Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

The Quilombo-Space: Notes on Black Film Festivals and Exhibitions in Brazil’s Northeastern region

Espaço-Quilombo: Notas sobre mostras e festivais de Cinema Negro no Nordeste Brasileiro

Laila Thaise Batista de Oliveira1

Universidade Federal de Sergipe, Brasil

Luciana Oliveira Vieira2

Universidade Federal de Sergipe, Brasil

Naira Évine Pereira Soares3

Universidade Estadual da Bahia, Brasil

Abstract

This paper conducts a survey about black cinema exhibitions and festivals in the Northeast region of Brazil and analyzes the ways of organizing these staffs as aquilombamento spaces, preserving places of meetings and (re)existence of black cinema, articulating this discussion to Beatriz Nascimento’s thought about the concept of quilombos. Hereupon, we also build a brief historical reflection about the social construction of the Northeast, presenting an initial study about the survival strategies that these African Brazilian people have been developing in the face of a historical absence of cultural public investment in the region. In this initial research it was possible to analyse data related to gender and race in leaders of these events, emergence period, means of financing, and which states they are located in. In just over six years, the Northeastern region already has 9 black cinema exhibitions and festivals, thus representing an important scenario for this segment in Brazil.

Keywords: Aquilombamento, Black Cinema, Northeast, Space-Quilombo.

Introdução

Nesse artigo pretendemos trazer à reflexão a importância dos Festivais e Mostras de Cinema organizados por realizadoras/es negras/os, entendendo que os movimentos culturais negros também são espaços fundamentais de reivindicação de políticas afirmativas, além do fortalecimento e valorização da identidade negra.

Nilma Lino Gomes (2017, 23) entende como Movimento Negro variadas maneiras de “organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo”. Assim sendo, no vasto espectro do que pode ser entendido como movimento negro, é possível considerar não apenas as organizações políticas comprometidas com as políticas públicas, mas também as organizações culturais negras que, através da arte, denunciam as mais variadas formas de racismo e violências praticadas contra essa mesma população negra, além de promoverem narrativas educativas que valorizam os elementos culturais africanos e afrodiaspóricos como meios de afirmação.

Em 1944, Abdias Nascimento, junto a outros nomes, fundou o Teatro experimental do Negro (TEN), que entendia a arte como uma fonte de denúncia ao racismo e ao preconceito racial (Souza 2013, 72), e suas práticas iam além da dramaturgia, tinham diversas ações como a alfabetização de pessoas negras das camadas mais populares; promoção de debates; circulação material de ideias através do próprio jornal chamado Quilombo (1948-1953); suporte psicológico e a atuação política através do Comitê Democrático Afro-Brasileiro. O grupo deu alguns dos primeiros passos necessários para o surgimento de outros grupos negros, seja no teatro ou nas demais linguagens artísticas.

É impossível pensar o lugar que negros e negras ocupam na representação e produção da literatura, do rádio, do cinema e do teatro, sem atribuir ao TEN o protagonismo nas discussões e denúncias sobre a ausência de atores negros na dramaturgia e na mídia. (Souza 2013, 71)

O legado do TEN está presente nas produções negras, tanto na mídia impressa e televisiva, como no cinema e nas produções audiovisuais. A trajetória de coragem e inovação contida nas suas ações funcionou como farol: iluminando iniciativas posteriores da população negra, no tocante à conquista de espaços até então negados a esse grupo.

No decorrer de sua história, o cinema brasileiro também é marcado pelas ausências ou estereótipos relegados à população negra. Carvalho e Domingues (2018) comentam que produções da Vera Cruz, por exemplo, não inseriram atores e atrizes negros em suas produções, mas quando colocavam tais personagens representavam papéis secundários ou estereotipados.

Apesar do Cinema Novo ir à contracorrente da lógica capitalista do fazer cinema, apresentando em suas narrativas algumas questões sociais do povo brasileiro, como moradores de favela, encenadas por atores negros, a sua prioridade não foi a questão racial, mas a questão de classe. Esse movimento de cinema foi protagonizado por homens brancos de classe média, que ao não considerarem as questões de raça e reforçarem estereótipos, exerceram poder sobre a imagem desse povo por meio da representação, elegendo em seus filmes esses personagens como o “outro”.

Segundo Hall (2016), a representação é a produção de significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem. É a conexão entre conceitos e linguagem que permite nos referirmos ao mundo “real” dos objetos, sujeitos ou acontecimentos, ou ao mundo imaginário de objetos, sujeitos e acontecimentos fictícios. Neste sentido, esses cineastas brancos construíram imagens da população negra ainda munidos do pensamento da democracia racial, ignorando que o “grande drama do negro foi não ser reconhecido no Brasil” (Nascimento 2018, 328). hooks (2019, 34) nos explica que enquanto o poder de construir imagens estiver sob domínio da branquitude, representações positivas serão caras ao povo negro.

Nesse período nomes como: Zózimo Bulbul, Antônio Pitanga, Valdir Onofre, Milton Gonçalves, Léa Garcia e outros atores e atrizes estiveram presentes nas telas das narrativas deste movimento de cinema, mas alguns deles passam a assumir a câmera e narrar suas próprias histórias, pois entendiam que enquanto diretores e roteiristas estariam num lugar de decisão. Antônio Pitanga, Valdir Onofre e Zózimo Bulbul foram precursores em tentar transformar a imagem de sua população através do cinema em busca de uma real representatividade do negro.

Zózimo Bulbul dirige e encena o marco da história do cinema negro brasileiro, o curta-metragem Alma no olho (1973). Neste filme, o cineasta narra com o próprio corpo, em uma performance de 11min, a história do negro antes da escravização, ainda em território africano, à traumática dominação e o caminho para a libertação, o encontro com a ancestralidade africana.

Na mesma década, a cineasta negra Adélia Sampaio, inicia seus trabalhos como diretora: primeiro dirigindo curtas-metragens e, em 1984, lança o primeiro longa-metragem de direção feminina e negra, Amor Maldito, um marco histórico na representação de mulheres lésbicas na cinematografia brasileira.

É após a retomada que o cinema negro no Brasil inicia um novo movimento encabeçado pelo cineasta Jeferson De, que lança o manifesto sobre a Gênese do Cinema Negro e o Dogma Feijoada: movimento de profissionais e diretores negros de São Paulo. Os profissionais envolvidos tinham como objetivo a inserção e a valorização de profissionais negras e negros no cinema brasileiro, além de trazer as questões raciais para o centro de suas narrativas, rompendo com os estereótipos e, ao mesmo tempo, lançando uma proposta de cinema negro brasileiro. Em 2001, após o Festival de Recife, outro manifesto conhecido como Manifesto do Recife reivindicava melhores condições para os profissionais negros dentro do audiovisual.

Apesar da grande importância de cada um dos movimentos citados, é necessário sublinhar a pouca participação feminina. O que vem a ser diferente nos anos seguintes, quando em meados da década de 2010, se estendendo até os dias de hoje, as mulheres negras começam a aparecer como protagonistas da história do cinema negro brasileiro, assumindo a direção de diversos filmes em várias partes do país, se destacando inicialmente com a realização de curtas-metragens e, mais recentemente, com a produção de longas-metragens. Esse momento fica compreendido por pesquisadoras como Ferreira e Souza (2017) e Oliveira (2016) como um movimento chamado Cinema Negro no Feminino.

Após um hiato de 33 anos da pioneira Adélia Sampaio ter dirigido Amor maldito (1984), pudemos assistir Glenda Nicácio na codireção de Café com canela (2017), Camila de Moraes com o documentário O caso do homem errado (2017) e Viviane Ferreira com Um dia de Jerusa (2020).

Outro marco histórico para o cinema negro brasileiro, à mesma época que os destaques anteriores, foi a criação da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro - APAN - em 2016. Essa instituição é voltada para o “fomento, valorização e divulgação de realizações protagonizadas por negros e negras, bem como a promoção de profissionais também negros para o mercado audiovisual.”4.

Aqui, não temos como pretensão esgotar as discussões e reflexões acerca da presença do/a negro/a no cinema brasileiro. Mas, antes, suscitar algumas discussões relativas a seus desdobramentos, pensando criticamente como os diversos contornos do cinema negro brasileiro - concomitantemente às lutas implementadas pelo movimento negro - foram fundamentais ao surgimento de um extenso leque de eventos de cinema organizados por realizadores/as negros/as.

Cinema e Aquilombamento: Espaços de encontro negro

Nos últimos anos o cinema negro brasileiro vem ganhando força e apresentando uma multiplicidade de nomes de realizadores negros em todos os cantos do país. Esse crescimento se deve às mudanças no cenário político brasileiro, o que engloba, inclusive, a aplicação da Lei de cotas raciais 12.711/2012 nas universidades públicas em 2013. Segundo dados recentes do IPEA5, em 2015, o número de estudantes negros no ensino superior aumentou de 22% para 44%. Isso representa um crescimento significativo de jovens negros também nos cursos de comunicação em todo o Brasil.

Destacamos também os editais de cinema “Curta e Longa BO Afirmativos”, que trouxeram recortes raciais e foram ofertados pelo Ministério da Cultura e pela Secretaria do Audiovisual, entre os anos de 2012 e 2015. Nos editais de Curtas Afirmativos, 29 dentre os 53 projetos selecionados, foram de diretoras negras. Enquanto no edital de Longa Afirmativo, as mulheres negras aprovaram 3 projetos, dentre eles estava a cineasta Viviane Ferreira com o longa O dia de Jerusa6(Oliveira 2017).

Esses dados reforçam o quanto o cinema negro ganhou fôlego nos últimos anos, aumentando o número de produções, mesmo que em circuitos independentes, onde a maior parte das produções são de curtas-metragens e a disputa pelo financiamento de filmes seja, ainda, dominado por narrativas brancas. É neste sentido que interessa a este trabalho refletir: onde as narrativas do cinema negro do circuito independente estão sendo exibidas.

Além da luta pelo financiamento de seus filmes, cineastas negros também disputam espaços de tela de exibição nos festivais de cinema hegemônicos brasileiros, ponto que já inquietava Zózimo Bulbul7, o pai do cinema negro no Brasil. Ator, diretor e produtor, Zózimo, em 2007, inaugura o Centro Afro Carioca no Rio de Janeiro: um espaço-quilombo com sala de exibição, espaço de formação e encontro para realizadores negros. Em entrevista para a CULTNE em 2007, o cineasta comentou:

Eu gosto, eu adoro cinema, faço cinema e meus filmes e os filmes de outros diretores pretos e pretas não passam no Brasil. Nós somos conhecidos lá fora, mas aqui nós não somos conhecidos. Então, eu vou abrir uma sala de cinema para mim e para os meus amigos pretos e pretas passar o nosso filme. Eu todo ano faço o Encontro de Cinema Negro: Brasil, África, América Latina. A gente precisa nos conhecermos. (Bulbul 2007).

O diretor cria então um espaço onde cineastas negros brasileiros e de outras partes do mundo, podem exibir seus filmes, se encontrar, se conhecer e se reconhecer: trocar experiências de um cinema realizado por olhares negros. Esse espaço iniciou um movimento importante no cenário do cinema negro brasileiro contemporâneo, estimulando a formação de novos cineastas negros e a produção de novas narrativas.

O Encontro tornou-se inspiração para a criação de mostras e festivais em diversas outras regiões do país, dentre elas o Nordeste. Com motivações muito semelhantes a que Zózimo Bulbul sentiu no início dos anos 2000, outros profissionais negros do audiovisual, também insatisfeitos com a pouca ou quase nenhuma circulação de filmes de cineastas negros em festivais hegemônicos, criaram seus próprios espaços de exibição, como se percebe nos discursos dos produtores desses eventos na sessão de análise de dados deste trabalho.

O Centro Afro Carioca e o próprio Encontro de Cinema Negro, que após o falecimento de seu criador passou a levar o seu nome, além de um espaço físico, se apresenta em prática como quilombo enquanto um espaço de resistência negra.

Compreendemos quilombo sob a perspectiva defendida por Beatriz Nascimento, que apresenta o conceito enquanto instituição de resistência negra no Brasil, a exemplo da República de Palmares que sobreviveu por mais de cem anos como um sistema paralelo ao regime escravocrata, e que após a abolição permaneceu vivo como um princípio ideológico e de resistência cultural.

Para a historiadora o quilombo não se encerra com o fim da abolição, mas assume um papel, na consciência negra brasileira, de potência para a autoafirmação do negro e resgate de sua identidade cultural. Podemos ver isso refletido ao longo da história do movimento negro no Brasil e nas mais diversas expressões culturais, como o Samba, a Imprensa Negra e o TEN, que por meio da ficção participativa reforçava a nacionalidade brasileira da resistência popular às formas de opressão, confundindo, num bom sentido, o território Palmarino com a esperança de um Brasil mais justo em que houvesse liberdade, união e igualdade (Nascimento 2018, 290).

Essa resistência cultural tem sido visível no Cinema Negro através dos espaços de mostras e festivais, mas não só nele como em toda a estrutura deste cinema. A pesquisadora e curadora Tatiana Carvalho Costa (2020, 227) nomeia de QuilomboCinema aquilo que agrega direta ou indiretamente realizadores, pesquisadores, críticos, curadores e produtores que colocam na gira um conjunto de obras e de pensamento sobre elas e que tensionam a própria noção de Cinema Brasileiro Contemporâneo.

Nesse sentido, o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, que foi o primeiro espaço exibidor de cinema negro do Brasil, irá representar esse lugar de autoafirmação de realizadores negros, enquanto cineastas que produzem cinema no Brasil, onde é possível celebrar seus trabalhos e experienciar momentos de trocas coletivas. Também é nesse ambiente que irão aprofundar suas reflexões e entendimento acerca da problemática que envolve ser cineasta em um país que nega a intelectualidade e capacidade desses profissionais negros do cinema. Esse foi um dos maiores legados que o cineasta nos deixou e que, ainda hoje, rende sementes em todo o país, principalmente no Nordeste, onde nos últimos sete anos várias mostras e festivais de cinema negro foram lançadas.

Por este ângulo, podemos afirmar que novos quilombos continuam sendo levantados como reflexo da insatisfação de jovens cineastas e produtores negros, no tocante à ausência de um cinema que os contemple em telas locais.

Esses novos eventos de cinema negro cumprem o papel importante de serem janela de circulação e exibição de filmes do que podemos chamar de Cinema do possível: filmes com pouco ou nenhum orçamento e com a possibilidade técnica viável para seus realizadores. Rancière (2012, 159 e 163) anuncia que dentro de um sistema capitalista “aos humildes o sistema envia os trocados de sua riqueza, de seu mundo” e que dentro dessa lógica, cineastas fazem em “um único e mesmo movimento o cinema do possível e o do impossível8.

Aqui, entendemos o cinema do possível como um cinema da urgência, e os nossos cinemas negros contemporâneos são exemplos dessa prática. São obras que, apesar de poucos recursos, e por vezes com problemas técnicos, possuem emergências em suas narrativas. Por causa da necessidade, muitas vezes inalcançável, de perfeição estética, muitas dessas obras são, via de regra, descartados pelas curadorias de festivais hegemônicos. Vale salientar que o Cinema do possível não é uma romantização da precarização dos nossos recursos humanos, sejam manuais e/ou intelectuais, mas um entendimento que aqueles filmes foram pensados e executados com maestria, apesar da falta de capital.

Resistência Nordestina de Festivais Negros

A professora e pesquisadora da Universidade Estadual da Bahia, Carla Paiva, se dedicou por 10 anos, em conjunto com o grupo de pesquisa Signos de Nordestinidade, a analisar a representação de identidades nordestinas presentes no cinema brasileiro. O grupo chegou a catalogar 14 signos de Nordestinidade que, segundo a pesquisadora, contribui para a “perpetuação de uma imagem estereotipada vinculada aos aspectos negativos ou fantasiosos associados à região e ao nordestino” (Santos e Santos 2017, 149) e acrescenta que tanto a literatura quanto o cinema contribuem com a disseminação de uma representação negativa tanto da paisagem, quanto das pessoas.

Quando se trata de arte e cultura, a ideia de inferioridade, na qual o nordestino está posto, ainda é um enfrentamento contemporâneo. Isso ocorre nas variadas linguagens, como música, literatura ou cinema. O cinema é nacional quando produzido por grandes empresas sudestinas e comandada por pessoas brancas, e no contrapeso, existem os cinemas regionais.

Na década de 1960, o cinema novo é criado e feito por pessoas nordestinas, mas carregava em si muitos dos arquétipos supracitados. Velasco (2017, 127) explica que “os cinemanovistas faziam cinema para a cura da sua consciência, filmes realizados por uma classe média de esquerda para essa mesma classe, e não para o povo”. Eram verdadeiros sonhadores, idealizaram um levante popular, um povo revoltado que revolucionaria o país. Mas esse mesmo povo, geralmente, não tinha voz nos filmes. Na verdade, muitas dessas produções seguiam o mesmo modelo de retratar as populações marginalizadas do Nordeste: uma visão hegemônica que concebia essa população como passiva e, além disso, como sujeitos que não contestavam seus lugares no mundo.

Beatriz Nascimento foi enfática nas suas críticas à representação do corpo negro no cinema brasileiro. Em relação aos filmes Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), do diretor baiano Glauber Rocha, Nascimento (2018, 202) é certeira ao dizer que “não há nessa produção o negro rural real, somente uma fantasia”. Para a historiadora, mais uma vez, o negro brasileiro era representado no cinema pelo olhar branco da casa grande10.

Nycolas Albuquerque (2014) lembra que o cinema novo acabou entrando em contradição, pois ao mesmo tempo em que gostaria de explicar a realidade para o povo, o cineasta assumia o papel de salvador, no qual ele seria “ao mesmo tempo um criador, um intelectual, um político e um cientista” (2014, 285). Esse era um cinema que retratava a pobreza e a miséria de pessoas sertanejas, negras, indígenas e retirantes pela perspectiva da classe média branca que acreditava ser a questão de classe o maior problema do Brasil.

Na contemporaneidade, olhares mais diversificados passam a adentrar no cinema. O aumento de universidades públicas, bem como as ações afirmativas, culminaram na formação de muitos jovens racializados11 e pobres. Além disso, a popularização de equipamentos audiovisuais também contribuiu para o aumento de profissionais na área do cinema. A existência desses dois fatores revolucionou o cinema nas últimas décadas. O Cinema Negro passou a se fortalecer e causar um grande impacto na sociedade, mas o cineasta negro e nordestino encontra diversas barreiras para se manter na profissão.

Muitos grupos de pessoas negras, de diversas partes do Nordeste, passaram a discutir sua imagem, realidade e representação nos cinemas brasileiros através de encontros e cineclubes. Boa parte das mostras e festivais iniciaram assim.

Foram nesses eventos que muitas pessoas negras que produzem cinema do possível passaram a ter oportunidade de mostrar seus trabalhos, conhecer outros profissionais, aprender mais e, com isso, continuam tentando transformar suas comunidades através do cinema. Seja no resgate, na denúncia ou imaginando outros mundos e realidades, cineastas negros e nordestinos têm percebido a importância de fazer cinema em seus territórios sabendo que haverá espaço para eles.

No próximo tópico será apresentado o levantamento de dados realizado por esta pesquisa sobre as mostras e festivais negros que surgiram nos últimos anos em boa parte dos estados da região Nordeste, suas características e modos de organização.

Breve Mapeamento

A invisibilidade sobre a historiografia do Cinema Negro brasileiro nos cursos de cinema e audiovisual é reflexo – também – da pouca presença de docentes negros nos cursos espalhados pelo país, como aponta o recente Mapeamento de Diversidades nos Cursos de Cinema e Audiovisual no Brasil (2021), realizado pelo Fórum Brasileiro de Cinema e Audiovisual (FORCINE). Foram mapeados 169 cursos universitários, tecnólogos e livres - públicos e privados. Destes, 54 responderam à pesquisa e foi identificado que 8,6% dos docentes dos cursos são negros, 0,1% indígenas e, em contraponto, 91,3% não são nem negros, nem indígenas. Vale ainda ressaltar que a mesma pesquisa indica que 50% desses cursos se concentram apenas na região Sudeste, 18,5% na região Sul, 16,7% no Nordeste, 13% no Centro-oeste e 1,9% no Norte, o que reforça a desigualdade do investimento na formação audiovisual e no próprio mercado nas regiões do país.

A insatisfação com as grades curriculares dos cursos de cinema somada à pouca circulação de filmes de cineastas negros em janelas de festivais hegemônicos no Nordeste, provocou certo incômodo em realizadores e produtores negros da região. Tendo o Encontro de Zózimo Bulbul como uma forte inspiração, passaram a criar, em seus próprios estados, mostras e festivais voltados para produções contra hegemônicas como as suas. Esses novos espaços figuram enquanto janelas potentes de circulação dos filmes, bem como espaços de encontros e aquilombamentos.

A fim de alcançar as informações pertinentes ao desenvolvimento desta pesquisa, articulamos um levantamento de dados por meio de entrevista em formulário online que foi enviado por e-mail e respondido pelos produtores das mostras e festivais aqui investigados. As questões foram importantes não só para que pudéssemos entender melhor sobre as experiências individuais de cada um dos espaços-quilombos, mas também o que atinge os eventos coletivamente. Por isso foi preciso compreender como as curadorias funcionam, como e se acessam financiamentos públicos, as motivações para criar os eventos, se houve crescimento de inscrições de filmes nos últimos anos e saber quais são os impactos mais perceptíveis dos eventos em suas comunidades.

Neste sentido, nosso método de pesquisa é qualitativo e baseia-se nos dados levantados no contato com os próprios realizadores das mostras e festivais. O formulário foi enviado via e-mail para a produção dos nove eventos de Cinema Negro existentes, atualmente, no Nordeste, e ficou disponível durante 15 dias para respostas. Com as respostas em mãos, realizamos a análise dos dados, apresentados a seguir.

Aquilombamentos no Cinema Negro do Nordeste

Na primeira etapa do formulário, direcionamos perguntas ligadas ao surgimento das mostras de Cinema Negro da região Nordeste. Foi possível observar que esses eventos começam a aparecer em meados de 2016, quando surgem as primeiras mostras da região: a EGBE – Mostra de Cinema Negro de Sergipe (SE) e a Mostra Pilão (PB). Em seguida, em 2017, chegam no cenário as mostras Negritude Infinita (CE)12 e a MIMB – Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mohamad Bamba (BA). Em 2018: a Mostra Ousmane Sembene surge em São Francisco do Conde, na Bahia. Em 2019 são lançadas: a Mostra de Cinema Negro de São Félix em Cachoeira (BA), a Semana do Audiovisual Negro (PE) e a Mostra Quilombo de Cinema Negro (AL). E, mais recentemente, em 2021: surge a Moã - Mostra de Cinemas Negros e Indígenas no estado da Paraíba.

O aparecimento dessas mostras se revela em consonância às respostas apresentadas no formulário. Os produtores são jovens negros que estão ou passaram pela universidade, e decidiram construir espaços de visibilidade para filmes de realizadores negros. A Semana do Audiovisual Negro, o único que se apresenta em formato de festival, surgiu por iniciativa de estudantes do curso de Cinema da UFPE, como Rafael Nascimento, coordenador técnico, e conta com a participação de outros profissionais negros do estado. 

A Mostra Ousmane Sembene também surge no interior da universidade e é produzida pelos estudantes: Assaggi Piá e Rô Mendes. A mostra foi criada dentro da disciplina Arte e Diáspora Negra, ofertada pelo curso de Bacharelado em Humanidades, na Unilab/IHL.

É possível observar que a insatisfação com as invisibilidades em suas respectivas localidades, impulsionou os produtores a organizarem as mostras. Os idealizadores da Mostra EGBE - a cineasta e pesquisadora Luciana Oliveira e o produtor e educador João Brazil - explicam que “a mostra surge de uma inquietação por uma ausência de uma reflexão e de uma janela de Cinema Negro no estado de Sergipe”. Já a Mostra Negritude Infinita, produzida pelo realizador Leon Reis e o artista Clebson Francisco, foi motivada pelo “objetivo de apresentar obras importantes do cinema negro brasileiro que nunca haviam sido apresentadas em Fortaleza no circuito de festivais e mostras locais, como também propor espaços de conversas, debates e reflexões”.

É possível perceber, a partir das falas dos produtores, que o incontentamento de Zózimo Bulbul se faz fortemente presente também na vivência desses realizadores enquanto profissionais negros preocupados com a ausência da circulação de obras do Cinema Negro em seus territórios. Outra questão levantada era sobre a existência de exibições competitivas13, visando relacionar tais eventos com a referência pioneira. Neste aspecto, a maioria das mostras investigadas acompanham a proposta de Zózimo, visando, portanto, o espaço de exibição e encontro entre cineastas negros.

A maioria das mostras e festivais pesquisados sustentam essa proposta não competitiva idealizada por Zózimo Bulbul, com exceção da MIMB - Mostra de Cinemas Negros Mohamad Bamba, da Semana do Audiovisual Negro e da Mostra de Cinema de São Félix, que possuem exibições competitivas.

Mesmo com a premiação de filmes, tais eventos não se distanciam da lógica de aquilombamento proposta pelas outras mostras, pois são também espaços de encontro e reflexões sobre o Cinema Negro. Espaços estes em que os realizadores podem vivenciar suas existências pretas de forma livre e afetiva. Um espaço-quilombo, como remete Beatriz Nascimento,

Quilombo pode ser um lugar onde as pessoas possam viver mais livremente. No Rio de Janeiro o quilombo ‘é uma favela, é um movimento Black-Rio, ou uma nova escola de samba do subúrbio como o Quilombo de Palmares’. Num outro sentido, é uma referência de paz e de harmonia com a natureza. (NASCIMENTO, 2018, p.189)

Quando os realizadores entrevistados foram perguntados sobre a forma de financiamento, as respostas se mostraram bastante similares, o que demonstrou a comum dificuldade enfrentada na região Nordeste em relação a financiamentos de projetos culturais por meio do setor público e privado. Observa-se que é recente, para as mostras e festivais, o acesso a editais públicos para financiamento de suas edições. A maioria delas acessaram o financiamento público pela primeira vez em 2021, a partir de recursos de editais da Lei Aldir Blanc14. A Mostra Negritude Infinita aparece em nossos dados como a única contemplada por edital em sua segunda edição, sendo realizada por meio de financiamento público, através do Edital de Ocupação Temporada de Arte Cearense15, ofertada pelo Instituto Dragão do Mar, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, em 2019, ou seja, anterior à Lei Aldir Blanc e sem a política de ações afirmativas.

Analisando brevemente os editais dos últimos cinco anos da região Nordeste voltados para o audiovisual, é possível perceber que a adoção das ações afirmativas é um ato recente. O pioneirismo na implementação de pontuação para profissionais negros acontece em Pernambuco, em 201716, com a atuação da cineasta negra Juliana Lima que encabeçou essa luta no estado por meio de sua atuação como vice-presidente da ABD-PE. Em entrevista à Revista Continente, a cineasta explica como foi difícil aprovar seu projeto de documentário de curta-metragem Lá do alto.

Eu inscrevi esse projeto cinco vezes para ele poder ser aprovado no Funcultura. E ele só é aprovado porque a gente consegue implementar essas políticas, as cotas dentro do audiovisual, que se estendem também às entidades, que começaram a indicar cineastas negros e negras para a comissão julgadora. E aí, no primeiro ano dessas cotas, a gente consegue aprovar 32% dos projetos dirigidos por cineastas negros e negras, e, no último ano, 47%. (LIMA, 2019)

Em 2019, a Bahia lança o Edital Setorial Audiovisual17 com recursos captados junto à ANCINE, com pontuações para os recortes de etnias/raça, gênero e territorialização. Em seguida, os Estados do Ceará18 e Alagoas19 também adotaram as medidas em seus editais de incentivo à produção audiovisual, entre os anos de 2020 e 2021, lançados por meio das respectivas Secretarias de Cultura Estaduais.

Em Sergipe, só a partir da Lei Aldir Blanc, o edital da capital por meio da Fundação Cultural de Aracaju20, garantiu vagas para projetos de profissionais negros com pontuações destinadas para estes, diferente do Edital de Premiação de Produção e Exibição Cultural Nº 03/2020 da Fundação de Cultura e Arte Aperipê Sergipe21, que não estabeleceu critérios específicos para contemplação dessa representatividade, deixando a critério da Comissão de seleção garantir a equidade de gênero e raça, interiorização, acessibilidade e juventude.

Os editais da Funcarte22 de Natal (RN), de dezembro de 2021, voltado para o audiovisual, bem como os editais da Lei Aldir Blanc do Estado e capital23 da Paraíba24, também adotaram pontuações para a diversidade, dentre elas para equipes com profissionais negros. Ao analisarmos os editais voltados para o Audiovisual no Piauí25, o último foi lançado no ano de 2017 e não constam pontuações para minorias. Isso se repete no edital da Secretaria de Cultura do Maranhão26 de 2019, que também não adotaram ações afirmativas em seus critérios de seleção.

Deste modo, é possível observar como é recente o interesse por parte dos gestores públicos da região Nordeste na implementação de ações afirmativas em editais de produção audiovisual e como ainda não é uma prioridade para todos os estados, refletindo assim, na dificuldade de mostras e festivais de Cinema Negro da região em acessar recursos públicos. Apresentamos aqui, espaços-quilombos que possuem anos de existência sendo realizados de maneira independente, no esforço, ou como responde Assagi Piá: “como dizem por aí: feito por amor (ou ódio/insatisfação)”. Ao passo que é possível identificar os efeitos de uma lei como a Lei Aldir Blanc, que foi um impulso financeiro para o surgimento de novas mostras, como a Mostra Moã, em João Pessoa\PB, que ocorreu no formato online em 2021.

Considerando tal dificuldade, essas equipes desenvolvem suas próprias formas de sobreviver aos desafios, elaborando modos de autossustentação, nos modos de ajuntamento27. Levantando apoios por meio de serviços de empresas privadas em troca da divulgação dessas empresas, custeando, assim, passagens e hospedagens para convidados e realizadores, além de alimentação e transporte da equipe etc.

Algumas dessas produções aderiram ao financiamento coletivo online, uma prática bastante recorrente, onde produtos com a marca da mostra são oferecidos, muitas vezes, como recompensa ao público apoiador, ou mesmo no repasse de ingressos com preços simbólicos.

Essas estratégias simbolizam uma forma de organização social que luta para tornar reais seus espaços onde o Cinema Negro é possível, diante das curadorias excludentes de boa parte dos festivais hegemônicos nacionais. São grupos que se organizam, se aquilombam e, em grande parte dos casos, cedem sua mão-de-obra sem retorno financeiro. Importante dizer que desejamos, com esse tipo de informação, problematizar a realidade que enfrentam esses festivais para continuarem existindo a cada ano.

São nesses quilombos que a diversidade é celebrada, onde raça, gênero e sexualidade se interseccionam, como podemos observar a partir das fichas técnicas que compõem as mostras e festivais de suas últimas edições. Sendo o quilombo um espaço que não se configura discriminatório (Nascimento 2018, 190), é que iremos nos deparar com uma diversidade maior nessas equipes.

São equipes que trazem majoritariamente componentes negros, todas elas lideradas por pessoas negras, desde mulheres e homens cis heterossexuais a LGBTQIA+, e que também contam com pessoas indígenas e pessoas brancas aliadas à luta antirracista.

Das nove mostras e festivais analisados, que compõem o cenário no Nordeste, seis afirmaram a presença de mulheres negras na produção e idealização desses espaços. São elas: EGBE – Mostra de Cinema Negro de Sergipe, idealizada por Luciana Oliveira e João Brazil, e composta em sua maioria por mulheres negras, distribuídas nas demais funções; a MIMB - Mostra de Cinemas Negros Mohamad Bamba, com idealização e direção geral de Daiane Rosário, tendo toda a sua equipe formada por mulheres negras; a Mostra Quilombo de Cinema, produzida e idealizada pelo Mirante Cineclube, e composta por Rose Monteiro, Lucas Litrento, Janderson Felipe, Maysa Reis e Beatriz Vilela; a Mostra Pilão, criada e produzida pela cineasta e pesquisadora Carine Fiúza; a Mostra de Cinema Negro de São Félix, idealizada e produzida por Luciana Brasil e Marvin Pereira, ambos formados em comunicação; e, por fim, a Semana do Audiovisual Negro, que possui produção de Anna Andrade pela Tarrafa Produtora.

Neste sentido, podemos afirmar que é bastante forte a presença de mulheres negras ocupando papéis de liderança nesses eventos. Este é, portanto, um dado potente quando observamos que o cenário do cinema nacional, como um todo, ainda é dominado por homens, brancos, cis-heterossexuais e do Sudeste. No que se refere à curadoria de festivais de cinema no Brasil, segundo dados de pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ações Afirmativas (GEMAA), homens brancos ainda representam 56,16%, enquanto mulheres negras ocupam 2,40% dessa função (GEMAA, 2018).

A APAN foi criada em 2016 por jovens cineastas negros que entendiam a importância de um espaço que pudesse representar os interesses dos cinemas negros perante órgãos públicos, fundações, instituições, ONGs e empresas, tanto no Brasil quanto no mundo. É, atualmente, a principal associação voltada ao desenvolvimento de ações afirmativas, públicas e privadas, para profissionais negros do setor audiovisual no Brasil.

Quando se realiza um festival, um filme ou qualquer outro produto audiovisual, há por trás disso uma extensa cadeia produtiva e, nesse sentido, a APAN defende a importância da diversidade racial desde a pesquisa à distribuição. Por isso, acreditamos na relevância de questionar se as pessoas das equipes de produção são associadas à APAN. Assim, de acordo com os dados obtidos nos formulários da pesquisa, em grande parte, os idealizadores e/ou profissionais que encabeçam as equipes sinalizam que fazem parte da APAN como associados.

Ainda sobre a repercussão desses eventos nos locais onde são realizados, é interessante perceber o quanto os eventos investigados têm impactado positivamente as suas cidades e comunidades de origem. Com a pandemia do Covid-19, muitos eventos de cinema têm sido realizados no formato online. Esse novo modelo de exibição traz importantes debates, dentre eles a noção de que: se por um lado o cinema é mais que assistir filmes - é uma experiência individual e coletiva - por outro, muitas pessoas que não têm acesso às salas de cinema e festivais, puderam/podem assistir a inúmeras obras gratuitamente, através da internet.

O ato de ir para um espaço – que geralmente não está localizado em áreas periféricas – para assistir filmes, requer tempo e dinheiro para condução, por exemplo, o que não é possível para todas as pessoas que se interessam por cinema. Muitos dos produtores que responderam ao formulário da pesquisa relataram mudanças na autoestima do público e dos profissionais negros. Assim, de acordo com os dados obtidos através do formulário, as pessoas passaram a se reconhecer nas filmografias e, consequentemente, a ter orgulho de serem negras. Outras, por sua vez, começaram a refletir acerca das suas realidades e entenderam que até com um orçamento pequeno é possível fazer bons filmes.

Há uma diversidade dos relatos, mas que conversam entre si quanto ao futuro do evento. Há um consenso entre os produtores que a realidade atual não é muito esperançosa em relação ao planejamento do futuro. O contexto já apontado aqui nesse artigo justifica essa percepção, poucos editais públicos são oferecidos à região Nordeste; nem toda empresa privada se interessa em eventos voltados à comunidade negra; e nem todo estado e município é justo no repasse de financiamentos à cultura e à arte.

A incerteza de financiamentos está no discurso de todas as respostas recebidas pelos formulários desta pesquisa. No entanto, os produtores da EGBÉ têm pensado, por exemplo, em possibilidades de autogestão: “sem perder de vista” a necessidade de que precisam “sempre cobrar do Estado o investimento público que é de direito para a cultura”.

Outros desejos em comum nas respostas ficaram visíveis, tais como: a viabilidade de circulação das mostras e festivais pelo interior dos estados e áreas mais periféricas; a possibilidade de mais atividades formativas; além da vontade de que haja certa ampliação de intercâmbios com outros profissionais negros entre Norte e Nordeste. Esses aspectos caracterizam-se enquanto ferramentas indispensáveis à democratização do cinema. Quando pessoas negras e racializadas de regiões periféricas passam a ter acesso ao cinema, as transformações acontecem.

A antropóloga Adriana de Oliveira Silva (2020) explica que a curadoria é a construção de pontos de vista, sendo assim, o/a curador/a é artista, educador/a, pesquisador/a e tem em mãos o poder de reiterar ou desconstruir lógicas hegemônicas. Com isso, é a curadoria, portanto, a responsável por possíveis aumentos na circulação dos filmes que, no geral, não chegam às salas de cinema comercial, como explica Martins (2018).

Foi questionado, no formulário, a respeito das curadorias: se elas eram fixas ou mudavam a cada ano e quantos/as curadores/as eram negros/as. Das mostras e festivais que responderam: três afirmaram possuir curadorias convidadas; duas afirmaram ter a curadoria fixa, mas contam com convidados a cada edição; e três contam apenas com a curadoria fixa.

Interessante perceber que a mostra EGBE relatou, que passaram a receber curadores convidados a partir de 2020, após entender “a importância de uma curadoria plural”, considerando no interior de suas “pluralidades pretas com recorte de gênero, território”. Em relação à questão racial dos curadores, todas as respostas demonstraram possuir em suas equipes a totalidade de pessoas negras, com exceção da Mostra Moã que contou com um curador negro e dois indígenas.

Por último, perguntamos sobre a quantidade de inscrições efetuadas tanto na primeira como na última edição de cada mostra e festival. Na maioria dos eventos, a primeira edição exibiu filmes convidados e a partir da segunda foram abertos editais de inscrição, sendo o crescimento bastante notável.

Na terceira edição da Mostra Ousmane Sembene de Cinema, foram recebidas 223 inscrições, o que computou um total de 113 filmes a mais que a edição anterior; a Mostra Negritude Infinita, por sua vez, fez a 1° edição com filmes convidados e na edição posterior recebeu 160 inscrições; a Mostra Quilombo de Cinema Negro relatou que recebeu 71 inscrições na 1° edição e 93 na última; a Mostra de Cinema Negro Pilão também teve aproximadamente 10 filmes convidados nos primeiros anos, mas, em 2021, recebeu 127 inscrições, das quais foram exibidas 28; A EGBE relata um grande crescimento, pois de acordo com suas respostas, receberam 54 inscrições na 2° edição (2017), enquanto na 6° (2021), foram 154 filmes inscritos; A Mostra de Cinema Negro de São Félix obteve, na 2° edição, 135 inscrições para a mostra de curtas; e 39 para a mostra de videoclipes; a Semana do Audiovisual Negro não teve chamada na 1° edição, mas na 2° edição as inscrições alcançaram o número de 235 filmes; a MIMB relatou 130 inscrições na 1° edição e 282 na última.

Tais crescimentos demonstram o que esses eventos têm feito em suas regiões: plantado motivações.

Conclusão

O ajuntamento dessas três pesquisadoras teve como principal intuito chamar para o diálogo. O cinema negro nasceu da necessidade de representar os Brasis que o cinema hegemônico (branco e) brasileiro não tem feito. É perceptível a enorme contribuição não só para o cinema, a arte e cultura brasileira, mas para o pensamento negro contemporâneo.

Pode-se afirmar que o crescimento dos festivais de cinemas negros no Nordeste é uma importante janela de circulação para filmes de direções negras e nordestinas. Esse aumento de mostras e festivais refletem no crescimento notável de produções, espaços de formações, debates e críticas voltados para públicos negros em diversas regiões do Nordeste. São espaços de grande valor para a autoafirmação dos cineastas, artistas e profissionais negros do audiovisual. Além disso, é importante salientar que através desses eventos, tanto os públicos negros e racializados quanto os brancos, tem tido a oportunidade de avançar nas reflexões sobre racismo, suas imbricações e outras opressões. 

Alimentadas pelas reflexões do conceito de quilombo enquanto ideologia de Beatriz Nascimento, atualmente associadas ao conceito de QuilomboCinema de Tatiana Carvalho Costa, refletimos que esses espaços-quilombos se apresentam no cenário do cinema brasileiro contemporâneo como fortes respostas a diversos tipos de opressões vivenciada pelas pessoas negras no atual momento político e econômico do país. São nos momentos de crise nacional que essas expressões de resistência cultural ficam ainda mais em evidência (Nascimento 2018).

A ausência de investimento financeiro na cultura no Nordeste implica no esforço dobrado destes quilombos, como relataram todos os produtores. É necessário recorrer a alternativas para a continuidade dos eventos. Essa dificuldade é reflexo da má distribuição econômica na sociedade brasileira, que acaba por concentrar as maiores rendas no eixo Rio-São Paulo. Combinado a isso, ainda permanece um pensamento colonizador e coronelista de boa parte dos governantes dos estados do Nordeste.

A desigualdade apresentada neste trabalho, não apenas de raça, mas também de território refletem em toda uma cadeia produtiva do cinema negro desta região. De acordo com as respostas do formulário, em 2020, com a aplicação da Lei Aldir Blanc, houve um impulso na cadeia produtiva deste cinema. A expectativa é que nas próximas edições dessas mostras e festivais, haja um crescimento de filmes que foram financiados por estes editais públicos. Porém, entendemos que este edital foi uma ação pontual por causa da pandemia da COVID-19, restando uma angústia para esses profissionais que não têm perspectivas de financiamentos públicos para os próximos anos.

Os primeiros movimentos de mostras no Nordeste iniciaram em 2016 e, ininterruptamente, cineastas negros e nordestinos se viram enquanto uma comunidade. Apesar do sistema hegemônico sustentado pelo racismo estrutural ainda se manter persistente, dificultando o acesso de profissionais negros a financiamentos e reconhecimentos, esses espaços-quilombos continuam reagindo ao colonialismo cultural. Para a história é pouco tempo, para o Cinema Negro não. Sempre tivemos ideias nas cabeças, o sistema que sempre operou para impedir que as câmeras chegassem nas nossas mãos.

Notas finais

1Doutoranda em Sociologia (UFS) e Estudos Étnicos e Africanos (UFBA). E-mail: lailaoliveira080@gmail.com

2Doutoranda em Sociologia (UFS) e Professora substituta do curso de Publicidade e Propaganda (DCOS/UFS). E-mail: luoliveira.vieira@gmail.com

3Doutoranda em Crítica Cultural (UNEB) e em Cultura e Sociedade (UFBA). E-mail: naira.nai@gmail.com

4Mais em: https://apan.com.br/sobre/

5Pesquisa realizada pelo IPEA em 2020. “Ação afirmativa e população negra na educação superior: acesso ao perfil do discente.” Tatiana Dias Silva. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2569.pdf Acesso 07 de Junho de 2021.

6Esse longa é fruto do curta-metragem “O dia de Jerusa” lançado em 2014 pela mesma cineasta.

7Zózimo Bulbul inaugura o Cinema Negro no Brasil com o seu filme Alma no Olho em 1973. O primeiro filme dirigido por um diretor negro, que realmente pautava a questão do negro no cinema. Tendo como centro da narrativa o problema social do negro.

8Ler também Parente (1998)

9Nesse artigo são utilizadas as expressões Norte e Sul em itálico para indicar essa divisão política existente no passado.

10Beatriz Nascimento faz uma referência ao espaço da casa-grande, onde residiam as famílias brancas em suas fazendas no Brasil colonial. Em 1976 ela publica uma crítica intitulada “A Senzala vista da Casa Grande” direcionado a Cacá Diegues, diretor do filme Xica da Silva.

11Existem muitas discussões acerca de qual termo abrange melhor. O termo não-branco centraliza o branco e o termo racializado descarta que branco também é raça e não algo neutro. Como não é usual utilizar o termo “pessoas de cor” no Brasil, nesse artigo é utilizado o termo “racializados” para todas as pessoas que, por sua origem étnico-racial, são afastadas do padrão branco.

12Com o objetivo de mapear locais onde acontecem mostras, festivais, cineclubes e projetos voltados à difusão do Cinema Negro, no Brasil, a mostra Negritude Infinita fez um mapa muito interessante que é possível ser visualizado em: https://negritudeinfinita.com/mapadifusaocinemanegro/.

13Não foi perguntado valores dos prêmios.

14Lei Aldir Blanc é uma lei de incentivo cultural que surge durante a pandemia da Covid-19 em 2020 como um auxílio aos profissionais que sofreram com o impacto do isolamento social.

15CEARÁ. Instituto Dragão do Mar. Temporada de Arte Cearense - Editais Culturais 2018/2019.

16PERNAMBUCO. Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco. 10º Edital do Programa de Fomento à Produção Audiovisual de Pernambuco - Funcultura 2016/2017

17BAHIA. “Bahia investe 20 milhões no setor audiovisual em 2019”.

18CEARÁ. Secretaria Especial da Cultura. Edital de Apoio ao Audiovisual Cearense.

19ALAGOAS. Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas. IV Edital de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas.

20ARACAJU. Fundação Cultural Cidade de Aracaju. Edital Lab Aracaju nº04/2020.

21SERGIPE. Fundação de Cultura e Arte Aperipê de Sergipe. Edital de Premiação para Produção e Exibição cultural nº03/2020.

22NATAL/RN. Fundação Cultural Capitania das Artes. Seleção Pública Nº 015/2021 - Cine Natal 2021 – Apoio Financeiro II.

23JOÃO PESSOA. Fundo Municipal de Cultura. Edital de Chamada Pública Nº 005/2020.

24PARAÍBA. Secretaria de Estado da Cultura. Edital de Chamada Pública nº13/2020 para a seleção de projetos culturais “Margarida Cardoso”.

25PIAUÍ. Secretaria do Estado de Cultura do Piauí. Edital Piauí de Seleção de Projetos Audiovisuais nº 01/2017.

26MARANHÃO. Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão. Edital SECMA- Seleção de Projetos Audiovisuais do Maranhão nº7/2019.

27Ajuntamento é um termo utilizado pela cineasta Adélia Sampaio para se referir ao seu processo independente de fazer cinema desde os anos 70, com base na cooperação de amigos que acreditavam em seus projetos.

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