Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

Nausicaä: the heroine who doesn’t follow the Hero’s Path

Nausicaä: a heroína que não segue o Caminho do Herói

Ludmyla Alencar Ferreira Galdino

Universidade de Brasília, Brasil

Fabrícia Teixeira Borges

Universidade de Brasília, Brasil

Abstract

The stories of most literary and cinematic works are based on the character’s maturation cycle as his journey unfolds. The protagonist, most of the time, has convictions strongly rooted in values said to be naive, both by the narrative itself and by the common target audience, which leads him to decay in the face of the obstacles of the adventure, and, consequently, makes him doubt his beliefs and adopt a new way of thinking about the world, characterizing its transformation. This sequence is treated as a necessary central element that leads the hero or heroine to victory, that is, a formula for success and, markedly the essence of the transformation arc, for the death and defeat of the villain. In Nausicaa, we are presented with a multifaceted conflict in which the self-styled right parties see the annihilation of the enemy as their triumph and solution. The biggest challenge for Nausicaa, a female character, is not to understand something she doesn’t know, but to remain firm in her initial belief – that men and Ohmus can live peacefully – in the midst of the challenges that present themselves. The purpose of this work is to present the animation Nausicaa (Japan, 1984) by Studio Ghibli. Aspects of Hayao Miyazaki’s work will be presented, such as age classification, aspects of the character, use of close-up, relationships between youth and the feminine, among others.

Keywords: Nausicaä, Studio Ghibli, Heroes, Narrative, Miyazaki.

Introdução

O filme e seus elementos se constituem como mediadores de novas formações de significados e subjetividades do telespectador que com eles interage e se relaciona, direta ou indiretamente. As produções cinematográficas entram em contato com as representações da vida, do cotidiano, das discussões corriqueiras (Naves 2017) ou centenárias das sociedades e, portanto, são facilmente identificáveis como produtos culturais (Borges, Gois e Gonçalves 2021).

Como produto que circunda e envolve crenças, valores, comportamentos e discursos – normativos ou não –, o filme abarca a capacidade de desdobramento das percepções e sensações e auxilia na formação do indivíduo, como ser que transforma o meio e é por ele transformado nas suas mais simples ou complexas interações (Barroco e Superti 2014).

No momento que entramos em contato com uma pessoa, por exemplo, o simples fato de ser quem ela é, as ideias que carrega e que diferem ou não das nossas; essa simples interação, por assim dizer, nos afeta e também o nosso desenvolvimento no que corresponde ao modo que vemos a nós mesmos em relação ao mundo (Borges, Araújo e Amaral 2016, 2- 3).

Os filmes, nesse sentido, auxiliam na formação da identidade do ser e da sua constituição de si com os próprios elementos apresentados na obra de arte que, em conjunto, se tornam um produto promovedor de discussões entre seus telespectadores, pois se trata da cristalização complexa de atividades mentais de quem o produz, as quais podem ser apropriadas pelos demais seres humanos (Barroco e Superti 2014, 23).

Ao entender o contexto cinematográfico, percebemos que o protagonista é um dos personagens mais fortes e com o qual, normalmente, mais se espera o florescimento de uma interação com o telespectador. No entanto, não é também incomum que os personagens secundários ganhem, em certos casos, maior valor afetivo a depender da pessoa e do grupo que assiste ou da forma que o personagem protagonista é devidamente construído – em termos de qualidade narrativa.

A apropriação, entretanto, não ocorre de forma passiva, mas num movimento de superação do sentimento que a arte suscita e a transformação em algo novo e próprio do ser (Vygotsky 1999). Daí a importância que se dê a mediação das relações sociais junto ao telespectador, seja sobre o modo da obra cinematográfica conduzir as atividades de gênero, o tratamento do otimismo e pessimismo, ou, no caso mais específico de Nausicaä (1984), uma discussão sobre moralidade, ecologia, heroísmo e desenvolvimento humano, de tal forma que nele, o telespectador, sejam projetados os movimentos que a arte suscita, uma nova organização psíquica, o que possibilita a cada um a elevação à condição de indivíduo particular (Barroco e Superti 2014, 23).

Nausicaä e a Ressignificação da Toxicidade como Ampliadora do Pensamento Ecológico

Nos primeiros minutos do filme Nausicaä do Vale do Vento (1984), acompanhamos parte da aventura de Lorde Yupa e seu infeliz encontro com um antigo povoado coberto de fungos, esporos, toxinas provenientes da Floresta da Corrupção que mataram os humanos residentes e dominaram o cenário. A representação mortal que permeia a cena não é diferente da percepção comum que fazemos sobre algo tóxico. Na verdade, está inteiramente conectado ao próprio construto linguístico de tóxico.

Enquanto o dicionário da língua portuguesa traz o significado de tóxico como “veneno, peçonha” (Aurélio 2011, 747), o conhecimento com o qual o ser entra em contato a partir das interações com seu meio – o que inclui não só as pessoas fisicamente presentes, mas as instituições familiares, escolares, o conteúdo virtual, o cinematográfico, literário, poético, a mídia, a ciência, a própria experiência empírica e etc. – contribuem para a formação de significados sobre a toxicidade que vão além do definido em dicionário, mas permeia a linguagem pelos significados comuns compartilhados.

O “tóxico”, quando comparado com a moralidade humana, torna-se num construto pertencente à dicotomia de bem e mal em que a sociedade e o humano automaticamente traduzem tudo relacionado a si como o “bem” e o que deve ser protegido. Não obstante, o oposto se segue para tudo que lhe ameaçar a vida e o bem-estar. Não é à toa, portanto, que o termo “tóxico” tem sido explorado em quase todos os contextos desde que haja algo que aponte a ameaça do bem-estar de uma pessoa.

A cena que se segue a esta primeira, porém, é onde encontramos uma possível abertura para novas significações quanto ao conceito de toxicidade e que se mantém reforçada ao longo do filme. Em uma das primeiras cenas de Nausicaä do Vale do Vento (1984), a protagonista está explorando a floresta da corrupção, não conhecemos nada sobre a personagem e ainda assim o que nos é primariamente exposto sobre si é o seu ponto de vista quanto à floresta.

Nausicaä percebe vida e beleza no mesmo local que carrega o nome de Floresta da Morte ou Floresta da Corrupção. Aqui a “corrupção”, assim como o “tóxico”, segundo Nunes (2021), se tornam conceitos relativos, cujo significado teria sido “atribuído a partir do ponto de vista humano”. No entanto, como vemos no decorrer do filme, Nausicaä reconhece os animais como seres de igual valor moral, não lhes atribuindo a irracionalidade a que muitos resumem essas criaturas.

“Precisamente porque os humanos não podem sobreviver na floresta, uma realidade intra-ação pode levar em conta não apenas as redes humanas, mas também os não humanos. Portanto, se alguém é capaz de dispensar a perspectiva centrada no ser humano, a toxicidade, ou neste caso os esporos tóxicos das plantas, não tem que ser condenado como o mal, porque os esporos dariam origem a novas, embora não-humanas, formas de vida.” (Nunes 2021, 86)

Nas palavras de Hayao Miyazaki, segundo Cavallaro (2006, 48), o grande evento que teria inspirado a criação de Nausicaä do Vale do Vento (1984) foi o caso da poluição com mercúrio na Baía Minamata, em que os peixes teriam se ajustado às novas condições e continuado a viverem e se reproduzirem – como um fenômeno de resiliência vindo da natureza em paralelo à natureza do universo de Nausicaä (1984). Ao mesmo tempo, os humanos pereciam, incapazes de se adaptarem tão rapidamente às mudanças que sua própria espécie teria provocado, no que então a tecnologia e a estratégia humana se torna desajeitada diante da surpreendente adaptação natural.

Em outras palavras, mesmo se o ar da floresta fosse completamente puro, caso os humanos não pudessem respirá-lo ele seria denominado como tóxico, prejudicial à vida, mesmo que muitos outros seres consigam viver e se reproduzir nesse meio. O grande problema, que então permeia o pensamento ecológico em seus níveis mais baixos de comprometimento com a causa, é que o próprio conceito de vida ganha também o papel de um construto relativo, pois quando mencionamos “tóxico e prejudicial à vida”, o termo nesse discurso se refere somente à vida humana, não abarcando o planeta ou qualquer ser não-humano, adotando uma perspectiva dominante sobre a vida humana ser aquela e única que importa, guiada pela moralidade social.

Quando Nausicaä se sacrifica diante da manada enfurecida de Ohmus, mais do que um ato de compreensão do ódio, ela está pondo as vontades da natureza e do planeta acima de sua vida humana. Nesse sentido, Nausicaä não é tratada como um personagem individual, mas uma incorporação de ideias cristalizadas em metáfora – como uma representação simbólica do ausente – de modo a representar a humanidade, ou melhor, a atitude necessária da humanidade para trazer harmonia entre os humanos e o planeta – até onde conta o filme, pelo menos.

Assim, a nova questão que emerge é até que ponto Nausicaä poderia ser realmente considerada uma heroína por quem assim tem o papel de caracterizá-la. Afinal, é “a partir das relações com os outros personagens e da relação da própria narrativa é que o público pode então perceber qual o título que o seu protagonista merece” (Rigaud 2018, 11).

Além de que, segundo o livro de Campbell, “O Herói de Mil Faces” do ano de 2007 da Pensamento-Cultrix (citado em Valdier 2021), “as visões, ideias e inspirações dos heróis vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos”, e, no caso de Nausicaä, ela não estaria defendendo completamente o lado humano, mas um dito “bem maior” de acordo com seu ponto de vista em relação a todos os seres vivos, o que vai contra a moralidade dominante ao deixar a vida humana em segundo plano.

Nausicaä não segue o Caminho do Herói

As histórias da maioria das obras literárias e cinematográficas com teor épico se baseiam no ciclo de amadurecimento do personagem conforme o desenrolar de sua jornada, esta que, muito antes de chamar a atenção dos mitólogos, já apresentava semelhanças na ordem de seus eventos mesmo em culturas distantes de contadores de histórias. Como afirma Barthes em seu trabalho “A análise estrutural da narrativa” de 1976, citado em Duarte e Silva (2015, 88):

“A narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, nunca houve em lugar nenhum povo algum sem narrativa[...]muitas vezes essas narrativas são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes, até mesmo de opostas: a narrativa zoa da boa e da má literatura.”

Foi no seu livro “O Herói de Mil Faces” que Joseph Campbell veio com sua teoria do “monomito” em 1989, também chamada de A Jornada do Herói/ do Escritor e dividida esquematicamente em 12 passos comuns encontrados nos enredos de filmes, livros, contos e mitos e que, generalizados, diferem-se pelas suas particularidades.

Em seu estudo, segundo Vogler em seu livro “A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Escritores” de 2006 da editora Nova Fronteira (citado em Valdier 2021, 5), a estrutura da narrativa é composta por três atos, cada um deles possuindo seus fios condutores:

“Primeiro ato: Mundo comum, Chamado à Aventura, Recusa do Chamado, Encontro com o Mentor, Travessia do Primeiro Limiar; Segundo ato: Testes, Aliados, Inimigos; Aproximação da Caverna Oculta, Provação, Recompensa; Terceiro ato: Caminho de Volta, Ressurreição, Retorno com o Elixir.”

Embora Nausicaä do Vale do Vento (1984) apresente sim arcos condizentes aos passos elencados no estudo de Campbell, como o Mundo Comum se referindo à introdução do contexto em que Nausicaä vive e o Chamado à aventura sendo, no caso, com a queda da nave de Torumekia, muitos outros aspectos se diferenciam. A princípio, segundo Vogler em seu mesmo livro de 2006 (citado em Valdier 2021, 5), o título “o herói de mil faces” diz respeito justamente à possibilidade – e também necessidade – de tal esquema sofrer mudanças de acordo com o autor e seu contexto cultural, social e histórico. Desse modo, Nausicaä do Vale do Vento (1984) não é um caso especial no que tange a modificações na estrutura como a ordem dos fios condutores ou a ausência de alguns.

No entanto, as diferenciações que destaco não se referem somente aos pontos elencados na teoria de Campbell (1990) sobre a estrutura da jornada do herói em si, mas aqueles que o público e o autor – também no seu local como um consumidor de produtos culturais e midiáticos antes de constituir-se como criador (Bakhtin 1997) – atribuem subjetivamente à jornada, mas que formam características plenamente objetivas nas narrativas, de onde se percebe a influência da percepção da massa sobre a noção de desenvolvimento e o julgamento que se faz sobre certos conceitos baseado na reprodução de histórias anteriores.

Contextualizando, há o – mais que – notório fato de que a protagonista no início de sua jornada, na maioria das vezes, tem convicções fortemente enraizadas em valores ditos ingênuos tanto pela própria narrativa – os personagens, a consequência que suas decisões acarretam, a necessidade de mudança validada pelo mentor e, ao final, pelo protagonista – quanto pelo público-alvo comum.

Há uma espécie de aposta que o leitor ou telespectador forma um tanto antes da transformação do próprio personagem, como rotular uma ideia como ingênua ou ineficaz baseado na experiência de outras histórias que entrou em contato. Nesse sentido, essas convicções da protagonista é o que o leva ao decaimento diante dos obstáculos da aventura, e, consequentemente, o faz duvidar de suas crenças e adotar uma nova forma de pensar sobre o mundo, caracterizando sua transformação. Essa sequência é tratada como um elemento necessário central que conduz o herói ou heroína à vitória, ou seja, uma fórmula para o sucesso e, marcadamente, a essência do arco de transformação para a morte e derrota do vilão.

No entanto, retomemos à menção anterior sobre a apresentação de Nausicaä. O ritmo de apresentação da protagonista faz parte de um dos elementos sob a mão criadora do diretor e roteirista. Não foi por acaso que, tão inicialmente, foram reveladas não só o ponto de vista de Nausicaä sobre a natureza de seu mundo quanto também o modo com que ela soluciona os problemas que lhe surgem.

É justamente na cena em que Nausicaä evita que um Ohmu enraivecido alcance e prejudique Lorde Yupa, ainda nos minutos iniciais do filme, que ela utiliza somente de seu conhecimento sobre o animal e de sua criatividade, evitando um confronto preguiçosamente violento. Estes dois pontos são o que intimamente levam Nausicaä a se destacar em relação às impressões assumidas sobre a jornada do herói.

Nausicaä inicia com fortes convicções de que violência e ódio não são soluções para nenhum dos envolvidos, além de que os humanos, os Ohmus e as outras criaturas são capazes de viver pacificamente. O próprio público em si, dependendo de suas experiências com narrativas anteriores, pode achar sua crença equivocada – graças à forma como a compaixão e empatia são tratadas, em várias narrativas, como uma fraqueza que não seria capaz de transformar a complexidade das discórdias humanas.

Isso teria se tornado um senso comum, quando não se pondera que requer muita mais força e resolução tentar solucionar as coisas de uma forma pacífica apesar de tudo e o que todos dizem sobre o que você pensa. O maior desafio de Nausicaä, uma protagonista feminina, não é compreender algo que ela não sabe, mas permanecer firme na sua crença inicial em meio aos desafios que vão se apresentando.

Em contato frequente com as adversidades, Nausicaä confiava em suas convicções para enfrentá-las ao ponto de superar a visão de seu mentor Lorde Yupa, o que não significa que ela não teve seus momentos de fraqueza onde precisava de sua orientação, porém durante estes tempos, em vez de lhe servirem como uma experiência ‘corretiva’, fortaleceram seu pensamento.

No ataque de fúria pela morte de seu pai, Nausicaä matou pessoas pela dor da perda apesar de ser uma forte apoiadora da diplomacia e da compreensão, e, ao final, a conclusão a que chegou é que pessoas e seres realmente não podem ser reduzidos a seus momentos de fraqueza – medo, dor, raiva, ódio – nem serem definidos como bons ou maus por isso, como ela mesma sabia que ela não era somente aquilo. Entendendo a si mesma, ela se tornou mais capaz de compreender os outros.

E da mesma forma, compreendemos mais da protagonista. Veja bem, para se ter uma noção de quem é o personagem uma grande quantidade de aspectos sobre ele são necessários e que só podem ser evidenciados pelo decorrer da história, como em que contexto ele vive, como ele reage aos seus conflitos, qual seu objeto de afeto, crenças, sonhos, reações à mudança e etc. (Bakhtin 1997). Como telespectador, a jornada é o que constitui o personagem porque é apenas através dela que a identidade do personagem se forma para ele e o telespectador é capaz de definí-la e interpretá-la como um acabamento estético.

No entanto, Nausicaä, por exemplo, capacita um pouco dessa distinção, ou melhor, a possível consideração de que o personagem possa não se resumir somente a seus feitos e a jornada que faz, embora claramente todos os desafios, eventos e decisões foram importantes para o crescimento de Nausicaä. É quando entramos em contato com uma outra questão: De que tipo de desenvolvimento do personagem nos referimos?

Como havia dito anteriormente, o público e a mídia popular percebem o desenvolvimento do personagem através das mudanças perceptíveis em seu comportamento e crenças, como se fossem evidências confiáveis da existência de tal desenvolvimento. Nesse sentido, se o personagem apresentasse as mesmas atitudes diante de novas situações ou as repetisse na solução de problemas, não haveria a percepção de um desenvolvimento e a obra tornaria-se, consequentemente, menos agradável de se acompanhar.

E no caso de Nausicaä, o que evita a sensação de “tédio” ou de falta de crescimento está na outra forma de desencadear a percepção de evolução: não uma mudança de comportamento ou pensamento, mas a gradação de um comportamento específico e que já fazia parte da protagonista, que se revelam como a verdadeira chave para as situações que ninguém parecia conseguir conciliar – Nausicaä, nesse sentido, pode ser considerado um filme também sobre resistência e persistência.

Ao longo da obra, vemos como que gradualmente o filme vem passando a ideia de que não é sobre atacar ou não quem demonstra ameaça; o conflito que contextualiza Nausicaä do Vale do Vento é multifacetado e a narrativa não objetifica os problemas em uma entidade responsável, mas é a questão de saber onde está o verdadeiro problema buscando compreender as partes que constituem o seu todos numa aplicação firme de empatia e também compaixão.

Ao seu ritmo, a obra mostra a validade do ponto de vista da personagem para os diferentes níveis de situações e potenciais consequências: desde a compaixão para com a raposa-esquilo, que a ataca, com uma mordida da qual Nausicaä não desvia, por estar assustada; a cena com Kushana – quem igualmente adere à violência devido ao medo - na qual a protagonista compreende a reação da personagem, mas não se abala em nenhum momento e permanece firme nos seus objetivos, quebrando o ímpeto de Kushana; até a se sacrificar diante de uma manada de Ohmus furiosos, recebendo sua raiva e violência sem pestanejo ou hesitação.

Muito dessas cenas, inclusive, tiveram sua interpretação ou comunicação facilitada a partir das técnicas cinematográficas, que constituem mais ferramentas à disposição de Miyazaki para a criação da obra artística e o reforço da função mediadora do cinema de suas próprias atividades psíquicas cristalizadas em arte.

Quando a raposa-esquilo morde Nausicaä, seu olhar brilha: o foco nessa cena nos mostra algo a mais sobre a protagonista. Com esse close-up, a intenção era chamar a atenção para a mentalidade da garota, de alguém que aguenta firme a dor porque sabe a intenção por trás do ataque, porque é compreensiva e sabe que é algo natural, que é parte da chave da qual Nausicaä utiliza para lidar com os conflitos no futuro.

Conclusão

A teoria do “monomito” ou a “jornada do herói” de Joseph Campbell (1989) consiste na identificação de uma estrutura narrativa comum em histórias, mitos e obras literárias épicas de diversas culturas ao redor do mundo e que, da mesma forma, se tornou significativamente presente no cinema.

Acompanhando os arcos e fios condutores identificados na teoria, certos aspectos são atribuídas subjetivamente à jornada como uma noção comum e compartilhada pela sociedade devido à exposição e consumo de diversas obras que se enquadram na Jornada do Herói.

Entre estes aspectos, a mudança ou abandono das crenças iniciais do protagonista ao longo da narrativa se apresenta como fator crucial para percepção do telespectador de que houve algum desenvolvimento no personagem que está acompanhando. É neste ponto, contudo, que Nausicaä do Vale do Vento (1984) se destaca.

A protagonista do filme em questão apresenta uma crença, considerada pela maioria do público e dos autores como ingênua, de que Ohmus e seres humanos podem conviver pacificamente. Além de acreditar que os complexos conflitos humanos poderiam ser resolvidos através da compreensão e também compaixão, que possibilitariam enfoque no verdadeiro problema que os acometem, que são de escala muito maior em relação aos conflitos armados dos humanos. E, ainda mais importante, ela permanece firme com tal ponto de vista apesar dos obstáculos, que apenas fortalecem sua determinação ao longo do filme. Aqui, a percepção de desenvolvimento, em vez de pautada na mudança de um comportamento, se baseia na evolução dele.

Entretanto, mantém-se a discussão básica de até que ponto Nausicaa seria realmente considerada heroína pelos telespectadores. Afinal, a obra cinematográfica vem, desde o início, questionando a moralidade social antropocêntrica, seja com o conceito que atribuímos ao “tóxico” e “corrupto”, seja com que seres consideramos parte da “vida” a qual a toxicidade prejudica. Da mesma forma, essa dicotomia entre bem e mal – o bom e importante centrados na figura humana – permeia a definição de uma heroína ou vilã, principalmente quando a protagonista em questão coloca o meio ambiente e os seres não-humanos acima de sua própria vida humana.

Nesse sentido, o sentimento social de Miyazaki, quando expressado utilizando de todos os elementos cinematográficos a seu dispor na animação e que compõem a sua arte, abre possibilidades para novas formações de subjetividades no sentido de ser capaz de promover novas ressignificações do conceito de toxicidade e do modelo anti-hegemônico de uma heroína inserida num conto épico.

Tal qual a discussão que pauta a percepção sociocultural de compaixão, toxicidade e vida, agora como um instrumento da sociedade e, portanto, disponível às interações e contato humano e sua esfera psíquica (Barroco e Superti 2014), propiciando uma inovação para as atividades mentais e organização psíquica, não como a intenção de que seja espelhado, mas que forneça material para a criação de algo novo e que tenha um propósito benéfico como devolutiva à sociedade e a natureza.

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