Abstract
This article proposes a dialogue between the fictional world of the movie The Matrix (1999) and contemporary life that has repercussions on the microcosm of the school. The Matrix is a trace of postmodern philosophy, with references to different mythologies, allusions to Socrates, Plato and Pythagoras, to Western and Eastern sacred scriptures, to the Hegelian dialectic, to Psychoanalysis, among other literary and metaphysical references. Cinema as a catalytic, transgressive and avant-garde art has always acted as a harbinger of the technological, aesthetic and behavioral movements that took place in the history of humanity and that defined post-Modernity. From the cinematographic language of The Matrix, through the existential trajectory of the character Neo, in his Hero’s Journey, it intends to understand the experience of the contemporary individual in the real and virtual universe, in parallel to the fictional world of The Matrix, a mere illusion created by a software. Considering the multiculturalism of the world dynamics, marked by aesthetic agglutinations and hybrids, it is also intends to understand the means of formation of the networks of perceptions and sensoriality of our students and how these processes affect the construction of their social, political identities, cultural and educational. In addition, it aims to identify the school’s contribution in the stage of articulation and interaction between curricular parameters and knowledge constituted in the digital universe, demarcated by the media and social networks, in order to glimpse the role of the teacher, in the face of pedagogical mediation.
Keywords: Cinema, Technologies, Contemporaneity, School, Identity.
Introdução
O presente estudo se propõe a analisar as condições de vida e de existência na contemporaneidade, com as suas contradições e inquietações dimensionadas pela virtualização dos espaços e dos corpos, e o modo como tudo isso incide no microcosmos da escola, a partir de um diálogo crítico-reflexivo com o filme Matrix (1999).
No primeiro momento, o cinema é compreendido em sua dimensão histórica. Realidade que o eleva à condição de Sétima Arte, com uma sintaxe cinematográfica fortemente influenciada pelo hibridismo das estéticas tecnológicas.
Em seguida, realiza-se um estudo sobre algumas das principais referências mitológicas e religiosas de Matrix, um esboço filosófico da pós-modernidade, referenciado por uma estética pop advinda da cibercultura. Nesse contexto, investiga-se a complexidade do personagem Neo, com base nos elementos míticos e arquetípicos que sustentam a sua trajetória existencial, dentro da Jornada do Herói, especialmente, pela perspectiva do Mito da Caverna de Platão.
Por fim, busca-se compreender o papel da escola numa realidade virtual influenciada pelas redes e mídias sociais, e como tudo isso repercute na formação humana de nossos estudantes, ambientados numa contemporaneidade intensamente demarcada pelos valores da “sociedade de informação” e da “sociedade do espetáculo”.
Portanto, é uma oportunidade de ampliar os campos de entendimento e de reflexão sobre como a rede de percepções atua no modo sensível de existir, em contextos de fisicalidade, preenchidos com excessiva informação eletrônica e virtual, numa realidade já iminente: o metaverso.
Cinema e pós-modernidade
O cinema nasceu universalmente como a mais completa manifestação artística. Em 28 de dezembro de 1895, os irmãos franceses Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862 -1954) e Louis Jean Lumière (1864- 1948), filhos do famoso fotógrafo Antoine Lumière, de Lyon, elegeram o salão indiano do Grand Café, em Paris, como o palco consagrador desse momento histórico.
O público, reduzido a pouco mais de trinta pessoas, pagou um franco pelo ingresso daquela sessão, cujo programa fílmico de quarenta minutos previa a apresentação de dez filmes de três a quatro minutos de duração.
Desde aquele dia, legitimado como a primeira sessão cinematográfica comercial do mundo, até os dias que correm, o cinema cumpre com primazia a sua grande missão: encantar, comover e provocar alumbramento catártico ao mobilizar em nós sensopercepções, num plano consciente e/ou inconsciente, por meio de emoções transcendentes projetadas na grande tela. Nesses termos, Coutinho (2009) pondera:
O cinema, ao mesmo tempo que ofereceu ao olhar as grandes panorâmicas em imagens e sons, trouxe junto com elas uma possibilidade infinita de exploração das intimidades. (Coutinho 2009, 77)
Embora os irmãos Lumière sejam mundialmente reconhecidos como os “inventores” da Sétima Arte, sabe-se que o cinema advém das muitas etapas de aprimoramento estético, tecnológico e comportamental que perpassam os ciclos evolutivos da humanidade industrializada, definida pelas multifaces do capitalismo.
Apesar das muitas divergências e convergências que cercam a genealogia do cinema, não se pode desmerecer o prospecto de originalidade que os irmãos franceses imprimiram ineditamente à Sétima Arte, ao criarem uma sintaxe cinematográfica sistematizada em imagens definidas por uma linguagem própria e mutável, até se constituir atualmente também como uma informação digital, graças a uma complexa dinâmica de fatos históricos que registram a evolução da estética cinematográfica. Para Coutinho (2009, 83), “mais que um espaço visual, as imagens cinematográficas criam uma janela, um campo de percepção que as transcende”.
O cinema é, por conseguinte, uma grande arte catalogada pela universalidade de seu caráter aglutinador e derivativo que lhe confere miticamente a condição de Sétima Arte, termo cunhado pelo crítico de cinema italiano Ricciotto Canudo, no “Manifesto das Sete Artes”, escrito em 1912 e publicado somente em 1923. Para Canudo, em realidade cinematográfica, o cinema engloba as seguintes artes, em modo sequencial: Música (som), Dança/Coreografia (movimento), Pintura (cor), Escultura (volume), Teatro (representação), Literatura (palavra) e Cinema, como a sétima arte que integra os elementos das artes anteriores, além da oitava, a Fotografia (imagem).
Posteriormente, com a evolução criativa de outras expressões artísticas, o cinema também aglutinou mais contribuições. Na sequência da cronologia histórica, vieram os Quadrinhos, os Games e, por último, a Arte Digital ou Multimídia (moderna computação gráfica). Não se pode, ainda, desconsiderar a contribuição do rádio e da televisão no aprimoramento estético da cinematografia contemporânea, reiterando a sua predisposição atemporal para construir interconexões estéticas e intersecções das artes com a comunicação.
No aprimoramento das estéticas tecnológicas, o cinema, dentre as muitas manifestações artísticas que o constituem, provou que as estéticas anteriores não desaparecem quando do surgimento de novas tecnologias. Ao contrário, o cinema absorve as novas estéticas digitais com a hibridização das estéticas precedentes, num fazer pedagógico atemporal, e amplia o seu campo de linguagens, com elementos narrativos em funções informativas. Coutinho (2009) completa:
Todo o filme, e, portanto – a linguagem cinematográfica – realiza sempre, mesmo quando não se propõe a tal, uma educação cultural no espaço e no tempo. (Coutinho, 2009, 80)
A palavra hibridização advém da expressão “hibridismo”, recorrente, a partir do final dos anos de 1980, na metaforização das sociedades contemporâneas, em especial, as latino-americanas. A palavra “híbrido” refere-se aos “vocábulos compostos com elementos de diferentes línguas” (Cunha, 2010, 336). “Híbrido” caracteriza-se, ainda, como o cruzamento de espécies.
Híbrido, hibridismo, hibridação e hibridização são denominações comumente utilizadas para demonstrar as multifaces das sociedades contemporâneas em relação ao multiculturalismo e as suas formações sociais, à interconectividade das mídias, à intersecção das linguagens, dos signos e das estéticas tecnológicas, entre outras manifestações. Ao discorrer sobre a presença dos hibridismos nos mais variados campos da cultura e da sociedade, Lucia Santaella (2008) enfatiza a propriedade e a adequação do termo híbrido:
De fato, não poderia haver um adjetivo mais ajustado do que “híbrido” para caracterizar as instabilidades, interstícios, deslizamentos e reorganizações constantes dos cenários culturais, as interações e reintegrações dos níveis, gêneros e formas de cultura, o cruzamento de suas identidades, a transnacionalização da cultura, o crescimento acelerado das tecnologias e das mídias comunicacionais, a expansão dos mercados culturais e a emergência de novos hábitos de consumo. (Santaella, 2008, 20)
O filósofo Walter Benjamin (1994) antevê a subjetividade entre a produção artística, os processos cognitivos, perceptivos, comportamentais e o sistema capitalista.
Benjamin acompanhou a evolução do cinema e toda a metamorfose da percepção provocada por ele, diante daquilo que Benjamin denominou de “declínio da aura”. O cinema em seu hibridismo originário contabilizou às massas modernas o consumo da arte com mais acessibilidade e rapidez. Tudo perfeitamente engendrado pela retórica do consumo massificado, muito bem capitaneada pela indústria do cinema, efetivando a abertura para outros campos de consumo da cultura e do entretenimento:
Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. […]
Retirar o objeto do seu invólucro, destruir a sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à reprodução, ela consegue captá-la até no fenômeno único.
(Benjamin, 1994, 170)
A partir dessas reflexões, emergem alguns questionamentos que direcionam o presente estudo.
De que forma todas essas considerações suscitadas podem vir a dialogar com a educação contemporânea e com a realidade microcósmica de um ambiente escolar? Por que devemos considerar o cinema genealogicamente pela via do seu pluralismo artístico, na condição de Sétima Arte? Por que precisamos refletir sobre a hibridização das sociedades pós-modernas, inclusive, na perspectiva revolucionária angariada pelo cinema? Qual a razão de evocarmos o pensamento benjaminiano a fim de compreendermos as metamorfoses que ressoam sobre o nosso aparelho perceptivo e cognitivo, desde a chegada do cinema? De que forma esses processos híbridos e sensoperceptivos repercutem nas novas gerações, cada vez mais alfabetizadas em contextos digitais?
Ademais, que percepções podemos extrair do filme Matrix, uma produção tão rica em referências mitológicas, com alusões diretas a Sócrates e a Platão, às escrituras sagradas ocidentais e orientais, à dialética hegeliana, à Psicanálise, entre outras importantes referências? Que relação podemos estabelecer entre Matrix, um traçado filosófico sobre a pós-modernidade e a escola contemporânea, em seus contextos definidos por metamorfoses e hibridismos?
Todos esses questionamentos são, destarte, direcionamentos teóricos que nos norteiam para uma compreensão mais ampla sobre como a educação e a escola coabitam em todas essas facetas híbridas e transversais definidoras dos avanços comportamentais e tecnológicos da contemporaneidade.
O cinema sempre absorveu com excelência as inquietações estéticas e existenciais de cada época, além de registrar com propriedade as memórias individuais e coletivas que traduzem o nosso inconsciente coletivo.
Cabe a Matrix atuar como o fio condutor analítico e reflexivo deste estudo, ampliando a nossa capacidade de compreensão e de análise das gerações constituídas em alfabetização digital, pela perspectiva de um novo mundo que já se encontra ao nosso alcance – o metaverso. Trata-se de uma representação real sobre a possibilidade de acesso a realidades paralelas, ainda que ficcionais, por meio de experiências reais em imersão virtual.
A expressão metaverso advém da literatura cyberpunk, predominante na década de 1980. É uma experiência resgatada pelos games e, atualmente, já explorada nas redes sociais, na concepção das identidades avatares. Apesar das experiências malsucedidas no passado, gigantes da tecnologia como o Facebook e a Microsoft, entre outros, em todo o planeta, vêm investindo recursos financeiros, tecnológicos e digitais no projeto metaverso.
O filme Matrix, com a sua estética pop proveniente da cibercultura, traduziu em linguagem cinematográfica as possibilidades reais de como nós, seres humanos, podemos ser conduzidos pelo mundo da inteligência artificial, com as suas máquinas cada vez mais autoconscientes. São algoritmos e programas computacionais em constante evolução, naturalmente inseridos em nossas vidas cotidianas. Por essa perspectiva, Coutinho (2009) discorre:
Esse é o olhar cinematográfico que educa, em estética e magia, o olhar do homem contemporâneo. Não sabemos mais ver sem as câmeras, e esse olhar é sempre ficção e realidade juntas. (Coutinho, 2009, 86)
Assim, Matrix amplia a compreensão sobre as muitas singularidades e subjetividades que entremeiam a vida do real e do ilusório, estabelecendo um diálogo reflexivo entre o cinema e a realidade imantada num campo de sensopercepção, sempre em contínua transformação.
Matrix e o Mito do Herói
Mais que um clássico, a premiada saga de Matrix se tornou uma referência para a cinematografia mundial, graças à sua estética cyberpunk e High Tech, seus recursos técnicos, seus efeitos especiais e, sobretudo, ao seu portentoso roteiro. Cada cena do filme é um enigma capaz de conduzir o espectador aos mais variados questionamentos e reflexões.
Roteirizada e dirigida pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski, a quadrilogia Matrix (Austrália/EUA) estreou em 1999, na seguinte sequência: Matrix (1999), Matrix Reloaded (2003), Matrix Revolutions (2003) e Matrix Resurrections (2021).
Para muito além de um traçado filosófico da pós-modernidade, a representação ficcional de Matrix também abrange a aglutinação de simbologias e de referências às religiões ocidentais e orientais, à metafísica, às ciências quânticas e epistemológicas, entre outras. Isso ocorre especialmente no primeiro filme da saga, objeto empírico sobre o qual os nossos estudos e análises estão concentrados justamente por apresentar o enredo mais complexo, em termos referenciais.
Mas, afinal, o que é Matrix? Marilena Chaui (2014) esclarece:
Palavra latina derivada de mater, que quer dizer ‘mãe’. Em latim, matrix é o órgão das fêmeas dos mamíferos onde o embrião e o feto se desenvolvem; é o útero. Na linguagem técnica, a matriz é o molde para fundição de uma peça; o circuito de codificadores e decodificadores das cores primárias (para produzir imagens na televisão) e dos sons (nos discos, fitas e filmes); e, na informática, é a rede de guias de entradas e saídas de elementos lógicos dispostos em determinadas intersecções. (Chaui, 2014, 07)
O enredo de Matrix é desenvolvido a partir dessa perspectiva de significados e significantes explanadas por Chaui, pois, no filme, a Matrix comporta todos esses sentidos e elementos. Ela representa o mundo terrestre dando luz aos nossos corpos para vivermos a nossa experiência existencial.
Num futuro distópico, com o desenvolvimento da inteligência artificial, a humanidade se torna cada vez mais dependente das máquinas. O trabalho braçal é substituído por trabalhadores robóticos. Indevidamente subestimadas, as máquinas, com a sua inteligência artificial em constante evolução, tornam-se cada vez mais autoconscientes e, portanto, cientes das relações desiguais e insensíveis a que eram submetidas pelos terráqueos. Porém, os conflitos de interesses entre as máquinas e os seres humanos se tornam crescentes e inevitáveis, conduzindo a uma grande guerra.
Mesmo com os ataques humanos aparentemente promissores, a radiação e o calor das bombas não afetam as máquinas, que, recuperadas dos ataques, contra-atacam em todo o Planeta. Cada vez mais acuados, perdendo terreno, os grandes líderes mundiais optam por uma estratégia arriscada: bloquear a luz do sol a fim de obstruir a energia das máquinas que dependiam diretamente da luz solar para sobreviver. Enormes aviões despejam nanomáquinas na atmosfera. Elas se multiplicam rapidamente em todo o globo terrestre, deixando os céus permanentemente escuros, no fenômeno denominado de a Grande Tempestade Negra.
Entretanto, essa estratégia trouxe efeitos contrários: mesmo gerando prejuízo temporário às máquinas, a ação também significou a destruição da própria vida planetária. Sem o acesso ao sol, os mais variados ecossistemas sucumbem à morte e desaparecem da Terra, assim como todos os equipamentos humanos que dependiam diretamente da energia do sol. Por outro lado, mesmo sem a energia solar, as máquinas buscam outras fontes de energia e resistem aos pesados ataques das artilharias humanas. Afinal, elas foram programadas para se adaptar a qualquer situação adversa. A humanidade caminha para a sua ruína apocalíptica. A rendição torna-se a única alternativa. Como parte do acordo para acabar com a guerra, as máquinas exigem que os humanos entreguem os seus corpos a elas.
Embora vitoriosas contra a humanidade, as máquinas ainda enfrentam o problema da geração de energia e passam a estudar a biologia do corpo humano. Descobrem que o calor gerado por um corpo humano também é capaz de produzir eletricidade. E que o cérebro conectado a uma grande rede de computadores pode ser mantido preso e devidamente controlado pelas máquinas. Assim, os seres humanos com as suas mentes controladas não poderiam causar mais problemas para a nação dominante das máquinas. A mente dos homens passa a ser sinteticamente produzida, aprisionada e controlada pelo que se denomina Matrix.
As máquinas desenvolvem programas dentro da Matrix e designam agentes para proteger o sistema, prevenindo contra a insurreição humana, na hipótese remota de retorno da humanidade aos domínios do planeta. Os corpos humanos considerados como pilhas biológicas passam a ser cultivados em casulos, em forma de grandes cápsulas, localizados em imensos campos de produção de energia.
Para Chaui (2014), a Matrix representa,
ao mesmo tempo, um útero universal onde estão todos os seres humanos cuja vida real é ‘uterina’ e cuja vida imaginária é forjada pelos circuitos de codificadores e decodificadores de cores e sons e pelas redes de entrada e saída de sinais lógicos. (Chaui, 2014, 07)
É a partir dessa narrativa preliminar e pré-apocalíptica que a trama central de Matrix se desenvolve. Ao desvendar os mecanismos de dominação da Matrix, um gigantesco software, alguns seres humanos conseguem escapar do controle mental dos sistemas de programação, libertando-se e ajudando na libertação de muitos outros humanos. Conseguem formar grupos de resistência. Como seres libertos, eles constituem, num mundo subterrâneo, a cidade de Zion ou Sião em português, que tenta resistir de todas as formas à perseguição e ao ataque das máquinas.
Os humanos libertos descobrem que viviam em um mundo de sonhos e de ilusão, gerado por programas de computação. Um mundo virtual capaz de forjar uma realidade como a que conhecemos, isto é, um simulacro da realidade do mundo moderno no qual estamos inseridos.
A Matrix é programada para nos oferecer todas as respostas – ainda que equivocadas. Ela possui uma capacidade gigantesca de criação e de autopreservação, criando uma relação de codependência, pois, mesmo que os nossos desejos sejam realizados, eles também nos escravizam.
Quando olhamos para a Matrix, estamos olhando para a nossa mente. Não vemos o mundo tal como ele é ou como ele se apresenta, mas como os nossos sentidos o captam, elaborando essa percepção a partir da programação do nosso cérebro.
A realidade circundante é um reflexo de nós mesmos, seja ela virtual, criada por meio da internet e dos programas que imitam o nosso mundo e as nossas ações, seja ela projetada pelos nossos sonhos mais íntimos, nossos ideais e nossas contradições, enfim, nossas subjetividades. Tudo é produzido dentro da Matrix, em forma de microprogramas e materializado no mundo real. É um local gerenciado por leis, normas, sinais e muitos outros elementos artificiais submetidos às convenções arbitrárias.
Estamos, a todo momento, alimentando esse gigantesco software. Somos parte dessa imensa rede de programação. Somos, pois, microprogramas. Quando “criamos algo”, inserimos esse novo programa na Matrix. Caso ele seja avalizado pelo sistema, será naturalmente absorvido. Por outro lado, se essa “criação” for considerada subversiva ou revolucionária, isto é, contrária aos interesses da Matrix (o status quo), será tratada como um vírus invasor a ser imediatamente extirpado e combatido por “um eficiente antivírus”.
No filme Matrix, os humanos libertos são considerados subversivos e perseguidos pelos agentes de óculos escuros. Rotulados como terroristas e criminosos de guerra, eles representam “um vírus de potencial ameaça”.
Em toda a quadrilogia, os personagens centrais Neo (Keanu Reeves), Trinity (Carrie-Anne Moss) e Morpheus (Laurence Fishburne) formam uma Tríade e sustentam as quatro narrativas fílmicas, reafirmando nelas o Mito do Herói. Para Joseph Campbell (2011, 06), “mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”.
A construção narrativa de Matrix traz entre as suas muitas bases discursivas a temática da distopia e da esperança, a partir de uma perspectiva da Filosofia, em seus variados ramos de estudo: a filosofia moral, a filosofia da mente, a filosofia da religião e a filosofia política. Esse esboço filosófico da pós-modernidade também perfila a trajetória mítica da Jornada do Herói, ou seja, o percurso de uma alma pela vida, com os seus ritos de passagem, os seus mitos pessoais e uma profunda transformação na psique.
O termo Jornada do Herói foi definido por Joseph Campbell em seus estudos analíticos sobre mitos, arquétipos e inconsciente coletivo, tendo sido, inclusive, fortemente influenciado por Carl G. Jung.
Neo protagoniza a Jornada do Herói com forte alusão ao Mito da Caverna de Platão (2003), uma das mais instigantes e reflexivas metáforas propostas pela filosofia, sobre as condições de vida da humanidade. Esse clássico de Platão já foi traduzido em muitas outras tradições e manifestações culturais, além de ser constantemente revisitado pelo cinema.
No Mito da Caverna, Sócrates, ao dialogar com Glauco, seu pupilo, discorre sobre a alegoria da caverna. Acorrentados ao fundo da caverna, os prisioneiros só conseguem ver as sombras de objetos projetados pela luz que a invade. Habituados a essa realidade em que as imagens distorcidas substituem as coisas reais, esses prisioneiros não são capazes de acreditar em suas próprias ilusões e crenças e temem erguer os olhos para a luz. Contudo, um deles, movido pela curiosidade e pela audácia, rompe as correntes e, erguendo os olhos para a luz, sai da caverna. Temeroso quanto ao brilho ofuscante da luz, o fugitivo receia prosseguir. Mas, aos poucos, vai se adaptando e percebendo a vida que perdera, durante anos, ao permanecer iludido no interior daquele ambiente. Ao descobrir um mundo novo diante da luz, esse fugitivo deverá retornar e relatar a sua vivência aos outros, além de lhes denunciar a farsa e as sombras construídas e forjadas à margem das coisas reais.
Essa alegoria platônica revela o esgotamento das meras aparências e da mera sobrevivência como sentido de vida. É a confirmação de que a alma humana busca a sabedoria, os valores, a profundidade e, sobretudo, busca “conhecer-se a si mesmo”, para enfim, trilhar outros caminhos e imergir no mundo real, na verdade iluminada pelo sol.
Platão traça um paralelo filosófico a partir de dois critérios de realidade distintos. Nas sociedades contemporâneas, tem-se na materialidade o parâmetro de mundo real. Toda a nossa realidade é avaliada pelo filtro dos sentidos. Cada vez mais, o mundo espiritual nos parece abstrato, distante, uma hipótese ou uma teoria vaga. Nas sociedades antigas, como na Índia e no Egito, por exemplo, o critério de realidade era o mundo espiritual, a eternidade. Ao passo que o mundo material era considerado tão somente uma mera ilusão. O mundo material era visto como algo impermanente, passageiro, um jogo de sombras. Para que algo fosse considerado real, precisava trazer consigo o eterno, o perene.
O Mito da Caverna e a narrativa ficcional de Matrix conduzem a esse mesmo entendimento filosófico, por esse critério de realidade entre o mundo real e o mundo ilusório. Enquanto o homem viver em função das sombras e de suas projeções, será apenas um homem superficial, habitando o mundo das aparências e muito distante da felicidade, do verdadeiro sentido da vida, de sua própria identidade e de sua alma perene. Ao decidir buscar o que é verdadeiramente real, ele descobre a essência de tudo aquilo que permanece dentro de si e dos outros, aquilo que existe dentro de cada coisa. Logo, ele se realiza como ser, atingindo um nível de consciência plena – a sabedoria. É, portanto, a própria Filosofia: o amor à sabedoria. Ele transcende e cumpre a sua jornada existencial e cósmica.
Neo é considerado o “Escolhido”. Trata-se de um codinome utilizado pelo programador de sistemas Thomas Anderson para camuflar a sua identidade de hacker. Graças a essa existência virtual, Morpheus, Trinity e os agentes da Matrix chegam a ele.
Neo vem do grego “novo”, “renovado”. Ele é o herói que não se rende ao inconsciente coletivo, pois é fiel a si mesmo, rompe com o padrão comportamental da massa e enxerga aquilo que ninguém quer ver. Ele se deixa guiar pelo mistério. Com as letras de Neo, é possível escrever Éon, que significa Noé, aquele que salva os seres vivos da fúria de Deus. Deslocando as letras de Neo, tem-se o anagrama de One, do inglês, “um”, “o principal”. O número um representa a criação de todas as coisas, a origem do universo. É o instante inicial que determina todo o resto.
Etimologicamente, o nome Thomas ou Tomás significa aquele que aceita o que vê e está preparado para ver. Anderson, por sua vez, é o filho da coragem, do valor. Neo representa essa dimensão do herói: ele imerge no Deserto do Real. Ele quer ver a realidade e tem coragem para se lançar nesse propósito. Toda essa inquietude, curiosidade e coragem se transformam em combustível propulsor à alma de Neo, fazendo-a brilhar reluzentemente, a ponto de atrair aqueles que já descobriram outras realidades para além das meras ilusões. Neo representa a redenção e a esperança de uma nova vida para a humanidade.
Há na persona mítica de Neo uma referência cristã ao Messias, o redentor prometido. Não, por acaso, o primeiro filme foi lançado no fim de semana de Páscoa. Nos Evangelhos, Jesus é apresentado como o Messias prometido, aquele “que estava por vir” (Lucas 7:19). Em Matrix, Neo é o redentor messiânico anunciado pelo Oráculo. Assim como Jesus ressuscitou no terceiro dia, Neo também voltou à vida, na sala 303 da Nave Nabucodonosor, graças ao beijo de Trinity, depois de ser atingido mortalmente pelos agentes da Matrix.
A nave Nabucodonosor tem o mesmo nome do rei babilônico, um grande líder e estrategista militar que transformou a Babilônia numa potência. Na nave, há a inscrição Mark III, nº 11, em referência ao Evangelho de Marcos 3:11: “E quando os espíritos impuros o viam, se jogavam gritando: ‘Tu és o Filho de Deus’’’. O número onze é considerado o número do Mestre. É o despertar para a consciência Divina, o acesso a um portal dimensional. Também é o número de Nuit, a Deusa da Noite. O onze se refere a Lúcifer, o portador da Luz, phosphóros (= do grego) e a Vênus, a estrela matutina e vespertina, a luz mais brilhante. A Nave Nabucodonosor é comandada por Morpheus. É nela que Morpheus e Trinity observam e contatam Neo pela primeira vez.
Trinity é a companheira de Neo. Seu amor por ele a acompanha em toda a jornada. Neo carrega consigo a inquietante dúvida de ser ou não “O Escolhido”. Contudo, essa condição de “ser ou não ser O Escolhido” também é dimensionada preliminarmente na forma como ele interpreta e articula a sua relação de amor com Trinity. Como Neo entende e reconhece essa potência amorosa e tudo aquilo que o amor é capaz de fazer ou não.
A figura de Trinity representa a Tríade do número três e está ligada à essência humana. É o número da luz, associado às formas espaciais e à geometria sagrada. É a Trindade das religiões: Pai, Filho e Espírito Santo; Brahma, Vishnu e Shiva; Isis, Osíris e Horus; Ahura, Mazda e Anahita. É a união entre o corpo, o espírito e a mente. Trinity é a Grande Mãe, a Filha e o Espírito Santo. Na Grande Fraternidade Branca, Trinity personifica a mulher como a Mãe Natureza.
Para Pitágoras, o amor, a vontade e a inteligência representam as três virtudes norteadoras das demais virtudes. É a primeira interface da nossa essência com o mundo. O amor de Trinity ressuscita Neo. Esse fluido sutil dissolve toda a ilusão. É por meio desse amor que Neo começa a ter contato com a sua própria essência.
O terceiro personagem a compor essa Trindade é Morpheus. Ele vivencia o arquétipo do Mestre. É o Mentor ou o Velho Sábio, segundo Campbell.
Na anatomia da psique humana, o mentor representa o self, o deus dentro de nós, o aspecto da personalidade que está ligado a todas as coisas. O self superior é a parte mais sábia, mais nobre, mais parecida como um deus em nós. (Vogler, 2009, 90)
Na mitologia grega, Morpheus é o Deus do Sonho, aquele que traz mudanças através dos sonhos. Também está associado à noite e ao mistério. Ele toca os seres com a papoula vermelha, fazendo-os adormecer e deslocando-os para a dimensão onírica. Na dimensão dos sonhos, Morpheus toma a forma humana para conversar com as pessoas, revelando-lhes as verdades. É um deus psicopômpico, um pontífice, pois como condutor de almas, ele faz a ponte entre os mundos. Assim como Anúbis, no Egito e, Exu, na mitologia africana.
No filme Matrix, Morpheus oferece a Neo o direito de escolha entre as duas pílulas: a vermelha e a azul. Neo escolhe a pílula vermelha. Mitologicamente, é como se Morpheus tocasse Neo com a papoula vermelha e o conduzisse à dimensão onírica fora da ilusão da Matrix. Relutante em aceitar a sua nova visão sobre o real, Neo não consegue acreditar que vivia num mundo de sonhos e de ilusões. – A maior parte dessas pessoas não está pronta para ser descoberta, enfatiza Morpheus. À semelhança do prisioneiro da caverna de Platão, que vive um doloroso processo de adaptação à nova realidade, Neo também expõe as suas limitações: – Por que os meus olhos doem? Morpheus responde: – Porque você nunca os usou.
O número três amplia a perspectiva geométrica e simbólica do número dois: Yin e Yang – Neo e Trinity. Para Pitágoras, o três transforma o dualismo em harmonia e unidade. Neo, Trinity e Morpheus formam uma Trindade. Representam, portanto, a vontade, o amor e a inteligência, as três virtudes pitagóricas necessárias para a humanidade sair da Matrix e libertar-se.
O triângulo é uma representação simbólica presente em muitas culturas: na Índia, na geometria plana; no Egito, na geometria espacial vista nas pirâmides; e, entre os celtas, é o cone que representa o número três no plano espacial.
No filme, todos os humanos despertos entram na Matrix usando roupas pretas e óculos escuros. Trata-se de um simbolismo alegórico, pois a cor preta representa a ausência de todas as cores, a sua negação ou a sua síntese. Por não absorver as outras cores, nem refletir as luzes absorvidas, a cor preta também não multiplica as luzes ilusórias da Matrix. Os óculos escuros conferem esse mesmo sentido de proteção aos olhos, contra as ilusões e a cegueira do mundo ludibrioso. “Cor da condenação, o preto torna-se também a cor da renúncia, à vaidade deste mundo”. (Chevalier e Gheerbrant, 2009, 740)
No Hinduísmo, o mundo material é considerado uma mera ilusão dos sentidos. Maya é a Deusa da Ilusão e dos Sonhos. Ela personifica esse estado de inconsciência ilusório que representa a própria Matrix.
No filme, Sião se transforma no último refúgio da raça humana. Somente o calor do Sol Central (a Cidade de Sião) pode mantê-los vivos e despertos. Esse mundo subterrâneo irradiado pela luz solar representa o Nirvana, a realidade posterior para além da ilusão de Maya.
Sião é uma referência ao Monte Sião, localidade do templo de Salomão, considerado o último reduto da sabedoria. A cidade de Sião está no centro magnético da Terra, alimentando-se dessa energia provedora. Ela remete ao simbolismo do centro, ou seja, o princípio de tudo. Buscar o centro é alinhar-se à essência individual, à energia irradiada do sol que brilha dentro de cada um de nós. É o reencontro com a nossa Tríade, a nossa Trindade. Aquilo que verdadeiramente somos: vontade, amor e inteligência.
A cidade subterrânea é uma alusão à própria caverna de Platão. Em várias tradições, inclusive na Grécia Antiga, as cavernas eram transformadas em templos. Ela é o arquétipo do útero materno, local de renascimento, espaço da sacralidade. É o centro iniciático e o centro pela busca da sabedoria. Descer à caverna significa entranhar-se numa viagem interior, dentro de si, para regressar purificado.
Desvencilhados de Maya, a superfície ilusória refletida pelas sombras do mundo, os habitantes de Sião estão mais próximos de sua identidade, de sua essência sagrada e de seu centro de poder.
Resgatado por Trinity e Morpheus, Neo é levado a Sião. Em seu caminho iniciático, ele se aproxima geográfica e metafisicamente do centro e começa a compreender a dimensão existencial e histórica de sua jornada pessoal. Neo sai da caverna e, liberto das sombras e das ilusões mundanas, compreende o seu verdadeiro propósito de vida.
Tal como o prisioneiro que se apieda dos outros companheiros e, por compaixão, decide regressar à caverna a fim de iluminar a cegueira daqueles que ainda enxergavam a realidade sob efeito das sombras refletidas nas paredes, Neo também regressa à Matrix para resgatar a humanidade. Esse percurso cósmico da alma, segundo Platão, define a própria roda da experiência humana: libertar-se a si mesmo para depois contribuir para a libertação dos outros homens. Assim, o prisioneiro e Neo cumprem a verdadeira Jornada do Herói.
Neo personifica todas as dimensões psíquicas do arquétipo do herói. É o herói pós-moderno que vivencia as angústias e as inquietações de nosso tempo, na condição humana de uma contemporaneidade sistemicamente demarcada pelas ilusões do consumismo massificado, pelo narcisismo virtual e pelo superficialismo. Portanto, uma mentalidade simbólica que também repercute nos espaços escolares.
Escola e contemporaneidade
Seria um demérito falar do cinema sem considerar toda a sua historicidade, influenciada por uma rede de metamorfoses estéticas, experimentações tecnológicas e hibridismos. Da mesma forma, seria um grande equívoco analisar a escola sem a validação dos seus processos de transformações cósmicas, ao longo do seu percurso trans-histórico, reafirmando-a em sua incrível capacidade de absorção dos fenômenos sociais e culturais, dentro de um pluralismo inquietante muito comum à própria natureza humana.
Ambos, o cinema e a escola também nos colocam diante de nossas contradições existenciais mais complexas e profundas, em todas as dimensões da vida. Desta feita, a escola vem acompanhando todos os ciclos evolutivos da humanidade, seja no contexto microcósmico dos espaços escolares, seja na visão macrocósmica da educação.
É sabido que as experiências de outrora, definidas pela intersubjetividade das linguagens corpóreas, palpáveis e aparentemente imutáveis, são, hoje, numa gradação de segundos, ressignificadas por valores e linguagens demarcadas pela “sociedade de informação”, em seus muitos desdobramentos tecnológicos, alterando, sobremaneira, os nossos sentidos de percepção.
Essa nova composição informacional é, segundo Santaella (2008),
a ciência do modo sensível de conhecer, dos tipos de conhecimento que a sensação, a percepção sensível, a rede de percepções físicas nos trazem. (Santaella, 2008, 11)
A escola do século XXI é intensamente influenciada por essa “sociedade de informação”, construída sobre a égide da representação virtual. A escola é sempre testemunha e copartícipe da História. Se as décadas de 1900 foram desenvolvidas na perspectiva do virtual, as décadas de 2000 já se inserem no contexto da fisicalidade, com um espaço físico preenchido com informação eletrônica e visual. As tecnologias computacionais estão consideravelmente mais presentes em todos os espaços, inclusive na escola. Contudo, de modo efetivo, trata-se de uma transição do modelo convencional dos computadores para os objetos móveis, como os celulares, os tablets, entre outros.
O uso de telefones móveis e tablets cada vez mais evoluídos, com uma infinidade de recursos digitais, tornou muito mais célere o acesso à fotografia, aos games, às plataformas de compartilhamentos, ao streaming, aos blogs e, especialmente, às mídias e redes sociais. Se, por um lado, essa realidade constitui uma importante ferramenta informativa, sobretudo, na perspectiva contemporânea das novas estéticas tecnológicas, por outro lado, também passou a ser vista como “um grande empecilho” no ambiente escolar, inclusive, por disputar com o professor, o interesse pelas aulas.
A escola está muito longe de saber como lidar com essa problemática. Mesmo porque não se trata apenas de proibir o uso ou o acesso a determinados aparatos tecnológicos como os celulares, mas, de conseguir conciliar os saberes já constituídos nessas “novas” ou “velhas” tecnologias e lançar sobre eles uma percepção mais crítica, construtiva e possivelmente interativa.
A escola como um território fértil, absorvível e absorvente também vem atuando e se movimentando em meio a todas essas mudanças, inovações e convergências no universo digital e no ciberespaço. Mas, diante dessa realidade emergente e inquietante, muitos questionamentos se tornam indispensáveis e relevantes.
Como um primeiro questionamento, é sempre válido, na posição de docentes, termos um olhar mais crítico sobre a nossa condição de formadores de opinião e sobre o modo como nos percebemos na coautoria do processo de construção dos saberes, inclusive, dentro de uma realidade aderente aos avanços tecnológicos da contemporaneidade, que definem as novas estéticas tecnológicas. Contudo, sem nos esquivarmos de compreender a forma como todos esses aspectos repercutem no campo perceptivo, sensorial e cognitivo de nossos alunos.
Afinal, já estaríamos nós, professores, adaptados às novas transformações tecnológicas que muitas vezes parecem mais adaptáveis à realidade de nossos alunos que às nossas experiências pessoais e profissionais? Essa indagação merece um olhar pedagógico internalizado, no quanto nos “percebemos” dentro de um fluxo de movimento e de atuação, no espaço escolar, pleno em interações, hibridismos e intersubjetividades.
A inserção tecnológica em sua fase embrionária, como antevira Benjamin (1994), foi implementada no uso de recursos audiovisuais, que, inicialmente, não foram criados com fins pedagógicos, mas, posteriormente, incorporados a essa realidade como instrumento didático-pedagógico.
Percebe-se que a grande apreensão, entre as muitas inquietações trazidas pelo ingresso de tecnologias no sistema educacional, não está apenas em utilizar esses recursos e, sim, em saber o momento certo de estabelecer essa mediação pedagógica. Isso se aplica, sobretudo, em realidades pedagógicas que revelam a precariedade material e a escassez de recursos humanos e tecnológicos.
Em contrapartida, mesmo com a problemática da “resistência” ou do “despreparo” por boa parte dos docentes, o fato é que nossos alunos estão cada vez mais envolvidos e consumidos por essa realidade tecnológica, por essa nova forma de perceber e de sentir-se dentro de uma realidade física, que, por vezes, se confunde com a própria realidade virtual.
Ainda que para considerável parcela de estudantes, a escola não represente um suporte para o ingresso ao universo digital, é ponto indiscutível que essa realidade já se apresenta como um saber constituído fora do espaço escolar. Tal fato inverte os valores convencionais do processo ensino-aprendizagem: é o próprio aluno que, muitas vezes, traz as novidades do mundo digital para a escola. Isso ocorre especialmente, quando lidamos com uma clientela de adolescentes, jovens e adultos já inseridos no mercado de trabalho.
Como pesquisadores, colocamo-nos num campo de análise, de modo a perceber e a refletir sobre a forma como os processos cognitivos de transformação e de metamorfose das novas tecnologias estéticas atuam nesse campo sutil de percepção e de fruição das sensações em nossos estudantes. Compreende-se, ainda, a construção da identidade social e política desses discentes, que hoje parecem estar mais vinculadas à representação virtual constituída, ou até mesmo forjada, pelas redes sociais, como o Facebook, Instagram, WhatsApp, Telegram, Signal, Twitter, LinkedIn, Pinterest, Snapchat, Kuaishou, Reddit, QZone, Sina Weibo, TikTok, entre outras.
No novo prospecto da escola, o professor não detém mais a exclusividade de uma sala de aula nos moldes convencionais. Ferramentas tecnológicas variadas reiteram as etapas de evolução dos recursos audiovisuais que há décadas foram inseridos no contexto escolar. Do audiovisual ao virtual, a escola da pós-modernidade traz novos desafios prementes ao seu corpo docente.
A revolução tecnológica imprimiu o biorritmo da celeridade do consumo e da descartabilidade dos produtos tecnológicos, gerando novos desequilíbrios ao ecossistema, ao mesmo tempo em que também define as novas nuances do capitalismo.
A Pandemia do Coronavírus nos últimos dois anos provou a urgência na mudança de paradigma. Os professores como nunca antes se viram em meio a um fogo cruzado. Da noite para o dia, a virtualização da escola se tornou uma realidade. As aulas remotas exigiram uma nova contabilidade de conhecimentos digitais e multimidiáticos por parte dos docentes. As problemáticas socioeconômicas que circundam os espaços escolares foram expostas em todo o mundo, assim como no Brasil. Revelou-se o despreparo entre os professores no manejo das aulas virtuais, a indisposição e a resistência por parte de muitos desses profissionais, a ausência de recursos tecnológicos compatíveis com a urgência do momento, além do inacesso à internet, por parte de professores e de uma parcela considerável dos alunos.
Benjamin (1994) já prenunciava a visão vanguardista de Karl Marx quando este, ao prognosticar as transformações nos modos de produção capitalista na superestrutura e na infraestrutura, postula as formulações revolucionárias para a política de arte em todos os domínios da cultura. É o momento em que se eliminam os conceitos tradicionais da arte: criatividade, genialidade, valor eterno, inacessibilidade, elitismo com a ideia de propriedade, entre outros aspectos.
Para Benjamin (1994), a obra de arte e a estética contemporânea são as experiências mais vívidas em que se configuram as metamorfoses e as transformações advindas dos avanços tecnológicos ao aparelho perceptivo, pois desconstroem a mítica da estética inacessível que costumeiramente delineia a aura da obra de arte.
A autenticidade e a reprodutibilidade da obra de arte assumem novas acepções, sobretudo porque libertam o objeto reproduzido do domínio da tradição – a aura que lhe confere status e prestígio – e o transferem para o domínio de massa, incorporando-lhe novas nuances e novos conceitos de acessibilidade e de celeridade no consumo. É exatamente o que vivemos hoje, nestes tempos virtuais da pós-modernidade, com o seu consumismo imediato. O objeto de consumo torna-se, em pouco tempo, desprezível e prontamente descartável. Logo, substituído por outro.
Benjamin (1994) perpassa a história dos conceitos estéticos para muito além da história da arte, ao resgatar a importância dos meios e das técnicas. Segundo ele, seriam as técnicas as responsáveis pelo desencadeamento das percepções e dos processos cognitivos que, muitas vezes, impulsionam as transformações estéticas advindas dos avanços tecnológicos.
A fotografia e o cinema prenunciaram toda essa revolução que hoje, na contemporaneidade, congrega-se às tecnologias informacionais e midiáticas e, por conseguinte, às novas estéticas tecnológicas, uma realidade vigente no universo escolar, principalmente quando situada nas mudanças comportamentais trazidas pelas redes e mídias sociais.
O adjetivo “tecnológica” aposto à expressão “estética”, como enfatiza Santaella (2008), demarca o potencial que os dispositivos tecnológicos produzem na criação de efeitos estéticos, que acionam a rede de percepções sensíveis do receptor, regenerando e tornando mais sutil o seu poder de apreensão das qualidades daquilo que se apresenta aos sentidos. No entanto, vale ressaltar que essas estéticas tecnológicas não se restringem aos objetos ou aos processos que atuam no âmbito da arte. O processo de criação está muito mais associado à “arte de perceber”, a uma faculdade de sentir e, especialmente, à tendência de absorção transformadora das estéticas precedentes pelas estéticas subsequentes, gerando associações, interações, convergências e hibridismos.
Diante das novas estéticas tecnológicas, todo esse processo é absorvido por valores sociais, políticos, culturais, religiosos, comportamentais cada vez mais globalizantes e híbridos, demarcados por uma lógica capitalista que estimula a massificação do consumo, refletindo, portanto, os prognósticos benjaminianos, há quase um século.
Trata-se ainda de uma dinâmica mundial simbólica e metaforizada por uma identidade definida como a “sociedade do espetáculo”, termo cunhado pelo filósofo Guy Debord (1997), ao descrever essa sociedade contemporânea e artificial de consumo:
É lamentável que a sociedade humana encontre tão graves problemas no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil, momento em que a dominação – justamente porque o espetáculo a protege de toda reação a suas decisões e justificativas fragmentadas ou delirante – acha que não precisa pensar; na verdade, já não sabe pensar. (Debord, 1997, 196)
Nos dias que correm, com os avanços tecnológicos em surpreendente escalada de evolução, temos, ao nosso dispor, os mais incríveis recursos da tecnologia mundial. Os aparelhos portáteis trazem uma linguagem técnico-estética fortemente demarcada por hibridizações, com fácil assimilação entre as crianças, adolescentes e jovens e, até mesmo, entre as gerações mais maduras.
Vivemos num mundo imagético, com desdobramentos comportamentais jamais pensados. O que antes se limitava à propagação da imagem via fotografia, hoje, essa realidade fotográfica se digitalizou e a imagem ganhou contornos de movimentos autorais. Ela passou a ser consumida e produzida também em vídeos disponibilizados em diferentes redes e mídias sociais. Portanto, um esboço experimental do projeto metaverso, com a sua proposta de imersão virtual em realidades paralelas.
Novos preceitos de interfaces comportamentais foram criados: não basta apenas se sentir o autor de sua própria história, num conceito tradicional de protagonismo, mas, principalmente, tornar-se o “produtor” de suas próprias narrativas de vida, de modo que esse produto virtual possa ser amplamente divulgado e consumido. Esse novo conceito de empoderamento digital criou uma geração de produtores de conteúdos digitais, denominados Digital Influencers.
A excessiva exposição da imagem digitalizada sacramentou “o declínio da aura” da imagem que outrora era exibida com a primazia estética. A sacralidade cedeu o espaço para a espetacularização compulsiva da autoimagem.
O cinema, portanto, apresenta-se como um importante instrumento dialógico entre as perspectivas curriculares vigentes e o multiculturalismo da dinâmica mundial, na vida contemporânea, definidas por novas estéticas tecnológicas que tendem, cada vez mais, a exemplo de Matrix, a digitalizar o discurso e, consequentemente, promover a virtualização de nossas sociedades, entidades, instituições (inclusive, financeiras), incidindo sobre a linguagem, os corpos, os comportamentos, as sensopercepções, conforme sugere o metaverso, um simulacro da realidade.
A compreensão sobre a vida contemporânea, a partir desses aportes teóricos, permite-nos dimensionar ainda mais a forma como o cinema e a escola atuam em meio a essa fenomenologia pós-moderna. Afinal, tratam-se de duas realidades históricas que vêm absorvendo significativamente todos esses avanços tecnológicos e comportamentais, nas devidas proporções que competem a cada área.
O cinema nasceu da ousadia inventiva de seus criadores e cresceu numa confluência de técnicas sempre inovadoras, com renovações técnico-estéticas em interfaces revolucionárias. A escola, no caminhar dos séculos, manteve-se “sobrevivente”, graças à ousadia, à criatividade e à resiliência de seus mestres e mestras. Assim como o cinema, a escola também se apresenta como um terreno fértil para a manifestação e a absorção dos hibridismos vigentes, em suas muitas subjetivações. Configuram-se, desse modo, em processos contínuos de transcodificação: ambos respiram e inspiram a transversalidade que pulsa inquietantemente em todos os cenários de vida.
Conclusão
Matrix reitera a grandeza artística do cinema em sua função trans-histórica. O cinema é, ao mesmo tempo, um testemunho das transformações comportamentais da humanidade e um agente capaz de impulsionar as reflexões mais profundas e instigantes sobre a natureza humana.
Se para os povos antigos o critério de realidade era a premissa da eternidade, tanto as obras de Platão quanto Matrix em sua quadrilogia cumprem essa mesma expectativa de transcendência.
Os escritos de Platão atravessam o tempo e o espaço. Inspiram e instigam questionamentos sobre os nossos critérios de realidade potencialmente materialistas. Matrix revitaliza a alegoria de Platão e muitos outros referenciais. Numa explosão de efeitos especiais, recorre a alegorias, metáforas e símbolos, questionando a vida contemporânea, erguida num universo dominado por máquinas e pela inteligência artificial.
As máquinas e a inteligência artificial simbolizam o nosso próprio superficialismo e o materialismo vigente. Atuamos na vida como se fossemos um software programado para viver mecanicamente, forjando uma subjetividade maquínica. Na manipulação das aparências, mergulhamos nos distrativos do cotidiano, nas alienações materialistas e nas infindáveis sombras ilusórias que estimulam o consumismo desenfreado.
Apesar de todas essas contradições, Morpheus nos observa, oferecendo-nos as pílulas vermelha e azul. Na esperança de um dia poder dizer a cada um de nós: Bem-vindo ao Deserto do Real...
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Matrix Revolutions. 2003. Lilly Wachowski and Lana Wachowski. Austrália/EUA.
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