Capítulo / Chapter IV | Cinema – Tecnologia / Technology

Cinema, reality and technology in convergence

Cinema, realidade e tecnologia em convergência

Luiz Philipe Fassarella Pereira

Faculdade Pitágoras, Guarapari/ES, Brasil.

Rodrigo Octavio D’ Azevedo Carreiro

Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

Abstract

This paper proposes an articulation between three axes that converge in what we call the Reality Effect throughout the text: cinema, reality and technology.

Cinema, its representations of reality and the possibilities opened up by the popularization of image and sound capture and editing devices allowed the seventh art to significantly expand its realistic capacity, through the incorporation of aesthetic-narrative elements typical of “amateur” productions, “homemade”, “non-professional”, through the establishment of a stylistic alluded, with increasing significance, to false found footage and mockumentary. The convergence and participatory culture that dominates online platforms is not just through devices, but in the heads of individuals who are increasingly able to recognize and interpret an “unconventional” cinematographic language. The path established throughout the text intertwines these issues through authors and filmic examples.

Keywords: False Found Footage, Mockumentary, Reality Effect, Home Vídeo, Digital.

Um real ficcional, uma ficção realista: dispositivos e evolução de uma estilística

Como recurso de veracidade, as imagens amadoras foram incorporadas e pautam inúmeros editoriais telejornalísticos, trafegam como material de arquivo em documentários, recebem ênfase e apelos melodramáticos nos momentos mais íntimos de reality shows e programas de auditório, adornam categorias da pornografia mainstream, tornaram-se a matéria-prima de estilos fílmicos vanguardistas (...). Cada vez mais a cultura popular parece solicitar o envolvimento criativo de seus consumidores, exibindo-os através de inúmeros produtos e janelas, de editoriais jornalísticos a programas de auditório, de concursos promocionais a conteúdos autogerados em sites e plataformas digitais. Esta reabilitação e cooptação de conteúdo produzido por pessoas que estão fora da indústria foram sentidas pelo subgênero como um conflito midiático em algumas narrativas. Uma fobia da mídia industrial que contorna as narrativas promovidas por ela, e que acabam sendo citadas e repetidas pelas produções independentes e amadoras (BRAGANÇA, 2016, p. 35).

Originário, a priori, da influência de uma cultura de produção popular, não profissional, os false found footage e mockumentary foram incorporados progressivamente pela indústria do entretenimento (inclusive pela produção publicitária, em certo nível), principalmente pela cinematográfica, com o intuito de ser consolidado como uma alternativa em muitos casos mais barata de produção, bem como uma ferramenta, formato, capaz de mexer com as emoções do espectador de forma mais ostensiva, intensa pela “aproximação” visual e psicológica incorporadas e estimuladas. Não obstante o “formato” é muito utilizado em filmes de terror/ horror que buscam provocar reações enérgicas em seu público, fomentando o que alguns pesquisadores classificam como found footage horror e mockumentary horror. Tais efeitos são alcançados, muitas vezes, pela apresentação de uma hibridização de sua linguagem e familiaridades exploradas pela representação de “situações domésticas”, câmeras de vigilância e (não)atuações “não profissionais”; nutrindo-se de um momento histórico cuja representação e autopromoção exibicionista compõem o cotidiano e se estabelecem em um pretenso e importante conflito em emergência acelerada entre indústria cinematográfica e a ascensão do espectador produtor. Momento esse em que as condições tecnológicas, sociais, comunicacionais e psicológicas distribuem o protagonismo na produção e disseminação de conteúdo para a parte que era tida até então como passiva e reativa, à mercê daquilo que a indústria do entretenimento produzia à regalia de suas diretrizes e interesses. Essa apropriação e ressignificação dos processos de produção estimula e naturaliza no cotidiano dos receptores/ produtores formatos “menos profissionais”, tornando banal e, mais uma vez, cotidiana a linguagem e recursos estéticos e narrativos explorados pelos false found footage, mockumentaries e “formatos” relacionados à representação diária em plataformas abertas como youtube e outras redes sociais.

Foi o enorme sucesso de bilheteria, devido a repercussão e estratégias de marketing específicas para o estilo do filme, que fizeram com que The Blair Witch Project, no final da década de 1990, se tornasse um fenômeno mundial que (re)inaugurou para o grande público o false found footage e mockumentary. Foi em meio a especulações, lendas urbanas criadas, folclore e histórias repassadas adiante, espalhadas pela internet e repercutida pelos veículos de comunicação de massa da época que a Bruxa de Blair se tornou um fenômeno mundial, principalmente devido a camada de realismo, mistério e surpresa que constituíam a obra1. “O filme, que chegou a ser divulgado pela internet como documentário, conta a história de um grupo de jovens que resolve investigar a lenda de uma bruxa em um bosque da cidade de Burkittsville” (ACKER, 2017, p. 17).

A Bruxa de Blair, assim como alguns antecessores de menor repercussão, lança uma tendência que alcançará seu vigor nas primeira década do século seguinte à sua estreia; assim o filme dirigido por Daniel Myrick e Eduardo Sánchez estabelece a pedra fundamental para referenciar toda uma geração de produtores e de obras que progressivamente exploraram novos aspectos do realismo cinematográfico. Ao ponto de que alguns anos depois, a franquia Paranormal Activity (Atividade Paranormal), tendo o primeiro da série dirigido por Oren Peli e lançado entre 2007-2009, alcançaria também enorme repercussão, se desdobrando em seis longas subsequentes e um sétimo filme que encontra-se em produção (2020). Todas as obras da franquia utilizam o Efeito de Realidade2, com a aplicação de dispositivos e premissas semelhantes.

Bruxa de Blair e Atividade Paranormal se destacam, dentre outras questões, em dois aspectos fundamentais: primeiro por mostrarem que um formato de produção e uma nova proposta de constituição estética e narrativa, própria da mistura de linguagens, pode se configurar de forma inteligível e atrativa ao público e, portanto, se tornam lucrativas e eficientes em termos de mobilização dos afetos3 e dos contingentes humanos. A longevidade e desdobramentos da franquia Atividade Paranormal comprovam a eficiência e rentabilidade do formato; em 2016 é lançado também a Bruxa de Blair 2, que continua a incorporar a estilística do false found footage/ mockumentary. E na contramão da indústria cinematográfica hollywoodiana, Bruxa de Blair e Atividade Paranormal - além de outros congêneres - mostram que é possível obter sucesso de bilheteria, boas críticas e uma repercussão generosa sem extravagantes investimentos.

Em especial esse último aspecto estabelece diálogo direto com produtores iniciantes, entusiastas do audiovisual e curiosos, para produção de seus “pequenos” filmes, muitos deles experimentais, difundidos nas redes sociais e postos em plataformas como o youtube4.

Afirmações daquilo que é mais “real” ou “autentico” são geralmente usadas por cineastas que procuram revitalizar características/ estruturas já muito familiares ao gênero, uma dimensão do filme de horror considerada por Peg Aloi no capítulo 15, “Beyond Blair Witch: A New Horror Aesthetic”. Impressões de autenticidade são geralmente o resultado de fatores mais práticos, no entanto, como Aloi sugere no caso de A Bruxa de Blair, são as produções americanas de terror contemporâneas Session 9 (2001) e Wendigo (2001) e precursores como Noite dos Mortos Vivos (1968), de George Romero, que criam um casamento perfeito entre baixo orçamento e uma estética realista. No contexto específico do horror/ terror para Aloi, é uma reação contra o mainstream e sua espetacularização baseada em efeitos especiais gore das superproduções, uma renovação do horror através de lições aprendidas do trabalho do coletivo Dogma na Escandinávia5
(KING, 2005, p. 20).

O bojo dos chamados (false) found footages relaciona filmes com estética amadora, adoção de características estéticas e narrativas do cinema documentário, registro supostamente feitos em situação de perigo ou curiosidade, sem intenção prévia de realização cinematográfica, mais ligado à autopromoção de pessoas “reais e suas câmeras”; gravações feitas através da câmera e tela de computadores, celulares e câmeras não profissionais, na maioria das vezes operadas por “não profissionais”; câmeras de segurança/ vigilância e repórteres durante a apuração ou investigação de alguma notícia etc. Ainda que o prólogo ou justificativa dessas obras não se constitua ou apoie-se na perspectiva de que o produto audiovisual é resultado de um registro encontrado (found footage), a determinação contempla, numa percepção primeira, todas essas variações de obras que utilizam dispositivos realistas para sua constituição e mobilização da audiência.

O que chamamos de prólogo, ou justificativa inicial dessas obras, é esmiuçado de maneira funcional e técnica (em termos de legibilidade) pela pesquisadora Julian Petley, no texto intitulado Cannibal Holocaust and the Pornography of Death, “capítulo” 14 do livro The Spectacle of the Real (2005), editado por Geoff King. No texto em questão a autora analisa o emblemático filme de Roggero Deodato, Cannibal Holocaust (Holocausto Canibal, 1980) e indica a importância dos créditos finais da obra - que na verdade operam com os mesmos preceitos que geralmente são empregados no prólogo/ justificativa - para composição do filme, condução da audiência, potencialização e justificativa dos dispositivos realistas e, portanto, elementos estéticos e narrativos adotados. Essa inserção de informação no final da obra em questão serve para sinalizar ao espectador o porquê daquele registro ter “chegado até ele” de maneira organizada.

Poucos são os filmes que mostram tanta preocupação em validar o status indexados às suas imagens. Assim, por exemplo, um título de abertura afirma: “Por uma questão de autenticidade, algumas sequências foram retidas/ mantidas em sua totalidade”. E, no final, para o caso de alguém estar se perguntando como eles viram as imagens que aparentemente foram destruídas, um título final revela que: “O projecionista John K. Kirov foi condenado a dois meses de prisão e multado em $10.000 por apropriação ilegal do material filmado. Sabemos que ele recebeu $250.000 pela mesma filmagem” 6. Um primeiro segmento dos filmes “found footage” que estabelece cuidadosamente o fato de que a equipe de filmagem tinha duas câmeras, o que explica satisfatoriamente, em termos diegéticos, as cenas em que vemos membros da equipe realmente filmando (PETLEY, 2005, pp. 177-178).

Holocausto Canibal conglomera características da estilística false found footage e mockumentary, utilizando alguns dispositivos realistas, dos quais três premissas se destacam e justificam os recursos estéticos e narrativos adotados: emprega-se estratégias típicas do cinema documentário, relacionando elementos estéticos e narrativos de uma abordagem que privilegia - simbólica e ficcionalmente - a captação do fato, a importância da informação, do ineditismo e do suposto “acaso” 7 em detrimento ao apreço pela qualidade técnica e linguagem típica do cinema ficcional da indústria hollywoodiana (que fica em segundo plano; perspectiva importante para história do cinema documentário, pois é estabelecida pelo movimento chamado Direct Cinema); o emprego de linguagem e elementos estéticos e narrativos da telerreportagem, ou do telejornalismo, com características similares às indicadas acima; e a justificativa de que o filme que chega até o espectador - através de um dos interlocutores na diégese - é resultado de um material encontrado na floresta Amazônica e que fora perdido por seus autores/ realizadores, tendo sido posteriormente compilado e reapresentado por aqueles que tinham interesse em conhecer o destino dos envolvidos na filmagem, chegando ao público - fora da diégese - de maneira ilegal. Na construção sustentada por esses pilares o filme de Deodato fomenta e permite classificações que colocam sua obra no balaio dos false found footage e também do mockumentary, sendo por isso e outras características considerado por pesquisadores como um filme protótipo de um subgênero que ajuda na ascensão do formato, como indica Rodrigo Carreiro em seu texto A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror:

A produção de falsos documentários de horror codificados como found footage, que se tornou massiva nas últimas duas décadas, tem concretizado um fenômeno cinematográfico digno de interesse. Esse tipo de filme, híbrido de ficção e documentário, começou a ser explorado em meados dos anos 1970. O formato foi cristalizado pelo longa-metragem italiano Canibal holocausto (Cannibal holocaust, Ruggero Deodato, 1980), marco fundamental do falso documentário no cinema (PIEDADE, 2007, p. 376). Passou então a ser explorado, ainda de forma tímida e esparsa (BORDWELL, 2012). Quase vinte anos se passaram antes que o falso found footage se tornasse um formato popular entre cineastas, o que ocorreu após a boa recepção de crítica e de público ao filme A bruxa de Blair (The Blair witch project, Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, 1999)3. A partir de então, a produção de falsos found footage explodiu em quantidade, a ponto de parte da crítica jornalística dos Estados Unidos criar uma alcunha esse tipo de produção: found footage genre8
(2013, p. 226).

Do ciclo familiar, aos espaços coletivos e públicos

Essa nova pedagogia dos sentidos, ou transformação e modernização sensória do espectador, parece emergir em tempos de digitalização da linguagem e dos meios e formas de comunicação; transformações que insinuam passos e familiarização progressiva do público - receptor e logo produtor - com a popularização da película e câmeras 16 e 8 milímetros, criadas para provocar e atender, por conseguinte, uma demanda “caseira” nos indivíduos para produção de seus pequenos filmes de família, ou até pequenas ficções9. Na esteira do progresso e desenvolvimento tecnológico as câmeras eletrônicas, que não utilizavam mais películas, mas fitas magnéticas para o registro de imagem e som sincrônicos e no mesmo suporte e dispositivo, representaram outro salto na difusão de uma linguagem menos técnica, profissional, instigando entusiastas na produção de pequenos filmetes; sejam os tradicionais filmes de família, de viagem, casamento e confraternizações, ou suas experiências no universo audiovisual. A emergência da produção eletrônica, da digitalização do processo de montagem, portanto a edição, impulsionou de forma importante esse processo em que o privado - vídeo “familiar” - se tornou público - exibição desse material para além do ciclo de pessoas próximas.

Obviamente os chamados filmes caseiros existiam antes das tecnologias digitais e discussões sobre a difusão dessas obras para o grande público antecedem os anos 1990; como indica Henry Jenkins, ao fazer alusão ao livro Reel Families: A Social History of Amateur Film (1995), da historiadora Patricia R. Zimmermann, em que examina a “interseção entre a produção não profissional e o sistema de entretenimento de Hollywood” (2009, p. 199), a produção amadora existe desde o advento da sétima arte, ainda no início do século XX, e sua interferência na indústria do entretenimento sempre foi mais parte de discussões do que das práticas estabelecidas, tendo assim nenhuma interferência, em qualquer nível, sobre os modelos consolidados:

(...) o filme amador permanece, acima de tudo, como “filme caseiro” em vários sentidos do termo: primeiro, filmes amadores eram exibidos principalmente em espaços privados (em sua maioria, domésticos), sem qualquer canal público de distribuição viável; segundo, filmes amadores eram quase sempre documentários da vida doméstica e familiar; e, terceiro, filmes amadores eram considerados tecnicamente falhos e de interesse marginal, além da família. Os críticos destacavam a falta de qualidade artística e a espontaneidade do filme amador em contraste com o acabamento técnico e a sofisticação estética dos filmes comerciais. Zimmermann conclui: “filme amador foi gradualmente restringido ao núcleo familiar. Padrões técnicos, normas estéticas, pressões de socialização e objetivos políticos desviaram sua construção cultural, transformando-o num hobby privatizado, quase bobo” 10. Escrevendo no início dos anos 1990, Zimmermann não via motivos para acreditar que a filmadora e o videocassete alterassem significativamente a situação. As limitações técnicas tornavam difícil a edição de filmes aos amadores, e os únicos meios públicos de exibição eram controlados pela mídia comercial (...) (JENKINS, 2009, p. 200).

No entanto Jenkins reflete, após as referências feitas acima em que o autor indica a perspectiva de Zimmerman sobre o confinamento dos filmes amadores e as limitações que os restringem a um público específico, que “a produção digital de filmes alterou muitas das condições que levaram à marginalização as iniciativas anteriores (2009, p. 200). Segundo Jenkins:

(...) a web fornece um ponto de exibição, levando o cineasta amador do espaço privado ao espaço público; a edição digital é muito mais simples que a edição do Super-8 ou do vídeo e, portanto, abre espaço para artistas amadores remodelarem seu material de forma mais direta; o computador pessoal possibilitou ao cineasta amador até imitar os efeitos especiais associados a sucessos de Hollywood (...). O cinema digital é um novo capítulo da complexa história das interações entre cineastas amadores e mídia comercial. Esses filmes continuam amadores, no sentido de que são feitos com orçamento baixo, produzidos e distribuídos em contexto não comerciais e criados por cineastas não profissionais (embora muitas vezes sejam pessoas que desejam entrar para esfera comercial). Contudo, muitos dos criadores clássicos de filmes amadores desapareceram. Esses filmes não são mais caseiros, e sim públicos - públicos porque, desde o início, são destinados a espectadores que vão além do círculo imediato de amigos e conhecidos; públicos em seu conteúdo, que envolve a recriação de mitologias populares; e públicos em seu diálogo com o cinema comercial (2009, p. 200).

Nessa perspectiva é que Henry Jenkins sinaliza, sem indicar ainda plataformas como o youtube, o processo de transposição dos filmes, da linguagem e dos elementos estéticos e narrativos daquilo que chama filmes caseiros de domínios de interesse restrito, menor, para o interesse coletivo, um público muito maior do que os membros de certo núcleo familiar ou de amigos. Essa apreciação irrestrita e possibilidade de auto representação e/ ou apresentação de trabalhos/ projetos para outrem progressivamente naturaliza a linguagem “caseira” e as limitações orçamentárias e técnicas indicas por Jenkins como uma forma de entretenimento, primeiro alternativo - alternativo em relação à linguagem e estratégias praticadas pela indústria - e posteriormente comum, recorrente; ao ponto que a indústria cinematográfica, comercial, passa a ser influenciada pela linguagem “caseira”, no geral incorporada como signo de realidade - formato comum no consumo diário em plataformas como o youtube e redes e aplicativos como tik tok, facebook, instragram e aplicativos de comunicação instantânea como whatsapp.

Como destaca Heller-Nicholas (2014), a ascensão do youtube tem papel fundamental no estímulo e popularização da linguagem found footage ou mockumentary pois permitiu a distribuição de pequenos filmes caseiros que, associados a filmes produzidos pela indústria com linguagem similar, como A Bruxa de Blair, fossem reconhecidos e relacionados aos vídeos estilo “home made” que tomaram espaço progressivamente e auxiliaram na popularização da linguagem. Diz a autora:

Com o lançamento do youtube em 2005 e seu crescimento fenomenal em 2006, filmemakers reagiram levando os found footages ao mainstream, criando filmes que nos fizeram acreditar que não apenas poderíamos ter vistos esses filmes no youtube como poderíamos tê-los feitos nós mesmos, resultando em filmes como Diary of the Dead (2007), [REC] (2007) e claro o blockbuster filme de monstro Cloverfield (2008) (2014, p. 87).

O cotidiano, os lares, a intimidade e os fenômenos mais surpreendentes passam a ser vigiados de perto por todos os tipos de suportes de captação de imagem e som e decodificados em pequenos filmes por ilhas de edição “improvisadas” em computadores domésticos com tamanha velocidade e ferocidade que os próprios códigos, dispositivos, do realismo cinematográfico transmutam consecutivamente. Olhares públicos, o voyeurismo impera sobre a vida de outrem, representada em reality shows ou através de filmes, no cinema ou pulverizados via internet. Das mais simples casas, em seu cotidiano - como em Atividade Paranormal, A Bruxa de Blair e Holocausto Canibal - tudo está sob a vigilância de uma câmera, de pessoas comuns que registram os acontecimentos e os repassam, ou os perdem em certo momento. Esse sistema de representação da vida de outrem, inserido no mundo que ocupamos, não mais na esfera da fantasia, se decodifica numa obsessão pela vida pública e “existe apenas dentro de uma cultura maior de voyeurismo, exibicionismo e vigilância”
(BADLEY, 2010, p.59).

Para que haja interesse voyeurístico deve haver interesse exibicionista. Plataformas Open Media de interação como o YouTube atendem ambas as demandas, proporcionando um “local” de encontro para estes interesses complementares. (BRAGANÇA, 2016, pp. 33-34).

Tudo vira filme, tudo nos interessa, a vida dos outros interessa. As tecnologias eletrônicas e digitais banalizam e familiarizam-nos com o real, estimulando ou condicionando-os a naturalização de certa obsessão pela vida dos outros, principalmente quando esse outro se encontra em situação indesejada por/ para quem o assiste:

As técnicas cinematográficas digitais mudaram o cinema ainda mais fundamentalmente do que a introdução do som. A possibilidade de filmar em vídeo com uma câmera do mesmo tamanho ou menor do que um filão de pão usando equipes de duas pessoas em vez de dez ou mais, editar em computadores domésticos e inserir som nos mais simples equipamentos de som significou que o mundo da produção cinematográfica não era mais um mundo encantado em que apenas uns poucos escolhidos podiam entrar. As muralhas em torno da cidadela pareceram se esfacelar no final da década de 1950 e começo de 1960, mas elas desmoronaram de fato ao longo dos anos 1990. A terceira época do cinema, que ainda está em seu início, é a primeira época meritocrática (COUSINS, 2004, p 434).

Isso é, segundo Jenkins:

(...) o que se afirmava que iria ocorrer como consequência inevitável da revolução digital: a tecnologia colocaria nas mãos de pessoas comuns, para sua expressão criativa, ferramentas de baixo custo e fáceis de usar. Derrube as barreiras da participação e forneça novos canais de publicidade e distribuição, e as pessoas irão criar coisas extraordinárias (2009, p.211)11.

Na esteira de um novo ciclo do cinema estimulado pela disseminação das tecnologias modernas e populares, à época, é que se instala de maneira firme e consistente o fenômeno aqui indicado. Numa espécie de via de mão dupla, em que as produções audiovisuais e cinematográficas se popularizam e se expandem graças ao desenvolvimento tecnológico e em que o desenvolvimento tecnológico se estabelece como fator influente na até então intocada linguagem cinematográfica empregada pela indústria. Devido a aceitação e familiarização acelerada que o público passou a atribuir a filmes com caráter de verossimilhança, ou false found footage e mockumentaries, é que receptor e tecnologia se articulam para se explorar, produzir e consumir mutuamente, criando e atendendo demandas distintas e com volume cada vez maior; ao ponto em que no final da década de 1990 um alinhamento de fenômenos lançou definitivamente a estilística do false found footage e mockumentary no cotidiano, nas salas de cinema, na internet e, em seguida, nos canais de streaming: esse alinhamento se refere ao lançamento de A Bruxa de Blair e a ampla e eficiente campanha de marketing realizada pelos produtores do filme; refere-se também à popularização das tecnologias eletrônicas e digitais de captação e edição de vídeos; à ascensão da internet e, por conseguinte, de plataformas para distribuição/ compartilhamento de conteúdo audiovisuais somada a uma naturalização, atrelada ao estímulo de um desejo crescente de autorrepresentação e autopromoção dos indivíduos cada vez menos inibidos e mais confortáveis em compartilhar seus relatos pessoais e produções “amadoras”.

É então o alinhamento dos fenômenos indicados, mas não apenas, que fomenta as transformações/ dilatações da linguagem cinematográfica que discutimos até aqui, assim (...) “a crescente pós- modernização do cinema americano começou a ser repensada à luz das possibilidades abertas pela produção digital” (COUSINS, 2004, p. 438).

A cultura digital permitiu que o monopólio da produção audiovisual fosse superado por uma cultura de participação ativa de diversos grupos de interesse. Essa distribuição forçada - de baixo pra cima - da capacidade de produção da indústria do entretenimento sendo (re)apropriada pelos próprios consumidores já fora prevista no “visionário” livro de Nicholas Negroponte, Being Digital, título traduzido como A Vida Digital, de 1995, em que o autor propõe que a ascensão das tecnologias digitais em poucos anos acabaria com os grandes conglomerados de comunicação. Henry Jenkis em Cultura da Convergência (2009) faz referência ao livro de Negroponte destacando o trecho em que autor ressalta a ascensão de novas mídias e, por consequência, a extinção de outras, classificando os meios tradicionais como “velhos meios de comunicação passivos em contraposição aos “novos meios de comunicação interativos” (NEGROPONTE, 1995, p. 54 apud JENKINS, 2009, p. 32).

Jenkins propõe que os meios se “associariam” de alguma forma em um processo de convergência, como traz no título de seu livro, não correndo o risco de inferir o fim ou ascensão desse ou daquele meio. Em certa media tanto as perspectivas de Negroponte e de Jenkins dialogam no contexto da popularização das tecnologias digitais, na consolidação de uma participação ativa e producente do espectador/ produtor de conteúdos e na convergência de meios - pois mesmo os meios clássicos tendem a se adaptar e pulverizar-se para novas plataformas. Nicholas Negroponte ainda faz uma previsão que se não se materializou completamente mostrou caminhos que as tecnologias digitais, a indústria do entretenimento, da produção audiovisual e cinematográfica percorreram nas últimas décadas e que dialoga com proximidade com aquilo que tem sido o centro de nossa discussão até aqui: a descentralização do audiovisual e a familiaridade com novos formatos. Segundo Negroponte:

Os impérios monolíticos de meios de comunicação de massa estão se dissolvendo numa série de indústria de fundo de quintal (...). Os atuais barões das mídias irão se agarrar a seus impérios centralizados amanhã, na tentativa de mantê-los (...). As forças combinadas da tecnologia e da natureza humana acabarão por impor a pluralidade com muito mais vigor do que quaisquer leis que o Congresso possa inventar (1995, pp. 57-58).

O fomento de um novo fenômeno se encontra na intersecção perfeita entre a diluição da força da indústria cinematográfica e as produções caseiras que ganham nos anos 2000 as redes e se espalham pelo mundo, deixando a dimensão dos lares - em termos de espaço, mas pouco em termos de estética - e alcançando patamares praticamente inatingíveis poucos anos antes. Entre a indústria cinematográfica e o vídeo caseiro a lacuna foi preenchida pela ascensão das tecnologias já enunciadas e a internet pavimenta definitivamente o caminho que conecta os pontos dessa equação e sedimenta as novas práticas de produção e disseminação: reciprocamente cada parte desse sistema se influencia consecutivamente e se hibridiza ao ponto da “linguagem caseira” chegar ao cinema e o cinema imitar práticas e características estéticas e narrativas diametralmente opostas à sua linguagem clássica, com emprego de recursos cujo suporte de captação nem ao menos tem como principal função a gravação de imagens, como é o caso das obras The Den (2013), dirigida por Zachary Donorue, Unfriended (Amizade Desfeita)12 (2014), dirigida por Levan Gabriadze e o mais recente Host 13 (Cuidado com quem Chama, 2020), dirigido por Rob Savage; apenas alguns exemplos de um espectro amplo de filmes lançados nos últimos anos em que o suporte de captação e registro é uma câmera e um microfone de computador, vezes um celular, a princípio utilizada para comunicação instantânea entre as pessoas, sem o intuito de registrar determinado fenômeno ou realizar um filme. A esses filmes, uma dilatação do false found footage e mockumentary, ainda recente do ponto de vista histórico, é atribuída a alcunha de desktop horror (mais usual) e, mais recente, computer screen film (essa menos usual); classificações menos expressivas pois tratam de especificidades estéticas e narrativas que se enquadram na definição false found footage, embora a própria premissa do “filme encontrado”, que foi portanto perdido por alguém, possa lançar questionamentos sobre a origem das gravações. De qualquer forma as nomenclaturas derivadas apresentadas e relacionadas a um estilo ainda mais específico do false found footage demonstram um processo de transformação e conceituação contínuo desse formato14.

Embora a subcategorização específica do desktop horror seja direta em termos de representação daquilo que o estilo potencialmente apresenta, o pesquisador Shane Denson exercita uma leitura objetiva e ao mesmo tempo dilata o fenômeno para além do campo da estética. Em análise do filme Unfriended Benson apresenta considerações que auxiliam na compreensão dos parâmetros analíticos que indicam características do desktop horror:

(...) Isso nos traz de volta a um fato crucial sobre a mediação do filme: ele é apresentado como uma gravação de screencast do MacBook da ex- melhor amiga de Laura (aquela que na verdade cometeu o cyberbulling), Blaire Lily. O quadro é completamente preenchido com as imagens de pixels da tela do laptop, incluindo os menus do sistema operacional, ícones e cursor do mouse; as únicas câmeras são as dos computadores dos amigos, direcionadas para essa única interface.

Refletindo sobre aquilo que Francesco Casetti chama de “realocação” do cinema da tela grande para uma variedade de pequenas telas, a sensação de “realismo” do filme é especialmente intensificada quando você o assiste em seu próprio laptop - quando você fecha o “loop”, o diâmetro, por assim dizer e alinha o quadro do filme/ tela com a tela do seu próprio computador. Como vimos, o filme antecipa essa audiência e até extrai parte de sua força afetiva do perigo a que a pirataria online expõe o espectador. Quando o filme é assistido em um computador, testemunhamos tudo - conversas no Skype, bate- papos no Facebook, e-mail e a navegação web - nesta única, intercambiável e diegética tela. É essencial para o filme que seja apresentado no chamado “em tempo real”, o que adicional uma “urgência” que dialoga com a realidade das comunicações/ relações online atuais, estabelecendo assim uma sensação de realismo apesar dos elementos sobrenaturais em jogo na trama (BENSON, 2020, p. 43).

Nesse contexto, chamemos de desktop horror ou computer screen film, essas variações “só” representam as camadas que são agregadas ao ciclo dos false found footage e mockumentary, e a maneira como o vídeo caseiro - mesmo aqueles cuja “intenção” não é de se fazer um vídeo, menos ainda um filme - ganha espaço, vazão por portas e janelas, através de cabos ou wifi para ganhar o mundo de forma “aceitável” do ponto de vista da audiência e, sobretudo, daqueles que compõem a geração Z15, que cresceram pari passu com essa linguagem como parte de uma composição original do universo audiovisual.

Claro que essas modificações, evoluções e misturas, como indicado algumas vezes no texto, são resultado de uma transformação mais complexa do que uma “simples” apropriação ou renovação de linguagem. A troca estabelecida entre indústria cinematográfica e espectadores, mutuamente se influenciando em diversos níveis e aspectos do processo de produção e distribuição, está inserida em uma onda de convergência midiática que, como denuncia Henry Jenkins, “não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros dos consumidores individuais e em interações sociais com outros” (2009, p. 30) e nesse contexto as possibilidades de apropriação e experimentação para formas e dispositivos de realidade se amplia a medida que a tecnologia - específica ou não - evolui e cria possibilidades estimulando pseudo necessidades. Distintas plataformas de distribuição e veiculação16 de conteúdos audiovisuais e novas formas de interação social se estabelecem no cotidiano e a indústria do entretenimento acompanha esse processo por estar atenta ou simplesmente por “ser pressionada” pelas circunstâncias comerciais, sociais e “narrativas”.

Inicialmente o computador ofereceu amplas oportunidades de interação com o conteúdo das mídias e, enquanto operou nesse nível, foi relativamente fácil para as empresas de mídia controlar o que ocorria. Cada vez mais, entretanto, a web tem se tornado um local de participação do consumidor, que inclui muitas maneiras não autorizadas e não previstas de relação com o conteúdo de mídia. Embora a nova cultura participativa tenha raízes em práticas que, no século 20, ocorriam logo abaixo do radar da indústria das mídias, a web empurrou essa camada oculta de atividade cultural para o primeiro plano, obrigando as indústrias a enfrentar as implicações em seus interesses comerciais. Permitir aos consumidores interagir com as mídias sob circunstâncias controladas é uma coisa; permitir que participem na produção e distribuição de bens de culturais - seguindo as próprias regras - é totalmente outra (JENKINS, 1009, p. 190).

Henry Jenkins indica os caminhos incontornáveis que o desenvolvimento tecnológico e psicológico/ cognitivo dos indivíduos na interação com a indústria do entendimento tem percorrido nos últimos 20 anos, pelo menos. A cultura participativa, que em certo nível se manifestava nas transmissões de rádio e que a televisão se esforça para simular alcança aquele que parece seu apogeu na “web”, motivada pela tecnologia mas, sobretudo, pela transformação do público e por consequência da quebra de hierarquias na relação emissor x receptor, que atualmente não se configura de maneira tão verticalizada, mas de forma horizontal ou até mesmo cíclica, de influência mútua, que em muitos casos o consumidor passa a ser o produtor, ou o produtor depende da ação/ ativa do receptor para progredir ou finalizar seu produto cultural. Como já exaltado por Jenkins (2009, p. 30) “a convergência ocorre dentro dos cérebros dos consumidores”, é um fenômeno mais complexo que move todo um sistema comunicativo e os monopólios de comunicação, interferindo, naturalmente, na indústria cinematográfica e seus modelos e estilos de produção. (...) “a indústria midiática está cada vez mais dependente de consumidores ativos e envolvidos para divulgar marcas num mercado saturado e, em alguns casos, procurando formas de integrar a produção midiática dos fãs para baixar custo de produção” (Ibid., 2009, p. 190).

Quanto maior e mais ativa a participação do público, maior a troca de conhecimentos estabelecida17. Intercambiando a experiência da indústria - inclusive de se adaptar às demandas - com as novas práticas, estética-narrativa e legibilidade e reconhecimento de certos formatos, o intercâmbio torna-se mecanismo promissor para nascimento de experiências fortuitas e consolidação de estilos: os false found footage, mockumentaries e derivados se sustentam como resultado de um processo de transformação amadurecido no início do século XXI. Frutos de um fenômeno emblemático da cultura participativa - para fazer alusão a perspectiva de Jenkins - e das transformações tecnológicas e da modificação da cultura popular de recepção contemporânea.

Conclusão

O formato audiovisual chamado vulgarmente false found footage, que ainda se encontra indefinido entre cinéfilos, críticos do cinema e pesquisadores da área (não se define ainda como gênero, subgênero, estilística etc) é resultado de uma confluência de eventos e desenvolvimento tecnológicos que encontram-se dentro e fora do próprio cinema e do audiovisual. Tendo alcançado seu ápice, em termos de repercursão e reconhecimento no século XXI, o “estílo” é explorado, vezes de maneira mais ou menos tímida, desde o início do século XX, mas é em tempos hodiernos que encontra as condições mais favoráveis para seu estabelecimento.

No contexto apresentado longo da investigação, os false found footages, mockumentaries, ou simplesmente o Efeito de Realidade presente e explorado atualmente pela indústria cinematográfica, pode ser caracterizado como um movimento em progresso. Nem gênero, subgênerou ou estilo, mas um movimento que conglomera inúmeros fatores, dialoga com diversas camadas da arte, da comunicação e da vida contemporânea e é reflexo de transformações socioculturais que marcam as últimas três décadas. Como movimento, o Efeito de Realidade manifesta-se no cinema pela adoção e estratégias estético-narrativas cujo intuito fundamental é criar certa camada verossimilhança, estimulando proximidade entre produto (filme) e receptor (espectador), provocando efeitos múltiplos, sejam esses “enérgicos”, ou apenas a aceitação do estilo, e suas variações, como parte da cultura e vida cotidiana.

Notas Finais

1Embora This is Spinal Tap (1984), dirigido por Rob Reiner, seja um marco na história dos falsos documentários e esse formato esteja diretamente relacionado aos false found footage, é inegável que a repercussão de A Bruxa de Blair lança o formato definitivamente no mercado, estimulando receptores e produtora para realização de obras congêneres.

2“Efeito de Realidade” é um termo utilizado por Consuelo Lins e Mesquita (2008) para fazer referência aos “plano- sequências tremidos e imagens de baixa qualidade registradas por micro câmeras, câmeras de vigilância, amadoras e de telefones celulares”, empregadas nas produções audiovisuais para criar um “efeito de realidade”. Esse termo dialoga com o “Efeito de Real”, pois ambos definem o emprego de estratégias, que chamamos aqui dispositivos, para incorporar às obras uma camada de verossimilhança capaz de ludibriar o espectador ou leitor sobre a autenticidade do material de origem. O material/ registro de origem que resulta no filme seria extraído do mundo real, não de uma ficção; portanto seria originário do “mundo histórico” (NICHOLS, 2005).

3A noção de “afeto” ao qual fazemos referência ao longo do texto está ligada a perspectiva de Noel Carroll (1999, p. 30.) em relação ao cinema de horror, quando o autor argumenta que essa modalidade do cinema está relacionada a sua capacidade de mobilizar afetos do espectador, neste caso em relação a despertar um sentimento profundo de horror que gera reações fisiológicas como arrepiar os pelos do corpo. O horror cinematográfico é (re)nomeado por Carrol como Horror Artístico, que deve ser composto, dentro da narrativa, de elementos ameaçadores e impuros, capazes de causar medo e repulsa dos antagonistas (monstros) que corporificam o mal, o horror na trama. O autor também propõe uma derivação dessa formulação primeira, intitulada “pavor artístico”, que estimularia respostas emocionais e fisiológicas ao “incômodo e assombro, angústia e pressentimento” provocados, sobretudo por obras sobrenaturais. A partir dessa perspectiva em relação ao(s) afeto(s) relacionada ao false found footage, não parece coincidência que grande parte dessas obras sejam filmes de horror, ciclo que fomenta também a subclassificação já muito usual de found footage horror.

4Por experiência enquanto professor das disciplinas Criação para Cinema e Televisão e Produção para Cinema e Televisão, ao estimular que os graduandos do curso de Publicidade e Propaganda produzam curtas metragens de até 10 minutos ao final de cada semestre recebo, em média, 70% dos trabalhos realizados com a estilística do false found footage, ou falso documentário. Em minha avaliação, e em diálogo com os realizadores, identifico que a familiaridade, a suposta facilidade, o não rigor técnico (em diversos aspectos) e o custo baixo são no geral os motivos que estimulam os alunos a optarem pelo formato.

5Faz-se referência ao documento, manifesto, conhecido como Dogme 95, encabeçado por Lars Von Trier e Thomas Vitenberg, que apresentava/ sugeria “regras” para realização de filmes baseado nos valores tradicionais de uma história, na atuação, direção e tema, abominando o uso de efeitos especiais e outros recursos mirabolantes, próprios do mainstream, ou da indústria hollywoodiana, com o intuito de se reconstituir e fortalecer o papel do diretor de cinema como um artista “puro”, em oposição a interferência e sobressalência dos grandes estúdios.

6Os trechos do filme Holocausto Canibal citados pela autora podem ser verificados em: https://www.youtube.com/watch?v=70OYikg0tyw e https://www.youtube.com/watch?v= zSsW3Li5PXw.

7A menção ao “acaso” empregado na descrição das características do cinema documentário, dialoga com a perspectiva que o pesquisador Bruno Saphira apresenta em sua tese, defendida em 2016, no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tese disponível em: http://poscom.tempsite.ws/wp-.

8“Alguns pesquisadores preferem usar outros jargões, como Point of view (POV) films ou discovered footage films (termo criado por David Bordwell), para evitar confusões com outro gênero fílmico também chamado de found footage, praticado por cineastas como Péter Forgács, Harun Farocki e Martin Arnold, e que consiste, em sua maioria, da produção de documentários experimentais a partir da colagem e da ressignificação de imagens de arquivo preexistentes” (CARREIRO, 2013, p 226).

9Lembremos que a câmera e película 16 milímetros se tornaram alternativa viável e opção estética para muitos realizadores, em diversos níveis de profissionalismo, experiência e recurso, por algumas décadas desde seu lançamento.

10O trecho entre aspas, citado por Henry Jenkins, é retirado do livro de Patrícia R. Zimmermann, Reel Families: a Social History of Amateur Film (1995, p. 157), lançado pela bloomington: Indiana University Press.

11Henry Jenkis faz tal afirmação em relação ao desenvolvimento das tecnologias digitais e a participação de fãs na produção de “conteúdos paralelos”, relacionando essas questões ao estímulo criativo e acesso de não profissionais a equipamentos de captação de áudio e vídeo e de edição e de plataformas de distribuição; nesse contexto Jenkys cita alguns casos relacionados à Lucasfilm e a franquia Star Wars; à câmera Pixelvision e plataforma online Machinima.

12Ainda em relação ao filme - numa perspectiva que atende aos demais citados - há também um trecho interessante em artigo publicado pelo pesquisador Shane Denson, intitulado The Horror of Discorrelation: Mediating Unease in Post- Cinematic Screens and Networks, conforme segue: “Mais recentemente, esse percurso de crescente imbricação entre diegético e tecnologias mediadas de imagem resultou no filme desktop horror Unfriended (Levan Gabriadze, 2014), outra produção de baixo orçamento que atualiza a fórmula dispensando totalmente a câmera, em vez disso apresentando sua trama, própria da era das redes sociais, de traição e vingança online diretamente através de uma tela um computador, Apple Macintosh. O filme usa o Skype e outras plataformas de comunicação online conhecidas para encenar as interações em tempo real entre um grupo de amigos adolescentes que estão sendo assombrados virtualmente pelo fantasma de um ex-membro de sua “fraternidade” que se matou após ser vítima de cyberbullying. O filme é, portanto, hiperconsciente de seu ambiente extradiegético. Inadequado para exibição nos cinemas, onde o enquadramento da tela do computador contrasta com a escala e a não interatividade da tela grande e, portanto, diminui o envolvimento do espectador, o filme requer/ implora para ser visto na pequena tela de um computador para efeito pleno. Portanto, o filme se insinua/ insere totalmente na ecologia pós-cinematográfica que tematiza, incluindo as redes de pirataria online (e os perigos que a acompanham) que o filme corteja em virtude dessas condições ideais de exibição” (DENSON, 2020, p. 28). Texto original em inglês disponível em: https://shanedenson.com/articles/Denson-Horror-of-

13A referida obra é analisada no capítulo voltado para análises fílmicas.

14Na própria plataforma do IMDB há uma lista robusta de filmes que se enquadram como desktop horror e são assim relacionados: https://www.imdb.com/list/ls034008089/.

15Recorte sociológico que reflete um dado demográfico: pessoas que nasceram a partir da segunda metade da década de 1990.

16“A cultura participativa audiovisual do YouTube consumiu somente em 2007 a soma de toda a capacidade de armazenamento de dados usada por todos os sites desde a criação da internet até o ano 2000. Uma coleção de imagens que atingiu a marca de 150 mil vídeos publicados diariamente ainda em 2008 (WILLET, 2009, p.11), dos quais a maior parte foi produzida e compartilhada pelos próprios usuários do site, pessoas comuns interessadas em mostrar suas vidas domésticas e particulares” (BRAGANÇA, 2016, p. 32)

17Um bom exemplo para se pensar no papel do fã como elemento fundamental para processo de construção e conclusão de uma narrativa são os chamados webdocumentário, ou documentários interativos (formato que foi também experimentado por obras ficcionais mais recentes), que delegam ao espectador as possibilidades e responsabilidades de estabelecer seu próprio fluxo narrativo e constituir, por conseguinte, um filme particular, experenciado por ele diante das circunstâncias e caminhos que desejar percorrer. “Os webdocs são uma nova forma de se desenvolver narrativas no ciberespaço, que mistura diferentes formatos – tais como textos, vídeos, áudios, fotos, animações e ilustrações –, permitindo ao espectador o controle da navegação e uma profunda interação com a obra; são produtos midiáticos específicos da contemporaneidade, multimidiáticos por excelência, oriundos da tradição cinematográfica do gênero documentário, cuja premissa fundamental, que orienta os campos técnicos e teóricos, é o compromisso da obra com a veracidade, com o tratamento, ainda que criativo, da realidade. (...) O webdocumentário não é um documentário feito a partir de suas características tradicionais, como a linearidade, para a divulgação na internet. Ele é, em verdade, uma produção documental cujo formato é intencionalmente voltado para a reprodução na Web, abusando de seus recursos, como o hiperlink, por exemplo; acrescente-se a isso um fator importante: o projeto final não existe, fica à revelia de seu produtor, nas mãos de cada espectador. A essas especificidades é que refletimos sobre o fato de que, embora oriundo de um gênero cinematográfico centenário, os webdocs são uma nova forma de desenvolver narrativas no ciberespaço. Uma inventividade contemporânea que emerge no momento em que a tecnologia da comunicação e transmissão de conteúdo permite esse tipo de realização e distribuição. Mas além dos aspectos tecnológicos vale também ressaltar o momento histórico e cultural no qual essas narrativas estão inseridas; um momento em que os indivíduos estão cada vez mais familiarizados e entusiasmados com as possibilidades de interação e controle sobre as diversas formas e meios de entretenimento” (PEREIRA & MORAIS, 2013, pp. 252-254-255). Disponível em: http://doc.ubi.pt/14/analise_luiz_pereira.pdf.

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