Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

The Covid-19 pandemic and the constitution of a perverse audiovisuality

A pandemia da Covid-19 e a constituição de uma audiovisualidade perversa

José Antonio Martinuzzo

Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

Abstract

Based on a broad investigation of the appropriations of digital social networks in the mediatized daily life, this article seeks to investigate the use of audiovisual narratives to constitute fake news about the Covid-19 pandemic in Brazil. The main objective is to identify the occurrence of audiovisual use by producers/spreaders of fake news on digital social networks, considering the entire narrative repertoire of disinformation on the subject (audiovisuals, texts, photographs/illustrations/prints, audios). The study on what is called perverse audiovisuality was carried out from the set of investigations carried out by the Comprova Project, to verify suspicious content that goes viral on the networks, formed by 40 Brazilian journalistic vehicles. The analyzes cover two years of work of this collaborative investigative journalism, from the first verification, on March 25, 2020, right at the beginning of the pandemic, to March 25, 2022, already with confrontation also made through vaccines. The methodology also included a literature review. The research identified the significant use of audiovisual narratives in order to disinformation about the pandemic, highlighting the context of a perverse sociability, one that, among other limitations, despises factual truth as a social bond.

Keywords: Audiovisuality, Covid-19, Fake News, Perverse Sociability, Digital Social Networks.

Introdução

A contemporaneidade se constitui dinamicamente pela vertigem da “sociedade do espetáculo” (Debord 1997), conceituada há mais de meio século. A imagem como laço social encontra no paradigma da “comunicação em rede” digital (Cardoso 2007), com especial destaque para a internet e suas aplicações, um lugar inaudito na constituição das subjetividades e intersubjetividades.

Registra-se um destaque à audiovisualidade, ou seja, à experiência audiovisual. O substantivo “audiovisualidade” aqui se entende como a realidade da experiência do audiovisual, em suas interfaces, técnicas, interações, afetações etc.

O sufixo “dade”, aposto a um adjetivo/substantivo – no caso, audiovisual + dade –, forma um substantivo que indica situação, condição, estado. Desse modo, audiovisualidade remete à experiência, circunstância, organização, vivência das técnicas e das narrativas audiovisuais.

Segundo Montoro (2009, 42), “audiovisuais são sistemas, meios, veículos ou processos que se expressam numa linguagem que reúne imagem, som e eventualmente escrita, num envolvimento global de todas as linguagens”.

Uma outra marca hodierna é a constituição de uma sociabilidade perversa, entendida, a partir das referências da psicanálise, como aquela em que a contingência sociopolítica prescinde de marcadores civilizatórios baseados na verdade factual, na cultura dos limites legais, institucionais e ético-morais como garantidores do convívio humanístico e, ainda, na devoção à racionalidade como norteador da vida individual e coletiva.

Um traço evidente dessa sociabilidade perversa é a era da “pós-verdade” e seu agente privilegiado, as fake news. Para D’Ancona (2018, 20), a cultura da pós-verdade é aquela em que “os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”.

Nesse “reino” da perversão, as fake news são mentiras, falsidades e manipulações enunciadas midiaticamente, à moda de uma notícia, e tornadas laços narrativos mobilizadores de interlocutores em escalas muitas vezes impossíveis à contagem.

O objetivo deste artigo é, desse modo, verificar a apropriação por parte da era da pós-verdade, pelo viés das fake news, da audiovisualidade, constituindo-se uma experiência audiovisual perversa. Vale dizer que este estudo se localiza num amplo movimento de investigação sobre fake news na sociabilidade perversa.

Desse modo, o corpus de estudo são fake news sobre a pandemia da Covid-19 no Brasil. O estudo acerca do que se nomeia de audiovisualidade perversa se realizou a partir do conjunto de investigações feito pelo Projeto Comprova, de verificação de conteúdos suspeitos que viralizam nas redes, formado por 40 veículos jornalísticos brasileiros.

As análises cobrem dois anos de trabalho desse jornalismo investigativo colaborativo1, desde a primeira verificação, em 25 de março de 2020, logo no início da pandemia, a 25 de março de 2022, já com enfrentamento feito também por meio de vacinas.

Nesse quadro de desinformação, buscou-se identificar em prisma quantitativo/qualitativo o uso do audiovisual por produtores/difusores de notícias falsas nas redes sociais digitais, considerando todo o repertório narrativo de desinformação acerca do tema (audiovisuais, textos, fotografias/ilustrações/prints, áudios).

A metodologia também contemplou revisão de literatura nas áreas de comunicação social, audiovisual e psicanálise, de modo a se constituir uma visão que contribua para o entendimento mais acurado do modus vivendi perverso que tantos desafios impõe à civilização humanística, exatamente na confluência de dois eixos da vida atual, quais sejam, a vertigem comunicacional, notadamente a imagética, e a pandemia do novo coronavírus.

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)2, em 07 de janeiro de 2020, as “as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus”, cepa que “não havia sido identificada antes em seres humanos”.

Em 30 de janeiro do mesmo ano, a OMS declarou que o “surto do novo coronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional”.

Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada como uma pandemia. “O termo ‘pandemia’ se refere à distribuição geográfica de uma doença e não à sua gravidade”. Com isso, a OMS reconhecia a existência de “surtos de COVID-19 em vários países e regiões do mundo”.

Ao completarem-se dois anos de pandemia, os infectados eram cerca de 500 milhões mundo afora, com 6 milhões de mortes, segundo informa a OMS3. No Brasil, o Ministério da Saúde registrava, também no dia 11 de março de 2022, que o país tinha 654.086 óbitos por Covid-19 e 29.249.903 casos registrados do novo coronavírus”4.

Experiência audiovisual

A sociedade midiatizada (Sodré 2002), mobilizada por conteúdos midiáticos e articulada em torno de trocas comunicacionais viabilizadas por uma colossal rede formada por tecnologias digitais de comunicação (TICs) e meios tradicionais de difusão, tem as imagens como umas das principais formas de simbolização.

Vive-se uma vertiginosa conexão multitela, levando ao paroxismo à sociabilidade articulada em torno de laços imagéticos, anunciada em seus princípios por Debord (1997, 54), a “sociedade do espetáculo”. Em suas palavras: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre indivíduos mediada por imagens”.

Novaes (2005, 10) afirma que a imagem se transformou “na mercadoria por excelência, objeto de produção, circulação e consumo, realizando de forma fantástica o velho axioma: cria-se não apenas uma mercadoria para o sujeito, mas criam-se, também, sujeitos para a mercadoria. É este hoje o estatuto da imagem”.

Wolff (2005, 20) afirma que “imagem é o representante, o substituto, de qualquer coisa que ela não é e que não está presente”, tornada presente pelo recurso da imagem.

Nesse processo, e numa realidade midiatizada, o autor ressalta que há o risco de que se esqueça que a imagem é apenas uma imagem e que se passe a considerá-la como a própria realidade. “O mais perigoso poder da imagem é fazer crer que ela não é uma imagem, fazer-se esquecer como imagem”.

Esse regime imagético ganha especial lugar na internet e suas redes sociais digitais, que também mobilizam as demais plataformas midiáticas, on e off-line, o que lhes confere uma repercussão determinante no regime comunicacional contemporâneo.

De acordo com Recuero (2009, 24), uma rede social digital “é definida como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais)”.

Sendo que “redes sociais na internet possuem elementos característicos que servem de base para que a rede seja percebida e as informações a respeito delas sejam apreendidas”. Ao redor do planeta há mais de 600 redes sociais digitais5, mobilizando bilhões de usuários.

Cerca de 4,95 bilhões usam a internet, caindo para menos de 3 bilhões o número de pessoas que não acessam a rede. Do total de usuários, 4,62 bilhões se conectam às redes sociais, ou 58,4% da população planetária. Diariamente, a média de tempo gasto é 2h27min nos sites/aplicativos de mídias sociais digitais6.

Pela mesma fonte anterior, em janeiro de 2021, a maior delas, o Facebook, contabilizava 2,910 bilhões de pessoas usuárias, seguido pelo YouTube, com 2,562 bilhões, WhatsApp, com 2 bilhões, e Instagram, com 1,478 bilhão de utilizadores – esses dois últimos também são pertencentes ao mesmo grupo do Facebook, a Meta.

As redes sociais digitais participam decisivamente da construção do que Sodré (2014) denomina de “continente de bytes”. Esses ciberterritórios são dominados pelas chamadas big techs, grupo que reúne algumas das empresas mais valiosas do planeta: Google (Alphabet), Meta (Facebook), Apple, Amazon, Microsoft.

O “continente de bytes” é um âmbito existencial de propriedade privada, ainda fora do alcance eficaz das regulações governamentais, constituindo-se um negócio que mercantiliza a atenção dos usuários a todo custo, inclusive com a circulação de narrativas perversas, como discursos de ódio e fake news.

Frenkel e Kang (2021, 217), ao estudar a trajetória do Facebook, alertam que ele “foi concebido para lançar gasolina na fogueira de qualquer mensagem que desperte uma emoção, mesmo que seja um discurso de ódio”, em busca de capturar a atenção e ampliar a base de usuários exponencialmente.

Sociabilidade perversa

A nosografia psicanalítica, no seu percurso histórico, acabou por extrapolar a nomeação de estruturas subjetivas, indo ao campo da significação de fenômenos intersubjetivos (Laplanche e Pontalis 2016). Desse modo, neuróticos, perversos, psicóticos, histéricos, entre outros termos centrais à psicanálise, tornaram-se significantes para nomear aspectos das sociabilidades nos séculos XX e XXI.

Dufour (2013, 280) afirma que os termos “neurótico”, “perverso” e “psicótico”, além de percorrer “as diferentes posições subjetivas possíveis”, “caracterizar o ser-si-mesmo”, “também podem ser muito úteis para descrever o ser-junto”.

Nesse sentido, pode-se dizer que se saiu de um tempo eminentemente neurótico para uma era histórica articulada em torno da perversão estrutural.

Ou seja, vem perdendo espaço a civilização baseada nos limites e nas limitações, organizada em torno de culpabilizações e punições severas de acordo com seus códigos legais e ético-morais.

Em seu lugar, incrementa-se um modo de viver que rejeita contenções civilizacionais restritivas de pulsões de morte e suas derivantes de agressividade e submentimento alheio, inclusive tornado regra o sufocamento da verdade factual pela imperiosidade dos desejos e delírios embalados em discursos de verdade como forma de dominação em escala.

Essa realidade de tonalidades perversas é tecida por esgarçamentos do ideal iluminista-republicano que enlaça fraternidade, liberdade e igualdade; prevalência de nortes egoísticos, como individualismo, intolerância, racismos; sombreamento da Lei e das leis pela “lei do mais forte” e do “olho por olho, dente por dente”; confronto disseminado entre a racionalidade e o dogmatismo, entre outros.

Afirmando que as posições subjetivas possíveis (neurótico, perverso e psicótico) podem descrever tanto sujeitos (ser-si-mesmo) quanto comunidades (ser-junto), conforme descrito há pouco, Dufour (2013) ressalta que saímos da sociedade neurótica e entramos numa sociedade perversa. Nem todos são perversos, mas a liderança perversa instala e instiga a perversidade em rede.

Destacando-se que Freud (1997, 2010) tratou das perversões apenas relativamente às pulsões sexuais, registra-se que o termo perverso passou a designar o sujeito que lida mal com os limites, tanto os da realidade factual, quanto os das leis. Essa subjetividade não suporta frustração, interrupção ou contenção de suas pulsões de agressão, dominação e destruição. E para fazer valer suas vontades jamais satisfeitas, atropela os limites civilizacionais clássicos/neuróticos.

A introjeção de limites (a lei, a ética, as interdições) e a vivência sob seus grilhões, ainda que sob intenso mal-estar, é a marca do sujeito neurótico, que paga o preço para viver em sociedade como forma de domar e sobreviver aos ditames da natureza e da cultura, ambos sempre atravessados por limitações, agressividades e hostilidades.

Em vez de uma interface com o outro sustentada no egoísmo, o neurótico sustenta uma relação de dívida com o semelhante. O sujeito perverso, de outro modo, não deve nada.

“Ao contrário do neurótico, esmagado por uma dívida simbólica impossível de ser paga, coagido ao sentimento de culpa, o perverso não deve nada. Tudo lhe é devido”, esclarece Dufour (2013, 297).

A descrição de Dufour aponta com mais assertividade a peculiaridade da sociedade contemporânea:

O que distingue o perverso do neurótico é, basicamente, a questão da relação com a lei. O neurótico é aquele que se submete à lei, por livre espontânea vontade ou à força. Satisfeito ou não (e quase sempre é ‘não’), ele se submete, mesmo que se prejudique. Ao passo que o perverso, não. Ele desrespeita a lei, recusa-a. Em ambos os casos, é verdade, ‘existe algo, em vez de nada’, mas enquanto o neurótico considera dever obedecer à lei que supostamente rege esse algo, o perverso considera que a lei é sempre a lei dos outros obedecendo ao Outro, nunca a sua lei, a única que interessa (Dufour 2013, 302).

Conforme se percebe, há a coincidência de marcas subjetivas perversas com o modus vivendi contemporâneo. Citam-se a negação da realidade, dos limites (regras, lei, ética) e da responsabilização; o triunfo da indiferença; a desvalorização do outro, que se objetifica em função do imperativo do gozo perverso daquele que pode mais, colocando-se a alteridade como item descartável e substituível; sentimentos de remorso, culpa ou vergonha se suplantam por uma conduta individualista e agressiva, avalizada pela indiferença e falta de empatia, entre outras.

A realidade objetiva é distorcida e contorcida segundo parâmetros caros à manipulação e à exploração das mais diversas ordens, do político ao econômico, passando pelo religioso e o cultural.

Nesse quadro, a verdade factual, que é mesmo um laço social civilizatório imprescindível aos fundamentos humanísticos da existência, sucumbe ante ao projeto de dominação dogmática em massa.

A era da pós-verdade, com suas as fake news, descrita na Introdução deste artigo, de acordo com D’Ancona (2018, 34), são um evidência irrevogável da sociabilidade perversa. Remarca-se que, neste artigo, usa-se “fake news” no sentido da tradução literal do inglês, qual seja, “notícia falsa”.

Controvérsias à parte, como a de que se é notícia não pode ser falsa, ressalta-se que tais narrativas, com inverdades, meias verdades e desinformação etc., buscam simular a narrativa jornalística para auferir, via formatação estética e textual similar, a credibilidade/autoridade do relato jornalístico (Zelizer 1992), inclusive para lhes facilitar a difusão, sob a justificativa de que se trata de “notícia”.

Dufour (2013) apresenta reflexão crucial para a compreensão da era da pós-verdade. Para ele, já se ultrapassou a perversidade de primeira ordem, que reconhecia a verdade, o limite, a lei, ainda que os subvertesse (a perversão no tempo da verdade). Verifica-se o incremento da perversidade de segunda ordem, aquela que rompe com a verdade, o limite, a lei, constituindo o império da pós-verdade, do sem-limite, da implosão dos laços sociais lastreados na lealdade factual.

Para Freud (2010, 121), “os juízos de valor dos homens são inevitavelmente governados por seus desejos de satisfação e, portanto, são uma tentativa de escorar suas ilusões com argumentos”. É a própria descrição da atualidade perversa, que tem nas fake news um veículo de sua sustentação.

O divórcio das fake news com os fatos acaba por revelar o seu compromisso fiel com a ilusão interessada de propósitos perversos. Não importa a realidade, mas a versão da realidade, ainda que esta seja pura ficção.

O fundamental nessa prática perversa é que a narrativa enganosa seja embalada em design jornalístico, com manchete, fotos, vídeos, legendas, “apresentadores”, “repórteres”, “provas complementares”, depoimentos, “investigações” etc.

A busca por subsumir a verdade dos fatos à “verdade” do gozo, esta servindo a múltiplos interesses, é sintomática de uma sociabilidade perversa, dinamizada midiaticamente por mentiras e desinformações das mais diversas latitudes, do negacionismo odiento ao revisionismo cínico, da relativização abjeta às deturpações inconsequentes de fatos e verdades científicas.

Especialmente nos ciberterritórios7 das redes sociais digitais, as fake news se expandem até mesmo em caso de calamidade sanitária, como ocorre na pandemia do novo coranavírus, que já vitimou milhões ao redor do planeta.

Verificar a especificidade das notícias falsas em audiovisual, o que comporia uma audivisualidade perversa, é o que busca por aqui, com um estudo de caso a seguir.

Audiovisualidade perversa

Aqui se nomeia audiovisualidade perversa a apropriação dos recursos e narrativas audiovisuais com propósitos de propagação de fake news. Isso, entendendo-se as fake news como um sintoma da perversão subjetiva e intersubjetiva, que tenta submeter a realidade a padrões narrativos distanciados da racionalidade e da factualidade, segundo propósitos de enganação, dominação e exploração dos semelhantes.

Para verificar a materialidade dessa audiovisualidade perversa, estudou-se o conjunto de fake news sobre a pandemia da Covid-19 no Brasil reunido pelo Projeto Comprova, de verificação de conteúdos suspeitos que viralizam nas redes, formado por jornalistas de 40 veículos brasileiros.

As análises cobrem dois anos de trabalho desse jornalismo investigativo colaborativo, desde a primeira verificação, em 25 de março de 2020, logo no início da pandemia, a 25 de março de 2022, já com enfrentamento feito também por meio de vacinas.

Conforme já informado, nesse quadro de desinformação, buscou-se identificar, quantitativa e qualitativamente, o uso de narrativas audiovisuais para veiculação da fake news, com relação ao total de publicações enganosas, que também se fazem por meio de textos, fotografias/ilustrações/prints e arquivos de áudio.

Projeto Comprova

O Projeto Comprova8 é uma atividade liderada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com o patrocínio do Google e da Meta. Segundo o seu site, “é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos que reúne jornalistas de 40 veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições presidenciais e a pandemia de Covid-19 que foram compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens”.

Os objetivos listados são “identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que vemos surgir em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais”, seguindo os valores do “rigor”, da “integridade e imparcialidade”, “independência”, “transparência” e “responsabilidade ética”.

Sempre de acordo com o portal do Projeto Comprova, os conteúdos verificados são etiquetados conforme a seguinte classificação:

– “Enganoso: Conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.”
– “Falso: Conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.”
– “Sátira: memes, paródias e imitações publicadas com intuito de fazer humor. O Comprova verifica conteúdos satíricos quando percebe que há pessoas tomando-os por verdadeiros.”
– “Comprovado: Fato verdadeiro; evento confirmado; localização comprovada; ou conteúdo original publicado sem edição.”

Números e marcas

Entre 25 de março de 2020 e de 2022, foram 344 fake news analisadas pelo Comprova, consideradas como conteúdo enganoso ou falso. Desse total, 120 são audiovisuais. Ou seja, dentre as quatro narrativas encontradas (audiovisuais, textos, fotografia/montagens / prints e áudios), cerca de 35% das fake news são audiovisuais, em segundo lugar absoluto, atrás apenas dos textos (198 ocorrências) e bem à frente de imagens fixas (19) e áudios (7).

No recorte do Comprova, o ano de 2020 teve 169 fake news sobre a pandemia viralizadas (66 vídeos), relativamente a 140 (36 vídeos) em 2021 e a 35 (18 vídeos) em 2022, considerando o período de análise, intervalo de dois anos entre 25 de março de 2020 e 25 de março de 2022. Por ano alcançado no corpus, os meses com maiores quantidades de fake news viralizadas foram maio de 2020, com 25 (14 vídeos), junho de 2021, com 22 (04 vídeos) e fevereiro de 2022, com 15 (09 vídeos).

Os vídeos de que se trata são gravações amadoras (a maioria absoluta), registros capturados em lives de sites de redes sociais e recirculação de reportagens de televisão – foram registrados cinco casos dessas matérias jornalísticas, integradas às fake news de forma descontextualizada, ou com edição de falas, de modo a manipular ou distorcer sentidos; ou deslocadas no tempo, também de modo a tentar dizer algo que não disse originalmente.

Conforme classificação há pouco descrita de conteúdos midiáticos virais analisados, as etiquetas de “falso” e “enganoso” estão praticamente empatadas, com 56 e 64, respectivamente. Ou seja, a audiovisualidade perversa não tem preferência explícita entre falsear ou enganar, trilhando ambos os caminhos nas suas estratégias mentirosas de forma equilibrada entre o falso e o enganoso.

A enganar e a falsear, estão várias profissões com poder simbólico. Trata-se esse poder, para Bourdieu (1997, 26), da capacidade de nomear fatos e acontecimentos de relevância ao cotidiano humano: “Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência”.

Entre os personagens que divulgam ou dão depoimentos em fake news, estão citados médico (24 vezes), político (08 vezes), advogado (01), enfermeiro (01), pastor (01), pesquisador (01), youtuber (01), empresário (01). Vale registrar que nem todos os conteúdos mentirosos possuem um personagem com autoridade simbólica.

Há inúmeros casos – a maioria quando há personagens, diga-se – de depoimentos de pessoas sem qualquer menção a nome ou profissão, apresentando-se tais figuras como “um de povo”, também um modo de influenciar o outro, se não por poder de fala autorizada culturalmente, por testemunho que desata afetos de vinculação/identificação em massa.

Acerca das redes sociais mais usadas para a distribuição de fake news audiovisuais viralizadas sobre a pandemia da Covid-19 no Brasil, sempre segundo o estudo do Projeto Comprova, estão, em ordem decrescente de aparição nos relatórios: Facebook e Youtube (mais de 40 vezes citações cada); Twitter e Instagram (mais de 20 citações cada); WhatsApp e Telegram (com dez ou mais cada); e TikTok, Vimeo e Kwai (menos de uma dezena cada).

Registra-se que as redes sociais digitais nem sempre estão identificadas ao longo dos dois anos de análises acessadas. É preciso dizer que também se notam diferenças na frequência de aparição dessas redes, com o passar do tempo, entre 2020 e 2022, como, por exemplo, o YouTube caindo nas ocorrências e o Telegram aparecendo na lista com mais relevo.

Acerca das temáticas que pautam os enredos mentirosos, por enganosos ou falsos, registra-se uma ampla extensão de assuntos altamente relevantes à vida e à saúde pública, especialmente por se tratar de uma pandemia de doença desconhecida e letal em muitos casos.

O levantamento do Projeto Comprova não contempla palavras-chave para identificar temáticas. Durante a investigação que sustenta este artigo, coletaram-se esses significantes-tema nas análises produzidas pelo jornalismo colaborativo.

Conforme se vê na nuvem de palavras mostrada a seguir, vacina, máscara, morte, ivermectina, cloroquina, isolamento, negacionismo, conspiração, internações, experimental, entre outras são as mais recorrentes.

São significantes altamente relevantes quando se trata do enfrentamento de uma pandemia sem precedentes, incluindo questões caras à ciência, como a importância e a eficácia comprovada de isolamento social, vacinas e máscaras. Além do combate à cientificidade, há posturas anticência, como a recomendação de tratamentos sem eficácia comprovada (ivermectina, cloroquina9), negacionismos diversos, teorias da conspiração etc.

Figura 1 – Nuvem de palavras mais citadas em fake news audiovisuais neste estudo. Elaboração do autor.

Vale registrar, ainda, que se notaram fake news que relacionavam a vacinação contra a Covid-19 com transmissão de HIV e ocorrências de aborto, acidente vascular cerebral (AVC), mutação genética, afetação do sistema imunológico, mortes de criança e adolescentes, hipercoagulação sanguínea, entre outras mentiras de alto impacto subjetivo e intersubjetivo. Há, também, falácias sobre efeito de transmutação humana, rastreabilidade e magnetização de corpos vacinados.

Conclusão

Com cerca de 35% das fake news viralizadas no formato audiovisual, segundo verificou-se nesta pesquisa, num recorte de dois anos no corpus do Projeto Comprova, de jornalismo colaborativo para investigações em torno de conteúdos suspeitos que se espalham pela internet, pode-se registrar que há uma audiovisualidade perversa estabelecida nos ciberterritórios das redes sociais digitais.

Entre 25 de março de 2020 e a mesma data de 2022, foram 344 fake news analisadas pelo Comprova acerca do tema pandemia, consideradas como conteúdo enganoso ou falso. Desse total, 120 são audiovisuais.

Dos quatro formatos/narrativas identificadas como veiculadores de desinformação nas redes, os audiovisuais só perdem para os textos, ficando num segundo lugar distante das posições das fake news em fotografias/montagens/prints e arquivos de áudio.

O recurso aos audiovisuais para o propósito de desinformação na pandemia dialoga com uma marca da atualidade, que é a agudização da “sociedade do espetáculo”, na qual os laços sociais se dão de forma relevante por meio de trocas imagéticas.

A realidade das multitelas incrementa a cultura do audiovisual, que se expande para as mais diversas formas de intersubjetividades, incluindo aquelas de tonalidades perversas.

Nos estudos, pode-se observar o fenômeno da perversão de primeira ordem, segundo classificação de Dufour (2013), aquela em que se negocia com a verdade, na ocorrência de conteúdos enganosos. De igual modo, se verifica a perversão de segunda ordem, aquela que supera a verdade, desconsidera o fato, presente nas narrativas falsas.

No caso em tela, enganação e falsidade, ou seja, perversões sociais de primeira e segunda ordens, estão lado a lado nas estratégias perversas de se suplantar a verdade factual como um laço social à civilização.

A mentira como um laço social mina a possibilidade de uma realidade de orientação fraterna, estabelecendo um jogo de vale tudo e submissão dos menos aptos ou não aptos ao ludíbrio à opressão dos perversos, que buscam organizar o mundo segundo suas visões particulares da vida, impondo ao outro o lugar de objeto de uso e abuso e manipulação.

Se em qualquer contingência essa realidade perversa parece incompatível com ideais humanísticos, é de causar espécie o uso consciente e proposital da mentira no contexto da pandemia de uma doença desconhecida e letal. Mais que um desrespeito à realidade factual de uma tragédia, trata-se de um desrespeito à vida numa batalha pela sobrevivência quase às cegas.

Mostra-se estarrecedor o jogo de mentira envolvendo o viver e o morrer, ainda mais num tempo pandêmico, com desinformação sobre questões cruciais como vacinas, distanciamento social, uso de máscaras, pesquisas científicas, entre outros. Assim como parece perversamente incivilizada a disseminação de mentiras sobre curas, tratamentos e protocolos de atenção médica sem o devido amparo da ciência e o respaldo dos fatos.

Essa perversão, também com expressiva presença audiovisual, como aqui se verifica, é tocada como projeto de disputa de poder, inclusive por políticos e médicos, em meio a uma sociabilidade de extremismos e ódios pervasivos, numa guerra em que o que menos parece importar é justamente aquilo que não se negligencia: a vida.

Para Dufour (2013, 314), estamos sob a lógica da “Cidade perversa”, onde há a preponderância às “objeções às leis, tanto as dos homens quanto as da natureza”, tornando comum a formulação “eu sei, mas ainda assim...”.

Diz o pensador: “A cidade não busca mais a verdade ou mesmo não quer mais sintonizar-se com a verdade [...]. O que pode resumir-se assim: estamos às voltas então com uma Cidade que se tornou perversa” (2013, 317).

Atualizando para o ambiente das redes sociais digitais, uma novidade tecnológica de pouco mais de uma década, pode-se dizer que os ciberterritórios nasceram perversos.

As fake news, que neles viralizam expressivamente também por meio audiovisual e sombreiam os fatos no mundo da presença e da digitalidade, são um dos mais graves expoentes de uma sociabilidade que tem por norma a subversão e/ou a negação da verdade factual, sem qualquer véu de pudor, inclusive quando se trata de vida e morte.

Notas finais

1Jornalismo colaborativo é expressão surgida, a partir de meados da primeira década deste século, para designar práticas e narrativas jornalísticas que tenham a participação de cidadãos em seus processos produtivos. Essa inserção da audiência como colaboradora se deu com a popularização da WEB 2.0, que permite maior interação e autonomia dos internautas na produção de registros noticiáveis e ainda na relação de consumo e recirculação de conteúdos jornalísticos. Também se deve ao boom das redes sociais digitais, que propiciam patamares inéditos de produção e distribuição de mensagens de interesse público e de interesse do público, dois dos grandes balizadores da atividade jornalística. Essa concepção de integração entre jornalismo e cidadão com recursos e algum letramento midiático inspira a colaboração interorganizacional de empresas jornalísticas na cobertura de eventos e fatos de grande amplitude e apelo público, como a pandemia e as fakes news. Diante das dificuldades de acesso a dados oficiais do Ministério da Saúde acerca da incidência da Covid-19, por exemplo, criou-se um consórcio de empresas jornalísticas para apurar dados diariamente junto às secretarias estaduais de Saúde, em todo o Brasil, de forma autônoma. O Projeto Comprova segue esse princípio de colaboração jornalística entre dezenas empresas brasileiras, tendo como foco investigar colaborativamente mensagens suspeitas que viralizam as redes sociais digitais, incluindo aquelas sobre a pandemia.

2Confira em https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19. Acedido em 7 de fevereiro de 2022.

3Confira em https://brasil.un.org/pt-br/174501-dois-anos-depois-pandemia-esta-longe-de-acabar. Acedido em 11 de março de 2022.

4Confira em https://infoms.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html. Acedido em 11 de março de 2022.

5Confira em https://www1.folha.uol.com.br/mpme/2021/04/redes-sociais-ajudam-os-negocios-mas-nao-e-preciso-estar-em-todas-elas.shtml. Acedido em 10 de abril de 2021.

6Confira em https://wearesocial.com/us/blog/2022/01/digital-2022/. Acedido em 7 de fevereiro de 2021.

7Os ciberterritórios, cuja “materialidade” é formada por teias de redes informacionais dialógicas, ativadas e dinamizadas por múltiplos interesses, são uma ambiência existencial constituída a partir da interconexão computacional mundial (MARTINUZZO 2016).

8Confira em https://projetocomprova.com.br/about/. Acedido em 8 de fevereiro de 2022.

9Sobre o uso desses medicamentos, nos chamados popularmente “tratamento precoce” e “kit-covid”, veja a nota da SOCIEDADE BRASILEIRA DE PNEUMOLOGIA E TISIOLOGIA, fundada em 1937: “Ivermectina e Nitazoxanide: não há dados conclusivos sobre a segurança e eficácia destes fármacos para o tratamento ou profilaxia da COVID 19. A recomendação da SBPT é contrária ao uso da ivermectina ou nitazoxanide na prevenção ou tratamento da COVID 19. Esta recomendação é compartilhada pela OMS e NIH (diretrizes elaboradas pelas principais sociedades médicas). [...] Cloroquina ou hidroxicloroquina: os resultados dos estudos publicados até a presente data não demonstraram eficácia e segurança na profilaxia ou tratamento da COVID 19. A recomendação da SBPT é contrária ao uso de cloroquina ou hidroxicloroquina na prevenção ou tratamento da COVID 19. Esta recomendação é compartilhada pela OMS e NIH (diretrizes elaboradas pelas principais sociedades médicas).” Confira em https://sbpt.org.br/portal/wp-content/uploads/2021/01/Posicionamento-SBPT-tratamento-precoce-COVID19-17-01-2021-1.pdf. Acedido em 29 de março de 2022.

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