Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

A camera-arrow; mobilizations, cosmopolitics and ways of occupy the cinema

Uma câmera-flecha; mobilizações, cosmopolítica e modos de aldear o cinema

Cristian Avello Cancino

Universidade de São Paulo - Diversitas (Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos), Brasil

Abstract

The Brazilian context of the last few years has reinforced Rudyard Kipling’s maxim: “The first casualty of war is the truth”. Later, Paul Virilio would correct the sentence by saying that war victimizes the “reality”. In these recent battles, in which the Brazilian State strives to suppress a series of rights conquered by native peoples, cinema and indigenous communication have revealed themselves as important tools (weapons) against the “machine for grinding worlds”, which is like the writer Ailton Krenak names this “entity” called Capitalism.
We saw the emergence of a series of productions carried out and starring by indigenous people, which bring us an enormous renewal of narrative and aesthetic processes. It is as if it were a counter-anthropology or the reverse of the ethnographic film. When we occupy the artefacts of cinema, it is understood that indigenous films represent cameras-arrow that launch themselves into the world, helping to displace traditional notions about science, politics and philosophy, in the quest to expand the concept of Cosmopolitics, engendered by Isabelle Stengers and defended by authors such as Bruno Latour.

Keywords: Cinema, Cosmopolitics, Anthropology, Indigenous peoples, Communication

1. Introdução

Em janeiro de 2019, no Brasil, um novo governo pisou no Palácio do Planalto, em Brasília, anunciando, entre suas primeiras medidas, transferir o controle da Fundação Nacional do Índio (Funai)1 para o recém criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o que foi posteriormente revertido. Mas assim que o novo governo tomou a decisão e mostrou a cara, diversas organizações indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), para citar algumas das de maior abrangência, e povos de todo o Brasil, representados por organizações regionais, começaram a se mobilizar contra a proposição governamental — afora a nefasta decisão de transferir para o Ministério da Agricultura a responsabilidade pelas demarcações de terra, que até o final do mandato do presidente eleito em 2018 não serão demarcadas, nenhuma terra indígena nova2será homologada.

No mesmo instante em que se promovia o desmonte de direitos e o estímulo à ocupação dos territórios por garimpeiros e pelo agronegócio, quando os grilos da soja e as chispas de fogo faíscam intermitentes, anunciando o retrocesso das políticas públicas conquistadas pelo movimento indígena e até então garantidas pela letra, por meio da Constituição de 1988, soubemos que as aldeias mais próximas da cidade de São Paulo, localizadas na Terra Indígena Jaraguá (TI Jaraguá)3, preparavam-se para uma mobilização que ocorreria numa das principais avenidas da capital, a Avenida Paulista – sede de bancos, empresas e do poder financeiro, palco das grandes manifestações no período da redemocratização4.

Na noite anterior à mobilização, no dia 30 de janeiro daquele ano, a Casa de Rezas5 da Tekoa Itakupê6 recebeu centenas de indígenas e de visitantes não-indígenas para celebrar o Nhemongaraí 7. No meio do terreiro foi colocada uma flecha, U’y, e diante dela cada ente da aldeia por meio de palavras, baforadas com o petynguá 8, goles de erva mate, orações, meneios e cantorias untava-a com os anseios da comunidade, que diziam respeito a proteção, segurança, ao fim da especulação imobiliária que se apresenta no entorno da TI Jaraguá, turvando veios hídricos, regatos, nascentes, sufocando seus habitantes com chapas de concreto e metal, e à manutenção dos programas de saúde garantidos pelo Estado e pelo respeito à cultura e educação tradicionais, entre outras demandas, sendo a primordial a homologação da TI Jaraguá, como garantia de existência.

Esta flecha, carregada dos anseios do povo guarani, dos quais comungamos, foi levada à avenida e apontada em diversas direções. Não precisaria ser lançada, configurou-se assim como um artefato que carrega a mensagem das reivindicações de corpos cada vez mais acossados e ao mesmo tempo expandidos, como um símbolo de resistência e defesa que leva a palavra e os desejos de cada membro daquela comunidade — pois todos que estavam ali falaram “para” a flecha, “pediram” para ela, a imbuíram de suas inquietações potentes com Nhe’re9, palavras, salivas, baforadas, gestos que emergiam de seus corpos.

Na avenida, sobre o carro de som, a flecha repousava no arco teso empunhado pelo cacique Mateus Werá, da Tekoa Itakupê, que a apontava para as sedes dos bancos, empresas e órgãos governamentais. Sobre o asfalto, outros parentes Guarani, Kaimbé, Pataxó, Kariri-Xocó, Pankararu, Fulni-ô, Xucuru, Aymara, Quéchua, que compõem alguns dos povos originários vivendo em ambiente urbano em São Paulo, e outros indígenas de diversas partes do Brasil cantavam, pitavam, dançavam. E nós, que estivemos na véspera no Jaraguá, acompanhávamos a flecha, que tinha sua história. Não era um artefato qualquer. Não há artefato qualquer, neste caso. Ali, excluindo os shorts, chinelos, camisetas, indumentárias e vestimentas industriais dos juruá10, cada artefato ou instrumento constituía extensões dos corpos-flecha que se lançavam à luta.

Neste sentido, a flecha performava como um índice, tomando o termo emprestado da semiótica pierciana11, “um signo natural, ou seja, uma entidade a partir da qual o observador pode fazer uma inferência causal de algum tipo, ou uma inferência sobre as intenções ou capacidades de outra pessoa” (GELL, 2018, 41). No contexto da avenida, comunicava aos parentes indígenas que ali se manifestavam e, para nós que a untamos de nossos desejos, tinha sua significância ampliada a partir do repertório que criamos ao participar de sua “preparação”. Isto, certamente, não foi compreendido da mesma forma por qualquer funcionário de algum banco que, naquele momento da ação coletiva, da manifestação, estivesse saindo de seu expediente de trabalho para retornar a sua casa.

Pela hipótese de o funcionário do banco não possuir o referencial que nós, partícipes da unção do artefato, partilhávamos, a mensagem da flecha apontada em sua direção, ou em direção à instituição em que trabalha, poderia ter lhe parecido um ato de enunciação de agressividade ou indisposição, no que já teria sido parcialmente eficiente. Isto, levando em conta o esquema de comunicação formulado pelo linguista russo Roman Jakobson (1896 – 1982), que nos clarifica quanto à sua elaboração da seguinte maneira:

O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto a que se refere (ou ‘referente’, em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmente um CONTACTO, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação (JAKOBSON, 2008,. 122-123).

Nosso instrumento de comunicação anunciava ao apontar contra os edifícios em séquito da avenida que não iríamos permanecer passivos às novas determinações federais, tão inconstitucionais e devastadoras para o bem viver. Mas isto corresponderia ao relevo da imagem, como a “fumaça”, que vemos no horizonte, nos faz inferir que há fogo; como um índice, para os semiólogos. O corpo do cacique não arrefeceu ao apontar a flecha e não deixou o arco afrouxar de seu estado hirto, a flecha (u’y, em guarani) apontava para muitos lados, era nosso desejo de transformação reivindicando e performando, perscrutando escritórios, semáforos, janelas; ameaçou automóveis e rotinas como o zoom de uma teleobjetiva, que se vale de sua potência ótica para vigiar imagens e alhures.

2. Artefatos, cosmopolítica e outros modos de aldear o cinema

A palavra composta câmera-flecha, que serve de elmo ao corpo deste artigo, quiçá provoque de início um certo estranhamento, de modo que tentaremos desenvolve-la e esgarça-la, ainda que parcialmente, no decorrer desta exposição sobre imagens, mobilizações, cosmopolítica e linguagem – em um Brasil, na esfera pública, em desencanto. Em um primeiro momento, poderemos entende-la como o arranjo de um artefato (a flecha) e de um aparelho (a câmera), cada qual com propriedades que, ao serem articuladas, engendram uma proposição instável, uma imagem precária e incompleta, por isso mesmo aberta a enunciações, gestos e desejos.

O artefato precede o aparelho, que irá compor índices de devires ou, como diz a modernidade12, virtualizações. “A palavra latina apparatus deriva dos verbos adparare e praeparare. O primeiro indica prontidão para algo; o segundo, disponibilidade em prol de algo” (FLUSSER, 2011, 37). O aparelho, como o filósofo Vilém Flusser o entende, evocando sua etimologia, estará pronto e disponível ao nosso manuseio, envolvendo nosso gesto imbuído de potência de agir em seu sistema, que o codificará. Artefatos, por sua vez, são operadores materiais que mediam relações entre sujeitos ou comunidades e seu entorno, seja este humano ou não-humano, extra-humano, muitas vezes constituindo-se como extensões (adornos, pinturas corporais, ferramentas) que poderão derrocar esta diferenciação como categoria que se impõe às existências, e que em outras ocasiões irão, contrariamente, estabelecer tais distinções. De maneira que em sua operação viabilizam trânsitos ou modos de estar entre mundos, como a mola de um espiral ou tal como representa um objeto não orientável, como a Fita de Moebious.

Ainda que valendo-se dos postulados de Gell, em outra perspectiva o antropólogo Geraldo Andrello vai nos falar da recepção e incorporação à mitologia dos povos Tukano de objetos oriundos da cultura não indígena: os livros. No artigo Falas, Objetos e Corpos, autores indígenas do alto Rio Negro, Andrello escreve sobre as reações que a comunidade teve quando viu publicados livros, narrados por pessoas pertencentes a diversos grupos da região localizada no noroeste amazônico, sobre suas mitologias e história. Trata-se de uma coleção intitulada Narradores Indígenas do Rio Negro, viabilizada pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) durante a primeira década dos anos 2000. Neste artigo, Andrello nos aproxima inicialmente de aspectos cosmológicos das culturas envolvidas nas publicações, que quando da escrita do artigo já contava com oito volumes.

É igualmente importante notar que as diferenciações do tempo mítico são efetuadas à medida que aparecem na narrativa certos operadores materiais, tais como flautas sagradas – roubadas pelas primeiras mulheres, que adquirem com isso capacidades reprodutivas específicas –, os adornos cerimoniais – obtidos pelos ancestrais junto às divindades, e que irão propiciar que a verdadeira humanidade se diferencie dos peixes e animais –, a cerveja de mandioca e o alucinógeno caapi – cujas variedades e potências, ao serem diferencialmente apropriadas, irão distinguir os grupos exogâmicos entre si. Nas narrativas, esses objetos e substâncias são partes de corpos (ANDRELLO, 2010, 18).

A precedência dos artefatos em relação ao humano não é exclusividade dos povos da região do Alto Rio Negro, aqui mencionados. Nas mitologias ameríndias é comum que antepassados divinos manipulassem cestos, penas, bancos, substâncias e flechas. Estas últimas fazem parte de diversas cosmologias espalhadas pelo planeta, como a grega, sendo manipuladas por deuses como Apolo, está presente na mitologia védica indiana, utilizada pelo herói Arjuna, no Egito antigo, nos povos Maia e até no firmamento do zodíaco, representando o signo de Sagitário. É como um elemento arquetípico, habita os imaginários, céus e sonhos.

Da imagem da flecha empunhada pelo cacique Werá na Avenida Paulista, a flecha imantada pelos nossos corpos e desejos, compreendemos, após o diálogo estabelecido entre os postulados sobre objetos e agência de Gell e o estudo etnográfico apresentado por Andrello, que o artefato, da ordem divinal, é o agente primordial que opera sobre o campo relacional que delimitamos, para efeito deste percurso descritivo, a saber: a avenida. Desta forma, se confirmaria o artefato como portador do índice produzido em outro nível existencial, preexistente ao corpo do cacique que o empunha — mesmo que tenha sido o próprio cacique que construiu a flecha. Assim, conclui o antropólogo que “em termos da posição que podem ocupar em redes de agência social humana, artefatos ou seres humanos ‘podem ser considerados quase que inteiramente equivalentes’” (ANDRELLO, 2010, 19).

É neste sentido que ao empunhar a flecha sobre a avenida, o cacique Werá será uma pessoa estendida, ampliada – nas palavras de Gell, distribuída –, ele mesmo um corpo-flecha como agente secundário de um outro que o antecede e que, no caso guarani, poderíamos inferir como o condutor da palavra, Nhe’e, ou do sopro de Nhanderu13. Agente, portanto, de preexistências. Ou ancestralidades. Afinal, “tudo que Nhanderu criou tem seu espírito, que cuida de cada ser que vive na natureza; as pedras, a água, as plantas, os animais e as montanhas, isso é o Universo” (MBYA, GUARANI. 2017, 19). O cacique como artefato humano de Nhanderu, criador e protetor, cujo sistema enunciativo, que vigia e alimenta, se estende à flecha, preenchendo-a com sua força.

Trata-se de estabelecer uma relação entre dois aparatos enunciativos; contudo, um deles, a flecha, como vimos, traz o índice de seus criadores, nosso cosmos14, sendo portadora de uma agência primária. A câmera, por sua vez, também é um instrumento de agência social, hoje mais do que nunca, produto tecnológico, e trará o índice da criação de sua própria mecânica (e agora, eletrônica) — que inclui o conhecimento ótico do físico e astrônomo inglês Isaac Newton, o empreendedorismo do inventor estadunidense Thomas Edison, a engenhosidade dos irmãos Auguste e Louis Lumière, responsáveis pelo cinematógrafo, “ou seja, a história de sua produtividade industrial” (MACHADO, 1997, 37).

O cinema precede em milhares de anos a câmera e quando se diz que o cinema tem pouco mais de cem anos, o que se quer dizer é que uma parte da história técnica do cinema é que tem cento e poucos anos15. O cinema é como uma capacidade de enfeitiçar-nos. A câmera nos faz ficar frente a uma fantasmática e fixa-la. A flecha nos escava. Nos artefatos, que estão imbuídos de intenções atávicas e cosmológicas, que são partes de nossos corpos e nos ampliam, emana a ideia de uma prática de transformações sobre mundos, portanto de ação e agenciamento. O cinema, por sua vez, estaria hoje imbricado em um dispositivo coercitivo, de engajamento, que nos afasta do “outro” por simular alteridades ou ideias do que é exterior e longínquo, por sistematizar imagens para animar-nos, ou seja, restituir anima. O cinema é o aparelho indexador de imagens que pressupõe seu meio e sua recepção.

Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem ‘existe’, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens tem o propósito de lhe apresentar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens (FLUSSER, 2011, p. 23).

Ao criar imagens que substituem acontecimentos do mundo por cenas, o cinema processa, seguindo o raciocínio de Flusser, a “magicização da vida”.

Trata-se da alienação do homem em relação a seus próprios instrumentos. O homem se esquece do motivo pelo qual imagens são produzidas: servirem de instrumentos para orientá-lo no mundo (FLUSSER, 2011, 24).

Enxergamos, então, que o cinema tomado como dispositivo de enunciação de imagens, que são montagens de eventos criados pela imaginação, com autoria e gêneros no comércio comunicativo apontados, passa a se inscrever em uma enorme dinâmica informacional que se confunde com o a vida em si, estabelecendo-se como um modo de conhecer por meio das aparências ou, como nos diz Paul Virilio, orientando-se a uma “automação da percepção (...), a uma nova industrialização da visão” (VIRILIO, 1988, 86). A fé perceptiva será substituída pela fé técnica. É a isto que o antropólogo e também cineasta Edgard Morin chamará de magia.

A imagem mental é ‘estrutura essencial da consciência, função psicológica’. Não se pode dissocia-la da presença do mundo no homem e da presença do homem no mundo. Mas, ao mesmo tempo, a imagem é apenas um duplo, um reflexo, isto é, uma ausência. Sartre diz que ‘a característica essencial da imagem mental é uma certa maneira que o objeto tem de estar ausente no próprio centro de sua presença’. Acrescentemos logo uma recíproca: de estar presente no próprio centro de sua ausência. (...) Duplo e imagem devem ser considerados como os dois polos de uma mesma realidade. A imagem detém a qualidade mágica do duplo, mas interiorizada, nascente, subjetivada. O duplo detém a qualidade psíquica, afetiva, da imagem, mas alienada e mágica. A magia, veremos, não é outra coisa senão a alienação reificadora e fetichista dos fenômenos subjetivos. A magia, sob esse ângulo, é a imagem considerada literalmente como presença e sobrevida” (MORIN, 1956, p. 48).

Se, deste modo, o cinema opera a partir de sua “própria produtividade industrial”, como nos lembra Machado, promovendo “uma nova industrialização da visão”, como diz Virilio, compreende-se que o cinema, contemporâneo ao avião, às lâmpadas incandescentes, às vacinas, ao telégrafo, como invenção que se consagra no período que abarca a segunda etapa da Revolução Industrial (1850 - 1950), tornou-se o meio enunciativo-ideológico privilegiado do capitalismo, tal como o conhecemos hoje, provendo o mundo com sua estética da irrealidade por meio de sua fábrica de duplos e simulações. Será, no entanto, a partir da câmera que a imagem — “superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente” (FLUSSER, 2011, 18) — se rasgará, está se rasgando. Uma câmera que traz o índice de sua origem, cuja potência reside não mais em suas qualidades sistêmicas de aparelho, mas em sua capacidade de agência como artefato — tal qual uma câmera-flecha enfeitiçada.

E é neste sentido que o “cinema indígena” realizado nos últimos anos inscreve-se como um acontecimento cosmopolítico – que é como o antropólogo Bruce Albert virá a celebrar a publicação do livro A Queda do Céu (2010), escrito em parceria com o xamã yanomami Davi Kopenawa. Ressaltam-se as aspas ao afirmarmos um “cinema indígena”, dado que não se sugere, aqui, uma abstração do indígena ou uma categorização em gênero comercial deste novíssimo16 cinema, o que poderia ocasionar um equívoco homogeneizante quando o que se busca é, propriamente, reconhecer a diversidade e as especificidades que cada expressão audiovisual, realizada por cada comunidade, contempla. Isto nos conduziria à própria armadilha que a proposição cosmopolítica, de Isabelle Stengers procura desmontar, ou seja, qualquer existência homeostática.

Sobre os índices (forças e agências), contidos na matéria artefatual que se restitui aos aparelhos de enunciação audiovisual, o cineasta Guarani Ñandeva Alberto Álvares, autor de O Último Sonho (2019) – exibido, entre tantos festivais, no Doclisboa em 2019 –, sugere uma pista importante acerca do que representa o modo de operação implicado no fazer cinematográfico guarani. Ficou conhecida sua expressão “filmar como se fuma o petynguá”, reproduzida no catálogo do festival. O petynguá é o cachimbo guarani, utilizado em rituais e que, por meio das volutas de fumaça que o ato de pitar desenha no espaço, traz as imagens comungadas pela memória da comunidade, pelos entes e seres que habitam o tekoha17, o espaço-tempo.

Para o cineasta, “a câmera é como se fosse um segundo olho, um segundo ouvido, ela não é apenas uma guardadora de imagens, ela é uma Guardiã da Memória.” (ÁLVARES, 2018, 15). Não nos surpreendamos com a associação que se poderá fazer desta imagem-palavra, “Guardiã da Memória”, atribuída ao dispositivo que capta imagens e sons (um segundo olho, um segundo ouvido), com a imagem de memória apresentada por Flusser em seu Glossário para uma futura filosofia da fotografia: “Memória: celeiro de informações” (FLUSSER, 2011, 18). Uma câmera que irá curar, cuidar memória, proteger Mnemosine. Em seguida, Álvares conta sobre os primeiros momentos em que se põe a filmar na aldeia e de como os mais velhos ficavam em silêncio, ainda parecendo estranhar a presença do homem com a câmera.

(...) Passei a usar a câmera como se fosse um petynguá, para me conectar espiritualmente com a sabedoria do silêncio. Passei a usar minha imaginação no mundo da lente, sem ter o medo de quebrar o equipamento. O equipamento tem preço, podemos consertar. A memória tem valor maior, inestimável. Não tem preço. E quando ela se perde é difícil trazê-la de volta. (ÁLVARES, 2018, p. 18).

O artefato sagrado petynguá amplifica o sistema do aparelho (câmera), fornecendo-lhe possibilidades de perscrutar, investigar, que não deteria caso sua operação fosse realizada por um corpo não indígena. A prática de escrever imagens por Alberto Álvares e as polivozes que agencia em seus filmes também nos aproxima da perspectiva “eto-ecológica” (étho-écologique), que, para a filósofa da ciência Isabelle Stengers, virá:

Afirmar a inseparabilidade do éthos, da maneira de se comportar própria a um ser, e do oikos, do habitat desse ser, da maneira como esse habitat satisfaz ou contraria as exigências associadas a tal éthos, ou oferece aos novos éthos a oportunidade de se atualizarem (STENGERS, 2018, p. 449).

A memória ressalta nas produções indígenas por meio da oralidade e do que não se vê, seja éthos e oikos, corpo e território, que muitos estagnaram em ecologias, como se pudesse-se aplicar uma topológica ao estar, ao deter-se; a proposição cosmopolítica demove esta estabilidade homeostática por deter-se. Para os chefes (caciques) e anciões (xamãs), a função social, como lideranças que são, é atravessada pelo dever de trazer a palavra aos nossos, ao contrário do chefe das sociedades de Estado que, na glosa de Pierre Clastres, tem sobre a palavra o direito, e somente eles o detêm, de pronunciá-la aos seus. Daí que para se iniciar a interação entre o cineasta e a comunidade, houve, de acordo com o relato, instantes silenciosos, como se aquele “princípio de precaução” que Stengers utiliza para refutar a cosmopolítica como um projeto de unificação, ainda que instável, encontrasse no exemplo dos xamãs e dos chefes a cautela que precede a fixação de suas/nossas palavras em verdade, que se enclausuraria no “celeiro de informações” ou no aparelho Guardião da Memória.

O que não se vê, neste caso, é o que teóricos do cinema como Jacques Aumont chamarão de “fora de campo”. Mas, afinal, poderíamos chama-lo de extracampo, pois o cinema que cá evocamos, guardado o “princípio de precaução”, constitui-se de modo instável como uma rede de interações em que este extra – imbricado pelo campo, estas bordas que enquadrarão o espaço-tempo; e pelo antecampo, o cineasta e sua câmera-flecha (esta já imbuída do extracampo indicial) – se atualiza, a todo momento, das instâncias do “fora de campo”, que o suporta como modo expressivo-enunciativo. E nunca estará de fora. Vejamos, no exemplo de um filme como Yarang Mamin – Movimento das Mulheres Yarang (2019), do cineasta xinguano Kamatxi Ikpeng, a maneira como se processa, por meio da fala de mulheres coletoras de sementes, a agência do mundo industrial não indígena sobre seu território.

O documentário, realizado com apoio do Instituto Sócio Ambiental (ISA), mostra um grupo de mulheres Ikpeng em seu trabalho de coletar sementes para o reflorestamento e a restituição das nascentes de água que vertem sobre veios mais caudalosos, a região da experiência de estar no mundo Ikpeng compreende-se pelas bacias hidrográficas dos rios Tapajós e Xingu; hoje muitos restritos ao Parque Indígena do Xingu.

Em meio à colheita, elas avistam uma pequena serpente e uma das coletoras tenta atingi-la com um facão, mas a cobra foge e ela exclama: “Os brancos acham que é fácil”. A seguir, já no caminho de volta à aldeia uma mulher mais velha comenta, enquanto caminha, “o sol está quente, a mata está acabando onde vivemos. E também onde vivem os brancos. Por isso é o nosso dever e o deles fazer este trabalho. O sol está muito quente, os rios estão secando. Antes o tempo não era desse jeito”.

Temos aí uma “poética sobre os sentidos maternais da terra”, como o escritor Aílton Krenak declarou na abertura da Feira Literária de Parati (FLIP)18, em 2021. Esta poética resiste, no sentido de reexistência, ou seja, como reiteração ininterrupta de existências, pois são múltiplos e diversos aqueles que a coabitam e reivindicam. E, se os rios estão secando e a floresta está convalescente, também “as palavras estão doentes, mas cabe a nós usá-las sanando-as” (AVELLAR, 1995, 64), que é o que o cineasta argentino Fernando Birri (1925 – 2017) vai propor em sua Escola de Santa Fé. Para Birri, no contexto do novo cinema latino americano dos anos de 1960, convinha aos cineastas do continente tomar as ferramentas do opressor (o cinema hegemônico) para semear o cinema, restituí-lo em poesia, do grego poiesis.

Neste sentido, segui perguntando-me, qual era a metáfora poética por excelência, qual era a metáfora viva? E esta metáfora viva, esse gesto que muda a vida se chama Revolução (AVELLAR, 1995, 64).

Para concluir, Birri irá convocar artistas de todas as áreas e, especialmente, seus colegas cineastas: “Hay que ocupar el lenguage!”. De certa maneira, é isto o que está ocorrendo por meio dos filmes produzidos por indígenas de muitas partes do Brasil. A apropriação das ferramentas audiovisuais corresponde à intenção de ocupar os meios enunciativos, seja na comunicação, quando se habita, seja no cinema, em esforço coletivo por semear a linguagem, reflorestando-a. É a isto que chamamos de, em vez de ocupar, aldear o cinema. Pois é nas aldeias onde o corpo-território irá se nutrir de vida e se relacionar, ou seja, é este ambiente (oikos) que garantirá sua potência de agir e amplificará sua existência.

3. Conclusão

Cada filme é um corpo ampliado. Se ainda utilizássemos emulsões e celulose para fixar imagens, diríamos que cada filme realizado por indígenas corresponderia a um celuloide telúrico, onde se imprimiriam polivozes de ancestralidades, poéticas de reexistências, emanações de atavismos. Parece-nos que uma certa originalidade tem chamado a atenção de curadores, festivais e eventos para o que chamam “cinema indígena”, à falta de outra expressão que salve do esforço classificatório. É preciso, no entanto, reconhecer que o contexto de agonia ambiental em que vivemos, que impeliu o químico Paul Crutzen a decretar a era do Antropoceno, reforça o interesse por estas narrativas. E, mais ainda, é necessário ouvi-las e reconhecer nelas a possibilidade de realização da metáfora viva, que Birri e toda uma geração encantada procuraram realizar. De forma que aldear o cinema é uma proposição – como é a cosmopolítica – aberta a toda rede de agências e ações que se mostrem capazes de adiar “a queda do céu” (KOPENAWA; ALBERT, 2010).

Notas finais

1A Fundação Nacional do Índio foi criada em 1967 pelo regime militar brasileiro para substituir o SPI, Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910 pelo general positivista Cândido Mariano Rondon, que tinha o intuito de tutelar e cuidar da integração dos povos indígenas ao projeto de desenvolvimento nacional.

2No sentido de que Jamais Fomos Modernos (LATOUR, 1991).

3A Terra Indígena Jaraguá (TI Jaraguá) é uma área de 532ha cuja maior extensão fica no município de São Paulo (cerca de 94%) e a outra parte em Osasco (SP). Estima-se em mais de 200 famílias ocupando com mais adensamento a região urbana, ao lado da rodovia dos Bandeirantes, nas aldeias Pyau e Itakupe, e há predominância de famílias Mbya sobre Ñandeva. É declarada Terra Indígena pela Funai desde 2015 e demarcada desde 1987, mas ainda falta algum presidente assinar a homologação, o que não ocorre desde o governo da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016).

4Desde 1993 até 2016, se considerarmos o rito da composição representativa do Estado-Nação, nos poderes legislativos, nos executivos pelos municípios, estados e nação eleitos por meio de eleições diretas, por meio da legitimação popular votante.

5Opy, em guarani. É o lugar na aldeia onde os guaranis se reúnem para ouvir suas lideranças, realizar rituais e reuniões, a reza é o motor dos desejos.

6Em tradução livre, “aldeia atrás da pedra”. A Tekoa fica ao pé do Pico do Jaraguá, montanha mais alta da cidade de São Paulo.

7Cerimônia de batismo de pessoas e alimentos nas culturas Guarani Mbya.

8O cachimbo utilizado pelos guaranis. “O cachimbo é o fio do telefone, quando você solta a fumaça vai direto lá para Nhanderu”, como nos conta Natalício de Souza Karai, da Terra Indígena Jaraguá, em Nhande Mbaraete, livro coletivo publicado em 2017.

9Voz, respiração, palavra que sai do coração e se lança pela língua.

10Homem branco, branquitude, mas também o travesso, inimigo, fazendeiro e até estrangeiro em muitas comunidades Mbya.

11Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo, matemático e linguista estadunidense, é considerado o pai da semiótica, disciplina que abrange o estudo geral dos signos.

12No sentido com que Bruno Latour trata os modernos em Jamais fomos modernos (Latour, 1991).

13Nhanderu é a entidade primordial guarani, criadora das coisas e dos seres.

14Ao tratar-se de um ensaio cosmopolítico procuraremos imaginar cosmos como aquilo que sentimos em presença.

15Geralmente, considera-se que esta história técnica teria tido início com o cinematógrafo, dos irmãos Lumière, embora o principio da câmara obscura tenha sido desenvolvido pelo filósofo grego Aristóteles, no século IV a.C.

16Aqui, novamente, entendido o conceito de novo como normativo, civilizatório.

17Para a educadora e pesquisadora guarani Sandra Benites: “Teko significa modo de ser. Tekoha é onde se constrói esse modo de ser, cada corpo é um território”.

18Live de abertura da Flip 2021 com o escritor e ativista Aílton Krenak e o sociólogo Muniz Sodré: https://youtu.be/78ikR_oxrtg (acessado em 13/12/2021).

Referências bibliográficas

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FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. 1ª edição – São Paulo: Annablume editora, 2011.

GELL, Alfred. Arte e agência (1998). São Paulo: Ubu Editora, 2018.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação (1960). São Paulo: Cultrix, 23ª edição, 2008.

KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A Queda do Céu: palavras de um xamã Yanomami (2010). Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. 1ª edição – São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015.

KRENAK, Aílton. A vida não é útil (2020); pesquisa e organização Rita Carelli. 1ª edição – São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica (1991). Tradução: Carlos Irineu da Costa. 4ª edição – São Paulo: Editora 34, 2019.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas (1997). 5ª edição – Campinas: Papirus, 2008.

MBYA, GUARANI. Nhande Mbaraete. Fortalecimento da história guarani. Terra Indígena Jaraguá (2017). 1ª edição – São Paulo: Trança Edições, 2017.

MORIN, Edgard. O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica (1956). Tradução: Luciano Loprete. 1ª edição – São Paulo: É Realizações, 2014.

STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasilieros, Brasil, n. 69, p. 442-464, abr. 2018.

VIRILIO, Paul. A Máquina de Visão (1988). Tradução: Paulo Roberto Pires. 2ª edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

Filmografia

O Último Sonho, de Alberto Álvares (2019, Brasil, 61’).

Yarang Mamin, movimento das mulheres yarang, de Kamatxi Ikpeng (2019, Brasil, 21’). Disponível, com legendas em espanhol, em: https://vimeo.com/420394364 (acesso em 20/01/2022).