Capítulo / Chapter IV | Cinema – Tecnologia / Technology

Poetics of Time: on the wear and tear and appropriation of photosensitive materials

Poética do Tempo: sobre o desgaste e a apropriação de materiais fotossensíveis1

Fabiane Urquhart Duarte

Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Andreia Machado Oliveira

Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Abstract

This work intends to explain about the temporal aspects and the appropriation of images of photosensitive materials already revealed, as a way to produce new cinematographic narratives and transformed images, using as a demonstration of time, the wear and tear of this photosensitive material through the process of deterioration and wear of the image. By contact with fungal organisms, arising from the non-maintenance of the photographic or filmic film, providing a new possibility of image, which is in a constant process of change, and the creation of a temporal poetics, called the poetics of time. We propose to investigate the “fungal image”, and its intervention in a biological way, contributing to the aesthetics of the film. The “fungal image” in slides and its development processes is treated, which permeate the analog + digital hybridization, which involves the rescue of old analog technologies and their resignification in the digital context.

Keywords: Poetics of Time, Fungal Image, Digital-Analog, Hybridism, Photosensitive Materials.

Introdução

A grande maioria das imagens, quando chegam ao público, não tem nome nem sobrenome, são como as memórias paralisadas dentro delas, que movimentam a curiosidade e a imaginação, criando histórias ou questionamentos internos sobre quem foram as pessoas retratadas ou o que são neste momento. Não foi assim com as imagens chegadas a mim e que se transformaram em na obra “De nombre humano”. Estas chegaram como presente, um presente vinculado de afeto, vinculado de memória. Primeiro veio a história: eram diapositivos-slides que contavam uma narrativa visual e sonora: a narrativa sonora gravada através de fita-cassete já tinha sido perdida, mas as imagens continuavam ali, aparentemente intactas. O material havia sido apresentado, em meados de 1999, na Universidad De la Republica del Uruguay em uma cadeira do curso de Comunicación, por Enrique da Rosa, detentor e produtor delas naquele momento.

Eram três caixinhas verdes que me foram entregues pelo antigo dono das imagens. Quando abri a primeira caixa, pude sentir o cheiro antigo que só exala de materiais que estão guardados há tempos. Mexer com imagens de arquivo é mexer com nosso aparelho sensório, primeiro o cheiro, depois o tato através do toque na matéria, logo o olhar que tenta explorar aquela imagem através da luz... Fica o gosto de querer transforma-lo, e por isso me aproprio, por isso me apropriei das imagens.

Apropriar é um verbo estranho, porque, em um primeiro momento, parece com algo não adequado: apropriação de terras, apropriação de dinheiro, apropriação de pessoas, etc., a palavra apropriar está muito intrínseca na sociedade atual como algo mal feito, mas apropriar imagens tem outro sentido, quando trabalhamos com imagens de arquivo. Apropriar aqui é “dar vida”.

As imagens de “De nombre Humano” estavam tomadas de vida, e estavam sendo transformadas constantemente, mas não pela mão humana, e sim por um agente que trabalha de forma silenciosa: os fungos. Foram eles que me despertaram para a transformação e mutação da imagem.

Não é novidade que materiais antigos e mal conservados se deterioram, nem que pessoas transformam esse material ressignificando. Muitos movimentos atuais utilizam de materiais fotossensíveis considerados obsoletos para criar. Criar é trabalhar com o tempo. Tempo, algo indecifrável e ao qual não confrontamos, a não ser quando tentamos controlá-lo através do relógio. O tempo é voraz, o tempo transforma, o tempo é fúngico. O tempo procura sua poética.

Em meu processo de pesquisa tenho buscado criar uma poética do tempo, na qual a presença de fungos em materiais de arquivo, aqui mais especificamente, materiais fotossensíveis analógicos, representasse um passado-presente temporal. Com o intuito de fortificar essa busca, tenho realizado experimentações entre o analógico e o digital, observando a tomada dos fungos nos materiais fotossensíveis e também fazendo processos de intervenção digital. Ao simular esse tomar fúngico, tenho a finalidade de acelerar o processo e visualizar uma estética da degradação e desgaste na imagem, que para mim é transformação e possibilidade.

No pensar a poética, o tempo é essencial como processo, tanto no desgaste da imagem, que possibilita a criação de uma nova imagem, quando na própria virtualidade da imagem, ou seja, aquela imagem que já foi presença um dia e que hoje se dá como presença quando observada, e, neste caso da película analógica ou de suportes fotossensíveis, pois aqui falo de materialidade e arquivo, quando a luz incide sobre ela.

Assim, busco, neste artigo, não somente trazer os processos que elevam a essa poética do tempo, mas também dialogar com diferentes autores tais como: Deleuze (2005), Couchot (2003), Derrida (2001) e outros, investigando uma teoria que aproxime a teoria do processo, que é constituído por meio de imagens já deterioradas pelo tempo e que são trabalhadas digitalmente, almejando uma estética maior de deterioração, ou, ao meu ver, transformação.

Em um primeiro momento será colocado a questão do tempo como forma de operacionalizar essa poética do tempo. Em um segundo momento, será elucidada a pesquisa ao qual venho trabalhando junto à hibridação natural, através das redes naturais de fungos e de forma induzida/manipulada, através da digitalização.

Em busca de uma teoria do Tempo

O tempo é intrigante por si só, pois é intocável, invisível, e, por ter uma “caráter” incontrolável, é passível de ser incompreendido e difícil de ser conceitualizado.

Diversos filósofos e autores tem buscando compreender o tempo. Deleuze (2005), em seus livros, busca aliar a imagem e o cinema a outros conceitos que se vinculam à memória e ao tempo. Em um primeiro momento, o autor, inspirado por Bergson, irá tratar da imagem-lembrança, imagem-sonho, imagem-ação, imagem-mundo, para só depois acabar adentrando ao conceito da imagem-cristal, imagem esta que “expõe” o tempo.

Para o autor, a imagem- cristal é atual e virtual e é bifacial, ou seja, “...tem duas faces que não se confundem” (Deleuze 2005, 88). Ainda, essa virtualidade e atualidade da imagem se correspondem, como se fossem um reflexo no espelho, ou seja, são duplos. Há como uma fusão, onde o objeto real se reflete, no que Deleuze chama de imagem especular, assim como o objeto virtual reflete o real. Para o autor, esse processo está inscrito dentro de um circuito da imagem atual e imagem virtual que se faz por processos, que se dão ao mesmo tempo, como de absorção e criação, de liberação e de captura dentro desse circuito, propiciando assim que, a fusão dessas imagens se dê também em um tempo virtual e um tempo atual.

Deste modo, o autor, citando Gaston Bacherlad, diz que essas imagens são mútuas, já que possibilitam essa troca, sendo avessas e reversíveis em um mesmo circuito, coabitando entre si, e fazendo com que coabite também um passado e um presente. Dessa forma, “... não há virtual que não se torne atual em relação ao atual, com este se tornando virtual sob esta mesma relação...” (Deleuze 2005, 89).

E é exatamente essa coabitação entre o passado e o presente, intrínsecos a imagem-cristal que tratará do tempo ao qual aqui busco teorizar. Ao adentrar as nuances do tempo, Deleuze retoma a Bergson, e coaduna com este, ao comentar que o passado é virtual, mas é atual também, assim como o presente, fazendo também com que a imagem-cristal passe em constante troca de uma imagem virtual para uma imagem real, que são diferentes, mas que ao mesmo tempo se constituem.

Então, não haveria uma cronologia, sendo que “o que é atual é sempre um presente. Mas, justamente, o presente muda ou passa. Pode-se sempre dizer que ele se torna passado quando já não é, quando um novo presente o substitui.” (Deleuze 2005, 99).

Ainda, segundo o autor, “o passado não sucede ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é a imagem atual, e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem especular.”(Deleuze 2005, 99).

Essa não cronologia, se dá na imagem-cristal, que é diferente da imagem-mental, da imagem-lembrança e da imagem-sonho, que segundo o mesmo, são cronológicas, visto que estas se dão em um processo de atualização ou em via de atualização na consciência ou em algum estado psicológico, fazendo com que as imagens sejam datadas, pois há sempre o vínculo com o antigo, ou seja, com o passado ou algo que remeta a esse passado, tornando essas imagens cronológicas. Já no que concerne a imagem-cristal, como a imagem-virtual é correlata da imagem-atual, ela não precisa de atualização, passando a se dar fora dos processos de consciência, ou seja, ela existe e se dá no TEMPO.

[…] a imagem virtual em estado puro se define, não em função de um novo presente com referência ao qual ela seria (relativamente) passada, mas em função do atual presente, do qual ela é o passado, absoluta e simultaneamente: particular, ela é no entanto ‘passado em geral’, no sentido em que ainda não tem data (DELEUZE 2005, 100)

Para Deleuze (2005), a imagem-cristal está totalmente vinculada ao tempo, pois é nela que vemos o tempo. É nela que o tempo se funda, como não cronológico.

A imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: já que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção ao futuro e a outra caindo no passado. É preciso que o tempo se cinda ao mesmo tempo em que se afirma ou desenrola: ele se cinde em dois jatos dissimétricos, um fazendo passar todo o presente, e o outro conservando o passado. O tempo consiste nessa cisão, e é ela, é ele que se vê no cristal. A imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não cronológico dentro do cristal, Cronos e não Chronos (Deleuze 2005, 102).

E se o tempo para Deleuze constituí um Cronos - não Cronos, Agamben (2009), em seu texto “O que é o contemporâneo?”, descreve um tempo contemporâneo que é além do tempo, ou seja, que em um primeiro momento não corresponderia ao tempo presente, mas que exatamente por ser anacrônico pode se deslocar de um tempo ao outro, passando a ver o tempo atual, percebendo-o e aprendendo-o. Pensando com o autor, o tempo se distanciaria a um passado, mas ao mesmo tempo estaria em um presente. Refletindo sobre o texto de Agamben, se há deslocamento e anacronismo, o tempo e suas ações estão em movimento, visto que o presente de agora é o passado de logo mais. Assim, qualquer manifestação temporal estaria sempre nesse limiar de origem e presente, de próximo e distante, corroborando com o que cita o autor de que mesmo a origem é contemporânea ao devenir da história, ao qual nunca para de operar e agir. Dessa forma, o movimento do tempo se dá em “[…] apreender o nosso tempo na forma de um “muito cedo” que é, também, “muito tarde”, de um “já” que é, também, um “ainda não”.” (Agamben 2009, 66). Esse tempo do passado que é presente se aproxima muito dessa relação na imagem do ser o passado e o presente no instante do olhar o material que do passado se faz presente. Com um ponto de vista diferente, Didi-Huberman (2015), vai comentar sobre como nós, seres, não permanecemos, sendo o tempo da imagem quase permanente em contraponto com o tempo vivido humano.

Diante de uma imagem - por mais antiga que seja - o presente nunca cessa de se reconfigurar... Diante de uma imagem - por mais recente e contemporânea que seja, ao mesmo tempo o passado nunca cessa de se reconfigurar, visto que essa imagem só se torna pensável numa construção da memória...Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o objeto de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento de duração (Didi-Huberman 2015, 16)

Este contexto exposto por Didi-Huberman (2015) serve para pensar sobre a própria deteriorização da película ou do material fotossensível, visto que ao pensar em uma poética do tempo, pensa-se também nesse presente-passado que constituí a matéria, o tempo passado-presente que encontramos em fotografias e imagens de arquivo.

Quando temos a materialidade da imagem em nossas mãos, essa materialidade tem um passado, mas que naquele instante também é um presente que já foi, ou como lembra Deleuze, o passado coexistiria com o presente que foi, e não pode substituí-lo, pois “pode-se sempre dizer que ele se torna passado quando já não é, quando um novo presente o substitui.” (Deleuze 2005, 99)

Sobre tempo, materialidade e transformação

O tempo é essencial uma dimensão da imagem, pois é através dele que consigo pensar nos processos intrínsecos às imagens de arquivo as quais resgato, visto que as mesmas foram produzidas em um passado, com pessoas, objetos e lugares que talvez nem existam mais, mas que no momento em que as percebo, essas imagens passadas se tornam presentes. Perceber é olhar, sendo assim para a imagem ser presente, ela precisa do outro que a olha.

Couchot (2003) comenta sobre a relação pintor-obra-observador e sua representação evocando o aspecto temporal da imagem. Para o autor, tanto na fotografia como na pintura, os sujeitos que estão representados nessas expressões não estão ali, assim, o passado e o presente se fundem somente no olhar de quem observa essa imagem. Aqueles que se encontram impressos na imagem, permanecem ali, se fundindo em passado e presente.

Rauscher (2020) irá trazer em seu trabalho a questão do espaço-tempo e diz que atualmente procuramos abolir distâncias, muito em consonância com o que se refere a quando em meio ao contato com a materialidade do arquivo fotográfico ou fílmico, o espaço-tempo não se constituí de forma afastada em termos temporais e muito menos espaciais. Pois a matéria e seu impresso está ali, em instante ao tempo e ao espaço.

Derrida (2001) retoma a questão da materialidade ao comentar sobre o arquivo, quando se questiona sobre o momento do arquivo através de seu processo de arquivamento e traz a tona a questão do suporte, como um lugar de inscrição e de registro do arquivo. E isto é importante, pois quando tratamos de uma imagem fúngica, tratamos de um invasor em um suporte onde se encontra o arquivo, ou seja, a materialidade. E no que concerne a questão temporal do arquivo, o autor irá comentar sobre a estrutura espectral que há no arquivo. Segundo o autor, “ela o é a priori: nem presente nem ausente “em carne e osso”, nem visível nem invisível, traço remetendo sempre a um outro cujo olhar não saberia ser cruzado […]” (Derrida 2001, 110). Para ele, o arquivo seria um espectro daquilo que já não está, mas ecoa por existir, seria uma volta ao passado, que ressoa no presente. É um porvir, um fantasma. Um fantasma que é presença, mesmo sendo passado. Se ter a matéria em mãos torna-a presente neste tempo, sob más condições de armazenamento, o arquivo também entra em processo de degradação e deterioração. E aos poucos, aquela imagem que acreditamos ser permanente, que segundo Didi-Huberman (2015), ultrapassa a nós mesmos, seres humanos, passa a não ser mais o que ela é de fato, e acaba se transformando.

Transformar, no caso do arquivo, busca um reinventar, um resignificar, principalmente diante de algo que passa por um processo temporal de degradação.

Em meio ao desgaste e degradação constante o mundo clama pela preservação e transformação como forma de tentar reorganiza-lo. REORGANIZAR, uma das diversas palavras usadas por Guattari (1989), ao lado de REINVENTAR. É necessário reolhar os processos atuais e a partir disso ressignificar e recriar os mesmos.

Ressignificar, palavra que está vinculada ao trabalho que exerço diante dos arquivos em material fotossensível. Arquivos são como memórias que se mantém em matéria e que sofrem desgastes do tempo, quando não preservados.

Porque não pensar esses arquivos desgastados pelo tempo como potência imagética? E é aqui que me aproprio da palavra e do contexto de REINVENTAR de Guattari, de RECRIAR com esses materiais. Os materiais são arquivos, ou seja, já estão, falta ressignifica-los e transforma-los. Quando trabalho com materiais degradados pelo tempo, seja por agentes orgânicos como os fungos ou ranhuras no material fotossensível, também trabalho esse resignificar o material, dar-lhes outro viés, outra cara. O material fotossensível considerado “corrompido”, sofre um processo que ao meu olhar torna-se vivo, híbrido. Híbrido organicamente, híbrido em seus processos temporais. Um processo vivo de hibridação que se junta a imagem possibilitando uma nova estética, baseada no deterioro: o hibridismo fúngico, que possibilita uma imagem fúngica.

O Hibridismo Fúngico

Para os puristas da fotografia, uma imagem ou material fotossensível tomada por fungos é sinal de alerta. Geralmente, ela é isolada e tratada ou virá descarte, antes que invada o resto do material. Na poética do tempo, trabalho com esses arquivos descartados, que já adentraram esse processo de deterioro, e que muitas vezes continuam, ao processo do tempo, crescendo como os fungos nas placas de Petry de laboratórios. O fungo invade, e em um processo de hibridação natural, se funde a matéria e possibilita a criação de uma nova imagem.

A imagem fúngica é uma imagem que demonstra a impermanência intrínseca ao tempo, e quando hibridizada de forma natural, ela não para de se transformar, até chegar a hibridação total, de forma que a imagem antes notada se desvela em uma nova forma imagética tomada por entes vivos reproduzíveis (Figura 1).

Figura 1 – Imagem fúngica de acervo pessoal - material de arquivo.

Uma hibridação natural como a gerada pelo fungo, que representa um tempo impermanente, também não se dá de forma tão agilizada. E nos processos de poética, com a finalidade de observar a tomada fúngica de forma rápida, engano o tempo, e simulo uma hibridação digital. E assim como os cineastas-artesãos citados por Scansani (2021), passo a ser uma artesã da imagem utilizando do desenvolvimento fúngico natural, para criar um processo fúngico digital, que exagera a colônia natural, fazendo está crescer e tomar novos tons e cores, através da hibridação e intervenção digital, em um processo analógico-digital.

Scansani (2021) irá comentar em seu texto que os cineastas-artesãos são aqueles que se apropriam de aparelhos já obsoletos e de materiais analógicos e os transformam, passando a criar espaços laboratoriais dentro de casa e facilitando o processo de criação de novas poéticas, permeadas pelo analógico e também pela provocação de processos de degradação nesses materiais, como os realizados pelo artista e fotografo Raoul Ubac (Figura 2), citado pela autora, que queimava o negativo fotográfico, com o objetivo de transformar/desintegrar a imagem.

Figura 2 – Raoul Ubac, La Nébuleuse, fotografia, 1939-40.
Fonte: https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/cyjjepd

O aceleramento na transformação/desintegração da imagem, pensado por Ubac, está de acordo com o aceleramento que as tecnologias atuais permitem. E nesse processo de aceleramento, lembro de Couchot (2003), quando comenta que os artistas procuram simular um real, através dos algoritmos.

O algoritmo é, na realidade, uma técnica particularmente adaptada ao computador para automatizar certos procedimentos de raciocínio que parecem ser colocados em jogo na criação artística. Ele obriga o artista a conceber um conjunto de operações que resultem na produção de uma imagem - ou de um som, até de um texto - definindo suas regras de maneira precisa e rigorosa, etapa por etapa. (Couchot 2003, 197)

E na ansia de acelerar os processos que se dariam de forma natural, busco uma aceleração digital, que une o orgânico e o não orgânico, a matéria e a virtualidade, o analógico e o digital. E assim crio uma nova imagem que irá embalar uma narrativa fílmico (Figura 3).

Figura 3 – Imagem fúngica intervencionada com processos de edição digital em Adobe Premiere - frame do curta-metragem “De Nombre Humano” da autora.

Em busca da poética do tempo, simulo o passar do tempo digitalmente, mas sem esquecer que mesmo esse tempo manipulado e simulado, também se mostra presente-passado simultaneamente. A imagem híbrida que se forma digitalmente traz em seu cerne o processo natural da tomada dos fungos no material analógico que persiste de forma acelerada e simulada na manipulação digital. E deste tomar fúngico e temporal, minha poética do tempo virá um curta-metragem e logo mais um espaço instalativo em vídeo, onde esses processos se fundem em um início de obra artística, em que o analógico e o digital também se hibridizam em um mesmo espaço-tempo.

Conclusão

Escrever sobre uma poética do tempo é escrever sobre um encontro que está e não está. É pensar um tempo passado que se constituí em um presente que já é passado. É pensar anacrônico. Em meu trabalho de catadora de imagens, pensar essa poética e entrar em contato com algo que ali já foi, mas que ainda está. Olhar imagens e dar a elas outro significado, pensar histórias, pensar deslocado do tempo, mas ao mesmo tempo dentro dele. Paul Valery fala que “escrever sobre o trabalho a ser feito é escrever sobre um processo em forma de espiral.”, tal qual Fibonacci em sua proporção áurea perfeita, o tempo também é espiralado e se repete, ou procura se manter repetitivo.

No meu trabalho poético penso nesse retorno ao passado. Olhar imagens recolhidas é ver algo que não me é familiar, mas que, ao mesmo tempo, se faz familiar. O toque na película e o cheiro avinagrado do envelhecimento provocam sensações ambíguas entre passado e presente, e me conduzem em um espiral temporal. Me sinto como uma artesã do tempo, que procura construir com esses materiais, que são descartados e que para muitos são inúteis em meio a contemporaneidade de telas e virtualidades. Este material permite discutir os efeitos do tempo, o tempo da obra em realização que garante uma nova temporabilidade. Ao receber aquilo que está descartado e abrir as caixas, o cheiro do tempo invade o espaço. Na película, as marcas e riscos do tempo se fazem presente e denotam o desgaste, assim como os fungos que deterioram slides e negativos fotográficos de outro tempo, dando a eles uma nova aparência causada pelas redes fúngicas. Esta condição propicia a aparição de efeitos fantasmagóricos e modificadores da imagem contida na película. Efeitos que, incorporados à uma obra, oferecem uma inovação estética através da conceituação dada à degradação causada pelos efeitos do tempo. Do ponto de vista biológico, são formas de vida deslocadas à vida da obra. Selecionar entre tantos possíveis, neste caso, é assumir o que resta para fazer da matéria trabalhada pelo tempo, o meio de realização de uma poética do que foi e que ainda pode ser. Retomar para isso, rostos desconhecidos, ou entre lugares que hoje já não estão mais, não se faz sem confrontação com meu tempo, com o desgaste do tempo, e com o tempo em devir da imagem. Sem dúvida, esse processo não é um processo fácil, pois nos transporta do presente vivido ao passado daquilo que resta na imagem face à exigente realização que a arte atesta. É através do movimento necessário entre a materialidade da obra artística e o pensamento do artista que, entre idas e vindas, erros e acertos, escolhas e decisões que a formalização teórica se torna possível.

A poética do tempo é um transportar no presente que torna tão singular a apropriação da imagem como ela me invade na consciência de sua presença passada.

Notas Finais

1Esse artigo faz parte da pesquisa de mestrado de Fabiane Duarte, sob orientação da Profa. Dra. Andreia Oliveira.

Referências bibliográficas

Agamben, Giorgio. 2009. O que é contemporâneo? e outros ensaios, Chapecó: Argos.

Couchot, Edmond. 2003. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual, Porto Alegre: Editora UFRGS.

Deleuze, Gilles. 2005. A imagem-tempo, São Paulo: Brasiliense.

Derrida, Jacques. 2001. Mal de arquivo: Uma Impressão Freudiana, Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Didi-Huberman, Georges. 2015. Diante do Tempo: História da Arte e Anacronismo das imagens, Belo Horizonte: Editora UFMG.

Guattari, Félix. 20011 As três ecologias, Campinas: Papirus.

Rauscher, Beatriz. 2020. “Geografias e Cronologias: aproximações - estratégias para tensionar os sentidos de espaço-tempo em fotografias” in Anais do 29º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - ANPAP: 1946-1964.

Scansani, Andrea. 2021. “A insurreição da imagem ou quando o cinema visita Raoul Ubac” In ARS (São Paulo) 19(41): 53-101.

Filmografia

De Nombre Humano. 2019. Fabi Ud (Fabiane Urquhart Duarte), Enrique da Rosa (co-autor/imagens doadas). Local: Santana do Livramento, 2019. Vídeo.