Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

Black Animation Cinema and Afro-centered educational processes

Cinema Negro de Animação e processos educativos afrocentrados

Pâmela Peregrino da Cruz

Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Brasil

Erlane Rosa dos Santos

Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Brasil

Filip de Souza Couto

Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Brasil

Jhonatan Almeida de Sousa

Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Brasil

Abstract

Black Animation Cinema (BAC) is a tool for the expression. of black people’s subjectivities and for African and Afro-Diasporic world perceptions, in a way that it can be understood as a contemporary griot tool. In the construction and consolidation of an Afro-centered educational Project, the various tools of Animation have contributed as a viable technology for expression, debate and representativity. In this work, we will present the perspective of two black Brazilian animators (Jamile Coelho e Jefferson Batista) concerning the Afro-centered educational possibilities BAC brings as a sensitive source of expression. for the strenghtening of black identity and a cultural sense of belonging within the struggle against racism. We articulate the opinions presented in interviews with elements of didactic works used in schools, Brazilian legislation about the teaching of African and Afro-Brazilian History and Arts, short animation films carried out in educational settings and academic research. Therefore, we can point some aspects of the relevance and necessity for the inclusion of Animation cinema techniques in Afro-centered and anti-racist educational projects, both so that black educators and students can make their own films, and the use of CNA works. for enjoyment and debate in formal and non-formal spaces of education.

Keywords: Black Animation Cinema, Afro-Diasporic, educational processes, griot, anti-racism

Abrir Caminhos

O Cinema Negro de Animação (CNA) é uma ferramenta de expressão de subjetividades de pessoas negras e percepções de mundo africanas e afrodiaspórica. Nos abre a possibilidade de iniciar nosso próprio “deslocamento para o eixo civilizatório africano e afroperspectivá-lo a partir da experiência da territorialidade afrodiaspórica, em específico, afrobrasileira” (Njeri 2019, 10). Nos baseamos no “Cinema Negro de Animação” como um conceito que

se apropria das técnicas e dos conteúdos de uma animação realizada por uma diretora negra [e diretores negros], para constituir criativas expressões e emoções da história e da cultura do povo negro. Neste sentido, afirmamos o CNA como um cinema do desde dentro, ou seja, estamos falando de uma animação demarcada pela representatividade, onde todo processo de criação e equipes principais são formadas por pessoas negras. Para nós esse conceito passa pelo compromisso de contar e recontar nossas próprias histórias e vivificar o encantamento de crianças, jovens e adultos (Peregrino e Souza 2020, 352).

Na construção de espaços educativos que valorizem a diversidade étnica, cultural e epistemológica, as diversas técnicas de animação têm contribuído enquanto tecnologia viável de expressão, debate e representatividade para o cumprimento da Lei 10.639/2003 (atualizada pela Lei 11.645/2008).

Apresentaremos a perspectiva de Jamile Coelho e Jefferson Batista - profissionais que vêm construindo o Cinema Negro de Animação no Brasil - quanto às possibilidades educativas afrocentradas do CNA. Sendo que o entendem como uma fonte de expressão sensível para o fortalecimento da identidade negra e um pertencimento cultural de luta contra o racismo. Cotejamos seus posicionamentos com elementos da legislação brasileira a respeito do ensino de História e Arte Africanas e Afrobrasileiras, curtas de animação realizados em espaços educativos e pesquisas acadêmicas. Faremos um breve passeio histórico sobre as documentações e as políticas que tangem o ensino com foco nas relações étnico-raciais, refletindo sobre as possibilidades do CNA contribuir para sua efetivação.

A partir dessa reflexão, apontamos alguns aspectos da relevância e necessidade da inclusão das tecnologias do cinema de animação em projetos educativos afrocentrados e antirracistas, tanto para que educadoras/es e estudantes negras/os possam realizar seus próprios filmes, quanto da utilização de obras do CNA para fruição e debate tanto em espaços formais quanto não-formais de educação.

Possibilidades Educativas Afrocentradas do Cinema Negro de Animação

Visando refletir sobre as relações educativas no CNA convidamos a animadora negra Jamile Coelho1 e o animador negro Jefferson Batista2 para uma conversa no grupo de pesquisa Àwòrán: experiências na criação de imagens para filmes de animação com histórias de Òrìsás3. Nesses encontros4 pudemos conhecer mais profundamente suas trajetórias profissionais e os potenciais para o ensino-aprendizagem em questões étnicos-raciais que veem em suas práticas e nas suas obras de animação. Discutiu-se também o CNA como uma possibilidade de apresentação e valorização de subjetividades de pessoas negras e suas percepções de mundo.

Sobre o percurso de formação de pessoas negras no campo da animação, Jamile Coelho e Jefferson Batista afirmaram que a maioria dos casos são atravessados por dificuldades decorrentes da falta de incentivo cultural no país, assim como a não democratização de acesso, tanto das animações produzidas no território brasileiro, quanto de técnicas de animação. Os desafios em encontrar técnicas e repertórios de animação se tornam recorrentes pela falta de políticas públicas de formação profissional, assim como de incentivo financeiro para a produção de animações realizadas por pessoas negras no Brasil.

Grande parte das animações são financiadas por editais de incentivo à cultura ou realizadas com recursos da própria equipe. Por causa da desigualdade econômica decorrente do racismo estrutural presente nos países colonizados, como no caso do Brasil, esse molde torna a realização de animações por pessoas negras ainda mais difícil.

Embora a legislação brasileira indique diversos caminhos para consolidação de práticas artísticas e culturais de toda população, sabemos que isto está longe de se concretizar integralmente. Por exemplo, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) no Art. 4º afirma que:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Brasil 1990. Grifo nosso).

Além da responsabilidade do Estado na efetivação de diversos direitos da criança e do adolescente, o ECA ainda afirma que “Os municípios, com apoio dos Estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude” (Idem, Art. 59). No entanto, apesar da efetivação na Lei, podemos facilmente identificar, ao longo dos debates, que o incentivo às produções culturais por parte dos órgão públicos é escasso.

Assim, de acordo com artigos do ECA, o CNA deveria ser uma das prioridades de concretização por parte do Estado, uma vez que contribui de forma eficaz para a formação enquanto sociedade, atua como ferramenta de fortalecimento das identidades coletivas e como instrumento de inclusão social. Outro aspecto relevante é o envolvimento das comunidades, que participam na construção de projetos do CNA, contribuindo para uma resistência sociocultural e afrodiaspórica.

Nesse sentido, a animadora Jamile Coelho considera que, em meio aos desafios encontrados por pessoas negras, em especial de periferia - como é o caso dela - é necessário “criar estratégias de sobrevivência (...) crescer coletivamente e trazer os outros, criar alternativas. Criar estratégias como nossos ancestrais criaram quilombos” (Coelho 2021).

A produção da animação Quando a chuva vem, de Jefferson Batista, tornou-se possível através de um edital que ofereceu um pequeno recurso financeiro. Foi necessário a criação de uma rede de artistas e produtoras/es para “fazer uma animação com pouco recurso, tentando fazer com pessoas da região que não tem experiência com animação” (Batista 2021).

A produção de um filme de animação com a perspectiva do CNA torna-se também uma oportunidade de profissionalização nessa linguagem artística, em um diálogo direto com as comunidades. Assim, torna-se fundamental a realização de cursos e oficinas que facilitem o caminho para pessoas negras que estão iniciando.

Nas conversas realizadas, observamos este esforço comum. Jamile Coelho participou da organização do curso de animação para pessoas negras “ANIMA UBUNTU” e Jefferson Batista de projetos em escolas no Estado de Pernambuco. Mediante as dificuldades de acesso às técnicas de animação, essas propostas são uma ação de promoção do contato e profissionalização em cinema de animação.

Jefferson Batista nos contou que aprendeu muitas técnicas de animação através de vídeos do estilo making of disponíveis na internet. O ato de fazer animação, para o realizador, é um constante experimentar, onde se aprende enquanto se faz. Para produção de seu curta Quando a Chuva Vem, foi necessário fazer gambiarras5, utilizar materiais descartados nas ruas para a construção de cenário e a criação dos personagens. O animador teve que desenvolver formas com o material de fácil acesso e baixo custo (Batista 2012).

A animadora Jamile Coelho disse que seu fazer artístico é mobilizado pelo entendimento que um dia ela será ancestral, numa perspectiva da filosofia afrodiaspórica. Por isso, sente a necessidade de fazer filmes de animação que preencham as lacunas produzidas historicamente em produções cinematográficas. A animadora destacou que “durante muito tempo pegaram nossas narrativas. Falam da gente e nos colocam como objetos da história. Cansamos de ser objeto da história. Agora vamos narrar nossas histórias. E essas produções tendem a ter outro processo, outro olhar. Nossas narrativas têm outro olhar, criar outras possibilidades que não estão impostas” (Coelho 2021).

A possibilidade de apresentação de narrativas e subjetividades de pessoas negras, se torna “uma busca incessante pelo que nos foi negado por muito tempo” (Idem 2021). O CNA se torna um suporte para afirmação cultural e fortalecimento da identidade negra, além de contribuir na luta antirracista. O curta Òrun Àiyè: a criação do mundo está presente em alguns livros didáticos, sendo difundido em diversas escolas. A animadora afirma: “isso é fundamental para que os meus filhos tenham outra visão sobre o mundo e isso é muito importante” (Coelho 2021).

Uma das características do CNA, é a presença de religiosidades de matriz africana na temática das animações, como o exemplo da animação Òrun Àiyè:a criação do mundo de Jamile Coelho. Destacando a relevância desse tema, a animadora disse:

todo negro deve reverência ao candomblé porque a gente só está aqui, a gente só existe, por conta do que foi preservado nos terreiros. E não estou falando que a gente precisa ser do candomblé. Mas, acho que a gente deve uma reverência porque para a gente está aqui hoje foi muita macumba. Teve que rolar muito tambor (Coelho 2021).

Apresentar divindades negras em animações é importante principalmente para a luta contra o racismo religioso e também para promover acolhimento às pessoas pertencentes à religiões de matriz africanas, ao se sentirem representadas. Nas propostas educacionais afrocentradas, torna-se possível, através de animações, difundir e valorizar religiões afrodiaspóricas apresentando-as em sua beleza, potência e resistência às/aos estudantes. Possibilitando assim, a quebra de preconceitos historicamente construídos.

Sabemos que “a animação tem um potencial para poder contar as nossas histórias” (Batista 2021). Jefferson Batista afirmou que essa linguagem se tornou um instrumento para contar as histórias que ele ouvia de sua família. Numa valorização da perspectiva africana de educação através da oralidade, o animador foi sensibilizado para os relatos sobre a infância de sua mãe e suas tias, período que viviam escassez de água no sertão pernambucano. Ouviu também sobre a rotina delas em buscar água em locais distantes e os desafios na criação de animais e no cultivo de plantações. O animador conectou relatos das mulheres de sua família com o contexto histórico da época. Pesquisou, então, que este foi o maior período de seca no território, que ocorreu durante a ditadura militar. O presidente da época não apresentou nenhuma solução ou política pública para a população, afirmando que as pessoas deveriam esperar um milagre. Esse acontecimento tocou afetivamente Jefferson Batista a criar a animação Quando a chuva vem. O animador conta: “Fiquei com isso na cabeça - ‘como alguém vai dizer isso para pessoas que estão com dificuldades?’ -, então decidi que iria fazer um filme que acontece um milagre” (Batista 2021).

Sobre o projeto de animação na escola de Jefferson Batista, o animador vem utilizando as mesmas técnicas da produção da animação Quando a chuva vem: aproveitamento de materiais de baixo custo e fácil acesso às/aos estudantes. Da mesma forma que ele buscou contar uma história a partir da oralidade de sua família, a oficina de animação torna-se uma oportunidade da comunidade estudantil contar suas histórias. E, ainda, ter a animação com possibilidade profissional. Jeferson Batista pretende

fazer com que os alunos entendam que podem trabalhar com cinema de animação, que a arte é uma possibilidade profissional mesmo morando em uma cidade do interior, com todas as dificuldades. Para a maioria da população, que é negra, a dificuldade é ainda maior para conseguir espaço e chegar onde quer, chegar no que se quer trabalhar. Mostrar para os alunos que se a gente conseguiu, eles conseguem chegar onde eles querem também. A gente quer mostrar isso com o exemplo real na frente deles: que tem gente fazendo animação na cidade deles (Batista 2021).

Esse projeto é um exemplo de como é possível estimular as/os estudantes a fazerem animações, valorizando o lugar onde eles vivem, contando histórias que os atravessam.

Os desafios de fazer um filme de animação com pouco recurso, como Jefferson Batista relata, fazem parte das dificuldades enfrentadas por artistas negras/os. Ser resistente a essa realidade é uma das características que pessoas negras precisam criar para sobreviver na diáspora. No livro Ensinando a transgredir, bell hooks conta sua experiência enquanto estudante de uma escola segregada, onde as mulheres negras eram maioria do professorado. O ato de ensinar para elas era, sobretudo, uma questão política, uma luta antirracista.

O compromisso delas era nutrir nosso intelecto para que pudéssemos nos tornar acadêmicos, pensadores e trabalhadores do setor cultural - negros que usam a “cabeça”. Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo, à vida do intelecto, era um ato contra-hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista. Embora não definissem nem formulassem essas práticas em termos teóricos, minhas professoras praticavam uma pedagogia revolucionária de resistência, uma pedagogia profundamente anticolonial (hooks 2017, 10).

O CNA também detém a característica de uma educação de resistência, como prática da liberdade. Os quatro pilares da educação definidos pela UNESCO, a partir do relatório Educação: um tesouro a descobrir por Jacques Delors, são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser. O Cinema Negro de Animação consegue abranje-los de várias maneiras, pois, as obras de animação tem seu potencial que vai além da estética e técnicas da produção. Observamos que tem a força de criar métodos próprios, que possibilitam novas formas de fazer animação. Além disso, para se fazer uma animação é necessário um envolvimento comunitário, no qual o realizador é um agente que faz parte de uma rede de colaboradoras/es.

O CNA traz a filosofia de pertencimento coletivo. O filme é feito e pensado desde dentro da comunidade que conta histórias, participa do processo criativo, integra a equipe ou mesmo disponibiliza recursos para que o projeto aconteça. Quando se faz um filme de animação negra toda a comunidade se beneficia, uma vez que fortalece as subjetividades a partir da presença de personagens e narrativas da comunidade. Assim, a criação de filmes que abordam temáticas negras são essenciais para a luta antirracista. Jefferson Batista destaca que sua animação, Quando a Chuva Vem, tem personagens que se parecem com seus avós e seu irmão e a narrativa aborda vivências de sua família, comum há muitas pessoas negras.

Diferente do que o CNA vem construindo, nas escolas, ainda vemos pouca contextualização das aulas com a vida das/os estudantes. Nesse sentido, bell hooks afirma também que muitas práticas de ensino acabam inviabilizando o sentimento de inclusão.

Para que o esforço de respeitar e honrar a realidade social e a experiência de grupos não brancos possa se refletir num processo pedagógico, nós, como professores - em todos os níveis, do ensino fundamental à universidade -, temos de reconhecer que nosso estilo de ensino tem de mudar. Vamos encarar a realidade: a maioria de nós frequentamos escolas onde o estilo de ensino refletia a noção de uma única norma de pensamento e experiência, a qual éramos encorajados a crer que fosse universal. A maioria de nós aprendemos a ensinar imitando esse modelo (hooks 2017, 51).

Buscando transformar essa realidade, entendemos que a exibição de animações negras em escolas públicas são importantes por apresentar estéticas, narrativas e contextos vivenciados por seus estudantes, maioria negra no Brasil. Isto contribui para o que Jamile Coelho chamou de fazer a “árvore do esquecimento girar ao contrário”, em referência à prática criada pelos colonizadores europeus em África, antes do embarque forçado para o Brasil. Assim podemos retomar “tudo o que tiraram dos nossos e trazer de volta” (Coelho 2021). Além da exibição de produções negras, o CNA também vem construindo como princípio o compartilhamento de saberes e técnicas através de cursos e oficinas. Isto é pensar para além do próprio crescimento profissional, buscando acessar o mercado de trabalho não sozinha/o, mas criando uma rede de animadoras/es negras/os. Esta é uma das missões do Cinema Negro de Animação enquanto luta antirracista e por uma educação afrocentrada.

Cinema Negro de Animação e a Educação Formal

A Lei 10.639/2003 promoveu importante alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/1996), incluindo no currículo “oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’” (Brasil 2003). Fruto de pelo menos 50 anos de luta do movimento negro brasileiro, podemos destacá-la como um documento de grande importância. A partir dela e da discussão sobre a temática racial, percebemos o Cinema Negro de Animação como instrumento de (re)construção de narrativas, tanto para estudantes quanto para formação de professoras/es, pensando a escola enquanto lugar de formação antirracista.

Para falar sobre a lei 10.639/2003, é importante saber quais mudanças foram promovidas com sua chegada. Uma delas foi alteração na Lei 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação, legislação brasileira que institui objetivos a serem comprimidos legalmente por todo ensino brasileiro:

A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas (Brasil 2004, 11).

Nesse sentido, movimentos sociais negros mobilizaram significativas mudanças no currículo da educação brasileira. Ao participar da construção da Lei, teceram críticas aos currículos eurocêntricos, impositivos e estruturantes que durante muito tempo marginalizam as epistemologias dos povos africanos e de seus descendentes (Gomes 2012, 234 - 235), reivindicando uma educação antirracista e indiscriminatória, que valorizasse as identidades, as história e as culturas de descendências africanas.

Tendo em vista a marginalização dos povos negros perante um sistema social excludente que beneficiou historicamente os branco-europeus e sua cultura, a Lei 10.639/2003 surgiu como uma notável política pública. Uma vez que possibilita o desate das amarras coloniais presente nas formas de conceber processos, métodos e conteúdos educativos nas práticas pedagógicas das instituições de ensino. Abdias Nascimento, importante intelectual negro na construção da referida lei, afirmava que

O sistema educacional funciona como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro - primário, secundário, universitário - o elenco das matérias ensinadas [...] constitui um ritual de formalidade e da ostentação das salas da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira, no currículo escolar? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Ao contrário, quando há alguma referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra (Nascimento 2016, 113).

Assim, compreender que o racismo é estrutural (Almeida 2020) e atinge as pessoas negras de diferentes formas (Njeri 2019), é reconhecer que a escola, enquanto instituição europeia, também perpetuou mecanismos coloniais que reforçaram o racismo como política de dominação territorial, cultural e subjetiva. Diante da promulgação da lei, passa-se a reconhecer as lacunas geradas na história dos grupos racializados e avaliar todos os mecanismos que possivelmente foram utilizados para disseminação dessas ‘ausências’. A escola, nesse intuito, passa a ser uma aliada, no sentido de acolher diferentes demandas sobre as diversidades étnico-raciais e culturais brasileiras. Encarando-as, ainda, de forma pedagogicamente adequada aos critérios da lei:

A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhecese que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos (Brasil 2004, 11).

Neste circuito histórico legislativo, é importante considerar alguns documentos normativos nacionais da educação brasileira e as suas respectivas abordagens sobre as questões étnico-raciais: 1) Parâmetros Comuns Curriculares (PCN’s) - 1999; 2) Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN’s) - 2013; 3) Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - 2017.

Os PCN’s são anteriores à Lei 10.639, teve como intenção orientar as práticas curriculares das escolas, buscando aprimorar a qualidade da educação básica. Reconhece a importância da inclusão de questões étnico-raciais. Porém, aborda-as indiretamente e de forma pouco específica e não abrangente, inscrevendo-as como tema transversal aos diversos componentes curriculares, chamado de “Pluralidade Cultural”.

Já os DCN’s são documentos concebidos 10 anos depois da Lei 10.639. Traz de forma mais detalhada o ensino das relações étnicos-raciais como parte dos objetivos curriculares da Escola. Podemos observar, o impacto que a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira teve na construção desses documentos.

A BNCC, o mais recente dos documentos, publicado após alterações conservadoras no governo brasileiro, não dá ênfase à questões étnico-raciais, bem como não reforça a necessidade de sua inclusão nos currículos nacionais. Apesar da existência da Lei 10.639/2003, observamos um recuo político quanto à promoção de sua aplicação no ensino brasileiro. A BNCC abre apenas algumas brechas e traz uma certa atenção para questão racial:

De forma particular, um planejamento com foco na equidade também exige um claro compromisso de reverter a situação de exclusão histórica que marginaliza grupos – como os povos indígenas originários e as populações das comunidades remanescentes de quilombos e demais afrodescendentes – e as pessoas que não puderam estudar ou completar sua escolaridade na idade própria. (BNCC 2017, 18)

Após anos de luta e mobilização do movimento negro, a Lei 10.639/2003 adentrou o sistema educacional brasileiro, repensando práticas escolares das intituições de ensino. A partir da política pública, as escolas se tornaram terrenos de possibilidades e lugares onde se deve debater questões no que diz respeito à reparação no âmbito histórico, cultural, social de descendentes de africanos no campo da educação. A referida lei também passou por mudanças (Lei 11.645/2008) através da reivindicação de povos indígenas brasileiros quanto a inserção de suas culturas e histórias como obrigatoriedade no currículo da educação brasileira.

Cinema Negro de Animação como material didático e como produção escolar

O CNA tem contribuído com educadoras/es para o cumprimento da Lei 10.639 que, embora sancionada em 2003, ainda enfrenta grandes desafios para ser efetivamente implementada nas escolas. Podemos ver, no seu não cumprimento, alguns dos aspectos ligados à manutenção do racismo.

O cinema de animação é uma linguagem de grande aceitação e presença no cotidiano de crianças e adolescentes, podendo ser usadas por educadoras/es para promover debates e estudos em torno da cultura, arte, história e vivências afro-diaspóricas. Além disso, a linguagem do cinema de animação se mostra muito apropriada ao trabalho pedagógico, abrindo espaço para romper com as barreiras do racismo, valorizando de forma lúdica e atual conhecimentos inerentes a formação histórica do povo negro (Peregrino e Souza 2020, 356).

Consideramos, então, as técnicas do cinema de animação como ferramentas para realizar algo tão tradicional nas culturas africanas e afro-diaspóricas: contar histórias. Uma proposta pedagógica de mediação estética e lúdica. O animador congolês Jean-Michel Kibushi Ndjate Wooto (Kibushi) - um dos precursores do cinema da África Central - tem sua animação comparada ao trabalho dos griots. Kibushi construiu uma possibilidade para o Cinema de Animação que se configura a partir das narrativas e imagens africanas, em especial as congolesas. Do mesmo modo, o Cinema Negro de Animação hoje no Brasil vem se construindo entre as narrativas e imagens africanas e afrodiásporicas inerentes à formação e resistência do povo negro. O CNA torna-se um instrumento para contar e difundir histórias negras e é

uma ferramenta dentro e fora da escola para suscitar debates e estudos em torno de diversos temas, devido seu grande potencial comunicativo e de aceitação entre pessoas de qualquer idade. É inegável que a animação, a contação de histórias e tantos outros instrumentos artísticos, possibilitam encantamento e sensibilização. A arte e a alegria são instrumentos necessários para uma sociedade mais justa e igualitária e pode contribuir para o respeito às diferenças, sejam elas de qualquer natureza (Peregrino e Souza 2020, 356).

De acordo com Machado,

no pensamento africano, a fala ganha força, forma e sentido, significado e orientação para a vida. (...) Contar mitos, em muitos lugares na África, faz parte do jeito de educar a criança que, mesmo antes de ir para escola, aprende as histórias da sua comunidade, os acontecimentos passados, valorizando-os como novidade (Machado 2006, 3 - 4).

O CNA pode estar presente nos processos educativos como material didático-artístico de promoção de debates e reflexões a partir da exibição das diversas obras realizadas por diretoras/es negras/os. Mas também pode atuar como instrumento educativo através de oficinas e criação de animações pelas/os estudantes e professoras/es. Assim, abre a possibilidade da escola registrar e valorizar as diversas narrativas e estéticas próprias das comunidades negras, por meio de uma ferramenta lúdica.

Considerações para importância do CNA nas escolas

A partir do estudo que temos realizado no grupo de pesquisa Àwòrán: experiências na criação de imagens para filmes de animação com histórias de Òrìṣàs, da UFSB, pudemos refletir sobre as relações do CNA com propostas educativas afrocentradas e antirracistas. Isto vem sendo realizado pela realização de entrevistas, pelo estudo da legislação educacional, leitura de intelectuais negras/os e, ainda, pela análise de filmes e processos educativos.

As falas de Jamile Coelho e Jefferson Batista trouxeram a perspectiva negra de profissionais da Animação e revelaram a importância dos processos educativos em suas práticas cinematográficas, seja formando novos cineastas da animação, seja realizando oficinas em escolas, quilombos e terreiros para compartilhar técnicas e despertar o interesse de futuras/os animadoras/es negras... Criar obras de CNA é também atuar numa camada pedagógica a partir da comunidade e da prática antirracista.

Vemos que a legislação brasileira, a partir da luta dos movimentos negros, inclui a obrigatoriedade de ensino da história e cultura afro-brasileira, o que exige e possibilita que educadoras/es transformem conteúdos, métodos e práticas em todos os níveis de ensino. Porém, o desenvolvimento histórico dos documentos oficiais curriculares já indicam um progressivo apagamento das temáticas étnico-raciais na educação brasileira. Isto torna a missão do CNA ainda mais desafiante e profunda.

Diversas/os cineastas e educadoras/es vem se engajando na criação e consolidação de espaços educativos antirracistas e afrocentrados. Nesses espaços, o CNA vem se mostrando uma ferramenta de reconstrução de subjetividades negras a partir de imagens, narrativas, saberes e percepções afrodiaspóricas. Em contraposição à educação colonizadora eurocêntrica, o CNA é uma ferramenta griot contemporânea que instrumentaliza educadoras/es para realização de práticas educativas que promovam a estéticas e epistemologias negras.

Notas finais

1Jamile Coelho é cineasta, animadora e produtora. Graduada em Cinema pela Universidade Federal da Bahia. Realizou curtas como Òrun Àiyè: a criação do mundo (2016), Talvez Futuro” (2013) e Encouraçados Corações (2020).

2Jefferson Batista é artista visual, ilustrador, animador e diretor de arte. Possui licenciatura em Artes Visuais Digitais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Realizou o premiado curta de animação Quando a Chuva Vem (2019).

3Grupo de Pesquisa da Universidade Federal do Sul da Bahia, coordenado pela Professora Pâmela Peregrino da Cruz e com a participação da Prof. Dr. Katiuscia Quirino Barbosa; Jufania Santos; Jhonatan Almeida de Sousa; Erlane Rosa dos Santos; Filip de Souza Couto.

4O encontro com Jefferson Batista aconteceu no dia 15 de julho de 2021 e o encontro com Jamile Coelho aconteceu no dia 22 de julho de 2021. Os encontros aconteceram de forma virtual e foram gravados e, posteriormente, transcritos.

5Gambiarra, no contexto brasileiro, é uma expressão atribuída a procedimentos de criação/invenção de artefatos que solucionam problemas de forma improvisada.

Referências Bibliográficas

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Njeri, Aza. 2019. “Educação afrocêntrica como via de luta antirracista e sobrevivência na maafa” In Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 31, 4-17.

Filmografia

Òrun Àiyè: a criação do mundo. 2016. De Jamile Coelho e Cintia Maria. Brasil. DVD

Quando a Chuva Vem. 2019. De Jefferson Batista. Brasil. WEB.