Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

The limits of the representation of violence in Benny’s Video (1992) and Funny Games (1997), directed by Michael Haneke

Os limites da representação da violência em Benny’s Video (1992) e Brincadeiras Perigosas (1997), de Michael Haneke

Liliana Rosa

Instituto de Filosofia da Nova, Universidade Nova de Lisboa, Portugal

Escola Superior Artística do Porto, Portugal

Escola Superior de Tecnologia de Abrantes, Instituto Politécnico de Tomar, Portugal

Abstract

This article has as main objectives to raise some issues related to the representation of violence and the limits of the representation of violence in the films Benny’s Video (1992) and Funny Games (1997), directed by Michael Haneke. What is violence? How is violence represented and what are the limits of the representation of this violence in the films Benny’s Video (1992) and Funny Games (1997), directed by Michael Haneke? What is the importance of the on screen and the off screen in the limits of the representation of violence in these films?
We will try to answer these questions through the following steps:

a) at first, calling the concept of “violence” from the point of view of philosopher Hannah Arendt. Although “violence” and “power” are two concepts that often go hand in hand, the author draws attention to the differences that apart them “Power and violence are contrary; when one of them absolutely rules, the other is absent. Violence arises where power is threatened, but abandoned to its own course ends in the disappearance of power.” (Arendt, 2014: 60).

b) in a second moment, analyzing the representation of “violence” in two films directed by Michael Haneke - the films Benny’s Video (1992) and Funny Games (1997) - considerably representative to detect patterns in this subject;

c) finally, analyzing the importance of the on screen and the off screen to reflect on the limits of the representation of violence in these films.

Keywords: Violence, Power, Cinema, Michael Haneke.

O que é a violência?

Para respondermos à pergunta o que é a violência? recorremos ao pensamento da filósofa política alemã, Hannah Arendt (2014).

Arendt (2014: 14-15) fala-nos da arbitrariedade da violência, na medida em que não há certezas no campo de batalha e nada garante que não haja uma destruição mútua em certas circunstâncias. Por isso, a autora refere-se a “(...) essa imprevisibilidade generalizada com que deparamos à medida que nos aproximamos do reino da violência” (Arendt, 2014: 15).

Ao tentarmos responder à pergunta o que é a violência? somos rapidamente conduzidos a outras perguntas tais como, o que é poder? e como se relaciona a violência e o poder? Segundo Arendt (2014: 49), uma das grandes dificuldades na definição do conceito de “violência”, reside no facto de existir um conjunto de palavras tais como, “poder”, “potência”, “força”, “autoridade” e “violência” que são tidas como sinónimos: “(...) são palavras que indicam os meios através dos quais o homem domina o homem; são tidas por sinónimos, uma vez que desempenham a mesma função” (Arendt, 2014: 49). A autora salienta a importância de se distinguir essas definições, das quais destacamos as definições de “poder”, “potência” e “violência”. Arendt define poder da seguinte forma:

O poder corresponde à capacidade humana não só de agir como de agir concertadamente. O poder nunca é a propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e só continua a existir enquanto o grupo mantém a sua união. Quando dizemos de alguém que está “no poder”, referimo-nos, na realidade, ao facto de lhe ter sido dado por um certo número de pessoas o poder de agir em seu nome. No momento em que o grupo, no qual o poder teve origem (potestas in populo, sem um povo ou grupo não há poder), desaparece, o “seu poder” também desaparece. Na sua aceção corrente, quando falamos de um “homem poderoso” ou de uma “personalidade poderosa”, estamos a usar metaforicamente a palavra “poder”; aquilo a que, então, nos referimos sem metáfora é a “potência”. (Arendt, 2014: 49)

Podemos retirar três ideias principais desta definição de “poder”. A primeira ideia é que “o poder nunca é a propriedade de um indivíduo”. Ora, isto vem contrariar as definições de vários autores sobre o conceito de “poder” e compiladas pela própria autora. Desta compilação destacamos as definições de Max Weber, Strausz-Hupé e Bertrand Jouvenel: (1) “afirmar a minha vontade própria contra a resistência” dos outros (Max Weber apud Arendt, 2014: 42); (2) o poder significa “o poder do homem sobre o homem” (Strausz-Hupé apud Arendt, 2014: 42); (3) “um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros instrumentos da sua vontade” (Jouvenel apud Arendt, 2014: 42) – nesta definição, retiramos duas conclusões: a primeira conclusão é que o poder é visto como um instrumento de comando que deve a sua existência ao “instinto de dominação”, a segunda conclusão diz respeito à forma como a imposição e o comando proporcionam um “prazer incomparável” ao homem. Jouvenel (apud Arendt, 2014: 42-43) vai mais longe e defende que o poder implica “Comandar e ser obedecido; sem isso, não há Poder – ao mesmo tempo que a sua existência não requer outros atributos... Aquilo à falta do que não pode existir: essa essência é o comando.” A esta definição de Jouvenel, Arendt (2014: 43) levanta a seguinte questão “Se a essência do poder é a eficiência do comando, então não há maior poder do que aquele que está na ponta de uma espingarda, e torna-se difícil dizer ‘de que modo a ordem dada por um polícia é diferente da dada por um pistoleiro’.” Nesta questão levantada por Arendt, a autora acaba por citar o livro The Nation of the State, de Alexander Passerin d’Entrèves. Segundo Arendt, Passerin d’Entrèves é o único autor que destaca a importância da distinção entre violência e poder.

Temos de decidir se e em que sentido é possível distinguir o ‘poder’ da ‘força’, para considerarmos de que modo o facto de a força ser utilizada de acordo com a lei transforma a qualidade da própria força e nos confronta com uma imagem completamente diferente das relações humanas. (Passerin d’Entrèves apud Arendt, 2014: 43)

Passerin d’Entrèves vai mais longe ao afirmar que “a força, pelo simples facto da sua qualificação, deixa de ‘ser força’” (Passerin d’Entrèves apud Arendt, 2014: 43). Pois bem, segundo Arendt, apesar desta distinção ser uma das mais elaboradas no perímetro da literatura sobre os conceito de “violência” e “poder”, a distinção continua a estar muito afastada do centro do problema, na medida em que o poder, segundo a perspectiva de Passerin d’Entrèves, é “força institucionalizada” ou “qualificada”. Como tal, Arendt conclui que “(...) enquanto os autores anteriormente citados definem a violência como a mais flagrante manifestação do poder, Passerin d’Entrèves define o poder como uma espécie de violência mitigada. Em última análise, o resultado vem a ser o mesmo” (Arendt, 2014: 43).

Na tentativa de encontrar uma distinção mais célebre entre “violência” e “poder”, Arendt explora a relação que se estabelece entre comando-obediência e faz uma distinção entre “(...) ‘obediência inquestionável’ que um ato de violência pode impor – esse tipo de obediência com que um criminoso pode contar quando me rouba a carteira tendo uma faca por arma, ou assalta um banco com uma arma de fogo na mão” (Arendt, 2014: 46). A esta “obediência inquestionável”, Arendt contrapõe:

(...) a adesão do povo que confere poder às instituições de um país, e esta adesão não é mais do que a continuação do consentimento que foi de início a origem das leis. Sob as condições de um governo representativo, considera-se que o povo comanda aqueles que o governam. (Arendt, 2014: 46)

E, por isso:

(...) ‘O rei, que não passa de um indivíduo solitário, tem muito mais necessidade de adesão geral da sociedade do que qualquer outra forma de governo’. O próprio tirano, que exerce a dominação de um só sobre todos os outros, necessita de auxiliares em matéria de violência, ainda que o número daqueles possa ser muito limitado. Todavia, a força de opinião, ou seja, o poder do governo, depende do número; é ‘proporcional ao número a que está associado’, e a tirania, como descobriu Montesquieu, é por isso a mais violenta das formas de governo e, ao mesmo tempo, a que tem menos poder. (Arendt, 2014: 46-47)

Daí, Arendt defender que uma das distinções entre poder e violência reside no facto de “(...) o poder necessitar sempre do número, enquanto a violência, até certo ponto pode dispensá-lo, através do recurso aos seus instrumentos” (Arendt, 2014: 47). Esta distinção de Arendt conduz-nos à definição de poder, que vimos anteriormente “O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e continua a existir enquanto o grupo mantém a sua união” (Arendt, 2014: 49) e à definição de violência também proposta pela autora:

A violência, por fim, distingue-se, como já tive ocasião de dizer, pelo seu carácter instrumental. Fenomenologicamente, está mais próxima da potência, uma vez que os utensílios da violência, como todas as outras ferramentas, são concebidas para e destinadas a multiplicar a potência natural, acabando, no último estádio desse processo, por se substituírem a ela. (Arendt, 2014: 51)

Como acabámos de ver, a violência está mais próxima da potência porque recorre a utensílios que podem multiplicar a potência natural ou até mesmo substituí-la. Mas ao retomarmos a definição de poder de Arendt, verificamos que utilizamos a palavra “poder” de uma forma metafórica quando deveríamos estar a utilizar a palavra “potência”, sobretudo, quando falamos de um “homem poderoso” ou de uma “personalidade poderosa” (Arendt, 2014: 49). Então resta-nos perguntar como Arendt define o conceito de potência?

A potência designa inequivocamente qualquer coisa numa entidade singular, individual; trata-se de uma propriedade inerente a um objecto, ou a uma pessoa, e pertence ao seu carácter, que poderá manifestar-se na relação com outras coisas ou outras pessoas, mas sendo essencialmente independente delas. Até mesmo a potência do mais forte dos indivíduos poderá sempre ser superada pelos muitos, que muitas vezes se concertam simplesmente com o fim de vencer a potência, devido precisamente à sua independência peculiar. A hostilidade quase instintiva dos muitos perante um só foi sempre, de Platão a Nietzsche, atribuída ao ressentimento, à inveja do forte pelo fraco, mas a interpretação psicológica erra o alvo. Faz parte da natureza de um grupo e do seu poder voltar-se contra a independência, que é propriedade do indivíduo forte. (Arendt, 2014: 49)

Expostas as diferentes definições de Arendt sobre os conceitos “poder”, “violência” e “potência”, para o desenvolvimento das análises dos filmes de Michael Haneke, interessa-nos particularmente os conceitos de “violência”, “potência”, a relação entre comando-obediência e a definição de “obediência inquestionável”. Decidimos trazer para o debate sobre a representação da violência no cinema, os filmes Benny’s Video (1992) e Brincadeiras perigosas (1997), realizados por Michael Haneke, pela representatividade da violência nestes filmes.

Os limites da representação da violência em Benny’s video (1992)

Baseado em notícias sobre assassinatos cometidos por jovens de classe média, Benny’s Video (1992) narra a história de um adolescente, Benny (Arno Frisch), que assassina uma rapariga Mädchen (Ingrid Stassner). Benny mostra aos seus pais, Mutter (Angela Winkler) e Vater (Ulrich Müdchen), o homicídio que fica registado em vídeo. Em vídeo também fica registado, o momento em que os pais decidem desaparecer com o corpo da rapariga. Esse registo é utilizado contra os próprios pais, no momento em que Benny decide mostrá-lo à polícia.

Se tivermos em linha de conta as definições dos conceitos “potência” e “violência”, propostas por Hannah Arendt (2014), então para analisarmos a representação da violência no filme Benny’s Video, chamamos a atenção para duas cenas do filme: (1) a cena inicial do filme, na qual podemos observar a matança de um porco através de uma arma encostada à cabeça do animal; (2) a cena do assassinato da rapariga, na qual é utilizada a mesma arma da matança do porco. Em ambas as cenas é utilizado o mesmo “utensílio da violência” e o momento em que a arma é disparada coincide com o momento em que a violência substitui a potência. Vejamos as duas cenas com mais atenção.

Na primeira cena, observamos o movimento do porco a sucumbir até à exaustão e à morte. Observamos esta cena duas vezes, na medida em que, através do controlo remoto, Benny repete, em rewind, a imagem do instante em que se mata o porco. Segundo Price e Rhodes (2010: 3), a repetição deste instante revela alguns sintomas de sociopatia de Benny: o fascínio pelo momento da morte e pelo poder de decisão e o prazer que obtém através da repetição do instante da morte.

Na segunda cena, Benny convida a rapariga para ir a sua casa e mostra-lhe o seu aparato de vídeo (câmara, monitor, sistema de vídeo vigilância, etc.) e a arma que foi utilizada para matar o porco. Tendo em conta a obsessão de Benny visível na sequência inicial (a morte do porco), tudo indica que a rapariga será morta da mesma forma que o porco: a rapariga posicionada no centro do quadro, a arma apontada à cabeça e a pressão no gatilho. Todavia, tal acontece não da forma que seria expectável.

Figura 1 - Fotograma do filme Benny’s Video (1992), de Michael Haneke.

Figura 2 - Fotograma do filme Benny’s Video (1992), de Michael Haneke.

A figura 1 é um fotograma intermédio da cena da morte do porco e a figura 2 é um fotograma intermédio da cena em que a rapariga é assassinada por Benny. Ambas as figuras têm a particularidade de corresponderem ao momento em que se ouve o disparo da arma. Na figura 1, a vítima, o porco, está centrada no quadro, observamos uma arma apontada à sua cabeça e vemos parcialmente as pernas do assassino. Pelo contrário, na figura 2, não vemos o rosto da vítima, a rapariga, apenas a sua nuca à direita do quadro, a arma está fora-de-campo e é o rosto de Benny, o assassino, que está no centro do quadro.

Desta forma, chamamos a atenção para o jogo que se estabelece entre o campo e o fora-de-campo na representação da violência nestas duas cenas. Partindo da breve definição de campo como algo que “(…) não termina nos limites do enquadramento, mas prolonga-se indefinidamente para além dos seus limites, sob a forma do que se designa fora-de-campo” (Aumont; Marie, 2009: 44), somos conduzidos à definção de fora-de-campo: “O campo definido por um plano de filme é delimitado pelo quadro, mas é frequente que elementos não visíveis (situados fora do quadro) estejam imaginariamente ligados ao campo, por um elo sonoro, narrativo ou visual” (Aumont; Marie, 2009: 113).

Tendo como pano de fundo estas brevíssimas definições, interessa-nos analisar a relação entre campo e fora-de-campo nas duas cenas acima mencionadas, a cena da morte do porco e a cena da morte da rapariga e, mais especificamente, o momento em que é pressionado o gatilho em ambas as cenas.

Figura 3 - Fotograma do filme Benny’s Video (1992), de Michael Haneke.

Figura 4 - Fotograma do filme Benny’s Video (1992), de Michael Haneke.

No momento do disparo da arma em ambas as cenas, tanto o porco como a rapariga caem no chão e ambos contorcem-se em agonia. Todavia, enquanto assistimos à agonia do porco no centro do quadro, no campo (figura 3); testemunhamos a agonia da rapariga a partir do fora-de-campo (figura 4). É o som que nos ajuda a imaginar o não visto: os gritos, os disparos, o cair da arma que anuncia a morte da rapariga. Veja-se pois, a importância do fora-de-campo na representação da violência na cena da rapariga. O som da violência que povoa o fora-de-campo e nos conduz à imaginação do não visto abre, assim, a discussão sobre os limites da representação da violência no filme Benny’s Video e, em particular, nesta cena. Assim, podemos levantar a seguinte questão: os limites da representação da violência em Benny’s Video são balizados apenas pelo visto, pelos limites do enquadramento ou, pelo contrário, a representação da violência torna-se ilimitável pelo não visto, pelo som que estimula e dilata os contornos da imaginação do espectador?

Retomando as cenas analisadas: se, na cena do porco, há uma acção que se repete que é a arma encostada à cabeça do porco, na cena do homicídio da rapariga, a acção que se repete no campo é o movimento de Benny de um lado para o outro para carregar a arma com munições.

Ao contrário do que seria expectável e, tendo em conta a obsessão da repetição do vídeo do porco, o vídeo do assassinato da rapariga é repetido apenas quando Benny confessa o crime aos pais e, mais tarde, à polícia.

Outro exemplo no filme Benny’s Video, de como Haneke representa a violência é a forma como o cineasta resolve toda a questão relacionada com o desmembramento e o desaparecimento do corpo da rapariga. Sabemos o destino do corpo da rapariga porque testemunhamos as decisões tomadas pelos pais de Benny: (1) ora através de uma câmara que nos coloca no centro da discussão, numa lógica de campo contracampo; (2) ora através do fora-de-campo cujo sonoro, segundo Deleuze (2006: 300), “povoa e (...) preenche o não visto de uma presença específica”. Enquanto, no plano da imagem, observamos a porta entreaberta do quarto de Benny, o plano do som é preenchido com a conversa dos pais. Mais tarde, somos surpreendidos, os espectadores e os pais de Benny, com a gravação em vídeo dessa conversa.

Mais uma vez, o fora-de-campo e, em particular o fora-de-campo da gravação em vídeo, é decisivo neste filme porque o plano do som que povoa este fora-de-campo é a prova do envolvimento dos pais (ocultação de cadáver) no crime cometido pelo filho.

Voltando novamente à questão de como Haneke representa a violência no filme, é de salientar a opção tomada em relação ao desmembramento e o desaparecimento do corpo da rapariga: enquanto o pai de Benny procura libertar-se do cadáver, Benny e a mãe fazem uma viagem pelo Egipto. É a viagem da mãe e do filho que acompanhamos no plano da imagem. Segundo Price e Rhodes (2010: 6), as imagens da viagem da mãe e do filho invocam, de certa forma, a violência através da ausência da violência na imagem. Sabemos que há um cadáver a ser desmembrado enquanto observamos mãe e filho numa visita às pirâmides ou a assistirem televisão no quarto de hotel, etc. E esse saber deixa-nos inquietos.

Os limites da representação da violência em Brincadeiras Perigosas (1997)

No filme Brincadeiras Perigosas (1997), dois jovens rapazes corteses e educados, aparentemente de classe média-alta, Paul (Arno Frisch) e Peter (Frank Giering), dirigem- se à casa de férias da família Schober – Anna (Susanne Lothar), Georg Schober (Ulrich Mühe) e o filho de ambos, Schorschi (Stefan Olapczynski) –, fazem deles reféns, e torturam-os violentamente até à morte.

O filme abre com planos aéreos do carro da família Schober. No interior do carro, Georg e Anna fazem um quizz, enquanto se ouve uma música clássica diegética. À medida que o diálogo avança, o espectador esbarra com uma mudança radical da música: passamos da música clássica diegética para uma música metal não diegética, cuja rapidez, gritos e ruído, tornam a cena, no mínimo, bizarra e caótica. Esta passagem entre um estilo de música clássica calma para um estilo de música muito agressiva causa um choque e uma estranheza no espectador. A estranheza surge também quando a família Schober aborda os vizinhos no momento da chegada: o próprio casal Schober percebe que existe algo de estranho na interação com os vizinhos. A sensação de que algo vai correr mal aumenta quando percebemos que: Paul e Peter usam luvas brancas com tempo quente; o cão da família Schober está sempre a ladrar na presença de Paul e Peter; Peter afirma ser desajeitado para justificar o facto de ter partido os ovos e ter derrubado (prepositadamente) o telefone para a água.

Após a cena tensa entre Anna e Peter, à qual se junta Paul e, mais tarde, Georg e Schorschi, inicia-se uma série de jogos dos quais a família Schober não consegue escapar. O próprio espectador tem dificuldade em se esquivar dos jogos na medida em que, inesperadamente, se torna cúmplice dos dois jovens rapazes: depois de dar início ao jogo “Quente, Frio”, através do qual Anna se depara com o seu cão morto, Paul olha directamente para a câmara e pisca o olho para o espectador (Figura 5), colocando-o na posição de testemunha. É o momento em que o espectador tem a certeza que passa a fazer parte do jogo, enquanto obervador.

Figura 5 - Fotograma do filme Brincadeiras Perigosas (1997), de Michael Haneke.

No decurso do filme, Paul vai mais longe e não só olha para a câmara, para o espectador, como também desafia o espectador a posicionar-se em relação ao destino da família: “E você o que acha? Acha que têm hipóteses de ganhar? Está do lado deles? Em quem vai apostar? Que tipo de aposta é?”. Mais adiante, quando Georg suplica a Paul para parar com os jogos, o rapaz afirma que “Ainda não é uma longa-metragem” e pergunta ao espectador “Isto já chega? Quer um final real, com um desfecho plausível, certo?” Após o assassinato de Schorschi e depois de serem torturados sistematicamente, esta ideia de “desfecho plausível” só poderá conduzir esta família a um destino trágico. Cabe ao espectador decidir se quer, ou não, testemunhar esse destino até ao fim. Ao decidir positivamente, o espectador esbarra novamente com o olhar de Paul em freeze frame no final do filme. Este olhar deixa-lhe a certeza de que os jogos continuam, desta vez, em casa de outros vizinhos da família Schober.

Temos visto até aqui como Haneke explora a violência psicológica através do conceito de “jogo” não só no interior da narrativa, mas também com o espectador. Chegados a este ponto, resta-nos analisar a forma como a violência física é representada no filme. Começamos por analisar a cena da morte do cão. Sabemos que o cão é morto com um taco de golfe. Embora não se veja essa brutalidade no plano da imagem, ouvimo-la no plano do som: enquanto observamos, em plano geral, a casa de férias da família Schober, ouvimos o som diegético do cão a ganir instantes antes de morrer.

Também na cena em que Schorschi é assassinado somos, em certa medida, poupados à brutalidado do acto, no plano da imagem. No momento exacto em que o tiro é disparado, a imagem está focada em Paul que tira comida do frigorífico para fazer uma sandes. Ao ouvir o tiro, Paul suspende o que está a fazer e olha na direção da porta, ou seja, olha na direção do espectador (Figura 6).

Figura 6 - Fotograma do filme Brincadeiras Perigosas (1997), de Michael Haneke.

Logo após o tiro, Paul prepara tranquilamente a sandes na cozinha, enquanto ouvimos, em off, os diferentes sons provenientes da sala: o som dos gemidos e gritos de Anna e Georg, os diferentes ruídos que resultam da luta entre o casal e o Peter e o som ininterrupto da corrida de carros na televisão que é acompanhada pela voz de um comentador. Depois de Paul preparar a sandes, a imagem corta para o plano em que se vê a televisão coberta de sangue. Entre os fios de sangue que escorrem pelo ecrã da televisão, vê-se a corrida de carros, ao mesmo tempo que se ouve o som dos motores dos carros e a voz do comentador da corrida. A esse som sobrepõe-se o diálogo em off entre Paul e Peter que discutem as regras do jogo, ou seja, sobre quem Peter, de facto, deveria ter disparado. A sobreposição de vozes e sons cria uma enorme cacofonia e o diálogo entre Paul e Peter é desconcertante face ao que acaba de acontecer no interior da sala.

No seguimento deste diálogo em off, ouvimos os jovens rapazes a despedirem-se cordealmente de Anna e Georg. Corte para um longo plano fixo em que vê Anna sentada no sofá com as mãos amarradas atrás das costas, o filho morto perto da televisão e os pés do marido no quadrante inferior esquerdo (Figura 7).

Figura 7 - Fotograma do filme Brincadeiras Perigosas (1997), de Michael Haneke.

Anna fica em silêncio e imóvel durante mais de um minuto. Neste cena, tudo é paralisante excepto as imagens da corrida de carros que continuam a passar ininterruptamente no ecrã da televisão e o ruído ensurdecedor dessa corrida que torna esta cena ainda mais brutal.

A despedida de Paul e Peter e a possibilidade de Anna ir procurar auxílio dá-nos a esperança que, finalmente, o tormento chegou ao fim. Mas tal não acontece: é o momento em que observamos a bola de golfe a rolar pelo chão através de um POV de Georg. Paul e Peter regressaram à casa da família Schober e fazem-se acompanhar por Anna que está amarrada e amordaçada. Com este regresso, os rapazes lembram o espectador que o que viu até aqui “não chega” porque, segundo Paul: “Ainda não é uma longa-metragem” e porque o que foi visto não se coaduna com um “final real, com um desfecho plausível”. Eis que começam novamente os jogos psicológicos e a escalada da violência. Desta vez, Anna é obrigada a escolher entre a faca ou a arma de fogo, para matar o marido. Surge então outra cena que queremos analisar: a cena em que Anna pega na arma de forgo e mata Peter (a única personagem que o espectador vê a morrer no filme) e a rapidez com que Paul pega no controlo remoto para salvar Peter (Figura 8).

Figura 8 - Fotograma do filme Brincadeiras Perigosas (1997), de Michael Haneke.

Para analisarmos esta cena interessa-nos, sobretudo, a definição de poder de Jouvenel (apud Arendt, 2014: 42), a ideia de “Comandar e ser obedecido – sem isso não há Poder (...)”. Se até aqui, Paul e Peter têm o total controlo e comando das situações, dos jogos e dos próprios reféns, nesta cena, Paul perde o comando da situação no momento em que Anna pega na arma de fogo e mata Peter. Todavia, rapidamente Paul retoma o controlo da situação: pega no controlo remoto, faz rewing e altera a rumo da acção. Através deste rewind regressamos ao momento em que Peter está vivo. Esta cena, mostra-nos, por um lado, a fragilidade do poder que se traduz na imprevisibilidade e na facilidade com que se perde o poder (esta ideia remete-nos à tragédia grega, a ideia de altitude e queda das grandes personagens trágicas). Veja-se a forma inesperada de como Anna altera o rumo dos acontecimentos, em que assume o comando da situação, numa lógica de sobrevivência. Por outro lado, esta cena mostra-nos também a facilidade de como Paul reverte o rumo dos acontecimentos, ao pegar no controlo remoto para fazer rewind, retomando, assim, o comando da situação, submetendo novamente Anna aos seus jogos sádicos e à sua violência psicológica.

Conclusão

Temos observado até aqui algumas estratégias utilizadas por Michael Haneke na representação da violência nos filmes Benny’s Video (1992) e Brincadeiras Perigosas (1997). Analisámos alguns exemplos de como Haneke coloca o espectador diante da violência representada na imagem: a matança do porco e a forma como esta acção é central no quadro representacional, em Benny’s Video; o disparo realizado por Anna sobre Peter, apesar da tentativa de Paul em salvar Peter através do rewind accionado pelo controlo remoto, em Brincadeiras Perigosas (1997).

Também tivemos a oportunidade de observar outras estratégias utilizadas por Haneke na representação da violência nos filmes estudados que poupam, de certa forma, o espectador ao espectáculo gratuito da violência no plano da imagem tal como, por exemplo: as imagens da viagem da mãe e do filho ao Egipto omitem a violência do pai que desmembra e oculta o corpo da rapariga assassinada, em Benny’s Video. Se este exemplo mosta como Haneke priva o espectador da representação da violência no plano da imagem, tal não acontece no plano do som em outros exemplos analisados. Neste ponto, observámos a relação que se estabelece entre o campo e o fora-de-campo e a utilização do som para representar a violência física e psicológica que está, muitas vezes, ausente na imagem, ou seja, observámos como o som povoa o imaginário do não visto. Dito de outro modo, embora a representação da violência seja, de certa forma, bloqueada no plano da imagem, este bloqueio não nos priva da violência que povoa o fora de campo, na medida em que o som estimula-nos a imaginar a violência que está para lá do quadro representacional: o som da agonia da rapariga no fora-de-campo, em Benny’s Video; o ganir do cão no momento da morte, enquanto vemos imagens da casa da família Schober, em Brincadeiras Perigosas; a cacofonia envolta dos instantes em que o pequeno Schorschi e o pai são assassinados, em Brincadeiras Perigosas.

Visto isto, podemos concluir que na maior parte das cenas analisadas, o espectador é, de certa forma, poupado à representação da violência no plano da imagem, contudo, tal não acontece no plano do som. Na medida em que o som estimula a imaginação do espectador em relação ao não visto, quais serão, de facto, os limites da representação da violência nos filmes Benny’s Video e Brincadeiras Perigosas?

Bibliografia

Arendt, Hannah. 2014. Sobre a Violência, Lisboa: Relógio D’Água.

Aumont, Jacques and Marie, Michel. 2009. Dicionário teórico e crítico do cinema, Lisboa: Edições Texto & Grafia.

Deleuze, Gilles. 2006. A Imagem-Tempo, Lisboa: Assírio e Alvim.

Price, Brian e Rhodes, John David, org. 2010. On Michael Haneke, Detroit: Wayne State University Press.

Filmografia

Haneke, Michael. 2007. Benny’s Video, Alemanha: Alamode Film. DVD

Haneke, Michael. 2008. Funny Gammes, Alemanha: Warner Home Video. DVD