Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

The experience of inclusion: the first selection process for feature film with quotas of gender and race of the Brazilian National Film Agency

A experiência da inclusão: o primeiro edital de longa-metragem com cotas de gênero e raça na Agência Nacional do Cinema do Brasil

Angélica Marques Coutinho

Faculdade Hélio Alonso, Brasil

Abstract

In March 2018, the Brazilian National Film Agency - ANCINE announces a call for the financing of featurelength films with an originality: quotas for cisgender or transsexual/transvestite women directors and black or indigenous people. In addition to the traditional regional quotas providing for 30% of the financial resources for the North, Northeast and Central-West regions and 10% for the South region and the state of Espírito Santo, it was included the participation of minority groups in a national call for production support through resources from the Audiovisual Sectorial Fund - FSA, a modality of direct investment. The income of this national fund is delivered via CONDECINE - Contribution for the Development of the National Film Industry, a tax paid by several Brazilian audiovisual sectors whose application is exclusive in the market. That’s why currently it is said that the incoming resources of FSA are self-generated. The call for production support in question presented resources of 100 million reais divided into two modalities: one focused on fiction, documentary and animation feature-length films, without distinction of commercial or artistic objectives; and another focused on feature length fiction, documentary and animation films with an emphasis on an authorial profile and evident artistic purposes. Within the total, a minimum of 45% were directed to quotas. The purpose of this communication is to present the process that led to the decision to include quotas registered from the registration in the minutes of the Management Committee of the Audiovisual Sectorial Fund meetings; the selection’s criteria of projects based on the public call for selective subsidies; and the results achieved. The results will be analyzed not only from the perspective of final approval, but also by evaluating the current state of the films. The assessment gains importance not only from the point of view of the unprecedentedness - it was the first time in 10 years of the FSA operation in which minority quotas were considered - but also from the current political situation in Brazil in which the inclusion agenda is questioned.

Keywords: Audiovisual, Brazilian Market, Public Policies, Gender Quotas, Race Quotas

Introdução

A Agência Nacional do Cinema é uma autarquia do governo brasileiro responsável pelo fomento e regulação do setor audiovisual. Criada em setembro de 2001, ela foi durante a maior parte de sua existência administrada por representantes do Partido Comunista do Brasil - PC do B - alinhados às gestões petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2016). No entanto, as agências reguladoras, criadas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tinham por princípio ter independência administrativa e decisória sendo órgãos de Estado e não de governo e, assim, garantir segurança regulatória aos setores da economia. Em um país relacional como o Brasil, tal objetivo parece ilusório. E é. E foi. E tem sido.

Em relação à ANCINE, a situação ficou evidente quando Manoel Rangel, diretor-presidente por dois mandatos, através de uma brecha jurídica, conseguiu manter-se para um terceiro período de gestão com prazo definitivo em 2017. O problema se deu quando houve o impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016. A posse do vice-presidente Michel Temer mudou a correlação de forças políticas e empresariais do setor audiovisual. Cabia ao novo Presidente da República indicar o substituto de Rangel na presidência da Agência. Na ocasião, a diretora Débora Ivanov assumiu interinamente o cargo, mas a intenção do presidente Michel Temer era romper o ciclo gestor do PT-PC do B ao qual Débora se alinhava.

Apesar de todas as pressões dos grupos de esquerda hegemônicos na área cultural, Ivanov não foi confirmada como diretora-presidente e, pela indicação do então Ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão, o produtor audiovisual e executivo do mercado Christian de Castro, então diretor da ANCINE desde outubro de 2017, foi confirmado na presidência em janeiro de 2018. A gestão de Castro representou uma quebra de paradigmas implicando em diversas mudanças – inclusive a inédita inclusão de cotas –, no entanto, o diretor-presidente foi afastado ano e oito meses após a posse. Por tratar-se de tema extenso, a gestão Castro será objeto de pesquisa de pós-doutorado a ser realizada a partir deste ano no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Contudo, é essa Agência, em seu perfil dúbio entre o fomento e a regulação, que administra como Secretaria-Executiva o Fundo Setorial do Audiovisual, responsável pelos milhões de reais investidos no setor anualmente. E a pior consequência da falta de independência da ANCINE em relação à gestão governamental foi que, com a posse do Presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2019, cujo discurso em relação à cultura foi sempre negativo e persecutório, as ações de fomento ao audiovisual foram suspensas. O último edital amplo lançado foi, ainda na gestão de Castro, em janeiro de 2019: Coprodução Internacional, que também trouxe o ineditismo de contemplar o mercado de televisão. Depois, apenas em 30 de dezembro de 2021, houve o lançamento de edital de fomento com recursos para a complementação de orçamentos e comercialização. Editais de fomento para novos projetos voltaram a ser lançados em 25 de janeiro de 2022 sem contemplar cotas de gênero e raça.

O FUNDO SETORIAL DO AUDIOVISUAL

A estrutura de governança do Fundo Setorial do Audiovisual é basicamente formada pela ANCINE, como Secretaria Executiva, operadora das decisões tomadas no âmbito do Comitê Gestor do FSA, compostos por membros do governo e representantes do mercado audiovisual. Na ponta, os bancos gerem recursos e contratos com os agentes de mercado, responsabilizando-se por liberar o dinheiro e acompanhar o retorno financeiro dos investimentos, casos nos quais nossa análise se concentrará, uma vez que a maior parte dos recursos é nessa modalidade.

O FSA é composto por recursos advindos prioritariamente da CONDECINE – Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica instituída pela Medida Provisória 2.228/2001, a mesma que criou a ANCINE. Trata-se de um tipo de tributo especial definido como CIDE – Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico. Esta difere-se do imposto por ter natureza extrafiscal e arrecadação vinculada. Ou seja, no caso do setor audiovisual, é por ele arrecadado e nele deve ser aplicado.

Há três tipos de CONDECINE: título, remessa e teles. A primeira incide sobre a exploração comercial de obras audiovisuais e varia conforme o tipo de obra – publicitária ou não-publicitária – entre outras variáveis. A segunda incide sobre a remessa ao exterior de importâncias relativas a rendimentos decorrentes da exploração de obras audiovisuais. Já a Condecine-Teles é paga pelas empresas de telecomunicações que se utilizem de meios distribuidores de conteúdos audiovisuais.

A Condecine-Teles é a mais jovem das três e foi instituída pela Lei 12.485/2011 e se constituiu em uma grande revolução no mercado audiovisual em função do volume de recursos que ficaram disponíveis para o investimento no setor, como se pode verificar na tabela abaixo.

Modalidade
Ano Condecine - Títulos Condecine - Remessa Condecine - Teles Total
2002 5.512.807,84 799.805,34 - 6.312.613,18
2003 19.459.729,27 68.702,94 - 19.528.432,21
2004 26.634.567,31 366.293,62 - 27.000.860,93
2005 35.625.677,56 496.668,14 - 36.122.345,70
2006 33.245.358,18 660.981,95 - 33.906.340,13
2007 38.207.504,69 1.194.794,99 - 39.402.299,68
2008 43.409.149,39 2.072.792,07 - 45.481.941,46
2009 38.927.392,84 6.558.173,20 - 45.485.566,04
2010 47.740.360,11 1.828.146,03 - 49.568.506,14
2011 53.084.458,75 1.539.104,05 - 54.623.562,80
2012 80.720.643,35 6.247.615,14 819.589.756,34 906.558.014,83
2013 105.195.977,86 13.687.156,23 889.452.525,58 1.008.335.659,66
2014 93.577.722,24 11.541.681,49 877.845.199,28 982.964.603,01
2015 102.177.958,48 12.073.249,53 949,951 ,083,63 1.064.202.291,64
2016 109.744.704,37 12.499.500,98 1.097.515.970,82 1.219.760.226,17
2017 92.949.922,92 16.325.889,05 1.023.613.770,88 1.132.889.582,85
Total acumulado 926.213.935,16 87.960.604,73 5.657.968.306,52 6.672.142.846,42

Figura 1 – Arrecadação de CONDECINE. Fonte: site ANCINE.

No entanto, como explica Roberto Moreira, em sua tese de livre-docência apresentada na Universidade de São Paulo, em 2018, o tributo recolhido ao Tesouro Nacional sofre vários descontos.

Primeiro, a Desvinculação das Receitas da União (DRU) permite ao governo utilizar parte dos recursos para outros fins, depois, na elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA), outra parcela é contingenciada. É importante entender que esses recursos passam pelo Tesouro, depois pelo Fundo Nacional de Cultura e finalmente chegam ao FSA. Não é um caminho direto e tanto o Congresso como a Fazenda ou o Ministério da Cultura podem dispor dos recursos. Por fim, o empenhado é aquilo que de fato chega ao FSA, o repassado é o valor total dos editais publicados e o desembolsado é o que foi depositado nas contas das produtoras. É claro que ao longo do tempo todo o empenhado será desembolsado, mas sempre há uma defasagem temporal, devido ao processo de escolha dos projetos e a demora na contração. No entanto, o FSA aumentou de modo significativo o volume de recursos destinado ao audiovisual, acabando com o problema da baixa disponibilidade de capitais. (MOREIRA: 2018, 124)

É o mesmo Moreira quem aponta para a distorção na aplicação de recursos públicos com mediação de processos seletivos coordenados pelo estado que não atendem às demandas do público, mas apenas às necessidades de produção simbólica das elites culturais reforçando o processo de concentração de renda e conclui: “Os recursos de um tributo que alcança um amplo segmento da sociedade brasileira (CONDECINE) são destinados a fundo perdido e sem obrigação de retorno social, a um grupo privilegiado” (MOREIRA: 2018, 134).

Neste ponto, fica clara a importância de se analisar os processos seletivos e de investimentos dos recursos públicos de forma que atendam à sociedade. E, portanto, a inclusão de cotas de gênero e raça responde a essa necessidade.

O PROCESSO SELETIVO NO CONCURSO PARA LONGA-METRAGEM

Os editais de concurso para o fomento de longa-metragem são os mais tradicionais do FSA desde que o fundo foi criado pela Lei 11.437, de 28 de dezembro de 2006, e regulamentado pelo Decreto 6.299, em 12 de dezembro de 2007. A definição do arcabouço jurídico permitiu que em dezembro de 2008, a ANCINE em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP, como agente financeiro, lançasse a primeira linha de investimento em longas-metragens com duas modalidades: complementação e aporte de recursos (first money) nomeado PRODECINE 01.

Até 2013, não foi incluído em nenhum dos editais - 2008, 2009, 2010, 2012 - qualquer tipo de indutor através de cotas ainda que desde 2011 tivesse sido incluído na Lei 11.437 a obrigatoriedade de destinação de um percentual específico dos recursos para estados fora do eixo Rio-São Paulo, a saber:

I - no mínimo, 30% (trinta por cento) deverão ser destinadas a produtoras brasileiras estabelecidas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, nos critérios e condições estabelecidos pela Agência Nacional do Cinema - Ancine, que deverão incluir, entre outros, o local da produção da obra audiovisual, a residência de artistas e técnicos envolvidos na produção e a contratação, na região, de serviços técnicos a ela vinculados; (Incluído pela Lei nº 12.485, de 2011).

Note-se, ainda, que em 2011, não houve lançamento de PRODECINE 01, pois coincide com a mudança de agente financeiro do FSA: a FINEP deixa de operar os recursos e o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul - BRDE assume a função.

Os editais lançados pela ANCINE em 2013 passam a ser elaborados sob a luz do recém criado Regulamento Geral do PRODAV, uma série de regramentos que estabelecem diretrizes e condições para aplicação de recursos do FSA nas ações do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria Audiovisual – PRODAV, instituído pelo artigo 4º da Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006. Os parâmetros legais que balizaram a criação do RG-PRODAV foram: Comunicação audiovisual de acesso condicionado (art. 4º da Lei nº 12.485/11); Política nacional do cinema (art. 2º da Medida Provisória nº 2.228-1/01); e Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO (Decreto nº 6.177/07). O último ponto - a convenção da UNESCO - justifica o início do cumprimento da exigência de cotas regionais que ainda foram ampliadas.

Se a previsão legal era atender através de cotas os estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o edital também trouxe a possibilidade de inclusão de produtoras estabelecidas fora do eixo RJ-SP: estados do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. No entanto, o cumprimento das cotas não está baseado em percentual sobre os recursos financeiros disponibilizados no edital - 30 milhões de reais - mas em número de projetos serem convocados para defesa oral, última etapa da seleção, como vemos abaixo no edital PRODECINE 01/2013:

6.9.1. Serão convocadas para Defesa Oral:

Contudo, antes de chegar à etapa da Defesa Oral - pitching - junto aos membros do Comitê de Investimento do FSA composto por representantes do agente financeiro e servidores da ANCINE, os projetos passam por duas etapas anteriores: habilitação - quando se verifica as condições legais de participar no certame - e seleção - quando os projetos são analisados sob a luz de critérios específicos.

QUESITOS PESO
1. Aspectos artísticos e adequação ao pública 35%
1.1 Abrangência do tema comunicabilidade e adequação da proposta ao público 15%
1.2 Estrutura dramática e construção dos personagens (ficção e animação) ou pequisa e conceito (no caso de documentários) 20%
2. Qualificação técnica do roteirista e do diretor 15%
2.1 Experiência e desempenho pregresso do roteirista (no caso de documentários, o peso do roteirista será incorporado á nota atribuída ao quesito do diretor) 5%
2.2 Experiência e desempenho pregresso do diretor 10%
3. Capacidade gerencial e desempenho da produtora/grupo econômico 20%
3.1 Capacidade gerencial da produtora/grupo econômico 5%
3.2 Desempenho comercial das obras produzidas pela produtora/grupo econômico 10%
3.3 Participações e premiações em festivais e congêneres 5%
4. Planejamento e adequação do plano de negócios 30%
4.1 Capacidade de viabilizar o plano de financiamento 5%
4.2 Capacidade e desempenho da distribuidora e seus sócios 5%
4.3 Consistência da estruturação financeira e da expectativa de resultado 20%
Total 100,0%

Figura 2 - Edital PRODECINE 01/2013

Cada projeto passava pela análise de três profissionais: dois representantes do mercado audiovisual - que se limitavam ao quesito 1 - e um servidor da ANCINE, responsável pela análise dos quatro quesitos a partir das informações apresentadas pelos proponentes na inscrição.

A metodologia utilizada para a análise dos projetos, em particular no que diz respeito ao currículo dos profissionais (quesito 2) e a capacidade gerencial e desempenho da produtora (quesito 3), baseando-se somente nos dados apresentados na inscrição apontava para a possibilidade de distorções.

Havia dois eixos no procedimento:

  1. analisar e aceitar exclusivamente o declarado;
  2. checar as informações declaradas em relato ao disponível na Internet.

Ou seja, não havia uma base formal e comprovada para comparar a performance dos profissionais e produtoras. Apesar disso, a ANCINE, no seu perfil regulador, detém informações sobre os quesitos 2 e 3 que, até 2018, não foram usadas como parte do processo de seleção nos concursos. Em verdade, uma das falhas da agência foi, ao longo dos anos, não trabalhar o grande volume de dados fornecidos cotidianamente pelos agentes de mercado nos processos de registros das empresas e de suas obras. Contudo, a questão específica da análise de projetos é outra parte da pesquisa a ser realizada.

Voltando à questão dos mecanismos de indução através de cotas, observamos que, a partir de 2016, o edital PRODECINE 01 passa a definir o investimento financeiro em projetos cumprindo a regra de aplicar um percentual específico para projetos fora do eixo RJ-SP.

Uma das externalidades positivas do grande afluxo de recursos para o audiovisual e da ampliação de linhas de investimento no setor, a partir de 2013 - quando também foram criadas linhas de desenvolvimento de projetos - é que houve um amadurecimento do mercados e a ampla inclusão de novos players. O que possibilitou tal crescimento foi o aumento exponencial de recursos a partir da implantação da Condecine-Teles, como vimos na Figura 1.

O amadurecimento refletiu-se na organização de entidades dispostas a reivindicar sua participação prevista em lei nos recursos. Surge, portanto, em 2017, a CONNE - Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste - e a FAMES - Fórum Audiovisual Minas, Espírito Santo e Sul. Por outro lado, ainda que disperso, o debate sobre a necessidade de cotas de gênero e raça fazia-se presente na sociedade.

A INCLUSÃO DE GÊNERO E RAÇA COMO PAUTA

O ano de 2017, com as implicações políticas de um ano de transição na ANCINE e pós-impeachment da Presidente Rousseff, reduziu substancialmente o número de editais lançados. O PRODECINE 01, edital em pauta, não teve Chamada Pública.

Neste ponto, é importante também lembrar que, desde 2013, havia sido criada uma linha específica para longas-metragens de perfil não prioritariamente comercial: PRODECINE 05, definindo seu objeto como:

Projetos de produção independente de obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem de ficção, documentário ou de animação, com destinação e exibição inicial no mercado de salas de exibição, destinada prioritariamente a projetos de longa-metragem com propostas de linguagem inovadora e relevância artística.

Trata-se de uma linha fundamental, uma vez que observou-se que muitos projetos com perfil inovador e produtoras menos comerciais eram prejudicadas em uma seleção ampla com vistas ao investimento com busca de retorno financeiro.

No 2017, com os dois perfis - PRODECINE 01 e PRODECINE 05 - sedimentados e com o amplo debate de inclusão na sociedade, é criado na ANCINE, em novembro, a Comissão de Gênero, Raça e Diversidade com as seguintes competências:

Pouco menos de dois meses depois, Christian de Castro é confirmado como diretor-presidente da ANCINE implantando uma mudança fundamental na administração da agência: são indicados para os cargos gerenciais mais de 90% de servidores concursados. O reflexo imediato da decisão foi a participação efetiva de técnicos nas discussões das políticas públicas. Além disso, houve a abertura das reuniões do Comitê Gestor do FSA para membros externos a fim de que houvesse um maior debate na sociedade sobre as pautas de investimentos dos recursos.

O debate sobre os editais de concurso para longa-metragem já havia sido iniciado na última reunião do CGFSA em 11 de dezembro de 2017, ainda sob a gestão interina de Débora Ivanov, mas já sob o governo Michel Temer com Sérgio Sá Leitão no Ministério da Cultura. No anexo II da ata da reunião, apresenta-se a decisão de reunir os antigos PRODECINE 01 e PRODECINE 05 em um único edital dividido em duas modalidades com um investimento global de 100 milhões de reais. A modalidade A com o perfil mais comercial do antigo PRODECINE 01 e a Modalidade B com o perfil mais artístico do antigo PRODECINE 05.

Em 26 de janeiro de 2018, realizou-se a primeira reunião do CGFSA sob a gestão de Castro. A decisão de lançar um único edital de concurso de longa-metragem com duas modalidades é mantida, no entanto, uma modificação fundamental se fez presente. A fim de agilizar o processo de seleção - que anteriormente levava, no mínimo, 12 meses para apresentar os resultados - definiu-se que a análise de mérito do projetos - quesito artístico - seria exclusiva de dois pareceristas externos ficando os servidores da ANCINE como responsáveis pela habilitação e pontuação dos quesitos relacionados à performance das produtoras. Ainda definia-se uma prazo de sete meses para a publicação do resultado final, excluindo a necessidade de defesa oral diante do Comitê de Investimento.

A ata da 43a. reunião do CGFSA registra, na página 11, que o diretor-presidente Christian de Castro propôs a inclusão de cotas de gênero de raça no edital de concurso tomando por base um estudo da ANCINE que evidenciava um desequilíbrio em termos de diversidade e que os editais da Secretaria do Audiovisual já haviam incluído cotas. Os membros do Comitê decidiram encaminhar a discussão ao Conselho Superior de Cinema adiando a decisão, no entanto, acatou-se a proposta de receber na reunião seguinte o Comitê de Diversidade da agência para proposição de futuras ações. O registro da ata demonstra uma certa resistência em aplicar imediatamente as cotas de gênero e raça no concurso.

No entanto, a ata da 44a. reunião demonstra um avanço significativo na questão.

(…) foi retomada a proposta de inclusão de cotas de diversidade de gênero e raça. Após diversas discussões, foi aprovada por maioria de votos, sendo registrada abstenção da representante da Casa Civil Fabiana Cardoso Martins de Souza, que julgou conveniente aguardar a posição do Conselho Superior de Cinema e ponderou que a proposta não foi apresentada com antecedência suficiente para a devida análise, a inclusão das seguintes cotas:

Apesar do edital já ter sido lançado alguns dias antes - em 19 de março - e com inscrições abertas em 20 de março, foi feita uma retificação, publicada em 3 de abril, ampliando o prazo de inscrição de projetos e, na cláusula referente a cotas, além das tradicionais cotas regionais, a diversidade com os seguintes percentuais:

É importante sinalizar, ainda, que a capacidade gerencial e desempenho comercial das empresas, assim como desempenho dos diretores, passou a ter como parâmetros os dados registrados na agência. Tal decisão foi fundamental para agilizar o processo de entrega de resultados. Com a inscrição final de projetos em 14 de maio, o concurso publicou o resultado final dos contemplados nas duas modalidades em 10 de outubro de 2018.

SOBRE OS RESULTADOS

O novo modelo de concurso acelerou a seleção dos projetos do FSA registrando o impacto positivo de, na primeira etapa do edital, ter excluído a análise de mérito interna dos projetos, liberando os servidores da ANCINE para outras atividades do processo seletivo, incluindo a pontuação dos demais quesitos. Cada projeto teve seu roteiro avaliado por dois profissionais independentes, como assinalamos anteriormente, com experiência no mercado audiovisual, selecionados pelo Edital de Credenciamento de Pareceristas.

O impacto direto da alteração do processo seletivo foi o resultado apresentado em um prazo bastante inferior aos verificados nas Chamadas PRODECINE 01, mesmo com um número o alto número de inscritos: de, no mínimo 14 meses entre o lançamento do edital e o resultado, para seis meses, menor ainda do que nos sete meses acordado na Ata do CGFSA da janeiro de 2018.

Antes de 2018, o último edital de concurso para longa-metragem, o PRODECINE 01/2016 teve 321 projetos inscritos e o PRODECINE 05/2016 teve 343 inscritos totalizando 664 projetos. Já o concurso de 2018 somou 874 inscritos, ou seja, 210 projetos a mais. Mesmo assim, a entrega de resultados foi mais rápida. Quando se compara o número de projetos processados por dia apenas do edital PRODECINE 01/2016, a evolução é mais clara: passou de 0,7 em 2016 para 4,1 no Edital Concurso para Cinema 2018.

O primeiro edital de concurso de longa-metragem com cotas de gênero e raça desde sua nova metodologia de avaliação acelerando a entrega de resultados até o cumprimento das cotas propostas revelou-se um acerto.

Na modalidade B, de viés artístico, os projetos com direção de mulheres e negros ficaram acima da cotas estabelecidas. No caso das cotas para projetos dirigidos por mulheres cisgênero ou transexuais/travestis, foram contemplados oito do total de 20 projetos. Em termos de orçamento, um percentual de 44,5% do orçamento total, quase 10 pontos percentuais acima da cota mínima prevista de 35%.

O desempenho na cota racial também foi positivo. Do mínimo de 10% dos recursos disponíveis para diretores pretos e pardos ou indígenas, foram contemplados cinco dos 20 projetos totais atingindo 26,4% do orçamento geral, mais que o dobro do prevista.

Na modalidade A, de perfil comercial, houve demanda para o cumprimento de cotas para mulheres diretoras, cujos nove projetos representaram exatamente 35% do orçamento total. Contudo, não houve demanda de projetos suficientes para o cumprimento das cotas de diretores negros: o resultado ficou restrito a um filme, 2,5% do orçamento geral.

Em relação às cotas regionais, na Modalidade B, tanto CONNE quanto FAMES cumpriram o previsto: 33% e 24,4%, respectivamente. Na modalidade A, apenas os estados do FAMES atingiram o previsto: com uma demanda de 20,3% dos recursos (dois projetos). Não houve demanda de projetos para o cumprimento da cota dos estados do CONNE. Os projetos selecionados atingiram 25% dos recursos orçamentários totais.

Mesmo assim, é significativa a desconcentração dos recursos do ponto de vista da regionalização da produção no país. Produtoras do CONNE receberam R$ 15 milhões na Modalidade A e R$ 13,2 milhões na Modalidade B (com seis projetos em cada uma) somando R$ 28,2 milhões. Já as produtoras do FAMES receberam R$ 12,2 milhões na modalidade A (três projetos) e 9,7 milhões na modalidade B (cinco projetos): total de R$ 21,9 milhões. Ou seja, as produtoras fora do eixo Rio-São Paulo receberam R$ 50,2 milhões. Com isso, as produtoras do eixo RJ-SP receberam investimentos de R$ 49,7 milhões (em 22 projetos). Em suma, as produtoras fora do eixo Rio-SP receberam mais da metade dos R$ 100 milhões disponíveis para a chamada.

Os dados em relação à classificação das empresas revelaram um resultado contrário às críticas sobre um possível caráter concentrador de recursos do edital: 30 empresas contempladas foram classificadas nos níveis 1, 2 e 3. Apenas 12 produtoras contempladas são classificadas na ANCINE como de maior porte nos níveis 4 e 5. Na modalidade B, 15 das 20 produtoras contempladas têm classificação até o nível 3.

Em relação às cotas regionais e raciais, os recursos foram distribuídos como que vemos abaixo, considerando que um projeto pode cumprir mais de uma cota.

Modalidade A – R$ 60 milhões

CONNE – R$15.025.904,00

FAMES – R$12.200.000,00

Cotas de gênero: R$21.001.588,35

Cotas de raça: R$1.500.000,00

Modalidade B – R$ 40 milhões

CONNE – R$13.234.397,88

FAMES – R$9.758.790.81

Cotas de gênero: R$17.804.058,50

Cotas de raça: R$10.575.087,81

CONCLUSÃO

Apesar de todo o embate político e das narrativas construídas em torno da gestão Castro na ANCINE, o que podemos observar nos números apresentados é que as decisões tomadas com base prioritariamente técnica implicou em uma mudança significativa no processo de investimento de recursos públicos no setor audiovisual.

É preciso também assinalar que, além das cotas de gênero e raça aplicadas em relação aos responsáveis pelos projetos inscritos, a comissão final - última etapa do processo de seleção - também contemplou uma participação centrada na diversidade com a maioria dos pareceristas mulheres e com representação de raça e regional.

Sobre o levantamento do lançamento dos filmes contemplados no edital Concurso Cinema 2018, ainda não é possível obter resultados. Tendo sido selecionados em outubro de 2018, a maioria dos filmes foi impactada pela mudança do governo em 2019, o afastamento Christian de Castro e o estrangulamento financeiro do setor.

Bibliografia

MOREIRA, Roberto Franco. Cinema em flashes: Dramaturgia e economia da produção audiovisual / Roberto Franco Moreira. -- São Paulo, 2018. 151 p.: il. Livre-docência - Escola de Comunicação e Artes/Universidade de São Paulo.

Atas do Comitê Gestor do FSA

https://www.gov.br/ancine/pt-br/fsa/normas/atas-das reunioes-do-cgfsa/ata_cgfsa_2017_41.pdf

https://www.gov.br/ancine/pt-br/fsa/normas/atas-das reunioes-do-cgfsa/ata_cgfsa_2018_42.pdf

https://www.gov.br/ancine/pt-br/fsa/normas/atas-das reunioes-do-cgfsa/ata_cgfsa_2018_43.pdf

https://www.gov.br/ancine/pt-br/fsa/normas/atas-das reunioes-do-cgfsa/ata_cgfsa_2018_44.pdf

https://www.gov.br/ancine/pt-br/fsa/normas/atas-das reunioes-do-cgfsa/ata_cgfsa_2018_45.pdf

Editais públicos

https://www.brde.com.br/wp-content/uploads/2015/12/ PRODECINE-01-2013_Edital_PRODECINE-01-2013_ Consolidado.pdf

https://www.brde.com.br/wp-content/ uploads/2016/11/Edital_PRODECINE-01-2016_ Retifica%C3%A7%C3%A3o01.pdf

https://www.brde.com.br/wp-content/uploads/2018/07/CHAMADA-PUBLICA-CONCURSO PRODUCAO-CINEMA-2018-VERS%C3%83O RETIFICA%C3%87%C3%83O-02_PARA PUBLICA%C3%87%C3%83O-04-07-18.pdf

https://www.brde.com.br/chamadas-publicas/

Resultados do Concurso 2018

https://www.brde.com.br/chamada-publica-brde-fsa concurso-producao-para-cinema-2018/

https://www.brde.com.br/wp-content/uploads/2018/10/ Ata-final-de-Sele%C3%A7%C3%A3o-MODALIDADE-A.pdf

https://www.brde.com.br/wp-content/uploads/2018/10/ Ata-final-de-Sele%C3%A7%C3%A3o-MODALIDADE-B.pdf