Capítulo / Chapter IV | Cinema – Tecnologia / Technology

Memories in motion: the creation of video Art through the anthropological archetype and the a/r/tographic and a/r/cographic models

Memórias em movimento: a criação de videoarte através do arquétipo antropológico e dos modelos a/r/tográfico e a/r/cográfico

Alexandre Catarino Oliveira Martins

Centro de Investigação em Artes e Comunicação

Universidade do Algarve, Portugal

Abstract

This article intends to carry out a brief analytical and critical synthesis and reflection on the methods and investigation strategies native to the field of research based on artistic practice. Methods that will be later applied during the conception of the project to organize and disseminate the documentary heritage of the film essayist Fernando Gonçalves Lavrador, transferred to Cine-Clube de Avanca in 2021. Besides the production of a digital archive built with the purpose of presenting the works and memories of Fernando Lavrador to the public, this initiative will also entail the creation of a set of digital and (audio)visual artworks, using the methodologies, concepts, and languages inherent to the fields of Video Art, Cinema and Experimental Poetry.

Keywords: Fernando Gonçalves Lavrador, Digital Art, Video Art, Cinema, Research Methods.

1. A memória e identidade como objeto de produção criativa em Média-Arte Digital

1.1. O Cine-Clube de Avanca e o espólio de Fernando Gonçalves Lavrador

No ano de 2021 era assinado um protocolo entre o Cine-Clube de Avanca (CCAVANCA), localizado no distrito de Aveiro, e a família do Eng.º Fernando Gonçalves Lavrador (Porto, 1928), autor de diversos livros e artigos dedicados aos domínios da Semiótica e da Estética, no qual a segunda parte interessada cedeu o espólio do Eng.º Lavrador, ficando o CCAVANCA encarregue de estudar, organizar e divulgar todo o seu conjunto documental composto por ensaios e livros de sua autoria, monografias das disciplinas do Cinema, Música, Arte, Estética, Semiótica, etc., revistas cinematográficas e de cultura, recortes de jornal, correspondências, rascunhos, programas, bilhetes e convites para festivais de cinema e outros eventos, folhetos, cassetes VHS, prémios, e diversos outros objetos1.

Figura 1 - Eng.º Fernando Gonçalves Lavrador (fonte: avanca.org)

Pela altura em que este protocolo é firmado, durante um ato cerimonial que ocorre durante o AVANCA FILM FESTIVAL 2021, o autor do presente artigo é nomeado para coordenar o projeto de estudo, organização e divulgação do espólio. Nesta fase primordial debate-se a hipótese de desenvolver um arquivo digital - após um trabalho metódico de inventariação/catalogação e de organização do espólio -, que servisse não só de veículo para aceder aos documentos do Eng.º Lavrador por parte de futuros investigadores do seu legado, mas de igual modo, que constituísse um meio para a criação artística audiovisual e digital, usando como matéria-prima a documentação supracitada.

Pouco tempo após o início dos trabalhos do cineclube sobre o espólio principiou-se a fase de inventariação da documentação depositada num dos edifícios da instituição. Este primeiro estágio de investigação exploratória e de registo ocorreu entre meados de setembro e inícios de novembro de 2021 e focou-se numa série de revistas cinematográficas e de cultura e nos objetos guardados no seu interior (rascunhos, programas, convites e bilhetes para eventos culturais, etc.). De momento a operação de registo encontra-se em hiato, prevendo-se que seja retomada na entrada do segundo semestre de 2022. Não obstante, o CCAVANCA entende que a iniciativa de realizar um estudo sistémico de toda a documentação – composta por milhares de objetos –, digitalizar parte desta e ainda criar um arquivo digital é um trabalho que levará várias temporadas para se concluir, devendo-se, por um lado, à dimensão e diversidade do espólio, e por outro à insuficiência de recursos humanos capazes de trabalhar continuadamente sobre os materiais. Assim sendo, as intenções e propostas para as primeiras temporadas deste projeto que encetou recentemente assenta em inventariar, catalogar, organizar e digitalizar uma porção (ainda não quantificável) do arquivo, arquitetar os alicerces para o desenvolvimento de uma base de dados apta a receber a informação digitalizada até então, e, sobretudo, realizar sessões de exposição do espólio e do trabalho que está a ser estudado, de forma a captar a atenção e interesse de investigadores e académicos e das comunidades local e (trans)regional – escolhas motivadas pelas relações que o Eng.º Lavrador criou e manteve com as regiões Norte e Centro2.

Figura 2 - Edifício-sede do CCAVANCA - em fase de construção -, futuramente o lugar de depósito do espólio (fonte: terranova.pt)

Figura 3 - Amostra de documentos referentes ao espólio (fonte: autor)

O ato de divulgação manifesta-se, portanto, como um elemento imperativo na formulação do projeto durante este seu primeiro ciclo de formação - a sua génese. Esta componente de divulgação tomará múltiplas formas, que por sua vez, poderão traduzir-se em conteúdos multidisciplinares e multifacetados. Para esclarecer o leitor sobre a variedade de resultados (hipotéticos) derivados da investigação do espólio, elenco as seguintes categorias de produção académica e artística propostas ao/pelo CCAVANCA:

1.2. Apresentação do projeto artístico: videoarte no espaço público

No mesmo plano de objetivos pretende-se organizar uma exposição a respeito da vida e obra de Fernando Gonçalves Lavrador elaborada a partir da documentação cedida ao cineclube e da investigação que esse ato despoletou. Como citado de antemão, o intuito de disseminar o espólio do Eng.º Lavrador constitui-se como uma ação primordial nesta fase incipiente do projeto. Por conseguinte, a proposta de realizar uma exposição como ato de divulgação destas duas componentes manifesta-se pertinente pela capacidade que estes tipos de iniciativas socioculturais têm de gerar discussão e de alcançar diferentes camadas da população. A exposição confluirá a matéria-prima que tem vindo aqui a ser listada com alguns dos diferentes campos e práticas artísticas associados à Média-Arte Digital, especificamente, mas não exclusivamente, a videoarte, uma escolha embasada na capacidade deste campo de agregar múltiplos subgéneros das artes (audio)visuais e digitais, mantendo, assim, relações próximas com os trabalhos e interesses de Fernando Lavrador. Com esta proposta procura-se aproximar os diferentes objetos físicos, compostos maioritariamente pelo papel, e os artefactos digitais, e debater temáticas alusivas ao Cinema, à Comunicação, à Arte e ao Belo, pondo a claro as diferentes facetas que compunham esta figura.

Intitulada vídeo experimental, nova televisão, vídeo de artistas, TV de artistas, ou até TV de Guerrilla, a videoarte é uma disciplina conciliadora de diversos campos artísticos, e.g. artes visuais, música, literatura, cinema, dança e teatro, extraindo conceitos e métodos de diferentes movimentos artísticos, teorias e avanços tecnológicos (Meigh-Andrews 2014). Como Cohn afirma, a videoarte surge na década de 1960 - num período em que novos instrumentos/tecnologias de registo de imagens, como gravadores de vídeo extrapolavam do mundo corporativo para o público -, “como uma estética da contracultura criando novos conceitos e formas que provocaram deslocamentos e desconstruções nos modos de se relacionar com as imagens” (as cited in Ramos e Coelho 2021, 200).

A videoarte define-se como uma forma de arte que utiliza a tecnologia de vídeo como meio visual e de áudio. Esta categoria de arte distingue-se dos preceitos cinemáticos e assume usualmente formatos distintos, como instalações expostas em galerias ou museus, vídeos transmitidos online ou atos performativos que incorporam aparelhos de televisão, monitores de vídeo e projeções, exibindo imagens e sons ao vivo ou gravados. Entre os seus pioneiros destacam-se os nomes Nam June Paik, (Coreia do Sul, 1932) e Wolf Vostell (Alemanha, 1932), duas personalidades ligadas ao movimento Fluxus - termo cunhado pelo artista e teórico George Maciunas (Lituânia, 1931) -, corrente artística que juntou um grupo de artistas empenhados em desacreditar as instituições culturais que governavam o panorama artístico vigente. Baseando-se em movimentos anti-arte como o dadaísmo ou os ready-mades de Marcel Duchamp (1887, França), estes artistas conceberam obras subversivas e até irónicas que tinham o propósito premeditado de confundir o público com conteúdos deliberadamente herméticos, organizando amiudadamente performances ao vivo ou happenings que eram críticos das sociedades materialistas e consumistas (Meigh-Andrews 2014).

Figura 4 - Electronic Superhighway: Continental U.S., Alaska, Hawaii, Nam June Paik, 1995 (fonte: Smithsonian American Art Museum)

Figura 5 - 6 TV Dé-Coll/age, Wolf Vostell, 1963 (fonte: Museo Reina Sofia)

Estes eventos presenciais destacam outra qualidade comumente associada à videoarte - a sua vertente transitória:

A natureza impermanente e efémera do vídeo foi considerada uma virtude por muitos dos primeiros praticantes: artistas que desejavam evitar as influências e o mercantilismo do mercado de arte foram atraídos por essa natureza temporária e transitória - trabalhar “ao vivo” poderia por si só ser uma política e afirmação artísticas. Mas a natureza impermanente do meio de vídeo exige algum tipo de registo, e parece provável que histórias escritas como esta sejam tudo o que resta. É claro que isso significa que muitas obras importantes serão inevitavelmente “excluídas” da história; perdidas, marginalizadas ou ignoradas (...). A história da videoarte, ao contrário da história da pintura e da escultura, não pode ser reescrita com referência a obras “seminais” ou canónicas - especialmente quando essas obras tiverem desaparecido. Também é óbvio que quaisquer gravações não consideradas “significativas” dificilmente serão preservadas, arquivadas ou restauradas. (Meigh-Andrews 2014, 6)

Este conceito torna-se pertinente abordar se tomarmos em conta que é precisamente para combater o esquecimento deste legado que se constrói um arquivo a partir do espólio do Eng.º Lavrador. Será, portanto, interessante abordar esta perspetiva e confrontar a noção de efemeridade subjacente às produções da videoarte com a ideia de permanência que se propõe ao transformar um aglomerado de papéis e outro tipo de memorabilia num arquivo digital.

Neste contexto é ainda intenção do autor produzir criações de videoarte que combinem os eixos texto-imagem-movimento. Para isso pretende-se incorporar as metodologias e linguagens de diferentes disciplinas que constituem as artes visuais e a literatura, entre as quais se destacam o campo da Word Art que faz uso da palavra como elemento nuclear da composição de obras visuais. Alguns dos artistas que integram este género artístico e que servem de primeiras influências são Jenny Holzer (E.U.A., 1950), Glenn Ligon, (E.U.A, 1960) e On Kawara (Japão, 1932). Por outro lado, objetiva-se incorporar expressões e propriedades do campo da poesia experimental portuguesa - ou da poesia visual ou da poesia concreta ou do caligrama ou da iconografia – servindo de inspiração os trabalhos de Ana Haterly (Portugal, 1929), E. M. de Melo e Castro (Portugal, 1932) e Alexandre O’Neill (Portugal, 1924), apenas para nomear alguns.

Esta convergência entre imagem e texto permitem, entre outros aspetos, explorar ainda a forma geométrica como componente artística real da obra. Nesta fase introdutória do projeto não é possível fazer uma apresentação extensa/completa dos tipos de figuras que serão apropriados e desenvolvidos, no entanto, a primeira opção recaiu na curva em espiral pela sua capacidade de transmitir uma ilusão de um perpétuo continuum, um dos conceitos-chave do projeto3. Esta iniciativa propicia igualmente uma exploração longitudinal sobre esta figura geométrica, debruçando-se nas suas relações com a Cultura – a sua simbologia para diferentes povos e religiões – e com a Arte – observando como diferentes artistas se apropriam desta forma, e.g. Spiral Jetty (1980) de Robert Smithson (E.U.A., 1938) ou Uzumaki (1998) de Junji Ito (Japão, 1963) – ou estudando as diferentes ilustrações deste objeto – e.g. a espiral arquimediana; a espiral logarítmica ou a espiral de Fibonacci - ou as suas diferente dimensões – bi e tridimensional.

Através da espiral – e de outras formas – procura-se (re)interpretar os textos escritos por e para Fernando Gonçalves Lavrador. Por fim, é importante conciliar estas imagens com o movimento - e daí resulta a produção em vídeo. Neste âmbito poderá ser ainda possível homenagear alguns dos artistas aqui citados, acrescentando uma nova dimensão às suas obras, convertendo o seu carácter estático em cinético – a título de exemplo serve como referência de inspiração o filme experimental dadaísta Anémic Cinema de Marcel Duchamp (ver figura 8).

Figura 6 - Postal referente ao espólio de Fernando Gonçalves Lavrador (fonte: autor)

Figura 7 - Opressão, Alexandre O’Neill, 1972 (fonte: Arquivo digital da PO.EX)

Figura 8 - Colagem de fotogramas do filme Anémic Cinéma, Marcel Duchamp, 1926 (fonte: MoMA)

2. Análise das metodologias do processo de investigação e criação em Média-Arte Digital

2.1. Os modelos a/r/tográfico e a/r/cográfico na investigação baseada em prática artística

Enraizada no campo da educação e das artes, a/r/tografia4 é uma forma de investigação baseada na prática (Candy 2006), que em conjunto com outras metodologias fundamentadas, informadas e esteticamente definidas pela arte apresenta-se como um modelo emergente de investigação que procura na arte um novo método generativo de conhecimento (Irwin et al. 2006, Irwin 2013). Este processo de investigação forma-se através de atos de pesquisa que se vão construindo com recurso à escrita e às artes, não se manifestando como um processo fundamentado em fórmulas, mas como um rumo fluido capaz de gerar o seu próprio rigor por intermédio de ações de reflexividade e de análise contínuas (Springgay et al. 2005).

Neste contexto, as artes - e por extensão as artes digitais - e a educação, são capazes de se complementar, ecoar e resistir por meio de relações rizomáticas5 de pesquisa vivida, afetando o modo como entendemos a teoria e a prática, o objeto e o processo. A teoria deixa de definir uma conceção abstrata e começa a englobar um modo de investigação vivida, um espaço relacional intersticial para criar, ensinar, aprender e pesquisar num estado constante de devir. Para os a/r/tógrafos este conceito significa teorizar por via da investigação, um procedimento que compreende uma evolução de indagações. Esta atitude dinâmica que versa na geração de novo conhecimento, informa as práticas do artista-investigador, tornando os seus estudos emergentes, reflexivos e reativos. O processo transforma-se num ato de invenção onde as ideias surgem de encontros e relações sociais (Irwin et al. 2006).

Este modelo de pesquisa sugere seis conceitos metodológicos - contiguidade, investigação vivida, metáfora e metonímia, aberturas, reverberações e excesso - que se destinam a operar como provisões para (re)escrever a pesquisa e a cultura que se manifestam nos cruzamentos entre o saber e o ser.

  1. Contiguidade - A a/r/tografia aproxima a imagem e a palavra, a arte e a escrita, duplicando o visual e o textual onde ambos se complementam, refutam e subvertem. Este ato de geminação interessa na conceção de uma metodologia que inclui processos e produtos visuais e escritos de um texto de pesquisa. A contiguidade também é enfatizada através da nossa compreensão dos papéis do artista/pesquisador/professor ou das práticas de produzir/pesquisar/ensinar em arte.
  2. Investigação vivida - A/r/tografia é uma prática vivida na qual o artista-investigador expõe as suas práticas de vida de modo evocativo por meio da atenção à memória, identidade, reflexão, meditação, interpretação e representação. Os a/r/tógrafos representam as suas interrogações, práticas, pensamentos emergentes e textos analíticos criativos enquanto integram o saber, o criar e o fazer por meio de experiências estéticas que transmitem significado em lugar de factos.
  3. Metáfora e metonímia - Por meio de relações metafóricas e metonímicas, tornamos determinados conceitos acessíveis aos sentidos, seja através da substituição de significantes, onde um significante toma o lugar do outro; ou do deslocamento na relação sujeito/objeto (relação palavra-palavra, imagem-palavra ou imagem-imagem).
  4. Aberturas - Como uma prática de construção de significado, a/r/tografia fundamenta-se numa multiplicidade de perceções mantidas entre e dentro de formas sensoriais e textuais de conhecimento. Como investigação vivida, é um processo de abertura de textos, de uma busca contínua de compreensão.
  5. Reverberações - As reverberações dentro do modelo a/r/tográfico revelam os movimentos/os tremores que deslocam novos significados à tona - vibrações que permitem que o criar/pesquisar /ensinar arte ressoem com ecos uns dos outros.
  6. Excesso - O excesso é uma prática contínua que se preocupa em criar uma abertura na linguagem onde o controlo desaparece, ao invés de adicionar factos ou números ou imagens ou representações. O excesso é uma forma de nos (re)imaginarmos no ser, reconstruindo a essência mundana das nossas experiências (Springgay et al. 2005; Springgay e Irwin 2004).

De acordo com Veiga (2020b), a a/r/tografia interroga metodicamente a prática artística em curso, tornando-se possível gerar novos conhecimentos, ao contrário de descobrir e retratar realidades já exploradas e disseminadas. O mesmo autor, seguindo este modelo teórico, sugere um sistema que complementa e evolui a partir d’a/r/tografia. A a/r/cografia6 (Veiga 2020a, 2020b, 2021) é uma proposta que melhor se adequa ao âmbito da investigação e criação em Média-Arte Digital - não descurando, claro, outras formas de arte - dado que possui uma componente forte de generatividade, proporcionando alterações circunstanciais que podem vir a acontecer, por exemplo, através dos contributos da audiência. Outro aspeto assenta no facto que essas alterações não dispõem de um grau de destruição como o que sucederia numa pintura ou escultura. Ao invés disso, as artes computacionais convidam à coexistência de múltiplas versões do mesmo artefacto artístico, i.e., todas as formas anteriores da obra podem ficar registadas e reservadas para futuras/diferentes exposições que podem conviver ao mesmo tempo. Como o autor refere:

Se a a/r/tografia já era considerada uma metodologia de situações pelos seus criadores, então claramente a a/r/cografia é uma metodologia de generatividade, podendo conduzir a mudanças imprevistas através de contribuições de amplas e variadas audiências; passando por estágios através dos quais os próprios artistas evoluem, através da comunicação – reflexivamente, através da escrita e autoanálise; com o público, envolvendo-se em conversas, entrevistas ou questionários; ou com outros artistas ou pares académicos, através de análises e visões compartilhadas. Desta forma os artistas refinam e fazem evoluir os seus artefactos artísticos enquanto reflexo dessa mesma comunicação, incorporando o processo nas próprias obras de arte.
(Veiga, 2020b, p.98)

Tal como o procedimento a/r/tográfico, a a/r/cografia identifica um conjunto de preceitos, materializados em forma de etapas - inspiração, gatilho, intenção, conceptualização, prototipagem, teste e intervenção -, que compõem o processo da investigação criativa.

  1. Inspiração - Surgindo como o primeiro passo de criação em a/r/cografia, a inspiração expressa-se como as sementes do processo criativo/artístico, que num momento preliminar, podem não ser identificáveis, não obstante, os seus efeitos fazem-se notar através da obra. Visto que a inspiração pode não advir de uma única matriz é preciso que outras circunstâncias a complementem, encontrando-se, por isso, sujeita a um processo constante de metamorfose.
  2. Gatilho - Na perspetiva a/r/cográfica, o gatilho patenteia um dado acontecimento que serve de estímulo para a definição da pergunta de investigação e para a procura de uma linha de investigação teórica, estética ou técnica - esta irá, ulteriormente, estipular uma suposição ou intenção de pesquisa. Esta etapa pode ser ainda potenciada pelas motivações e contexto de vida do artista.
  3. Intenção - No sistema alvitrado por Pedro Veiga, a fase de intenção corresponde à questão de investigação/artística, sendo concomitantemente motivo e pergunta. A intenção do a/r/cógrafo age como uma referência, surgindo através de questões e de processos metódicos de levantamento, confrontação/analogia, experimentação e interpretação de informações.
  4. Conceptualização - Quando a intenção se aclara, o a/r/cógrafo pode reunir e relacionar diferentes sementes de inspiração por meio da investigação e da experimentação, conseguindo reivindicar um conceito, intentar uma hipótese de estudo, uma visão dos possíveis resultados consequentes dessa intenção ou um protótipo conceitual do trabalho no momento de conclusão. O a/r/cógrafo é capaz de alcançar a conceptualização do artefacto artístico/digital recorrendo a um exame profundo que resulta na subsequente execução, pela via de refinamentos iterativos, perfazendo numa apresentação pública.
  5. Prototipagem - A etapa de prototipagem é um momento em que os artistas-investigadores consolidam as suas convicções servindo-se, para isso, dos processos de pesquisa, atingindo assim conhecimentos que enriquecerão toda a comunicação futura. Este estágio é desenvolvido, sobretudo, através da investigação, experimentação e interpretação fenomenológica hermenêutica. Os procedimentos interligados que dependem destes são: a) Investigação; b) Experimentação; c) Reverberação; e d) Filtragem.
  6. Teste - A etapa de testagem fundamenta-se nos mesmos métodos da prototipagem, no entanto, estes são agora reforçados por apresentações públicas e por levantamento de feedback externo - este segundo pode ter uma influência positiva no projeto e fortalecer a confiança do investigador-artista no caminho que está a percorrer, podendo o a/r/cógrafo, assim, definir e implementar possíveis reestruturações no artefacto e realizar um novo ciclo de exibições. Esta fase divide-se em seis subprocessos: a) Investigação; b) Experimentação; c) Reverberação; d) Apresentação pública; e) Feedback do público; e f) Filtragem.
  7. Intervenção - Por fim, surge a etapa da intervenção, processo intimamente associado ao impacto que o a/r/cógrafo tenciona causar, aquando da entrega dos resultados do seu trabalho ao público geral, i.e., objetos, textos, informação catalogada, exposições, etc. Apesar de ser o último passo, a intervenção pode não se constituir como o estágio final do processo criativo, dado que o desenvolvimento do projeto poderá resultar numa (re)visita das etapas anteriores, por parte do a/r/cógrafo, levando este a propor e implementar mudanças, para atingir um novo estágio de intervenção (e.g. uma futura exposição ou um novo artigo). Tal como a fase anterior, a intervenção subdivide-se em diferentes funções: a) Exposição; b) Catalogação; c) Comunicação; d) Feedback do público; e e) Filtragem (Veiga, 2020a).

Figura 9 - Mapa mental das etapas do método a/r/cográfico (fonte: Veiga 2021, 18)

Na senda das metodologias de investigação baseada na prática, a a/r/tografia e a a/r/cografia propõem um sistema de pesquisas que consubstanciam a escrita e a produção artísticas, num continuum fluxo de questionamento e de distanciamento de postulados tendo como intuito um processo generativo de novas e múltiplas compreensões sobre um objeto de estudo/sobre uma obra de arte (digital), contribuindo, desta forma, para a produção e disseminação de novos conhecimentos. Estes modelos manifestam-se, portanto, como componentes fundamentais na construção das diferentes obras digitais que o autor se propõe a conceber a partir do espólio de Fernando Gonçalves Lavrador, orientando os processos de investigação e produção baseados na prática artística.

2.2. Subsídios da matriz antropológica e dos métodos etnográficos na prática artística

A identificação e análise do diálogo entre os campos da arte e da antropologia não são recentes. Desde finais do século XX (1990s) que assistimos a um incremento da problematização das cooperações entre os dois domínios de conhecimento (Almeida 2013). Segundo Dias (2001), os temas de identidade e identificação que imperavam no discurso antropológico, ocupam igualmente uma posição enfática nas produções criativas e artísticas. Da relação bilateral e coadjuvante entre estas duas áreas resulta um cenário em que ambas versam assuntos análogos e onde o trabalho artístico assume reiteradamente o papel do etnógrafo e ocasionalmente as suas metodologias.

O mesmo autor (2002) aponta dois rumos distintos para o desenvolvimento da interlocução entre o investigador-artista e as ferramentas teórico-metodológicas do campo antropológico:

1) indagação das formas tradicionais que a antropologia manifesta quando lida com a construção do outro cultural, e.g. a recolha de artefactos, o seu tratamento em museus, a representação de outrem em exposições, etc.; e 2) a utilização pelos artistas dos processos etnográficos da observação participante7, tendo como intuito a participação em políticas localizadas de representação e diferença - preocupação estética e topográfica recorrente da arte in situ.

Por conseguinte, o trabalho de pesquisa do artista em muito se assemelha ao trabalho etnográfico de campo, onde este tenta, por vezes, confrontar a sua visão de dada realidade com a essa própria realidade (Vale as cited in Lapa 2008). Esta preocupação traduz um reconhecimento dos criadores sobre a importância da interação entre a antropologia e as práticas artísticas, que incluem, por exemplo, uma forte componente de trabalho in loco e uma interlocução com os agentes locais; e corresponde ainda a uma reflexão sobre os pontos basilares que formam o universo antropológico contemporâneo, i.e., globalização, emigração, pós-colonialismo, género, poder e identidades nacionais, levando o artista a interpelar e a criticar a sua sociedade (Almeida 2013).

Tomando o exemplo da artista plástica Ângela Ferreira (Portugal), esta preocupação encontra-se bem patente nas suas práticas artísticas, porquanto esta utiliza as suas criações como uma forma de questionamento da(s) sua(s) história(s), política(s) e memória(s), trabalhando, de igual modo, os conceitos de cultura, contexto cultural, alteridade e identidade, ferramentas que deriva da antropologia - aproximando-a do antropólogo at home num esforço de pegar na sua própria cultura como objeto de crítica (Sandqvist 2007; Almeida 2013).

O campo da antropologia e das metodologias etnográficas, conciliadas através - mas não exclusivamente - do estudo de campo e da observação participante, assim como as preocupações artísticas por temas anteriormente associados à antropologia como as questões identitárias, motivaram o surgimento de novas dimensões no processo criativo do artista, servindo de resposta para algumas inquietações que, por vezes, atormentam os criadores contemporâneos, e pondo a descoberto novas realidades que os próprios desconhecem. A antropologia e a etnografia desempenham uma função valorosa em diferentes processos e estágios da produção criativa, servindo de elemento basilar na análise e descrição de culturas, subculturas ou grupos estrangeiros ou da própria identidade cultural, na autoreflexividade ou na representação de identidade e memória humanas, aspetos que serão tidos em conta ao longo da idealização, planificação, construção e divulgação dos diferentes artefactos artísticos que irão configurar o presente projeto.

3. Considerações finais

O projeto que agora principia tem como objetivo central formar as bases para o estudo do espólio de Fernando Gonçalves Lavrador e para a constituição de um arquivo digital que seja alvo de pesquisa por parte de novos investigadores. Durante este primeiro esforço, o espólio necessita de um processo de inventariação e organização de um segmento da documentação. Assim se começa a construir este arquivo que trará novos contributos para a História da Arte (cinematográfica)! A partir desta parcela de documentos estudados pretende-se captar a atenção de diferentes públicos na esperança de que uma ou outra personalidade venha a coadjuvar a contínua conceção deste arquivo. Em vista disso, o ato de comunicação revela-se uma estratégia essencial. Nesta corrente decidiu-se fazer uma apropriação e transformação da matéria-prima em artefactos digitais, com particular atenção para o campo da videoarte, recorrendo, para isso, aos sistemas de investigação e criação baseada na prática artística, onde os modelos a/r/tográfico e a/r/cográfico, assim como a matriz antropológica e as metodologias etnográficas emergem como orientadores nas mais variadas etapas que compõem a (pré/pós) produção de um projeto artístico em Média-Arte Digital.

Notas Finais

1Uma volumosa porção da documentação pertencente ao espólio do Eng.º Fernando Gonçalves Lavrador encontra-se atualmente por analisar. Deste modo ainda não é possível aferir, concretamente, a extensão e variedade de documentos presentes nesta massa documental.

2Fernando Lavrador frequentou o Liceu Alexandre Herculano, onde conheceu outros estudantes com os quais colaborou na fundação do Clube Português de Cinematografia, hoje o Cineclube do Porto, associação da qual foi dirigente e sócio honorário. Foi ainda dirigente do Clube de Cinema de Coimbra, colaborador do Cineclube de Aveiro e um dos fundadores e dirigente da Cooperativa de Cinema “Grande Plano”, Aveiro.

3A palavra continuidade acarreta um valor significante sobre o estudo do espólio de Fernando Lavrador tomando uma posição central na conceção das fundações do arquivo digital, assim como das criações artísticas que aludem ao trabalho que será desenvolvido pelo CCAVANCA nos próximos anos.

4Do inglês a/r/tography = a(rt)/r(easearch)/t(eaching)+grahpy.

5Rizoma - Termo originário da botânica i.e um sistema de talos, e mais tarde apropriado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1987) para definir, entre outros aspetos, um modelo epistemológico sem raízes, onde o pensamento flui de forma não linear e que circunscreve uma multiplicidade de dependências, descurando a noção que um conhecimento pode suplantar outro.

6A(art)/r(easerch)/c(ommunication)+grafia

7No campo etnográfico a observação participante é uma ferramenta fundamental de pesquisa para obter novos entendimentos. Este processo sucede através de observações diretas de comportamentos e interações com outras pessoas num ambiente de investigação. Neste contexto, o investigador terá de viver ou realizar visitas contínuas ao local de observação e de participar nas atividades cotidianas do grupo envolvido no seu estudo.

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