Abstract
The problem of the sense-production accompanies us throughout history and intensifies with each new technological paradigm. When we think of webdocumentaries (or webdocs), the universe of sense-production involves some typical concepts of digital writing that deserve to be rethought, such as interactivity, linearity, multilinearity and the very concept of narrative. From the analysis of 109 webdocumentaries made over two decades (2002-2020), which remain online, it was possible to verify an overlap between the formatting of the main webdocs production software and the standardization of the narrative structure as a reflection of the argorithmic configuration of each one of them. Flash and HTML (dominant during the first decade), Korsakow, HTML5, Klynt, RacontR, acted, each in its own way, according to the results obtained, decisively in the organization of contents, navigability, usability, hypertextuality and interactivity.
Keywords: Webdocumentary, Algorithmic, Narrative
Introdução
A produção de sentindo integra o rol das mais complexas atividades a que nos debruçamos e imbrica-se de modo inequívoco ao espectro cultural.
Tal problemática nos acompanha ao longo da história e intensifica-se a cada paradigma tecnológico que surge. Quando pensamos em webdocumentários (ou webdocs), o universo da produção de sentido envolve alguns conceitos típicos das escritas digitais que merecem ser repensados, a exemplo de interatividade, linearidade, multilinearidade e o próprio conceito de narrativa.
A esse respeito, Aristóteles (384 – 322 a.C.), em sua Poética, já discorria sobre a especificidade da produção narrativa em diferentes gêneros: a exemplo da epopeia, poesia trágica, comédia. A todas chamava de artes da imitação e pontuava: “[...] seus meios não são os mesmos, nem os objetos que imitam, nem a maneira de os imitar” (ARISTÓTELES, 2004, p. 4).
A preocupação de Aristóteles voltava-se, inclusive, para buscar os critérios que diferenciavam cada gênero, como mostra a seguinte passagem:
Sem estabelecer relação entre gênero de composição e metro empregado, não é possível chamar os autores de elegíacos, ou de épicos; para lhes atribuir o nome de poetas, neste caso temos de considerar não o assunto tratado, mas indistintamente o metro de que se servem. Não se chama de poeta alguém que expôs em verso um assunto de medicina ou de física! Entretanto nada de comum existe entre Homero e Empédocles salvo a presença do verso. Mais acertado é chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, fisiólogo. (ARISTÓTELES, 2004, p. 6).
O autor preocupava-se, ainda, com o fato de que: “Os seres humanos sentem prazer em olhar para as imagens que reproduzem objetos. A contemplação delas os instrui, e os induz a discorrer sobre cada uma, ou a discernir nas imagens as pessoas deste ou daquele sujeito conhecido” (ARISTÓTELES, 2004, p. 6), buscando, assim, diferenciar o conceito de imagem da perspectiva platônica (como uma projeção da mente) e tomá-lo a partir de uma representação mental do objeto real, sendo capturada através dos sentidos. Para Aristóteles o pensamento não ocorre sem imagens, “não se pode pensar sem imagens”.
Nos webdocs a relação entre o texto verbal e o audiovisual assume novos contornos, intensificando a premissa de que pensamento e imagem são intercomplmentares, estruturando a narrativa desenvolvida.
O foco deste estudo, portanto, irá concentrar-se nas possibilidades de construções narrativas hipertextuais a partir da utilização de softwares de editoração de webdocs, cuja lógica algorítmica estruturante termina por levar a uma certa forma de padronização.
Por lógica algorítmica compreende-se o conjunto de processos desenvolvidos na programação de um software. Para Milková e Hůlková (2013), a lógica algorítmica funda-se num processo organizacional do pensamento, que precede a atividade de programação propriamente dita:
Logical thinking is an important foundation skill.
Albrecht in his book says that the basis of all logical thinking is sequential thought. This process involves taking the important ideas, facts, and conclusions involved in a problem and arranging them in a chain-like progression that takes on a meaning in and of itself. To think logically is to think in steps. Let us add that sequential thought can be enhanced through the development of algorithmic thinking and that algorithmic thinking can be deeply enhanced in the subjects dealing with combinatorial optimization (MILKOVÁ E HŮLKOVÁ, 2013, p. 44).
Assim, é possível depreender-se que a lógica algorítmica subjacente ao software utilizado na produção dos webdocs, em certa medida, pode condicionar as estruturas narrativas e, mesmo, padronizá-las.
Estruturas narrativas entre documentários e webdocumentários
Como demonstra o percurso etimológico do termo, narrativa decorre da reunião do verbo latino narro (contar), acrescido do sufixo, também latino, “tive”, um formador de adjetivos que indica possibilidade, capacidade, ação.
A narrativa, portanto, reveste-se de uma estratégia para contar uma história, uma história dirigida à uma audiência, contemplando um ponto de vista que contém algumas configurações essenciais, a exemplo da voz, do tempo e do ponto de vista narrativo, este último, foco do principal interesse para a análise, aqui empreendida, dos webdocumentários.
Bill Nichols (2007), ao discorrer sobre relação entre as formas da retorica e as vozes da enunciação expositiva no documentário, discute a narrativa “direta”, “do cinema-verdade”, mais especificamente atribuída ao documentário, indo buscar apoio na narrativa reflexiva e na prevalência de seu compromisso ético. Nichols (2007) frisa que todo filme é um documentário, seja ele do tipo “satisfação dos desejos” (situado no campo da ficção) ou do tipo da “representação social” (que compreenderia a não ficção), o que os diferencia é justamente a especificidade da narrativa.
Por outro lado, Toni de Bromhead (1996), faz um contraponto aos modos de documentários propostos por Nichols (2007) - poético, expositivo, participativo, observacional, reflexivo, performativo – e apresenta a sua própria nomenclatura – linear, discursivo, episódico, poético e híbrido, criticando a posição de Nichols (2007), segundo a qual todo documentário pertenceria ao campo do racional e ponderando que os documentários demandam uma resposta emocional, empatia e, portanto passam pelos corações e almas e não só pela mente (“hearts and souls not just minds”).
Tais nomenclaturas já indicam alguma forma de estandartização que se desdobra em um conjunto de tipologias.
Ambas as abordagens vêm sendo reinventadas quando se pensa na produção digital, no suporte da internet e na interatividade. Desde o final da década de 1970, Nicolas Negroponte (1995) tratava da “passagem de átomos para bits”, antevendo um momento em que o processo de digitalização seria substituído pela produção digital.
As mudanças de base tecnológica, evidentemente, implicaram em desdobramentos no campo dos códigos e das linguagens, uma vez que novos suportes passariam a permitir composições diferentes, seja a estrutura hipertextual, a edição digital, a interatividade.
A interatividade, por sinal, continua desafiando pesquisadores e realizadores, provocando debates acerca de temas como autoria, processo de interação, graus de interatividade e seus limites. Gaudenzi (2013), Aston e Gaudenzi (2012), com base nos estudos de Gifreu-Castels (2011) e Galloway et al. (2007), propõem uma mudança de foco, deixando de partir das tecnologias interativas utilizadas para pensar na lógica de interação.
Em tal contexto, o cinema experimentou inúmeras transformações, inclusive no que tange à produção e estruturação de documentários e, mais recentemente, de webdocumentários ou webdocs, como costumam ser chamados.
O termo webdocumentário aplicado a um produto cinematográfico, foi, provavelmente, criado em 2002, no festival de documentários Cinéma du Réel (embora o termo WebDoc já tivesse sido utilizado para se referir a documentos produzidos ou disponibilizados através da web) e, na ocasião, foi classificado como um gênero largamente inexplorado, pois seus limites ainda não estavam claros. Os organizadores do festival esclareciam:
É um documentário que trabalha com ferramentas multimídia, textos, imagens, vídeos, uma maneira de colocar novas tecnologias a serviço do conhecimento e sob um ponto de vista (CINÉMA DU RÉEL, 2002, online) (tradução própria).
Por meio de sua interface gráfica, a web abriu espaço para dar ao documentário um novo status, desta feita, mediado pelas tecnologias digitais, e, no dizer de Manuela Penafria (2013, p. 150): “[...] o certo é que as tecnologias são um elemento fundamental para se afirmarem, renovarem e concretizarem diversas estéticas e diferentes modos de representação”.
Com a implantação dos processos digitais, o cinema inicia um novo ciclo, passando a contar com outros tipos de janelas de exibição, a exemplo dos dispositivos móveis, tablets e smartphones. Estes últimos vêm se constituindo no principal meio de acesso à web, com aproximadamente 4 bilhões de usuários (STATISTA, 2021).
As salas de cinema vêm perdendo espaço para novas janelas de oportunidade, a exemplo do VOD (vídeo on demand) e dos canais de streaming, reconfigurando desde a produção até o consumo dessa modalidade cultural (FRANÇA, 2019, 2020).
Plataformas como a Netflix, Amazon Prime Video, HBO GO, Telecine Play, YouTube, passam a ser preferenciais na escolha do público, especialmente com as restrições impostas pela pandemia de Covid-19.
O YouTube, aliás, aparece como segundo maior website do mundo, com 34,6 bilhões de visitas/mês e a Netflix, como 17º, recebendo 2,4 bilhões de visitas/mês (NEUFELD, 2021).
A expansão da comunicação digital levantou novas questões acerca do processo de alfabetização digital, alfabetização midiática, letramento digital, processos estes que se constituem em etapa intrínseca à análise do webdocumentário, posto que não se resume a tentar oferecer possibilidades narrativas, mas, sim, de entender os modos pelos quais esse conjunto de informações será recebido.
Essa relação do consumidor com a novas mídias, e com o processo de alfabetização para essas novas mídias, foi estudada por Kress (2004), que mostrou, mais uma vez, tratar-se de uma prática social, com resultados sociais diferenciados, apontando para o fato de que a alfabetização digital em termos mais amplos, ainda não se configurou:
Language-as-speech will remain the major mode of communication; language language-as-writing will increasingly be displaced by image in many domains of publication communication. [...] The combined effects on writing of the dominance of the mode of image and of the medium of the screen will produce deep changes in the forms and functions of writing. This in turn will have profound effects on human, cognitive/affective, cultural and bodily engagement with the world, and on the forms and shapes of knowledge (KRESS, 2004, p.1).
A argumentação de Kress (2004), ainda se mantém ratificada na atualidade, mais de uma década depois, como salientam Lackovic (2020), Stix e Jolls (2020), Buckingham (2019), Bulger e Davison (2018) e Silverblatt (2018).
Para Lackovick (2020), a interpretação e o entendimento de mundo, num momento de hiper visualidade, remediação (BOLTER e GRUSIN, 1995; BOLTER, 2005), mediamorfose (FIDLER, 1997) e migração de conteúdos entre formas diferentes são fundamentais para conhecer o atual estado da mediação “media - ser humano”.
Os estudos sobre alfabetização digital, alfabetização midiática, constituem-se em etapa intrínseca à análise do webdocumentário, posto que não se resume a tentar oferecer possibilidades narrativas, mas, sim, de entender os modos pelos quais esse conjunto de informações será recebido.
Esse, talvez, seja um dos grandes desafios da convergência midiática, tentar superar as lógicas tradicionais de consumo de informação, sem cair nas armadilhas dos discursos parciais, fragmentados, incompletos, ou que podem levar à desinformação, às fake news ou à consolidação de uma estrutura de pós-verdade.
Do Flash ao Klynt: a padronização narrativa
A presente pesquisa baseou-se na análise de 274 webdocumentários (116 dos quais permaneciam online em dezembro de 2020) realizados durante aproximadamente duas décadas (2002-2020), incluindo todos os títulos recuperados através de” pesquisa no motor de buscas do Google, com a utilização dos operadores lógicos “webdocumentário”, “webdocumentary”, “webdoc”, “webdocumentaire”, “webdocumental” e “webdocumentário”; pesquisa de teses, dissertações, monografias e artigos científicos; pesquisas nos bancos de dados do IDFA, Docubase/MIT DocuLab e Festivais de webdocumentários. Foram escolhidos, ainda, os idiomas: Português, Inglês, Espanhol, Italiano e Francês, para fins de composição da amostra (Tabela 1).
ANO | ONLINE | OFF LINE | Total |
---|---|---|---|
2002 | 1 | 4 | 5 |
2003 | 1 | 1 | 2 |
2004 | - | 4 | 4 |
2005 | - | 3 | 3 |
2006 | 1 | 4 | 5 |
2007 | - | 7 | 7 |
2008 | 1 | 7 | 8 |
2009 | 3 | 12 | 15 |
2010 | 4 | 22 | 26 |
2011 | 6 | 28 | 34 |
2012 | 12 | 24 | 36 |
2013 | 16 | 17 | 33 |
2014 | 17 | 8 | 25 |
2015 | 9 | 5 | 14 |
2016 | 5 | 2 | 7 |
2017 | 10 | 5 | 15 |
2018 | 12 | 3 | 15 |
2019 | 10 | 1 | 11 |
2020 | 8 | 1 | 9 |
Total | 116 | 158 | 274 |
Elaboração própria. Tabela 1 – Número de webdocumentários identificados na amostra (2002-2020)
Durante a primeira década (2002-2011), 59,6% utilizaram a tecnologia Flash e 25,8% HTML (HyperText Markup Language); os demais dividem-se, principalmente, entre Korsakow, Klynt e Mobile.
Labourdette (2012) pontuava que o Flash, originalmente desenvolvido pela Macromedia e posteriormente adquirido pela Adobe, foi um plugin, com capacidades multimídiáticas, fundamental, portanto, para a produção de webdocumentários, pois já estava instalado na maioria das máquinas. Com a proibição da Apple em instalar o Flash em seus dispositivos móveis (iPhone e iPad), resultado de uma trade war, o HTML evoluiu para o HTML5, mas, ainda, seu emprego era mais complexo do que o do Flash (LABOURDETTE, 2012).
Em abril de 2010, Steve Jobs, então CEO da Apple, havia escrito uma carta aberta explicando as razões que impediriam os dispositivos móveis da empresa de incorporar a tecnologia Flash: consumo rápido de energia, diminuição da performance, possibilidades de crashes nos computadores, não suporta a tecnologia touch, além da falta de segurança causada pela intermediação de uma terceira parte entre a interface e o desenvolvedor (JOBS, 2010, online).
Já no período de 2012 a 2020, o Flash foi utilizado em apenas 16,3% dos webdocs. O HTML/HTML5 assume a liderança nas preferências, com 42,4% do total, com o Flash quase empatando com o Klynt (15,7%).
O ano de 2012 marca a chegada de uma versão mais robusta do HTML (Hypertext Markup Language): o HTML5, também chamado de “Flash-killer”, levando ao abandono progressivo da tecnologia Flash, definitivamente descontinuado em 31 de dezembro de 2020.
Nota-se, também, o aumento no número de tecnologias disponíveis: RacontR, Unity, Inter, Mobile, Ajax, Animação, Javascript, Cowbird, Arduino, Apache, DVD, MySql, Magellan Authoring Software, Quick Time, Roundware, Angular, Popcorn, ScanLab, muitas vezes utilizadas em conjunto com o HTML5.
A Tabela 2 apresenta a distribuição de utilização dos softwares ao longo dos anos:
ANO | Flash | HTML/ HTML5 | Korsakow | Klynt | Mobile | RacontR | Unity | Inter | Outros | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2002 | 2 | 1 | - | - | - | - | - | - | 2 | 5 |
2003 | - | 1 | 1 | - | - | - | - | - | - | 2 |
2004 | 3 | - | - | - | - | - | - | - | 1 | 4 |
2005 | 3 | - | - | - | - | - | - | - | - | 3 |
2006 | 4 | - | - | - | - | - | - | - | 1 | 5 |
2007 | 2 | - | 1 | - | 1 | - | 1 | - | 2 | 7 |
2008 | 4 | 3 | - | - | 1 | - | - | - | - | 8 |
2009 | 9 | 5 | - | - | - | - | - | - | 1 | 15 |
2010 | 17 | 7 | 1 | - | 1 | - | - | - | - | 26 |
2011 | 21 | 11 | 2 | - | - | - | - | - | - | 34 |
2012 | 15 | 17 | 1 | - | 1 | - | 2 | - | - | 36 |
2013 | 7 | 18 | 2 | - | 2 | - | - | - | 4 | 33 |
2014 | 3 | 15 | 1 | 1 | 2 | - | - | 1 | 2 | 25 |
2015 | - | 7 | - | 3 | 2 | 1 | - | - | 1 | 14 |
2016 | 1 | 1 | - | 1 | 1 | - | - | - | 3 | 7 |
2017 | 1 | 4 | - | 5 | 1 | - | - | - | 4 | 15 |
2018 | - | 4 | - | 6 | - | - | - | 1 | 4 | 15 |
2019 | - | - | 1 | 7 | - | - | - | - | 3 | 11 |
2020 | - | 4 | - | 3 | - | - | - | - | 2 | 9 |
Total | 92 | 98 | 10 | 26 | 12 | 1 | 3 | 2 | 30 | 274 |
Elaboração própria.
Tabela 2 – Linguagens utilizadas na produção de webdocs – 2002-2020
A partir de 2014 0 formato dos webdocs vai sendo modelado por um novo software, o Klynt, da Honkytonk Films, lançado em 2011, mas que começa a se tornar popular, como indicam os dados da amostra desta pesquisa, em 2014, com A Global Guide to the WWI (Figura 1), do The Guardian, Ilha Grande e Pedalei até aqui (Bug 404) e O som dos sinos (Marcia Mansur, Marina Thomé, Figura 2), todos de 2015. Até 2013 o Klynt era Flash-based, ou seja, utilizava o Flash como base de programação, mas com a sua descontinuidade, passou a ser desenvolvido sobre a plataforma HTML5.
The Guardian.
Figura 1 – A Global Guide to the WWI
Marcia Mansur, Marina Thomé.
Figura 2 – O Som dos Sinos
A estrutura de menus, a navegabilidade e a lógica narrativa são influenciadas pelo algoritmo do Klynt. Em uma análise comparativa entre o Klynt e o Korsakow, Mac (2014), ressalta que:
No Klynt, os links são fixos e não dinâmicos: o sistema reage à entrada do usuário, entregando caminhos pré-estabelecidos. Gaudenzi define essa interação como “reativa”. Em outras palavras, o autor sempre saberá os possíveis resultados de clicar em um link.(tradução própria).
Mesmo com links fixos o Klynt permite a interatividade e a organização da narrativa de modo não-linear, reescrevendo, dessa forma, os processos de interpretação e construção do conhecimento.
Outro software que vem sendo utilizado para a Criação de webdocs é o RacontR, software proprietário lançado em 2014, aposta na amigabilidade do uso, dispensando conhecimentos aprofundados de programação, oferecendo recursos mais amigáveis, como drag-and-drop e one-click-publishing. Na amostra o primeiro webdoc que utilizou o RaconrR foi Las rutas de oro, de Audrey Cordova, Jérémy Joly e Jimmy Carrillo (Figura 3).
Audrey Cordova, Jérémy Joly e Jimmy Carrillo
Figura 3 – Las Rutas de Oro
Muito embora o Korsakow seja um dos softwares mais utilizados ao longo das duas décadas pesquisadas, a maioria dos títulos encontrados aparece como offline, indicando possíveis problemas com a hospedagem, uma vez que a tecnologia se mantém ativa.
Em uma entrevista a Jeffrey Young (2014) para o Nieman Storyboard, o criador do Korsakow e, mais do que isso, um teórico acerca da não-linearidade narrativa, Florian Talhofer ressalta que:
We are basically able to see the things that we can put into linear stories, but we don’t have a good talent for seeing things that we cannot put in to a linear format but They are still there” (TALHOFER apud YOUNG, 2014, online).
Como uma das etapas metodológicas de sua dissertação de mestrado, Dutremble-Rivet (2019) realizou uma análise comparativa entre esses três últimos softwares mencionados – Klynt, Korsakow e RacontR. Acerca das funcionalidades oferecidas pelos dois primeiros, a autora pontua:
Klynt allows for fixed curated paths that follow a given trajectory .Korsakow on the other hand relies on media linked through keywords called SNUS (Smallest Narrative Unit). The main difference between Korsakow and Klynt is that the former relies on dynamic paths while Klynt is based on predetermined closed paths.
Buscando ampliar a compreensão sobre as SNUS, Talhofer (2017) esclarece que: enquanto um filme linear é composto pela conexão de cenas, num filme não-linear desenvolvido com o Korsakow, as SNUS funcionam como múltiplos pontos de contato (POCS – Points of Contact). Tal recurso, em tese, oferecia uma maior plasticidade durante as interações. Soar (2014) considera o Korsakow um software de segunda geração (second-wave software), que funciona a exemplo de uma GUI (graphic-user interface), tornando-se, assim, mais acessível para os realizadores que não conhecem muito das linguagens de programação.
A escolha de um software para a produção de um webdoc, argumenta Soar (2014) termina por levar em conta uma série de aspectos que, muitas vezes, se distanciam dos objetivos inicialmente propostos, senão vejamos: custo do software, nível de conhecimentos de programação, tamanho da equipe, suporte técnico oferecido pela empresa de software, adaptabilidade à múltiplos dispositivos, podem ser barreiras que o realizador encontra ao escolher a plataforma que irá programar, o que o faz sacrificar algumas das ideias originais, adaptando-as aos recursos disponíveis.
Por outro lado, é importante considerar que o público ainda não tem o hábito de lidar com estruturas não lineares. Soar (2014) relata que já ouviu reclamações de os webdocumentários que usam o Korsakow são “languidos” e poderiam/deveriam ser mais dinâmicos. O autor entende que a proposta do Korsakow é mesmo a de oferecer um conteúdo organizado de modo mais contemplativo, permitindo, dessa forma, a reflexão, a exploração mais cuidadosa dos elementos apresentados:
Korsakow films require attention and a reasonable investment in time without distractions (using headphones and toggling the films to full screen mode certainly helps, too). They’re also technically conservative in the sense that they don’t begin by asking for your Facebook login info (Prison Valley); they don’t place the viewer at the centre of the narrative, explicitly inviting them to play a role in the story (Journey to the End of Coal). Korsakow films don’t change to match the weather at the moment of viewing (Millionth Tower),nor can media assets be instantly reassembled into striking visualisations (The Whale Hunt). While some might see non-linear documentaries as a decisive break with the past, one could argue that Korsakow films, in their ‘langour’, have more in common with a ‘discourse of sobriety’ (Nichols 2010, p. 36) than their ‘propulsive’, or kinetic, or ludic contemporaries (SOAR, 2014, p. 160).
A fala de Soar (2014) evidencia uma desconexão: a linguagem do webdoc demandaria um tempo e uma forma de consumo que estão em desacordo com as práticas contemporâneas, rápidas, curtas, sintéticas, fragmentadas, multitela, enfim, num ritmo mais vertiginoso e de assimilação mais rápida e, quase sempre superficial.
De modo mais abrangente, verifica-se que os diferentes algoritmos empregados pelos softwares promovem s modelagem dos títulos, num tipo de estandartização que interfere na narrativa proposta inicialmente.
Conclusão
Transcorridas quase duas décadas de sua apresentação no Cinéma du Réel (2002), o webdoc ainda esbarra em uma série de confusões e incertezas que, por vezes, questionam a sua própria existência, como ponderam Bole e Mal (2014) quando perguntam: “O webdoc existe?”. Os autores o veem como uma:
Tentativa de contar uma história que começaria com um filme, para ser mais bem desconstruída poucos minutos depois com as armas de hoje, as armas da web, hipervídeo e hipertexto” (BOLE e MAL, 2014, online).
Além do aspecto da não linearidade, outra característica do webdoc merece atenção: a interatividade. Gaudenzi (2013) formulou o conceito de living documentaries, ou seja, aqueles que podem ser “construídos” pelo leitor a partir de recursos de interatividade.
A autora definiu quatro modos de interatividade: conversacional, hipertexto, participativo e experiencial, gerando estratégias para que sejam definidos percursos de leitura, incorporação de novos elementos e, em alguns casos, co-criação por meio do webdoc interativo, também chamado de i-doc.
No entender de Bole e Mal (2014), o uso da interatividade ao se contar uma história é, ainda, incomum. Na mesma linha dissertam: Nash (2011), Gifreu-Castels (2011), Aston e Gaudenzi (2012), Nash, Hight e Summerhayes (2014), Soar (2014), Wolf (2018), discutindo os limites e as possibilidades da interface entre web e os documentários.
Mesmo potencialmente inovadores, os recursos interativos ainda não são plenamente utilizados, o que mantém a proximidade entre documentários e webdocumentários, na medida em que parte destes últimos utiliza o suporte da rede, mas mantém um conjunto de fragmentos fílmicos lineares que são combinados e recombinados na experiência de navegação, mas não chegam a provocar uma verdadeira disrupção com a forma linear do documentário e de sua montagem.
No que diz respeito à utilização de algoritmos padrão de cada software e a receptividade de suas audiências, cabe tecer algumas considerações.
Na primeira década foram recuperados 109 títulos e na segunda 165, mas verifica-se uma tendência de diminuição a partir de 2015.
Entre as explicações possíveis estão o esgotamento do gênero, numa era de rápidas transformações, a exemplo dos newsgames, formato interativo de notícias que foi muito popular na primeira década deste século, e a complexa relação do público com a interatividade e com as narrativas não-lineares.
Um recente estudo, de maio de 2020, traz alguns dados indicativos desse contexto. Segundo Ducasse et al. (2020) ponderam que:
There is a lack of available empirical data regarding how do users actually consume and interact with web documentaries, as these are mainly produced by private production companies that do not reveal such data. Some organizations such as DocSociety provide case studies, but these studies focus on the impact of web documentaries at a macro-level (i.e., by measuring press coverage) and do not consider users’ interactions and behaviors (DUCASSE et al., 2020, online).
Os autores remetem a análises de audiência em webdocs lineares (tradicionais) e não-lineares, a exemplo da conduzida por Alkarimeh (2019, online):
Results showed that interactivity affected perceived interactivity, which was itself correlated with perceived involvement and attitude toward the website. Interestingly, it also showed that participants in the low-interactivity condition demonstrated a greater narrative engagement than participants in the high-interactive condition.
Como destaca Alkarimeh (2019), a interatividade pode, em certa medida, afetar o engajamento e o envolvimento com a narrativa do webdocumentário.
Em casos de baixa velocidade de conexão ou utilização de dispositivos de performance reduzida, a espera entre cada laço interativo pode levar ao abandono da atividade.
Epstein e Knowlton (2015) examinaram a audiência em projetos não-lineares na web e concluíram que, em média, os visitantes de mídias imersivas: consomem 20% do conteúdo disponível; gastam cinco minutos na navegação; 75% dos visitantes são novos e 25% retornam; as produções independentes costumam ter entre 10.000 e 20.000 visitantes e as produções com parcerias do mainstream entre 100.000 e um milhão (EPSTEIN e KNOWLTON, 2015, online).
Tais índices indicam que o modelo de negócios desse tipo de produção deve ser bem específico para gerar retorno. Os webdocs têm, quase sempre, altos custos de produção, sejam eles diretos ou indiretos, assim, passada a fase eufórica de experimentação da primeira década, os investidores parecem estar se afastando do modelo.
Outra análise acerca da audiência, desta feita realizada por Aufderheine (2015), também indica tempos de permanência no site entre 2,25 e 9 minutos, taxa de retorno ao site entre 20 e 26% e uma taxa de rejeição que, em alguns dos webdocs examinados, chegou a 75%.
Tais considerações ajudam a melhor compreender o cenário da segunda década de produção de webdocs. 2012 foi o ano com maior número de títulos listados na amostra, 36, indicando o reconhecimento do webdoc como gênero em fase de consolidação.
O Open Documentary Lab do MIT (Massachusetts Institute of Technology) foi fundado exatamente em 2012, numa iniciativa que visava explorar novos horizontes do documentário num momento de revolução das mídias. Marcou a abertura do Open Documentary Lab o evento New Arts of Documentary, focado na discussão de temas como autoria, forma textual, interatividade e novas práticas em narrativas não ficcionais.
O contexto apresentado envolve uma questão central: o chamado algorithmic editing. Para muitos pesquisadores (MILES, 2013; SOAR, 2014; TALHOFER, 2017) trata-se de um processo cultural, marcado pelo distanciamento da roteirização do filme documentário, pelas estruturas de narrativas não-lineares, pela multiplicação de pontos de vista.
Esse conjunto inicial de premissas permite considerar que os elementos centrais do webdoc, navegabilidade, interatividade, hipertextualidade, organização de conteúdo, dependem, fundamentalmente, do tipo de algoritmo que estrutura o software, o qual, por sua vez, pode interferir significativamente na receptividade do público.
Finalmente, o clássico debate entre forma e conteúdo volta a ser evocado: o modo como os webdocs são construídos, a base algorítmica que os propulsiona, são parte integrantes dos estudos voltados para a compreensão dessas novas maneiras de produzir documentários.
Bibliografia
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Aston, Judith e Gaudenzi, Sandra. (2012), “Interactive documentary: setting the field”, In: Studies in Documentary Film, 6: 2, pp. 125–139.
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