothesis, the article starts from the possibility that combinations of images and sounds from different media can build new meanings for the viewer. The transmedia story in question will be the tv series The Walking Dead (2010), by Frank Darabont and Robert Kirkman. The zombie tv series is a complex narrative universe that is distributed on television, in episodes on the web, in comics, in video games and in movies. The research aims to identify how editing can maintain continuity, a fundamental concept in cinematographic language, in the contents of The Walking Dead dispersed on multiplatforms and what new meanings arise when images and sounds of the transmedia content of The Walking Dead are juxtaposed. As a reference for analysis, we use the concepts of the research line “Creation processes in Communication and Culture” led by Cecilia Almeida Salles. The concepts of montage and the role of the editor are highlighted as fundamental elements for the elaboration of the fictional universe and the aesthetics of the zombie series and thus seen as part of the complex creation network of the transmedia system of The Walking Dead. In this way, this research proposes an update of editing theories with the inclusion of transmedia storytelling as a driver of new relations between image and sound. In this way, the article proposes an update of the editing theories with the inclusion of Transmedia storytelling as a driver for new audiovisual relations
Keywords: Editing, Montage, Transmedia, Creation process, TV Series.
Introdução
Este artigo se insere no campo dos estudos sobre processos criativos, assim como são desenvolvidos no Grupo de Pesquisa em Processos de Criação (PUC-SP), [https://processosdecriacao.com.br/] em uma grande diversidade de áreas como artes visuais, artes cênicas, literatura, design, fotografia, jornalismo e cinema. Reúne pesquisadores interessados na reflexão teórica sobre criação, assim como a compreensão das singularidades de determinados artistas ou manifestações artísticas. Acolhe também artistas/pesquisadores que encontram espaço acadêmico para reflexão sobre suas práticas. É exatamente essa a especificidade da pesquisa que será aqui apresentada: um montador refletindo sobre tal procedimento.
O grupo já desenvolveu outras pesquisas no campo do audiovisual e, mais especificamente, das séries, nosso objeto de pesquisa, como Once Upon a Time (2011) (BOUSSO, 2016) e Breaking Bad (2008) (GUERRA JUNIOR, 2018), sob diferentes pontos de vista.
Gostaríamos de destacar ainda, nesse contexto mais amplo, a relevância do tema da edição ( aqui tomaremos edição e montagem como sinônimos), na medida que pode ser visto como um procedimento geral de processos de criação. Palavras, imagens e sons são editados ao longo dos processos de busca de diferentes agentes criativos. Pensando a contemporaneidade, André Parente (2004, p. 95) afirma que “essa se caracteriza cada vez mais pela edição ou a forma como as partes do sistema são montadas e articuladas. Se vivemos a época do homem dividido, do homem sem qualidades, ou sem essência, é porque operamos cada vez mais como um editor ou montador e nossa memória é cada vez mais como uma ilha de edição não-linear”.
Neste contexto da experimentação contemporânea o artigo tem o propósito de apresentar algumas reflexões sobre a teoria da montagem no atual momento do audiovisual. A proliferação dos serviços de streaming intensificou o fenômeno que o teórico Henry Jenkins denomina como Transmidia storytelling (JENKINS, 2009). Histórias do mesmo universo ficcional dispersas em diferentes mídias mas com uma coordenação para que o espectador tenha a impressão que todas as manifestações são parte de um mesmo todo. Jenkins define como Transmedia Storytelling uma forma de narrar que se utiliza de diferentes mídias para aumentar os pontos de contato entre espectadores e o universo da obra (JENKINS, 2009).
O universo de história em quadrinhos da editora Marvel, por exemplo, foi transportado para séries e filmes interligados entre si e podem ser vistos tanto no cinema como no serviço de streaming da Disney. Guerra nas Estrelas (1977), Lost (2004), Matrix (1999), Detetive do Prédio Azul (2012) no Brasil, são outros casos de esforços de se criar narrativas que podem ser vistas em diferentes mídias.
O espectador, portanto, tem acesso ao universo de cada uma dessas histórias em diversas telas. E em muitos casos, simultaneamente. É possível assistir uma série de Guerra nas Estrelas no canal de stream Disney Plus e jogar um dos vários games de Star Wars no celular. Para conseguir ainda mais detalhes sobre o mundo criado por George Lucas, o espectador pode compor a manifestação que chega para ele pelo cinema com as manifestações que chegam para ele na televisão, na internet, e no videogame.
Entretanto, para que as manifestações do universo sejam percebidas como parte de um mesmo todo, quais estratégias de criação são utilizadas para criar essa unidade?
Dentre as atuais histórias propagadas em diferentes mídias, The Walking Dead (KIRKMAN, DARABONT, 2010) é um dos exemplos mais instigantes. A série sobre um vírus que contamina a população mundial e torna quem é infectado em zumbis surgiu como história em quadrinhos em 2003 e, em 2010, estreou como série de televisão. A partir da série de televisão, surgiram diversos produtos do mesmo universo, como a websérie Torn Apart (NICOTERO, 2011), o spin-off (produto derivado de uma série original) Fear the Walking Dead (ERICKSON, KIRKMAN, 2015), jogos de videogame e jogos para celulares e tablets, como The Walking Dead: No Man’s Land (NEXT GAME, 2015).
TWD (para melhor fluxo do texto, iremos usar em certos momentos a abreviação TWD para designar a série The Walking Dead) é uma história de terror em que Rick, um xerife do interior dos Estados Unidos, é baleado num assalto e fica em coma. Quando ele desperta, percebe que um vírus letal se espalhou por todo o mundo, tornando a maior parte da população em zumbis que se alimentam de carne humana. Rick sai em busca de sua família sem saber se sua esposa e seu filho também se tornaram walkers - designação para os zumbis dentro da série.
Em todas as manifestações, seja a história em quadrinhos, a série lançada em 2010 o Spin-off, a websérie, o jogo de videogame, o jogo para celular, o filme que ainda será lançado, partem todas da mesma premissa, um apocalipse zumbi devastou o mundo e os personagens devem lidar com os desafios de uma civilização em ruínas. Além disso, muitos desses personagens cruzam as telas e participam das narrativas nas diferentes mídias, como é o caso do personagem Daryl, que não está presente na história em quadrinhos original, mas surgiu na série para televisão e também participa dos jogos de videogame e da websérie.
Para que os espectadores das diferentes plataformas entendam que as histórias fazem parte do mesmo universo ficcional, e que o Daryl da série de tv também é o mesmo personagem na narrativa do jogo No Man’s Land, uma série de elementos imagéticos e sonoros é espalhada pelos diferentes capítulos de TWD, os quais mostram o movimento do universo ficcional ao mesmo tempo que mantêm os recursos identitários da série. As estratégias para conseguir unir as narrativas das diferentes telas, seguem os princípios da montagem.
A montagem é um princípio narrativo que organiza o material filmado para que o espectador entenda a combinação de imagens e sons como parte de uma mesma unidade (AUMONT, 2007, p.62). Uma ferramenta poderosa que pode transcender as interrupções no espaço-tempo que cada corte de um filme proporciona, mantendo a continuidade na relação entre dois planos.
A teoria da montagem já se ocupou, no último século, de entender as relações entre imagens e sons no cinema e na televisão. Lev Kulechov foi pioneiro ao demonstrar como a montagem era essencial para o sucesso dos filmes norte-americanos do começo do século XX. Philipe Dubois (2004) apontou que o vídeo, nas décadas de 70 e 80, mesclou imagens e sons de diferentes suportes, cinema e televisão, criando uma montagem em camadas, com espessura. Ken Dancyger (2007), em seu trabalho “Técnicas de edição para cinema e vídeo”, classifica a edição com influência dos videoclipes musicais como edição “estilo MTV”, e percebe esse tipo de montagem nos filmes norte-americanos da década de 90. Os teóricos do audiovisual identificaram que, ao longo da história, a linguagem cinematográfica foi influenciada pela linguagem televisiva e vice-versa.
Entretanto, com o fenômeno das narrativas transmídia, é necessária a investigação das novas combinações de imagens e sons e de como os princípios da montagem foram utilizados nas narrativas multiplataformas. Quais novas relações podem ser observadas quando combinamos as imagens da televisão com as imagens da história em quadrinhos, como no caso da série The Walking Dead? Ou quando combinamos as imagens de duas séries diferentes sobre o mesmo universo, como no caso de The Walking Dead e Fear The Walking Dead (2015)?
Jason Mittel aponta em seu livro Complex TV (2015) que as narrativas complexas da década de 2000 têm como característica a expansão do universo ficcional para diferentes plataformas. O papel da montagem será discutido nesse novo modelo em que o espectador tem uma função muito mais ativa, e o montador tem menos controle sobre qual informação a audiência está recebendo. Mittel classifica as séries de televisão contemporâneas como narrativas complexas. A complexidade não aparece apenas na teia das narrativas, mas também no processo de criação. Nesse ponto, podemos trazer as pesquisas sobre os processos de criação de Cecilia Salles para olhar The Walking Dead. Uma narrativa transmídia como TWD, espalhada em rede por diversos elementos interconectados, também é acompanhada por um processo de criação complexo e dinâmico. The Walking Dead é produzido por diversos autores: roteiristas, diretores, produtores, montadores e até mesmo fãs, que fazem a lapidação de um objeto vivo, inacabado e longe de encontrar seu fim. Por essas características de TWD, a presente investigação se aproxima dos conceitos do grupo de pesquisa em processos de criação liderados pela professora Cecilia Salles. Salles tem como norte pensar o processo de criação como um objeto com múltiplas conexões e interações entre os diversos membros das várias equipes. Neste artigo traremos esse conceito para analisar o papel da montagem na construção de TWD
Além do conceito de Salles, o artigo conta com uma entrevista realizada com o montador Todd Desrosier, que trabalhou tanto na série original The Walking Dead como no spin off Fear the Walking Dead. A entrevista questiona o editor sobre o processo de criação dos episódios das duas séries e o entrevistado traz pistas importantes sobre as estratégias narrativas que a equipe se valeu para trazer unidade ao universo da trama zumbi.
Para que outros narradores possam manejar com destreza as ferramentas transmídia da série, o presente artigo irá debater como o uso da montagem foi elemento fundamental para o processo de criação de The Walking Dead e para a elaboração de novos nexos entre as diversas manifestações do universo da distopia zumbi nas diferentes plataformas.
Desenvolvimento
1 . Montagem como linguagem
Logo nos primeiros anos do século XX, o cinema se tornou um fenômeno popular. Tanto os filmes clássicos norte-americanos como os filmes de vanguarda produzidos na União Soviética, na Alemanha e na França obtiveram êxito e conexão com o público consumidor de cinema que se formava. As obras cinematográficas traziam imagens em movimento, e a dinâmica da montagem encantava espectadores do mundo inteiro. Com a alta demanda por películas, o cinema se tornou um meio de comunicação de massa, com uma forte indústria localizada em alguns países produtores de filmes.
Ao final da primeira guerra mundial, o cinema se estabeleceu como uma poderosa mídia de massa. Abraçado por milhares, era também defendido por intelectuais que acreditavam estar testemunhando pela primeira vez na história registrada, o nascimento de uma nova forma de expressão criativa (BORDWELL, 2013, p.29).
No livro “Sobre a história do estilo cinematográfico” (2013), Bordwell faz um panorama histórico sobre como o cinema construiu um padrão estilístico. Segundo o teórico, “um estilo é um uso sistemático e significativo de técnicas de mídia cinema em um filme” (BORDWELL, p.17, 2013). Ele também aponta que ao longo dos primeiros 25 anos da história do cinema, historiadores e teóricos, como Kulechov, Robert Brasillach, Maurice Bardèche, Béla Balázs, entre outros, buscavam demonstrar que as imagens que haviam encantado multidões faziam parte de uma nova forma de arte.
(...) o que levava tempo era a emergência do cinema como um modo independente de expressão artística. Em particular, o cinema tinha de superar as suas tendências teatrais (BORDWELL, 2013, p.59).
Até o final da década de 20, o cinema buscava se emancipar como forma de arte, já que era visto como uma manifestação adulterada do teatro, da literatura e das artes plásticas. Os teóricos e historiadores argumentam que os agentes criativos do cinema passaram as primeiras duas décadas do século XX buscando construções estéticas próprias e formando características da mídia cinema:
Os defensores do cinema como arte, como os defensores da fotografia antes deles, sentiam-se obrigados a negar que a câmera meramente reproduzia o que se colocava diante dela. Tinham de mostrar que o meio - lente, película, corte - desempenhava, de certa maneira, um papel criativo (BORDWELL, 2013, p.46).
Emancipar-se era encontrar uma linguagem, e o cinema, frente a outras formas artísticas, como o teatro, as artes plásticas e a música, encontrou uma linguagem própria, distinta.
Segundo essa linha de pensamento, a essência de qualquer arte deve ser encontrada nas possibilidades distintas do meio para criar formas ou sentimentos (BORDWELL, 2013, p.46).
Para encontrar essa linguagem, Ismail Xavier, pesquisador da Universidade de São Paulo, aponta que dois movimentos foram fundamentais para os artistas deste primeiro cinema: “a chamada expressividade da câmera e a montagem”(2005). Os dois movimentos, segundo Xavier, estão conectados. A “expressividade” da câmera permitiu que o cinema rompesse com o espaço teatral, colocando a câmera como uma observadora privilegiada do acontecimento. Entretanto, ao levar a câmera para dentro da ação, esta fica fragmentada, o tempo é interrompido e o espaço, recortado. O princípio da montagem será responsável por criar a sensação de continuidade ao que foi destituído com o corte. E assim, tornar a experiência do espectador com o cinema algo mais próximo da sua experiência com o mundo. Ao criar essa ilusão, a montagem assume um papel criativo na prática cinematográfica.
O salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substituição brusca por outra imagem, é um momento em que pode ser posta em xeque a semelhança da representação frente ao mundo visível…, mas a justaposição de duas imagens é fruto de uma intervenção inegavelmente humana e, em princípio, não indica nada senão o ato de manipulação (XAVIER, 2005, p.24).
Aqui, é importante marcar que a autonomia do cinema em relação às outras artes consolidou o primeiro padrão estilístico da história dessa nova linguagem. Bordwell classifica o primeiro padrão estilístico como Versão-Padrão, que consiste em um cinema que busca histórias pertencentes a gêneros narrativos bastante estratificados em suas convenções e utiliza-se da decupagem e da montagem para produzir o ilusionismo, bem como deflagrar o mecanismo de identificação. Xavier e o próprio Bordwell chamaram esse padrão de linguagem clássica, delimitaram também o período de construção entre 1896 e 1914, e a sua consolidação com os filmes de D. Griffith, “Nascimento de uma nação” (1915) e “Intolerância” (1916):
O sistema consolidado depois de 1914 principalmente nos Estados Unidos, ao lado da aplicação sistemática dos princípios da montagem invisível, elaborou com cuidado o mundo a ser observado através da janela cinema (XAVIER, 2005, p.41).
Entre os teóricos ingleses, norte-americanos e franceses, havia um consenso de que a expressividade da câmera e a prática dos princípios da montagem consolidaram a Versão-Padrão. O pesquisador russo Lev Kulechov irá destacar a montagem nessa equação, e com o intuito de levar a linguagem clássica para a União Soviética, fez uma extensa pesquisa sobre os filmes norte-americanos das duas primeiras décadas do século XX. Ao investigar sistematicamente os fatores constitutivos desta prática, que teve um grande sucesso nos públicos de todo mundo, Kulechov chegou a duas grandes conclusões:
(1) o momento crucial da prática cinematográfica é o da organização do material filmado; (2) a justaposição e o relacionamento entre os vários planos expressa o que eles têm de essencial (Kulechov vai nos falar da montagem como elemento chave na compreensão semântica daquilo que se passa na tela (XAVIER, 2005, p.47).
O postulado do “Efeito Kulechov”, de que uma imagem A combinada com uma imagem B constrói um sentido C, que não estava nem em A, nem em B, parte da observação de como o cinema da Versão-Padrão iludia os espectadores para que eles entendessem o que se passava na tela como parte de um mundo ficcional sustentado com força própria.
Nesse momento da história da montagem, final da década de 10 e começo da década de 20, Eisenstein subverte o conceito de Kulechov em uma teoria de cinema que confronta o cinema clássico, e que em lugar de promover a ilusão da representação, escancara o fazer cinematográfico para que o discurso ideológico do filme seja declarado ao espectador. No entanto, o presente artigo identifica que a montagem em TWD segue o estilo da Versão-Padrão.
1a). Montagem em The Walking Dead - Versão padrão - Modelo clássico
TWD aproxima-se das teorias de montagem que observam um cinema com o objetivo ilusório: a teoria da Versão-Padrão de Bordwell, ou do cinema clássico, segundo Ismail Xavier. Kulechov sustenta que a montagem cria novos sentidos e, portanto, no contexto desse cinema ilusório, também deve trazer as teorias do professor russo para pensar TWD. O cinema discursivo de Eisenstein será deixado de lado nesse momento, pois não é o objetivo de TWD escancarar a ideologia por trás da obra.
Seguindo a análise da teoria do cinema clássico que interessa à pesquisa, Xavier observa que durante a consolidação da Versão-Padrão, diretores e montadores propuseram dois objetivos fundamentais para a consolidação do estilo: impedir que o espectador percebesse que a cada corte há uma interrupção no espaço e no tempo, e criar a ilusão de que dentro da janela cinematográfica um mundo real independente de um narrador possa estar passando diante dos olhos do espectador. As regras de continuidade, a relação de campo - contracampo, os cortes no movimento dos corpos, entre outros, são convenções da montagem cinematográfica para criar a impressão no espectador de que o filme contém uma unidade temporal e espacial.
O cinema clássico se apoia no modelo grego de tentar imitar a realidade e se assemelha ao modelo dramático defendido por Aristóteles em “A Poética”(2011). Para o filósofo, o drama se caracteriza justamente pela unidade de tempo e de espaço. A montagem, com suas convenções, constrói a unidade temporal e espacial, e com isso, o espectador não percebe que há um narrador combinando imagens e sons para contar a história, o que cria uma impressão ilusória de realismo sobre o que se passa na tela.
Há outra ilusão essencial criada pelo jogo da montagem que imprime uma relação psicológica entre o espectador e o filme que é específica da arte cinematográfica. Quando é mostrado o plano de um personagem olhando um objeto, em seguida mostra-se o plano subjetivo do personagem com o objeto na tela, o olhar do espectador prende-se ao olhar do personagem. Dessa maneira, a montagem, além de criar a ilusão da unidade espaço-temporal e do realismo, também transporta o espectador para dentro da tela, para dentro da ação. Nesse sentido, a operação descrita comprova o que Kulechov afirma sobre a justaposição de imagens, que é na relação entre elas que se constrói um novo sentido.
Sobre a eliminação da distância entre espectador e universo narrativo, Ismail Xavier cita Béla Balázs em seu livro “O Discurso Cinematográfico – Opacidade e Transparência”:
Hollywood inventou uma arte que não observa o princípio da composição contida em si mesma e que, não apenas elimina a distância entre o espectador e a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusão, no espectador, de que ele está no interior da ação, reproduzida no espaço ficcional do filme (BALÁZS, 1923, APUD, XAVIER, 1984, p.39).
Figura 1,2 e 3- Fotogramas retirados da série The Walking Dead (KIRKMAN, DARABONT, 2010)
Para contar um diálogo entre o personagem Rick e o personagem Morgan, o diretor recorta o espaço da igreja e isola cada personagem no quadro. Ao combinar a imagem de Rick olhando da direita para a esquerda com a imagem de Morgan olhando da esquerda para a direita, a montagem estabelece uma relação entre os personagens independente da fala. E é possível afirmar que nesse jogo o espectador pode assumir os olhos de Rick Grimes, já que a imagem de Morgan corresponde ao ponto de vista do protagonista.
Hoje, a distância entre o espectador e a obra de arte, citada por Béla Balázs, é ainda menor. Agora, não precisamos sair de casa para ir ao cinema, as imagens e os sons chegam até nós pela televisão, pelo computador e pelo videogame. Podemos carregar as narrativas em celulares e tablets. O universo de séries como TWD salta da tela e nos cerca nas diferentes mídias e paratextos a partir dos quais suas narrativas são espalhadas.
Nos jogos de videogame ou online, não só assumimos os olhos de Rick Grimes (personagem principal de The Walking Dead), mas também suas mãos e suas armas para matar os zumbis e seus inimigos. Dentro do Twitter e do Facebook, podemos criar perfis de personagens e falar, expressar ideias, como se fôssemos Rick Grimes ou Negan. O espectador pode se tornar personagem e simular uma vivência no interior do universo ficcional de The Walking Dead.
A relação que temos com a representação, hoje, faz parte de um processo que começa na defesa da forma dramática feita por Aristóteles, passa pelos efeitos ilusórios da pintura renascentista (também observada no livro “Discurso Cinematográfico”, por Ismail Xavier, ao comentar o texto: “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, de Jean Louis Baudry (2005) e culmina com a invasão do universo ficcional dentro de nossas casas e nossas vidas. A montagem transmídia afirma esse modelo de representação.
Numa série transmídia, os princípios da montagem podem continuar contribuindo para a manutenção da unidade espaço-temporal, e, principalmente, para dar coerência e coesão para as diferentes narrativas do mesmo universo ficcional dispersas nas diferentes mídias. Em The Walking Dead, é possível perceber diversos elementos da montagem, como sons, trilha sonora, ritmos de suspense (típicos do gênero terror), o que contribui para dar unidade aos conteúdos e manter a série coerente ao modelo ilusório. Porém, a combinação de imagens e sons agora não é pensada apenas intramídias, mas intermídias. Um novo procedimento de montagem se dá ao justapor as imagens e sons de mídias diferentes. Um exemplo dessa relação pode ser visto em The Walking Dead e na websérie Torn Apart
Figura 4- episódio 1, temporada 1 da série The Walking Dead. (KIRKMAN, DARABONT, 2010)
Figura 5- episódio 1, da websérie Torn Apart. (NICOTERO,2011)
No primeiro episódio da série televisiva, Rick Grimes utiliza uma bicicleta que achou na rua para chegar até à casa do personagem Morgan, onde irá receber a notícia de que o mundo foi invadido por um vírus zumbi. Rick pega a bicicleta num local onde uma zumbi de cabelos loiros, com metade do corpo decepado, tenta morder o protagonista da série. Na websérie, acompanhamos a história da personagem loira antes dela ser contaminada. Porém, além da dramaturgia, a imagem da bicicleta vermelha e da mulher de cabelos loiros faz o espectador se lembrar do primeiro episódio da série televisiva e conectar a imagem da websérie com a da série. Pela justaposição de imagens das diferentes mídias, é perceptível que ambas as histórias fazem parte do mesmo universo e, segundo Kulechov, constroem um novo sentido que não estava na imagem da série televisiva sozinha, nem mesmo na imagem da websérie vista de maneira independente: um novo sentido que fortalece a ilusão proporcionada pela linguagem clássica.
O exemplo acima demonstra como os criadores de The Walking Dead utilizam-se dos princípios da montagem, mais especificamente, da montagem clássica, para conseguir criar continuidade – também chamado de raccord, por Bordwell – entre o que acontece na série televisiva e na websérie. O espectador junta as imagens das diferentes mídias numa única narrativa. Aqui, a montagem transmídia acontece ao se conectar com os princípios da Versão-Padrão, teorizada por Bordwell.
1b. Versão oposição - Modelo moderno
Ainda no livro “Sobre a história do estilo cinematográfico”, Borwell aponta outras versões estilísticas para a história do cinema. Com o lançamento de filmes europeus de diretores como Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni, e também de filmes brasileiros do cinema novo, Bordwell se apoia nas observações de Noel Burch sobre esses filmes para montar a Versão-Oposicionista do desenvolvimento do estilo, posicionando o cinema moderno como antagônico ao cinema clássico narrativo:
Noel Burch constitui um exemplar notável dessa tendência. Apesar de Burch não ter escrito nenhuma história sinóptica, suas monografias e seus artigos, dos anos 1950 e 1990, delineiam cumulativamente um amplo programa de pesquisa. Em todo o seu trabalho, a estratégia foi estudar a produção cinematográfica ocidental do ponto de vista dos modos de oposição que “desnaturalizam” as convenções da técnica dominante e que sugerem outras maneiras de fazer filmes. (BORDWELL, p12a, 2013)
Burch escreveu artigos para a Cahiers du Cinema durante a década de 50 e 60 e irá observar que o cinema realizado por Antonioni, Resnais e Godard se opõe à Versão-Padrão e à montagem ilusionista clássica. O autor inglês classifica a montagem que tinha o objetivo de “tornar imperceptíveis as mudanças de plano com continuidade ou proximidade espacial” (BURCH,p31) e com “a crença no falso pressuposto de que o cinema seria um meio de de expressão realista (BURCH,p31) com o grau zero de estilo cinematográfico. Em oposição ao grau zero, Burch defende:
Atualmente, é preciso repensar o conceito da função e da natureza da mudança de plano, do mesmo modo que o fazer cinematográfico como um todo e sua relação com a narrativa. Começamos a perceber que uma organização racional dos cortes (e dos próprios raccords) se impõe...acreditamos que, no futuro, a mudança será, para o cinema, a base de estruturas infinitamente mais complexa. (BURCH, p32-33, 1969)
O cinema que Burch apoia visa estruturas de montagem mais complexas, onde o corte não responde imediatamente a vocação realista de manter o espectador orientado no espaço diegético e com a sensação de tempo presente e fluído. O cinema que Burch apoia proporciona ao espectador uma experiência mais complexa, e confronta a orientação com a desorientação.
..vê-se que este tipo de desorientação pressupõe uma continuidade espacial e temporal coerente, um contexto previamente articulado com raccords de compreensão imediata. Uma utilização mais sistemática e estrutural da desorientação provocada pelo raccord de compreensão retarda, dependeria basicamente da definição de uma espécie dialética entre raccords deste gênero e os outros. (BURCH, p33, 1969)
A desorientação, vista pela montagem clássica como um erro, é vista por Burch como um procedimento que estressa a estrutura de um filme permitindo uma relação entre espectador e filme mais sofisticada e menos previsível.
A montagem transmídia de The Walking Dead também propõe estruturas complexas com desorientações e ambiguidades ao mesmo tempo que manifesta um sentido de continuidade entre os vários fenômenos. Carol, por exemplo, uma das personagens mais importantes da série, tem boa índole na história em quadrinhos, porém se torna uma das assassinas mais cruéis da série televisiva. A adaptação dramatúrgica da história em quadrinhos para série de tv já propõe essa relação. E mesmo com a diferença fundamental na adaptação, entendemos que a Carol da série televisiva é a Carol da história em quadrinhos.
Carol e muitos outros personagens de TWD possuem essa contradição, essa ambivalência. Porém, o que é novo na série zumbi é que precisamos ver os quadrinhos e a série televisiva, montar as imagens e sons das duas plataformas para chegar a essa conclusão. A Carol da televisão possui várias características da Carol da história em quadrinhos, mas outras são completamente contraditórias em relação à primeira personagem.
Mittel discute em Complex TV que uma das características do novo modelo narrativo é possuir histórias com ambiguidades e desorientações, também superando o modelo clássico e a Versão-Padrão de Bordwell:
Em todas essas séries, a falta de dicas explícitas sinalizações criam momentos de desorientação, pedindo aos espectadores que se envolvam mais ativamente para compreender a história. Os espectadores regulares que dominam as convenções internas de narrativa complexa de cada programa ganham como recompensa um maior entendimento sobre a história. Essas estratégias podem ser semelhantes aos recursos formais do cinema de arte, mas se manifestam em contextos expressamente populares para audiências de massa - podemos estar temporariamente confusos com momentos de Lost ou Alias, mas esses programas nos pedem para confiar na recompensa que eventualmente chega a um momento de compreensão complexa, mas coerente (MITTEL, 2015, p.50).
Para que os episódios televisivos não se tornem previsíveis, variações da trama são construídas, e as mesmas situações têm desfechos diferentes da história em quadrinho. Isso contribui para uma ligação mais complexa entre a imagem da narrativa escrita e a imagem da série televisiva. Essa ligação não se dá apenas por raccord e continuidade, mas também por descontinuidade, desorientação e ambiguidade. O choque entre as duas variações da trama produz novos nexos, o que torna a percepção da obra muito mais sofisticada do que uma série que é transmitida apenas por um canal.
Figura 6- revista The Walking Dead, edição número 12, Kirkman, 2003.
Figura 7- revista The Walking Dead, edição número 12, Kirkman, 2003.
Figura 8- série The Walking Dead temporada 2, episódio 1, Kirkman e Darabont, 2011.
Figura 9- série The Walking Dead temporada 2, episódio 1, Kirkman e Darabont, 2011.
Na história em quadrinhos, no fim do primeiro arco, quando Rick, Shane e Carl vão para a floresta, Carl mata Shane para proteger o pai. Na televisão, quando há a mesma situação, no primeiro episódio da segunda temporada, espera-se que Carl vá matar Shane, mas é Carl quem recebe uma bala perdida e quase morre. A montagem da série televisiva leva o espectador a pensar que o mesmo desfecho da história em quadrinhos irá acontecer. Porém, o que se vê na imagem é o garoto baleado, e não o personagem Shane. No universo de TWD, a imagem de Carl baleado justaposta à imagem de Shane morto cria um novo sentido, como Kulechov aponta. Porém, a incoerência narrativa aproxima a montagem transmídia de TWD à estrutura da Versão de Oposição defendida por Noel Burch.
Figuras 10, 11, 12,13, 14, 15, 16 e 17: série “The Walking Dead”, temporada 1, episódio 1, Kirkman e Darabont, 2010 e série “Fear The Walking Dead”, temporada 1, episódio 1, Erickson e Kirkman, 2015.
A maneira de dividir a cena em planos (decupagem) é semelhante, porém o desfecho do spin- off é diferente da série original, e quando a menina vira, mostra-se um zumbi, e Rick acaba atirando na cabeça dele.
Outro exemplo de The Walking Dead e The Fear The Walking Dead segue os conceitos de Burch. Na série principal, em TWD, há vários momentos em que um personagem do grupo protagonista se torna zumbi. A decupagem e a montagem das cenas geralmente seguem um padrão, a partir do qual se observa o novo zumbi de costas, em um plano médio, e no contraplano um segundo personagem se aproximando em uma câmera baixa e chamando o nome do novo zumbi. Esse não responde, e, no ponto alto da trilha sonora, ele se vira para a câmera com um pedaço de carne humana na boca.
No episódio piloto de Fear The Walking Dead, antes de o vírus se espalhar por Los Angeles, há a mesma situação: um personagem está de costas, em um plano médio, e o outro se aproxima do mesmo, em uma câmera baixa chamando o nome do próximo zumbi. Como o espectador de TWD já conhece o código, o que ele espera é que o personagem que vai se virar é um zumbi e que uma perseguição será iniciada. No fim da cena, no ponto alto da música, o personagem vira para câmera e o que se vê não é um zumbi. Porém, toda a tensão construída só funciona pois comparamos os dois produtos do mesmo universo, criando uma montagem virtual entre The Walking Dead e Fear The Walking Dead.
2. Estratégias de montagem - entrevista com Todd Desrosier
Como parte da pesquisa, foi realizada uma entrevista com o montador Todd Desrosier, da série original The Walking Dead e da série derivada Fear The Walking Dead. Todd montou um episódio da temporada 5 da série original e alguns episódios de três temporadas da série derivada. A dissertação parte do princípio que o montador tem um papel fundamental na construção da narrativa de um filme ou de uma série. Desrosier, quando perguntado se tinha liberdade durante o processo de criação, nos responde:
“Com certeza a todo momento . É para isso que somos contratados. Só posso falar sobre as três primeiras temporadas da FTWD (e realmente apenas sobre o piloto e a terceira temporada, são esses episódios que trabalhei) - houve muitas mudanças na FTWD depois daquilo que não tenho consciência. Mas até onde eu sabia, realmente estávamos nos esforçando para algo muito muito diferente da “nave-mãe” em termos de visual (filmado em HD, não em filme), tom e história. Nós não queríamos nos repetir.”
Sobre a relação entre as duas séries, ele recebeu a seguinte pergunta:
“Uma das principais hipóteses da pesquisa é que, embora existam elementos de conexão entre as duas séries, também existem elementos de desorientação para que o espectador não sinta que os episódios sejam previsíveis. Se a série de TV copiar o enredo da história em quadrinhos, não trará nada de novo ao espectador. No primeiro episódio de Fear The Walking Dead, há um bom exemplo desse tipo de desorientação. O personagem Madison se aproxima do diretor da escola e, pelo movimento da câmera e pela música, os espectadores pensam que o diretor da escola se tornou um andarilho. No entanto, quando se vira para Madison, ele ainda não se tornou. Você também tem a preocupação de criar elementos de desorientação para criar surpresas na história?”.
E Desrosier respondeu da seguinte maneira:
“Sim! Tudo isso foi feito intencionalmente. Usando os elementos do gênero de uma maneira em que esperávamos que não fosse previsível. Além disso, mostrando a desintegração de uma família em dificuldades quando o público já sabe o que vai acontecer com elas. A narrativa de Fear The Walking Dead (FTWD) estava centrada mais em ver como a família reage à medida que as coisas desmoronam ao seu redor. Em TWD, tudo isso aconteceu fora das câmeras quando Rick Grimes estava em coma. Ele acorda para ver que tudo mudou, mas o que eles queriam mostrar é o que aconteceu com as pessoas no momento em que tudo começou a mudar e como elas sobreviveram ao processo.”
O montador reforça a tese de que o piloto de FWTD foi editado de maneira a criar desorientação para manter a imprevisibilidade e as surpresas. A montagem transmídia deve se valer desses recursos, pois cada um dos episódios construídos a partir do universo narrativo contém forte conexão com uma rede de episódios que, de alguma forma, já contou muito ao espectador. Se o montador simplesmente repetir os recursos e os procedimentos de montagem, o resultado será presumível e monótono. Uma montagem com ambiguidades e ambivalências – portanto, complexa – é necessária para manter a atenção dos espectadores em todas as unidades da série transmídia.
Em outro momento da resposta, Desrosier nos fala que construía os episódios pensando que o espectador “já sabe o que vai acontecer com as famílias”, logo, já sabe que os zumbis irão destruir a civilização, enquanto os personagens principais de FWTD ainda não sabem. Ele reforça o que Mittel nos diz sobre os espectadores da narrativa complexa: “essas séries (...) pedem aos espectadores que se envolvam mais ativamente para compreender a história. Os espectadores regulares que dominam as convenções internas de narrativa complexa de cada programa ganham como recompensa um maior entendimento sobre a história” (MITTEL, 2015, p.50). A montagem dos episódios, para esse espectador mais atento e mais ativo, exige estruturas complexas e com maior consciência da representação.
Mittel aponta que as séries deste modelo possuem um modo de narração mais autoconsciente do que o tipicamente encontrado na narração convencional da televisão. A autoconsciência seria marca da complexidade:
Esses momentos de espetáculo levam a estética operacional ao primeiro plano, chamando a atenção para a construção da narração e nos pedindo para nos maravilharmos com o modo como os escritores a realizaram (MITTEL, 2015, p.43 e 44).
Ao utilizar a mesma decupagem, as mesmas trilhas, o mesmo ritmo, Todd Desrosier cria uma marca na montagem e sinaliza ao espectador a autoconsciência da narração, a presença do montador no episódio.
Mesmo com os objetivos da Versão-Padrão, de criar continuidade, unidade e coerência entre as imagens e sons das diversas manifestações do universo, ou com objetivos da Versão de Oposição, de criar descontinuidade, desorientação e ambiguidade na combinação entre as imagens e sons do universo de TWD, os princípios da montagem criam esses sentidos, esses nexos. Logo, a montagem também é criadora nas narrativas transmídia e os conceitos de montagem complexa podem e devem ser aplicados em outras narrativas multiplataformas.
3. Processo de criação na montagem de The Walking Dead
O universo transmídia de “TWD”, espalhada em rede por diversos elementos interconectados, também é acompanhada por um processo de criação complexo e dinâmico. The Walking Dead é produzido por diversos autores: roteiristas, diretores, produtores, montadores e até mesmo fãs, que fazem a lapidação de um objeto vivo, inacabado e longe de encontrar seu fim. Enquanto a história em quadrinhos foi encerrada em 2019, as séries televisivas continuam no ar, algumas delas com força narrativa para continuar por anos e anos.
Além da possibilidade de conduzir o episódio da série com autonomia em relação ao roteirista, diretor e outros membros da criação, Todd Desrosier aponta como a série derivada procurou ter uma originalidade, características diferentes da série original para que o espectador não tivesse um sentimento de redundância e repetição.
Cecilia Salles nos fala sobre como as interações podem modificar o projeto artístico:
Morin (2002b, p72) discute a natureza de interações na cultura como ações recíprocas, que modificam o comportamento ou a natureza dos elementos nelas envolvidos, supõem condições de encontro, agitação, turbulência e tornam-se, em certas condições, inter-relações, associações, combinações, comunicação, etc, ou seja, dão origem a fenômeno de organização. (SALLES, 2017, p 110 e 111).
As agitações e turbulências lembram os choques e conflitos apontados por Eisenstein como criadores de novos sentidos na montagem e no cinema. Assim como dois fragmentos em choque produzem um novo significado (EISENSTEIN, 2002), o confronto e o conflito entre dois sujeitos podem também criar novas direções. Desrosier em debate com as ideias de Kirkman episódios de “Fear the Walking Dead” propõe outros objetivos. Salles percebe que Eisenstein entende o processo de criação em grupo como um embate de ideias dos vários sujeitos:
Eisenstein dá maior complexidade a essa discussão sobre os processos em equipe que, como vimos, são formados por sujeitos em comunidade, que, ao mesmo tempo, deixam marcas de sua subjetividade em suas escolhas.“ Nunca toquei numa orquestra, mas acredito que uma estranha ocupação leva as pessoas ora a se envolverem, ora a se divorciarem do traçado tão especial da ação coletiva (...) é o coletivismo do trabalho, quase uma dança marcada coletivamente, que une o movimento de dezenas de pessoas numa única sinfonia (EISENSTEIN apud SALLES, 2017, p. 44)
Sobre esse ambiente de encontro e ações coletivas, o entrevistado Todd Desrosier nos fala sobre os autores envolvidos no processo de “The Walking Dead” e “Fear the Walking Dead” e como na série derivada todos estavam na mesma direção de criar uma independência da série original, direção detonada também pelo showrunner (roteirista-chefe) de “FTWD”, David Erickson:
Quanto às orientações para a montagem de TWD, eu fiz um episódio para a 5ª temporada, então usei todos os episódios anteriores e as contribuições de alguns dos outros editores e, claro, o diretor do episódio (que também era o diretor de fotografia do programa) e o Showrunner para orientação. Fear the Walking Dead, foi mais sobre a criação de uma nova experiência separada da “Nave-mãe” e a descoberta dos ritmos certos e da maneira de contar a história com o Showrunner / Escritor e Diretor.
A produtora, o local da montagem de “TWD”, era a mesma de “Fear the Walking Dead” e esse ambiente de efervescência foi importante para a interação de Desrosier com outros membros participantes do processo criativo.
Não trabalhei diretamente com nenhum outro editor, mas conversávamos durante o almoço sobre os episódios. Às vezes, pedia conselhos e outras vezes discutia como as coisas foram feitas no passado ou o que estava acontecendo em suas ilhas de edição nos vários episódios em que estavam trabalhando.
Desrosiers aponta na entrevista quantos profissionais participam do processo de criação da montagem. Antes dele mesmo colocar a mão no material, editores mais novos fazem um primeiro corte do material. Ele junto com o showrunner faz a revisão e afinação do corte. Compositores já deixaram pronto para eles uma série de efeitos sonoros, sons de zumbi andando ou mastigando carne, por exemplo, para auxiliar na ambientação das cenas. Novas músicas são compostas para cada episódio. Alguns efeitos visuais também já ficam disponíveis para a edição temporariamente para depois serem finalizado por um profissional de VFX (efeitos especiais). Mesmo filmado em 16mm, “TWD” tem muitas cenas que utilizam o recurso do Chroma-key, para que mais zumbis sejam acrescentados a cena com recursos da computação gráfica.
Ainda sobre o processo de montagem, Desrosiers nos fala sobre outros membros da equipe envolvidos no corte dos episódios e o tempo de cada etapa:
O período de tempo necessário para produção e edição é diferente para cada cenário e programa. Diferente para piloto (episódio piloto é o primeiro episódio da série, geralmente utilizado para os produtores venderem o projeto para o canal. Depois que o piloto é aprovado, o restante da temporada é gravado e editado) e para o restante dos episódios da série. Os pilotos geralmente são maiores, têm mais dias de filmagem e você geralmente tem mais tempo para trabalhar no processo do que em uma série em funcionamento. Mas, em geral, temos de 8 a 10 dias de filmagem. 4 dias para terminar o corte dos editores1. 4 dias para trabalhar com o diretor. De 5 a 7 dias para trabalhar com o showrunner e, em seguida, dependendo se o estúdio e o canal são entidades independentes (no caso da AMC, produtora de “TWD” são os mesmos), você terá mais dias para trabalhar nos comentários feitos pelo estúdio e pelo canal. Então, cerca de um mês e meio a dois meses para um episódio do começo ao fim e mais tempo para um piloto.
Além de toda equipe de edição e pós-produção, Desrosiers conta como assistentes de direção, diretores e o showrunner também são integrantes do processo de montagem de um episódio. Aqui temos um conceito importante, a montagem não é só realizada por um profissional, mas é pensada em todos as etapas do projeto audiovisual pelos diferentes departamentos. E não podemos nos esquecer que “TWD” é um produto transmídia de uma indústria audiovisual, e logo, executivos do estúdio e do canal de televisão também influem nas tomadas de decisão para o corte final de um episódio.
A entrevista de Desrosier nos conta um pouco como foi o processo de montagem das duas séries televisivas, e por ela podemos aferir como um processo em grupo pode detonar novos sentidos e novas estéticas narrativas, assim como descritos por Cecília Salles no seu trabalho “Processos de criação em grupo”. As inovações de linguagem audiovisual podem não ter sido realizadas de forma intencional, mas aquilo que vemos ao justapor as imagens da história em quadrinhos com as imagens das séries, dos jogos de videogame e celular deve ser discutida à luz da teoria da montagem.
4. Conclusão
A pesquisa realizada até aqui não quer deixar esquemas ou técnicas fechadas para que produtores e montadores façam novas séries com preceitos de uma montagem transmídia. Como Cecilia Salles aponta, um processo de criação, mesmo em uma estrutura industrial como a televisão, não é linear, tem a influência do acaso e carrega as subjetividades de inúmeros criadores, entre eles o montador. O que a pesquisa procurou demonstrar é que com o novo modelo narrativo sugerido por Mittel, observado na televisão norte-americana desde o começo dos anos 2000, as séries de ficção ganharam complexidade, ao superar o modelo episódico das antigas séries e ao espalhar o seu universo nos paratextos, num processo de convergência digital que Henry Jenkins chama de transmedia storytelling. Essas séries produziram novas imagens que, combinadas em diversas telas, produziram sentidos, sejam eles seguindo o modelo ilusório do cinema clássico, ou produzindo desorientação, ambiguidade e contradição, como a versão de oposição apresentada por Noel Burch. Os roteiristas e montadores das próximas séries, dos próximos sistemas transmídia, devem ter a consciência de que é possível realizar esses novos procedimentos de montagem, que combinar as diversas telas, as diversas mídias, pode criar sentidos, e essa nova possibilidade da teoria da montagem pode ser usada como linguagem do universo narrativo. Com as horas de maratonas de séries que o espectador da televisão já assistiu e interagiu, essa linguagem terá grande probabilidade de ter sucesso e ser compreendida pela audiência. Esse é o legado que esta pesquisa procura deixar.
Notas Finais
1Rough Cut, Editor Cut, Fine Cut e Picture Lock são as etapas de montagem de um episódio dentro de produtoras e canais norte-americanos. O corte do editor é a segunda etapa, o corte fino é feito com o diretor e o corte final é.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Poética – Tradução e notas: Edson Bini – São Paulo: EDIPRO, 2011.
AUMONT, J. et al. A estética do filme - 5 ª ed, Campinas, Ed. Papirus, 2007.
BORDWELL, D.; THOMPSON, K. A arte do cinema. Campinas, SP; São Paulo, SP: Editora da USP, 2013.
BORDWELL, D. Sobre a história do estilo cinematográfico. Madison: Campinas, SP; São Paulo, SP: Editora da USP, 2013.
BURCH, N. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1969.
DANCYGER, K. Técnicas de edição para cinema e vídeo. 4ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2007.
DUBOIS, P. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
EISENSTEIN, S. A forma do Filme. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2002. EISENSTEIN, S. O sentido do Filme. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2002.
JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Ed. Aleph, 2009.
KULECHOV, L. Kulechov on film. Berkeley: Univ.of California Press, 1974.
MITTEL, J. Complex TV: The Poetics of Contemporany Television Storytelling. Nova York: N.Y.U. Press, 2015.
SALLES, C. A. Processos de criação em grupos – diálogos. São Paulo: Ed. Estação das Letras e Cores, 2017.
SALLES, C. A. Redes da criação – construção da obra de arte. 2ª edição. São Paulo: Ed. Horizonte, 2006.
PARENTE, André. Enredando o pensamento: redes de transformação e subjetividade. Em Parente, A. (org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004.
XAVIER, I. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. 3ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005
Tese/Dissertação
Bousso, Karina. Os contos de fadas na televisão: procedimentos de criação de “Once Upon A Time”. 2016. 127 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. - https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/19106
Guerra Junior, Osmar. Processos de criação do personagem Walter White em Breaking Bad: entendendo o perigo. 2018. 93 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/21342
Filmografia
Breaking Bad. 2008. De Vince Gilligan. Estados Unidos: AMC
Detetives do Prédio Azul. 2012. De Flávia Lins e Silva. Brasil: Conspiração Filmes
Guerra nas estrelas. 1977. De George Lucas. Estados Unidos: 20th Fox
Intolerância. De David Griffith, 1916. EUA: Triangle Distributing Corporation
Nascimento de uma nação. De David Griffith. 1915 EUA: United Artist.
Lost. 2004. De Damon Lindelof e JJ Abrams. Estados Unidos: ABC
Matrix (The Matrix). 1999. De: Andy Wachowski e Larry Wachowski. EUA. Warner Bros
Once Upon a time. 2011. De Edward Kitsis e Adam Horowitz. Estados Unidos: ABC
The Walking Dead. 2010. De Frank Darabont e Robert Kirkman. EUA: AMC