Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

The construction of the feminine in the audiovisual The hours

A construção do feminino no audiovisual As Horas

Cassia Cassitas

Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil

Abstract

This study investigates the influence of reading the novel (Mrs Dalloway 1925) on the construction of the feminine identity in the audiovisual (The hours 2002). The author of the novel, a reader, and the protagonist of the book Mrs. Dalloway, signed by Virginia Woolf, share the guiding line of the novel The hours written by Michael Cunningham (1998 USA) and echo the concerns of three women, living in different generations, in the 114-minutes audiovisual. How does the memory regarding the feminine character during the first decades of the XX century, as described by Virginia Woolf, sustain the cinematographic narrative? Sergei Eisenstein’s texts will guide the re-reading of cinematographic foundations regarding the intellectual montage used in the construction of the feminine. To what extent does the use of intertextuality and polyphony contribute to the elaboration of the protagonists’ cultural transformations over time? Issues related to intertextual polyphonic imagery will be based on Julia Kristeva’s and Mikhail Bakhtin’s works. The methodological approach will be the film analysis, with special attention given to the construction of the feminine identity in The hours. The theoretical fundamentals will be provided by Gilles Deleuze and Felix Guattari texts. This analysis intends to elucidate how the approach adopted by Stephen Daldry culminates in: an ending for Virginia Woolf, a path for Laura Brown and a new beginning for Mrs.Dalloway.

Keywords: Mrs. Dalloway, The hours, Deleuze, Eisenstein, Virginia Woolf.

Introdução

O audiovisual As Horas, corpus desse estudo, se baseia na obra literária homônima de Michael Cunningham. Autora do romance, leitora e protagonista do livro Mrs. Dalloway, assinada por Virginia Woolf, ecoam as inquietações de três mulheres, vivendo em diferentes gerações, no audiovisual de 114 minutos. A pedra fundamental em torno da qual se desenrola a narrativa é a combinação entre o pensamento e o comportamento da escritora Virgínia Woolf, prestes a cometer suicídio.

Sergei Eisenstein afirma que “apenas o elemento cinematográfico domina um meio capaz de fazer uma adequada apresentação de todo o curso de pensamento de uma mente perturbada” (2002a, 104). Ele entende que “tanto na arte quanto na literatura, a criação ocorre através de várias perspectivas, usadas simultaneamente. A ordem do dia é uma síntese complexa - reunindo visões de um mesmo objeto, tomadas tanto de baixo quanto de cima” (Eisenstein 2002b, 68). Gilles Deleuze e Félix Guattari resgatam essa ideia ao postularem o conceito de platôs como sendo as ocorrências de “uma região [rizomática] contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior (Deleuze 1995, 32). Ao longo do texto, investigar-se-á como a memória da personagem feminina nas primeiras décadas do século XX, tal como descrita por Virginia Woolf, sustenta a narrativa cinematográfica rizomática do feminino. Avançando em direção a aspectos de montagem, os textos de Sergei Eisenstein guiarão a releitura dos fundamentos sobre a composição do material fílmico e da montagem intelectual que, acredita-se, estão presentes no corpus desta análise.

Em que medida o uso da intertextualidade e da polifonia contribuem para a elaboração das transformações culturais dos protagonistas ao longo do tempo? Questões relacionadas ao imaginário polifônico intertextual serão baseadas nas obras de Julia Kristeva e Mikhail Bakhtin. O uso da intertextualidade corrobora o desenvolvimento de decalques do mapa rizomórfico feminino? Os fundamentos teóricos serão fornecidos pelos textos de Deleuze e Guattari.

A abordagem metodológica será a análise fílmica do corpus (As horas, 2002) adotada para a presente investigação. Ao final, esta análise pretende elucidar como a abordagem adotada por Stephen Daldry culmina em: um fim para Virginia Woolf, um caminho para Laura Brown e um novo começo para Mrs. Dalloway.

As Horas

Ela sai apressada de casa, vestida com um casaco pesado demais para a época do ano. (Cunningham 1998, 9)

A partir da frase do prólogo de As Horas ((CUNNINGHAM, EUA, 1998), Daldry constrói a primeira sequência do audiovisual homônimo e introduz o tema recorrente na trajetória das protagonistas: a morte.

A primeira protagonista feminina a surgir nas telas é a escritora britânica Virginia Woolf (Nicole Kidman). Ela está colocando pedras nos bolsos antes de se afogar, após deixar bilhetes sobre a lareira, sair batendo a porta de sua casa situada em uma vila próxima a Londres, e caminhar até o rio Ouse. A cena se passa em 1941.

Em 1951, surge em Los Angeles a segunda protagonista: a leitora Laura Brown (Julianne Moore). Ela não quer se levantar. Deseja ficar ali, lendo o romance Mrs. Dalloway escrito por Virginia Woolf pouco antes de sua morte. Mas ela sabe, é aniversário de seu marido Dan Brown (John C. Reilly) e ele já acordou. Ela pode ouvi-lo na cozinha. Após ler umas poucas páginas, coloca o livro sobre a mesinha de cabeceira e se prepara para ir de encontro a ele. Em poucos minutos, ele sai para trabalhar e ela se volta para o pequeno Richard (Jack Rovello), primogênito do casal. Seu marido leva consigo a gentileza da conversação e o sorriso calculado dos lábios de Laura. Ela olha pela janela, para a escada, e então para o filho. Em seguida, acende um cigarro e o observa entre a fumaça. Enfim, decide que devem preparar um bolo para comemorar o aniversário. Participativo, Richard quer saber por que eles estão fazendo o bolo. “Então papai vai saber que nós o amamos?” ele pergunta. Ela responde que sim. Ele continua: “Ele não vai saber, se não fizermos?” Ela responde que não.

Sally Lester (Allison Janney) não dormiu em casa. Na moderna Nova York de 2001, a terceira protagonista Clarissa Vaughan (Meryl Streep) abre os olhos quando sua companheira Sally se deita a seu lado. Ela se levanta para um longo dia. Ela está planejando uma festa para seu premiado poeta e amigo próximo, Richard Brown (Ed Harris), pois ele receberá um importante prêmio literário pelo conjunto de sua obra. Richard sofre de AIDS há muitos anos. Clarissa é sua editora, ex-amante, e fiel cuidadora. Clarissa vai a seu encontro, após comprar flores e ser observada enquanto caminha. Nova York se revela no movimento de seus passos, o passado a visita no encontro inesperado com um ex-namorado do homenageado. De volta à casa, Clarissa se ocupa dos preparativos, discute com a namorada Sally, explode em um choro convulsivo na cozinha. Sua filha Julia (Claire Danes) aparece para a festa, trazendo à tona a dificuldade de relacionamento entre mãe e filha.

A cena retorna ao Reino Unido e se depara com Virginia em meio à escrita de seu romance. A tela exibe Leonard Woolf (Stephen Dillane) atarefado com equipamentos de impressão. Cuidadoso nos gestos e palavras, em um diálogo com a esposa revela ao espectador que se mudaram de Londres por recomendações médicas. A vida agitada e frenética de Londres parece ter afetado a saúde psicológica de Virginia, pois lá ela costumava ouvir vozes e, por duas vezes, ela tentou cometer suicídio. Naquele dia, eles recebem a visita de Vanessa (Miranda Richardson), irmã de Virgínia, seus filhos Quentin (George Loftus), Julian (CharleyRamm) e a pequena Angelica (Sophie Wyburd). Eles são falantes e cheios de vida, mas a convivência provoca ansiedade em Virginia. As sequências denotam as dificuldades da protagonista de se fazer obedecer em atividades cotidianas como, por exemplo, a organização do almoço. Novamente, a morte toma a cena ao Angélica encontrar um pássaro morto no jardim do casal Woolf. Eles o enterram cerimoniosamente, com ênfase na repercussão emocional de Virginia. No final do dia, Virginia se despede da irmã com um selinho nos lábios, e os quatro visitantes voltam alegremente para Londres. Virgínia e Leonard conversam após o jantar.

O sol de Los Angeles ilumina Kitty (Toni Collette) à porta da residência de Laura. As amigas se cumprimentam, Laura reclama que o bolo não deu certo, Kitty diz não entender o porquê de as pessoas não conseguirem fazer coisas tão simples como assar um bolo. Subitamente, ao se ouvir em voz alta, Kitty admite que as coisas não são como parecem. Ela revela à amiga que está prestes a fazer uma cirurgia. Kitty está gravemente doente, razão pela qual não pode ter filhos. Elas se emocionam e se beijam brevemente, mas no instante seguinte se recompõem como se nada tivesse ocorrido nem sido dito. Quando Kitty sai, Laura joga o primeiro bolo fora e faz um bolo segundo: perfeito. Em seguida, ela deixa o filho aos cuidados de uma senhora sob os protestos desesperados do garoto. Ela dirige pelas ruas, até avistar um hotel onde se hospeda. No quarto, se deita na cama a observar os frascos de remédios que depositou na mesinha de cabeceira, antes de começar a ler seu exemplar de Mrs. Dalloway. Laura adormece durante a leitura, enquanto as águas enchem o quarto até afogá-la sob a cama. O rio lamacento da morte a visita em sonhos. Ao despertar, ela exibe uma imagem decidida. Volta para casa e abraça Richard, sorri no jantar ao lado do filho e do marido. Dan está feliz com seu bolo de aniversário iluminado pelas velas.

A claridade de Nova York encontra Richard sentado à janela. O filho de Laura, agora adulto e apaixonado por Clarissa, decide trocar a festa pelo suicídio. Ele diz a Clarissa que ela foi a única razão pela qual ele tinha que viver, mas que agora ela precisava deixá-lo partir. Ela não pode impedir que Richard se jogue da janela. Profundamente abalada, Clarissa cancela a festa e organiza o funeral. Cabe a ela receber Laura Brown, a “doce velhinha” nas palavras de sua filha, mãe de Richard, que a descrevia como o monstro que os abandonou. Entre xícaras de chá, Laura narra a Clarissa sua trajetória de Los Angeles ao Canadá, onde se tornou bibliotecária. Porém, ela é taxativa: não pretende se desculpar por conquistar uma vida independente. Ela afirma que sua própria dor não importa a ninguém. Richard e sua irmã mais jovem estão mortos, seu falecido marido foi levado pelo câncer. Clarissa a acolhe por uma noite, faz as pazes com Sally, se reaproxima da filha.

Virgínia Woolf altera o final de Mrs. Dalloway. Ela decide que a protagonista não morrerá. Caberá a outro personagem, um poeta, encarar a morte. Leonard a questiona: “Por que alguém tem que morrer, Virgínia?”. Ela decreta: “Para que todos apreciem a vida”. No filme, Virginia tenta fugir para Londres, mas Leonard a resgata na estação de trem. Eles discutem, ele promete: voltarão a Londres em breve. Antes que isso ocorra, Virginia se suicida. O filme termina como começou: com a morte de Virginia Woolf.

O feminino rizomórfico de Daldry

Em processos de adaptação literária para a linguagem cinematográfica, Linda Hutcheon ressalta, se faz necessário estabelecer um diálogo entre as memórias predispostas anteriormente:

Conhecedores ou desconhecedores, experienciamos as adaptações intermidiáticas diferentemente de como as vivenciamos dentro de uma mesma mídia. Mas mesmo no último caso, a adaptação como adaptação envolve, para seu público conhecedor, uma duplicação interpretativa, um movimento conceitual para frente e para trás entre a obra que conhecemos e aquela que estamos experienciando. (Hutcheon 2013, 189)

Na adaptação levada às telas por Stephen Daldry, a montagem apresenta o pensamento de Hutcheon de maneira literal. Separadas pelo tempo, a trajetória de três mulheres ao longo de um dia de suas vidas é exibido paralelamente. O audiovisual (As Horas 2002), entretanto, não se revela uma narrativa clássica, não exibe estratos do livro como traços de subordinação orgânica, significante e subjetiva na construção das protagonistas. As mulheres de Cunningham e Daldry pressentem a multiplicidade aprisionada pelo mundo visto como uma árvore-raiz, cujas possibilidades de combinação são limitadas pela estrutura dependente de uma raiz fundamentadora. Assim, buscam o rompimento do pensamento dominante nas relações biunívocas, nas decisões estruturais sim-ou-não, na lógica binária zero-ou-um da informática. Segundo o conceito de Deleuze e Guattari: “Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação” (Deleuze e Guattari 1995, 10).

Por meio do ofício da escrita, a atitude da personagem Virginia Woolf introduz o que Deleuze e Guattari denominam “raiz-radícula ou fasciculada” (1995, 12), para descrever situações em que parte da raiz se rompeu ou se deteriorou. Se nada for feito, o crescimento estanca. Todavia, a raiz suporta enxertos, assim como a escrita suporta reviravoltas em um processo que não aborta a unidade subsistente da estrutura, mas abre espaço para a multiplicidade prosperar. Em analogia à narrativa fílmica, é possível afirmar que a prática da leitura deflagra, na maneira como é exercida pela personagem Laura Brown, a fragilidade da solução adotada por sua antecessora. A imagem-tempo se estabelece ao exibir no quadro “descrições óticas” (Deleuze 1985, 165) de um ambiente residencial tipicamente americano dos anos 1950, em contraste com a paisagem bucólica nas proximidades de Londres no início do século XX. Diante da perspectiva ampliada sem a binaridade anterior, a personagem não sabe como proceder. O feminino representado pela segunda protagonista vivencia a ausência de um referencial de sustentação do tipo certo-errado: a mãe titubeia, a esposa se torna superficial, a mulher definha. Deleuze e Guattari explicam:

O mundo perdeu seu pivô, o sujeito não pode nem mesmo mais fazer dicotomia, mas acede a uma mais alta unidade, de ambivalência ou de sobredeterminação, numa dimensão sempre suplementar àquela de seu objeto. O mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do mundo, caosmo-radícula, em vez de cosmo-raiz. Estranha mistificação, esta do livro, que é tanto mais total quanto mais fragmentada. (Deleuze e Guattari, 1995, 13)

O contraste fundamental da obra de Daldry está estabelecido. Virgínia expõe literariamente, Laura absorve na qualidade de leitora, e Clarissa, metaforicamente, edita. Enquanto a primeira protagoniza o embate com a doença pela sobrevivência, a segunda avança na direção da autorrealização. Ao despertar na primeira aparição na tela, Clarissa adiciona ao enredo uma nova dimensão. Ela percebe o comportamento da companheira, pressente as atitudes de Richard, lida com as dificuldades da maternidade, desenvolve uma relação empática com Laura. Não se trata de adicionar camadas hierárquicas, mas perspectivas segmentares múltiplas. Entre os preparativos para a festa e o chá após o funeral, ela se mantém em uma posição observadora atenta. A cada movimento, a unicidade de Clarissa se transforma. A mudança é deflagrada por estopins diversos, eliminando características prévias do sistema como um todo em prol do surgimento de uma nova unicidade. Visto dessa forma, Clarissa é o próprio conceito de rizoma definido por Deleuze e Guattari:

Na verdade, não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. (Deleuze e Guattari 1995, 13-14)

Narrativas podem ser rizomórficas, bem como categorias de personagens, na medida em que, contextualizadas, exibem pontos de crescimento da própria multiplicidade, de evasão e de rupturas. O feminino rizomórfico Virginia-Laura-Clarissa se delineia em platôs ambientados nas décadas de 1940, 1950 e 2000 respectivamente. Deleuze e Guattari utilizam o termo para designar “toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (1995, 32). As hastes, por sua vez, surgem no audiovisual por meio de recursos linguísticos como a intertextualidade, tal qual descrita por Julia Kristeva:

O termo intertextualidade denota transposição de um (ou alguns) sistema(s) de signos para outro: mas como este termo tem sido frequentemente entendido no senso banal de “estudo de fontes”, preferimos o termo “transposição” porque ele especifica que a passagem de um sistema de significação a outro requer uma nova articulação do tético-posicionalidade enunciativa e denotativa. (Kristeva 1984, 59-60)

Na transposição, corpus desse estudo, a escritora inglesa Virgínia Woolf é transformada em personagem literária do livro As Horas do escritor americano Michael Cunningham. A obra literária Mrs. Dalloway está presente, por sua vez, nas cenas em que a protagonista interpretada por Nicole Kidman escreve, e nas cenas em que Julianne Moore dá vida à personagem que o lê convulsivamente. Ainda, a editora Clarissa do audiovisual As Horas é uma metonímia da protagonista do livro, escrito pela escritora inglesa, lido pela personagem de Cunningham. Para levar essa rede de intertextualidade às telas, Daldry adota o paralelismo, em que o sentido do discurso ocorre na continuidade. Mikhail Bakhtin afirma que: “O discurso é como o ‘cenário’ de um determinado evento. Uma compreensão viva do significado global da palavra deve reproduzir esse evento que é a relação recíproca dos falantes” (1997, 199).O resultado é um rizoma feminino:

Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. (Deleuze e Guattari 1995, 17)

No audiovisual, a segmentaridade é representada pelo pensamento das protagonistas, as linhas de desterritorialização em suas trajetórias, e as linhas de fuga na soluções adotadas. Influenciado pelo conhecimento adquirido sobre o teatro japonês kabuki, o material fílmico de Eisenstein possibilita essa montagem por entender que “Um gesto se transforma em ginástica, a raiva é expressada através de uma cambalhota, a exaltação através de um salto mortal, lirismo, no ‘mastro da morte’” (2002a, 159). Entretanto, a ruptura de uma não protege sua predecessora de uma reestratificação, assim como o salto de entendimento da leitora não a protegeu da linha segmentar do suicídio adotada pela escritora. Como alertam Deleuze e Guattari, a todo momento podem ocorrer “formações que dão novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito” (1995, 17). Uma ilustração de como isso ocorre é, por exemplo, o fato de Laura sentir-se atormentada pela subordinação a regras que não a satisfazem, como ocorreu na trajetória de Virgínia. Clarissa chega a titubear em seus desencontros amoroso e materno, tal qual se verificou na trajetória de Laura. Mas ela desperta para outra dimensão e adota sua própria linha de fuga:

O rizoma é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza. (Deleuze e Guattari 1995, 32)

Ora, em se tratando de linhas, a comunicação entre os platôs pode ocorrer de cima para baixo, da esquerda para a direita ou transversamente. O dito real feminino nas diferentes décadas é construído, na ficção imagética de Daldry, pelo uso abundante do recurso de raccords. Dois exemplos: o despertar das três protagonistas em que uma abre os olhos, a outra se volta para o despertador e a terceira se levanta; a sequência em que uma lava o rosto, a outra o enxuga diante do espelho, e a terceira observa os cabelos no espelho. Enquanto uma personagem conclui algo iniciado por outra personagem, como lavar o rosto e prender os cabelos em frente ao espelho, o recurso de polifonia domina os quadros em um interessante exercício de dar voz ao argumento fílmico, no sentido em que é definida por Mikhail Bakhtin:

Em toda parte, é o cruzamento, a consonância ou a dissonância de réplicas do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis. Em toda parte, um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada uma de modo diferente. (Bakhtin 2008, 308)

Bakthin chama atenção para o efeito-mensagem. Em uma alusão à montagem intelectual de Eisenstein, as protagonistas são as atrações a serem neutralizadas. Sobre os conflitos justapostos em sucessivos raccords, a polifonia é erigida: “O cinema intelectual será aquele que resolver o conflito-justaposição das harmonias fisiológica e intelectual” (Eisenstein 2002a, 87). Dito de outra forma, a memória do feminino emerge tal mapa deleuziano a sustentar os platôs históricos. Ainda, sob a perspectiva do feminino rizomórfico, ou rizoma feminino, a montagem de As Horas nos permite identificar o segundo estágio das qualidades potências elucidadas por Deleuze e Guattari. Se os quadros que constroem o efeito de raccord exibem um estado de coisas espaço-movimento individualizado, a unicidade da construção resulta na imagem-afecção:

O afeto puro, o puro expressado do estado de coisas, remete de fato a um rosto que o exprime (ou a vários rostos, ou o equivalente, que acolhe e exprime o afeto como entidade complexa e assegura as conjunções virtuais entre pontos singulares desta entidade (o brilhante, o cortante, o terror, o enternecido...). (Deleuze 1983, p. 121)

Nesse ponto, ocorre a convergência entre a abordagem rizomática deleuziana e a montagem atração-conflito eisensteiniana. Em ambas, a individualização é preterida. A proposta de Eisenstein remete à montagem de estruturas ativas, a partir de “ações (atrações) arbitrariamente escolhidas e independentes (também, exteriores à composição e ao enredo vivido pelos atores), porém com o objetivo preciso de atingir um certo efeito temático final” (2018, 183). Deleuze e Guattari corroboram a ideia ao afirmar que “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. [...]tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser” (1995, 36). Técnica e filosofia edificam a força transgeracional sutil e inequívoca do feminino presente em toda a obra cinematográfica foco desta análise.

Conclusão

Assim como o caminho de Virginia Woolf até o rio Ouse é interrompido pela exibição dos créditos da obra, a pedra fundamental da narrativa fílmica extrapola os bolsos do casaco da suicida repercutindo, repetidas vezes, o limite máximo da imagem-afecção na trajetória das protagonistas. Mais que inquietudes, o feminino do audiovisual se revela uma busca por independência e autonomia. O peso das pedras, na verdade, desvela a determinação de três mulheres- platôs no embate com o fantasma do suicídio. Seria essa a linha de fuga inevitável, em que, como um decalque da morte, as personagens-platôs precisam extinguir as linhas que as mantêm conectáveis? O audiovisual parece demonstrar que sim. Deleuze acredita que “os fantasmas nos ameaçam mais na medida que não provêm do passado” (1983, 117). Afinal, as trajetórias analisadas apontam para futuros desterritorializados.

No rizoma identificado na produção, o mapa-memória estratificado no livro escrito por Virgínia desvela, até certo ponto, decalques na segmentaridade em que a personagem Laura é alicerçada. A ruptura ocorre por meio da imagem-sonho ambientada no hotel em que a personagem se hospeda. O flerte com o mapa-decalque-suicídio de 1920 é abandonado e a memória não se reproduz em 1950. Segundo Deleuze e Guattari:

Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como árvore -imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. (1995, 31-32)

As conquistas prosseguem no platô representativo de Clarissa em modalidade expandida. Ainda que imagens-lembrança se manifestem de forma contundente, há um grau de multiplicidade de segmentos em sua trajetória não verificados nos demais platôs. A maternidade a conecta com o platô representativo de Laura. A ruptura adotada, entretanto, não a liberta dos conflitos com a prole: uma recorrência transgeracional no mapa exibido nas telas.

De várias formas, o conceito de imagem-tempo cunhada por Deleuze é empregada para gerar o efeito de paralelismo na montagem entrelaçada das três narrativas. Para o autor, “a montagem é a composição, o agenciamento das imagens-movimento enquanto constituem uma imagem indireta do tempo” (Deleuze 1983, 39). No filme, falsos raccords, em que a continuidade entre os planos abrange a ruptura tempo-espaço, são empregados para conectar ações e movimentos realizados ao longo de um dia nas décadas de 1920, 1950 e 2000. Clarissa, Laura e Virginia submergem em uma rede de conflitos e ações para que o pensamento e o comportamento femininos capturem a atenção do espectador. Outro aspecto evidenciado é, em especial nas cenas em que Virginia escreve, Laura lê e Clarissa reproduz os movimentos da personagem central do romance Mrs. Dalloway, a conotação de discurso interior. Talvez essa seja uma das marcas mais fortes do cinema de Eisenstein. Ele apostava na capacidade do cinema exprimir “o jogo interior, o conflito de dúvidas, as explosões de paixão, a voz da razão, rapidamente ou em câmera lenta, marcando os ritmos diferenciados de um e outro e, ao mesmo tempo, contrastando com quase total falta de ação externa” (Eisenstein 2002a, 105). O resultado dessa combinação é uma montagem de imagens-tempo em que os conflitos explodem em linhas de fuga evolutivas. Ainda, os exercícios de intertextualidade polifônica entre o filme, os livros e os contextos sociais passados ou atuais encontram no fluxo da consciência entre os personagens e os conflitos relacionados ao tempo o habitat natural para se instalarem tal qual multiplicidades.

Por que é preciso desvendar um fim para Virginia Woolf, um caminho para Laura Brown e um novo começo para Mrs. Dalloway? Para que a vida flua e as respostas se renovem.

Mesmo que o povo tenha outra coisa a fazer do que lê-lo, mesmo que os blocos de cultura universitária ou de pseudocientificidade permaneçam demasiado penosos ou enfadonhos. Porque a ciência seria completamente louca se a deixassem agir; vejam, por exemplo, a matemática: ela não é uma ciência, mas uma prodigiosa gíria, e nomádica. Ainda e sobretudo no domínio teórico, qualquer esboço precário e pragmático é melhor do que o decalque de conceitos com seus cortes e seus progressos que nada mudam. A imperceptível ruptura em vez do corte significante. (Deleuze e Guattari 1995, 35)

Bibliografia

Bakhtin, Mikhail Mikhailóvitch.1997. Estética da Criação Verbal. Traduzido do francês por Maria Ensantina Galvão G. Pereira. São Paulo, Martins Fontes.

Cunningham, Michael.1999. As Horas. Traduzido do inglês por Beth Vieira. São Paulo, Companhia das Letras.

Deleuze, Gilles.1983. Cinema 1: A Imagem-Movimento. Tradução do francês por Stella Senra. São Paulo, Editora Brasiliense.

Deleuze, Gilles.1985. Cinema 2: A Imagem-Tempo. Tradução do francês por Stella Senra. São Paulo, Editora Brasiliense.

Deleuze, Gilles and Guattari, Félix.1995. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Traduzido do francês por Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro, Ed. 34.

Eisenstein, Sergei.2002. A forma do filme. Traduzido do inglês por Teresa Ottoni. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

Eisenstein, Sergei.2002. O sentido do filme. Traduzido do inglês por Teresa Ottoni. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

Kristeva, Julia.1974. Introdução à semanálise.Traduzido do francês por Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo, Perspectiva.

Filmografia

As Horas. 2002. Stephen Daldry. Estados Unidos/Reino Unido: Scott Rudin Productions. DVD.